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Revista Psicologia Política
On-line version ISSN 2175-1390
Rev. psicol. polít. vol.20 no.47 São Paulo Jan./Apr. 2020
ARTIGOS
Loucura em território: experimentando produção de saúde com beneficiários do programa "De volta para casa"
Madness in territory: experimenting health production with beneficiaries of the "Back to home" program
Locura en territorio: experimentando producción de salud com beneficiarios del programa "De vuelta a casa"
Folie en territoire: essayer production de santé avec bénéficiaires du programme "Retour à la maison"
Jorge Luiz da SilvaI; Alanna Figueiroa ValentimII; Jorge LyraIII
IPsicólogo. Doutorando em Psicologia pela Universidade Federal de Pernambuco UFPE. Especialista em Saúde Mental pelo Programa de Residência Multiprofissional da Universidade de Pernambuco UPE. Pesquisador do grupo de pesquisas do CNPq Gênero e Masculinidades Gema/UFPE / jorgew.lds@gmail.com
IIPsicóloga. Mestra em Saúde Coletiva pela Fundação Oswaldo Cruz/Instituto Aggeu Magalhães. Especialista em Saúde Mental pelo Programa de Residência Multiprofissional da Universidade de Pernambuco UPE / alannafigueiroa@gmail.com
IIIProfessor dos cursos de graduação e pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Pernambuco UFPE. É um dos fundadores do Instituto Papai. Psicólogo e bacharel em Psicologia pela UFPE. Mestre em Psicologia Social pela PUCSP. Doutor em Ciências (Saúde Pública) pela FIOCRUZ (Pernambuco). Líder do grupo de pesquisas do CNPq Genero e Masculinidades Gema/ UFPE / jorglyra@gmail.com
RESUMO
Este artigo se propõe a refletir sobre a desinstitucionalização e o Programa de Volta para Casa, incluindo seus impactos na saúde de pessoas longamente institucionalizadas, com base na perspectiva da produção de saúde. Tem como objetivo compreender as estratégias de produção de saúde desenvolvidas por pessoas que viveram longos processos de internação em hospitais psiquiátricos e que agora residem em Serviços Residenciais Terapêuticos localizados no município de Camaragibe/Pernambuco. No que diz respeito à metodologia, foram utilizadas cinco narrativas de homens beneficiários do programa, oriundas do banco de dados de uma pesquisa multicêntrica de caráter nacional sobre o Programa de Volta para Casa. As produções narrativas foram o material e método de análise, na perspectiva de contemplar diferentes fontes e versões do fenômeno. Como resultado, tivemos a construção e análise das possibilidades de produção de saúde a partir de dispositivos como o trabalho, a autonomia, a expressão artística e a cultura.
Palavras-chave: Loucura; Desinstitucionalização; Reforma Psiquiátrica; Programa de Volta para Casa; Produção de Saúde.
ABSTRACT
This paper proposes to reflect about deinstitutionalization and the "Back to Home" Program, as well as their impacts on the health of long institutionalized people, based on the perspective of health production. It is based on discussions about freedom as therapeutic and a new view on health, moving the focus away from the disease and centralizing the subject, their life story and their potential for constant reinvention. The paper aims to understand the strategies of health production developed by people who have lived long processes of hospitalization in psychiatric hospitals and who now reside in Residential Therapeutic Services located in the municipality of Camaragibe (Brazil). Regarding the methodology, five narratives of male beneficiaries of the program were used. Such narratives were taken from the database of a multicenter national research on the "Back to Home" program. The narrative productions were the material and method of analysis, with the aim of contemplating different sources and versions of the phenomenon. As results, we had the construction and analysis of the possibilities of health production from devices such as work, autonomy, artistic expression and culture.
Keywords: Madness; Deinstitutionalization; Psychiatric Reform; Back to Home Program; Health Production.
RESUMEN
Este artículo se propone reflexionar sobre la desinstitucionalización y el Programa "De Vuelta a Casa", y sus impactos en la salud de personas largamente institucionalizadas, con base en la perspectiva de la producción de salud. Tiene como objetivo comprender las estrategias de producción de salud desarrolladas por personas que vivieron largos procesos de internación en hospitales psiquiátricos y que ahora residen en Servicios Residenciales Terapéuticos ubicados en el municipio de Camaragibe. En lo que se refiere a la metodología, se utilizaron datos secundarios de una investigación multicéntrica de carácter nacional sobre el Programa de "Vuelta a Casa", cinco narrativas de hombres beneficiarios del programa. Las produciónes narrativas fueron el material y método de análisis, en la perspectiva de contemplar diferentes fuentes y versiones del fenómeno. Como resultados, tuvimos la construcción y análisis de las posibilidades de producción de salud a partir de dispositivos como el trabajo, la autonomía, la expresión artística y la cultura.
Palabras-clave: Locura; Desinstitucionalización; Reforma Psiquiátrica; Programa de Vuelta a Casa; Producción de Salud.
RÉSUMÉ
Cet article vise à réfléchir sur la désinstitutionnalisation et le programme Retour à la Maison, y compris ses impacts sur la santé des personnes institutionnalisées depuis longtemps, sur la base de la perspective de la production sanitaire. Il vise à comprendre les stratégies de production de santé développées par des personnes qui ont vécu de longs processus d'hospitalisation dans des hôpitaux psychiatriques et qui résident maintenant dans des services thérapeutiques résidentiels situés dans la municipalité de Camaragibe / Pernambuco. En ce qui concerne la méthodologie, cinq récits des hommes bénéficiaires du programme ont été utilisés, à partir de la base de données d'une recherche nationale multicentrique sur le programme de retour à la maison. Les productions narratives ont constitué le matériau et la méthode d'analyse, en vue d'envisager différentes sources et versions du phénomène. En conséquence, nous avons eu la construction et l'analyse des possibilités de production de santé à partir d'appareils tels que le travail, l'autonomie, l'expression artistique et la culture.
Mots-clés: Folie; Désinstitutionnalisation; Réforme psychiatrique; Programme Retour à la Maison; Production de santé.
Introdução
Este artigo se propõe a refletir sobre as repercussões da institucionalização psiquiátrica e da desinstitucionalização na vida das pessoas diagnosticadas com transtornos mentais. Com base em Goffman (1987), entendemos institucionalização como o processo pelo qual as pessoas são submetidas a longas internações em instituições de caráter total, ou seja, lugares nos quais há uma negação absoluta das singularidades, sob a influência de aparatos coercitivos que expressam relação de poder e de controle, tendo como efeito progressivo a "mortificação do eu" (p. 39). Quanto à desinstitucionalização, tomamos como o processo oposto, onde as pessoas passam, a partir da desospitalização, por um inacabado processo caracterizado por uma permanente inovação do jogo institucional e das relações, enfocando a 'reconstrução das pessoas' e a transformação dos seus modos de viver e sentir o sofrimento (Rotelli, 2001; Amarante & Torre, 2018).
A desinstitucionalização se baseia no aumento das possibilidades de convívio, no sentido de ofertar às pessoas recursos para que andem com a própria vida, sejam governantes de seus processos e protagonistas da própria história. Pelo caráter pulsante das instituições, cuja ênfase aqui é dada à instituição psiquiátrica, sua transposição tem sido possível, fazendo com que suas ideias, saberes e práticas sejam reproduzidas nos dispositivos chamados 'substitutivos', como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), entre outros de base territorial (Ministério da Saúde, 2005), que infelizmente, ainda regulam as possibilidades de produção criativa de subjetividades.
Saúde, e, portanto, a saúde mental, são aqui compreendidas como processos também complexos, multideterminados, mas essencialmente com foco em sua potência e produção de vida, estando articulados assim com as possibilidades de lazer, trabalho, sociabilidade, acesso a serviços e, principalmente, liberdade (Bernardes & Quinhones, 2009).
Desta maneira, temos como problema social a necessidade de visibilizar as tensões e repercussões dos processos de institucionalização e de desinstitucionalização na vida das pessoas, ou seja, os seus efeitos na saúde e nas possibilidades criativas delas. Desta forma, o problema de pesquisa consiste em compreender as estratégias de produção de saúde desenvolvidas por pessoas que vivenciaram longos processos de internação psiquiátrica e se encontram atualmente em processo de desinstitucionalização.
Tal problema surge guiado pelas questões: Como essas pessoas constroem seus entendimentos a respeito da saída do hospital psiquiátrico e a vida em comunidade? Como tem experienciado as possibilidades de vida proporcionadas pela vivência em liberdade? Como tem cuidado de sua saúde no contexto de aumento da autonomia que é proporcionado pela desinstitucionalização? Assim, este artigo objetiva compreender as estratégias de produção de saúde desenvolvidas no paradigma da desinstitucionalização por beneficiários do Programa de Volta para Casa residentes no município de Camaragibe/Pernambuco.
Este trabalho também se justifica na importância ético-científico-política que demarca o tema da desinstitucionalização no Brasil, uma vez que projetos societários e políticos ainda estão em disputa, evidenciando os jogos de poder/resistência em nossa sociedade, como evidenciou Souza (2016) em sua obra 'Radiografia do golpe'. Nos últimos dois anos, pelo menos, a proposta do modelo asilar tem sido retomada com força pelo Governo Federal, indo de encontro a todas as propostas de clínica/cuidado construídas a partir de quatro Conferências Nacionais de Saúde Mental (Ministério da Saúde, 2017), que são os campos legítimos de controle social e expressão democrática.
Com a publicação de novos documentos, a exemplo da portaria GM/MS 3588/17, a constante discussão sobre a inserção dos manicômios na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e os ataques ao SUS, campo em que a Reforma Psiquiátrica se efetiva, é possível perceber que no contexto do pós-golpe se pauta uma negação da cidadania das pessoas, remontando a tempos anteriores à Reforma Psiquiátrica, nas quais as concepções de sujeito se cristalizam nas doenças e nelas são baseadas suas políticas. O efeito nítido dessa estratégia é negar direitos às pessoas diagnosticadas com transtornos mentais, através da negação de sua condição de cidadão (Oliveira, Pitta, & Amarante, 2017).
Neste sentido, o artigo em questão tem sua relevância no âmbito pessoal, profissional, ético-político e científico por apresentar possibilidades de visibilizar os tensionamentos existentes e de contribuir para formulação de novas tecnologias no campo da saúde mental, na dimensão da clínica e da política.
Por fim, faz-se importante ressaltar que este estudo trabalhou com dados secundários, especificamente com as narrativas produzidas pela Pesquisa Nacional "O Programa De Volta Para Casa e a Desinstitucionalização: o impacto na vida cotidiana dos beneficiários", coordenada pela Fiocruz/Brasília, da qual participamos na condição de colaboradores/as. Tal pesquisa vem sendo desenvolvida desde o ano de 2017, tendo como um dos seus campos, a cidade do Camaragibe, no estado de Pernambuco.
A reforma psiquiátrica e as novas possibilidades no campo da saúde
A Reforma Psiquiátrica no Brasil, conforme apontam Amarante e Torre (2018), tem se instituído como um movimento que pauta muito mais que a mera redução dos leitos em hospitais psiquiátricos. Pretende operar uma mudança na forma como a sociedade enxerga e lida com a loucura no cotidiano das relações entre esses sujeitos e os territórios por onde circulam. A proposta inspirada pela Reforma Psiquiátrica italiana nos encoraja a promover o encontro entre a loucura e território, na potência de produzir saúde (Amarante, 2013).
A reforma psiquiátrica é um movimento que pode ser considerado como um conjunto de práticas de liberdade, na medida em que começa a produzir novas formas de pensar, trabalhar, organizar o campo da saúde. É um processo que assinala uma resposta política à forma como a saúde era organizada no Brasil e os efeitos disso em termos de precarização da existência (Venturini, 2010).
Nesse processo, destaca-se a importância do Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental (MTSM), fortalecido no final dos anos 70, que denunciava as más condições de trabalho e todas as irregularidades ocorridas nos manicômios, especialmente as graves torturas, o abuso de poder e as diversas formas de violação dos direitos humanos. Ainda no contexto das experiências locais de reforma, do final dos anos 1980 e início dos 1990 e do processo de implantação de uma nova política nacional de saúde mental, foi possível iniciar a elaboração de várias proposições (Amarante & Nunes, 2018).
Essas iniciativas foram fundamentais para a formulação da Portaria GM 106/2000 que instituiu, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRTs) (Portaria n. 106, 2000). Os SRTs são componentes centrais da atual política de saúde mental do SUS para a concretização de superação do modelo asilar. Sua implementação tem possibilitado para as pessoas institucionalizadas a restituição de um dos mais elementares direitos: o de morar e de viver na cidade.
De acordo com o Ministério da Saúde, as RTs se apresentam como dispositivos estratégicos na desinstitucionalização de pacientes egressos de internações de longa data em hospitais psiquiátricos. Entendidas como espaços de moradia, as RTs devem garantir "o convívio social, a reabilitação psicossocial e o resgate de cidadania do sujeito, promovendo os laços afetivos, a reinserção no espaço da cidade e a reconstrução das referências familiares" (Portaria n. 3090, 2011).
No ano seguinte, após 12 anos de tramitação, foi aprovada a Lei 10.216/, conhecida como a 'Lei da Reforma Psiquiátrica', que "dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental" (Lei n. 10.2016, 2001), trabalhando no sentido do resgate da cidadania de pessoas que viveram longos processos de internação em instituições psiquiátricas, representando um grande avanço no processo de desinstitucionalização no país.
Outra estratégia imprescindível para a efetivação da proposta de desinstitucionalização foi criada dois anos depois da aprovação da lei 10.216, o Programa de Volta para Casa (PVC). O PVC é regulamentado pela Lei n. 10.708/2003 e consiste no pagamento do auxílio reabilitação psicossocial. Seu objetivo é contribuir efetivamente para o processo de inserção social dessas pessoas, incentivando a organização de uma rede ampla e diversificada de recursos assistenciais e de cuidados, facilitadora do convívio social, capaz de assegurar o bem-estar global e estimular o exercício pleno de seus direitos civis, políticos e de cidadania (Lei n. 10.708, 2003).
Faz-se necessário ressaltar que um programa que objetiva contribuir para o processo de inserção social de egressos de longa internação psiquiátrica não pode se limitar ao repasse de recurso financeiro. Essa transferência precisa ser o início de uma estratégia a ser construída por gestores, profissionais e beneficiários, e não um fim em si mesma (Lima & Brasil, 2014).
Goffman (1987) esclarece que, se o período de internamento é muito longo, quando o sujeito retornar para o mundo exterior, poderá estar temporariamente incapaz de enfrentar alguns aspectos de sua vida diária. Desse modo, é preciso salientar que, mesmo os moradores das RTs apresentando um estado de cronificação em decorrência da longa internação, um trabalho continuado com eles não só é primordial, como produziria uma maior autonomia em vários aspectos, inclusive no que se refere ao uso do dinheiro.
Tais avanços estão ancorados em uma nova maneira de entender a saúde e a doença, que afunda suas raízes nos movimentos dos direitos civis dos anos 1960-70 e se apoia num rico passado científico, filosófico e que encontrou uma significativa referência em algumas experiências internacionais específicas. Estas experiências abalam radicalmente a ideia de cronicidade e irrecuperabilidade do paciente psiquiátrico, impõem com força a exigência de mudar a relação entre curador e curado. No início o foco fica centrado apenas na superação da instituição do manicômio, mas sucessivamente se estende para todas as práticas que acompanham e seguem este processo (Venturini, 2010).
Para Lima (2009), a saúde não pode ser pensada sem levarmos em consideração as trocas sociais, o acesso e a circulação pelo mundo da cultura como algo que pertence à existência humana. A ideia de saúde aqui está relacionada à ampliação da capacidade de realizar conexões, de afetar e ser afetado, ampliar as potências do agir e do fazer, adquirir maior plasticidade, abrir os campos de possibilidades e produzir saúde.
Segundo Bernardes e Quinhones (2009, p. 159) a produção de saúde pode ser entendida como:
Uma possibilidade de formas de viver que incluem solidariedade, cidadania, equidade, entre outros. A produção de saúde é uma provocação a tornar-se diferente do que se é, é exceder uma forma preestabelecida. Esse exceder torna-se uma prática de liberdade, criando novas respostas às condições de vida. É também uma forma de afirmação da vida, é uma potência mediante a qual a vida se autossupera porque é mutável e criadora.
A possibilidade que se abre quando se opera com a produção de saúde, com essa potência estrangeira que faz variar as formas de governo da vida, reside justamente em transformar a afetação passiva em uma afetação ativa, ou seja, em um campo aberto à provocação da alteridade (Venturini, 2010)
Venturini (2010) continua, afirmando que na comunidade existem redes de relações, primárias e secundárias, espontâneas e institucionais. Além destas, existem também outras redes sociais, formais e informais: as organizações políticas, os conselhos de bairro, as igrejas, as associações artísticas, desportivas, de socorro mútuo, culturais, lúdicas, grupos étnicos. As vezes os laços de parentesco e as redes primárias podem causar dependência, mal-estar, criar dificuldades pelo desenvolvimento da pessoa, mas pertencer a uma rede social oferece ajuda e pode contribuir para facilitar a superação de acontecimentos difíceis.
o bairro é o espaço de uma relação com o outro como ser social, exigindo um tratamento especial. Sair de casa, andar pela rua, é efetuar de tudo um ato cultural, não arbitrário: inscreve o habitante em uma rede de sinais sociais que lhes são preexistentes (os vizinhos, a configuração dos lugares, etc.). (Mayol, 2013, p. 43)
Complementando, Giovanella e Amarante (2002, p. 144), afirmam que "O território é uma força viva de relações concretas e imaginárias que as pessoas estabelecem entre si, com os objetos, com a cultura, com as relações que se dinamizam e se transformam".
Assim, tomando a desinstitucionalização como paradigma que possibilita às pessoas que viveram longos processos de internação em instituições psiquiátricas a vivência em comunidade e as relações com as dinâmicas de território a partir de novos processos de autonomia, interessa a este estudo compreender como se dá a formulação de novas estratégias de cuidado e produção de saúde por estas pessoas. Afinal, como nos diz Venturini (2010, p. 474) "Saúde é pratica de cidadania na comunidade!".
Caminhos metodológicos
O presente trabalho se configura como uma pesquisa qualitativa, que, para Turato (2005), é aquela que busca compreender o processo pelo qual os sujeitos produzem seus sentidos sobre o cotidiano (fenômenos, manifestações, ocorrências, fatos, eventos, vivências, ideias, sentimentos, assuntos) e de que maneira elaboram estas experiências.
Martinelli (1999) complementa, dizendo que a pesquisa qualitativa pretende também compreender os sujeitos em sua dimensão social complexa. É esse direcionamento que buscará compreender as experiências a partir dos sentidos construídos pelos próprios sujeitos.
Como já dito anteriormente, este estudo trabalhou com dados secundários, produzidos no ano de 2017, no desenvolvimento da pesquisa nacional (Fiocruz, 2016). A observação participante e o diário de campo foram métodos privilegiados pela pesquisa com foco na convivência corriqueira com seus/suas interlocutores/as, dentro e fora de sua moradia conforme seus itinerários cotidianos.
Para a construção destas informações, foram realizadas 6 visitas a duas Residências Terapêuticas do Município do Camaragibe, uma masculina e outra mista, nas quais foram realizadas as observações citadas anteriormente, além de conversas com cinco beneficiários do PVC, com os quais foram construídas as narrativas de vida para a referida pesquisa. A eleição destas cinco narrativas, diante do conjunto mais amplo do material construído para a pesquisa nacional, se deu através de uma reflexão da importância da análise e também da posição dos/as pesquisadores/as, que foram coprodutores/as destas cinco narrativas.
Vale ressaltar aqui que o município de Camaragibe, assim como outros no estado de Pernambuco, tem uma forte cultura antimanicomial, que se expressa através de ações cotidianas no sentido da reinserção social. Sendo o município que no passado abrigou o Hospital Alberto Maia, um dos maiores hospitais psiquiátricos da América Latina, Camaragibe hoje se constrói enquanto um importante polo de resistência e de articulação política por uma sociedade sem manicômios.
As narrativas foram utilizadas como o material e método de análise, que se assumem particularmente como coproduções, entre pesquisador e seus interlocutores, trazendo em si a possibilidade de contemplar diferentes fontes e versões. No entanto, não são frutos de entrevistas do tipo narrativa, mas inspiradas em uma metodologia feminista baseada nos escritos de Itziar Goikoetxéa e Nagore Fernández (2014), e Marcel Balasch e Marisela Montenegro (2003), conhecida como produções narrativas, na qual textos híbridos e colaborativos são construídos para evidenciar uma narrativa.
Assim, o material analisado foi construído não pela transcrição de entrevistas, mas pela produção de textos reflexivos e implicados que juntaram as observações dos/as pesquisadores/as nos diários e nas conversas com os beneficiários, cujo intuito foi refletir suas posições de sujeito e os argumentos desenvolvidos sobre sua própria biografia, em um processo constante e compartilhado que mesclou os recursos linguísticos de pesquisadores/as e interlocutores/as. Esta escolha metodológica possibilitou que a análise se iniciasse na própria produção e compartilhamento do texto, e seguisse pelo momento analítico na qual foram realizadas as leituras e conexões das narrativas com a produção científica a respeito do tema.
Para operacionalização da análise dos dados, no caso das narrativas, foi construído um diálogo com as referências do método de Gill (2002), a partir do qual se seguiram as seguintes etapas operacionais para o desenvolvimento da análise: (a) O exercício constante de estranhamento e questionamento do binômio implícito versus explícito nas narrativas; (b) A valorização do conteúdo descrito e produção paralela de 'notas analíticas', produzindo uma reflexividade sobre os discursos e sobre as múltiplas tonalidades da escrita das narrativas, as possíveis articulações com o referencial teórico, pressupostos e a posição do pesquisador; e (c) A construção de categorias narrativas a partir do objeto de interesse particular do estudo em diálogo com o que o material analisado ofereceu de possibilidade.
A principal tarefa foi identificar categorias comuns nas cinco narrativas eleitas, tentando situar as mesmas de acordo com as dimensões do estudo. Os olhares para os registros incorporaram a compreensão dos jogos de enunciados, o contexto dialógico expresso pela escrita das narrativas e as relações que elas apresentaram entre si.
Do ponto de vista das considerações éticas, este estudo assume o compromisso de seguir todas as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisa envolvendo seres humanos do Conselho Nacional de Saúde - Resoluções 466/2012 e 510/2016. Foi também submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade de Pernambuco, de CAAE: 95716418.2.0000.5207 e parecer nº 2.881.163.
Além disso, é importante informar também que foram utilizadas três estratégias com vistas a garantir um maior respeito ético em relação aos interlocutores, como visto em Mary Jane Spink (2000): O consentimento livre e esclarecido, o anonimato (os interlocutores escolheram os nomes fictícios através dos quais gostariam de ser representados nas produções-frutos de sua participação na pesquisa) e o resguardo das relações de poder abusivo.
Análises possíveis: campos discursivos na produção de vida
Antes de iniciar a discussão dos resultados construídos, faz-se importante detalhar algumas informações sobre os nossos cinco interlocutores, também compreendidos como co-produtores deste processo, no intuito de visibilizar também suas histórias de vida.
O primeiro contato com nossos interlocutores se deu através das visitas que fizemos na Residência Terapêutica Masculina, onde moram quatro deles (Erizinho, Zeca, Manoel e Zé), e na Residência Terapêutica Mista, onde reside o último (Naldo), e partiu daí para uma incursão pela cidade de Camaragibe, em encontros, uns aleatórios e outros marcados. Dos pontos de ônibus à sede do projeto de geração de renda do município, o 'Mentes que Fazem', todo o território foi pano de fundo para a (re)produção das histórias que serão brevemente apresentadas.
Erizinho, homem pardo de 46 anos, é beneficiário do PVC há 14 anos. Internado pela primeira vez aos 17 anos de idade, no Sanatório Recife (SR), atravessou diversas outras institucionalizações, em lugares como o Instituto de Psiquiatria do Recife (IPR) e o Hospital Ulysses Pernambucano (HUP), até chegar ao Hospital Alberto Maia (HAM), onde passou 15 anos, quando foi morar na Residência Terapêutica. Atualmente considerado o 'homem de confiança' da residência, Erizinho sempre gostou muito de conversar e valorizou bastante as relações interpessoais, especialmente as familiares, fugindo na época de seus internamentos ao menos uma vez na semana para dormir na casa da família. Hoje, recebe visitas frequentes de sua mãe, que vai até a R.T. ao menos três vezes na semana.
As conversas já não são o forte de Zeca, homem pardo de 55 anos de idade com quem tivemos uma complexa, mas enervante, relação. Beneficiário do PVC desde o ano de 2006, Zeca sempre deixou muito claro seus limites em nossas conversas, iniciando-as e finalizando-as quando lhe convinha. Bastante independente, mostrava-se todo o tempo preocupado e empenhado em organizar e aumentar seu patrimônio financeiro, talvez pela situação de miserabilidade em que viveu durante a maior parte da vida.
Hospitalizado pela primeira vez aos 18 anos de idade, no HAM, devido a um episódio de agressividade com transeuntes da rua onde morava, insônia e crises de choro compulsivas, viveu uma longa trajetória de internações psiquiátricas que passaram também pelo IPR e pelo Sanatório de Olinda (SO), até que retornou ao HAM, onde permaneceu por quase 25 anos, até sua saída para a R.T., em dezembro de 2005.
Manoel, com sua expressão quase sempre austera e voz rígida, foi outro interlocutor cuja relação também levou algum tempo para se desenvolver. O homem negro, de 50 anos de idade, demorou não só a se abrir, mas também a intercalar suas expressões com sorrisos afetuosos e tímidos. Na maioria das nossas conversas ele se recusava a falar sobre si, preferindo centrar as conversas na sua fé e religião, protestante, e evocando Deus constantemente em nossos diálogos. Soubemos apenas que ele passou longos anos internado na Comunidade Psicoterapêutica Nossa Senhora das Graças (CPNSG), de onde saiu para a R.T., e que não mantêm quaisquer vínculos com seus familiares consanguíneos, mas que desenvolveu uma relação familiar com os colegas de casa, nas quais frequentemente assume uma posição de autoridade. É beneficiário do PVC desde a sua implantação no município, há 15 anos.
Já para Zé, um senhor sempre muito bem arrumado e visivelmente vaidoso de 51 anos, conversar não era problema algum, desde que pudesse estar sempre acompanhado de uma trilha sonora à sua escolha. Fica quase sempre em casa, com exceção de momentos em que sai para cuidar da saúde, como ir a consultas médicas e realizar exames, pois os longos anos de reclusão se marcaram com um forte medo de se perder pelas ruas, preferindo os espaços fechados pela segurança das quatro paredes.
É beneficiário do PVC desde 2006, ano seguinte ao que foi morar na R.T., após 7 anos ininterruptos de internação na CPNSG pela cronicidade de seu alcoolismo. Com pai, mãe, irmã e irmão falecidos, a única família consanguínea de Zé é uma filha que teve com sua primeira companheira, com a qual nunca teve qualquer contato. Não demonstrou ter relações próximas com nenhum dos colegas de casa, mas um vínculo muito forte com uma das cuidadoras da R.T., a quem confia inclusive que administre seu dinheiro.
Por fim, temos Naldo, um homem também negro de 58 anos. Único dos interlocutores a morar em uma R.T. diferente, expressou forte desejo de ter sua própria casa, pois não sente proximidade com os/as companheiros/as de casa. Internado pela primeira vez em 1982 no HAM, onde permaneceu até o ano de 2004, perdeu total contato com os familiares. Também se mostrou bastante independente e disponível, desempenhando atualmente um papel de grande responsabilidade na casa, o que lhe gera muita satisfação. É beneficiário do PVC desde a implantação do programa no município, no ano de 2004.
O processo analítico que será discutido a seguir não foi realizado no sentido habitual, ou seja, não teve início após o fechamento da etapa de 'ida a campo'. Desde as primeiras incursões, nas conversas e produção dos diários de campo, o material já era visto e revisto, pensado e repensado, se configurando como elaboração e interação analítica. Assim, o que se apresenta aqui se trata do resultado de uma série de esforços, que se iniciaram como já mencionado, e que seguiram com a produção das narrativas, construção de uma matriz para organização das informações e com as leituras exaustivas de todo material e textos de apoio acerca dos temas encontrados nas narrativas, em um processo que culminou na construção de duas categorias analíticas: (1) Trabalho, autonomia e capital vital; e (2) Arte, cultura e vida.
Trabalho, autonomia e capital vital
Zé, Naldo, Zeca, Erizinho e Manoel, cada um à sua maneira, nos mostraram o quanto o trabalho é um componente importante para a organização subjetiva das pessoas, não só pelas questões relacionadas à compensação monetária na sociedade capitalista, mas também porque funciona como um impulsor dos capitais afetivos e sociais, facilitando as relações ao passo em que possibilita a produção de saúde.
Lancman (2008) afirma que é na relação do trabalho que o sujeito adulto se reconhece em um processo de identificação projetiva, de similaridades e diferenças. O cotidiano, elemento primordial do mundo do trabalho, ajuda na construção das identidades, individual e social, a partir das trocas materiais e afetivas nas relações interpessoais. O trabalho é então o espaço privilegiado de mediação subjetiva e de uma constituição complexa da vida psíquica. Assim também pensam Navarro e Padilha (2007), ao afirmarem que o trabalho não está apenas articulado com a satisfação das necessidades básicas, mas é também uma fonte de identificação pessoal e autoestima, de pertencimento social e ampliação das potencialidades.
Para Zeca, a atividade laborativa tem se desenvolvido em seu contexto de vida. Atualmente ele trabalha vendendo cópias dos inúmeros cd's que vem colecionando ao longo dos anos. Para Zeca, ter trabalho não é só ter renda, já garantida pelos benefícios do Programa de Volta para Casa (PVC) e Benefício de Prestação Continuada (BPC), mas é circular pelo bairros e cidades, ocupar os espaços de praça e transporte coletivo, estar em contato diário e frequente com outras pessoas, fora da realidade imposta pelo seu diagnóstico psiquiátrico.
De 'porta em porta', ele oferece seu material, oportunidades nas quais aproveita para esbanjar seu vasto conhecimento sobre música, como frequentemente fazia em nossas conversas. O trabalho oferece também a Zeca a possibilidade de reorganizar em si os sentidos de sua masculinidade, também posta à prova no adoecimento psíquico.
O trabalho é organizador psíquico porque proporciona cotidiano, contribuindo para a regulação de todas as outras atividades da vida. Ter trabalho a ser desenvolvido é ter hora para acordar, se alimentar e se organizar laboralmente, mas é também precisar se organizar para o lazer e o ócio, não mais disponíveis a todo momento. No entanto, Zeca tem no microempreendedorismo a forma de desenvolver uma atividade laboral não adoecedora, que não toma o centro de suas vivências e não exaure as horas de seu dia.
A experiência dele nos faz refletir sobre o lugar do trabalho na reabilitação psicossocial. Ser trabalhador é estar verdadeiramente incluído na experiência social comum aos adultos, além de ser o espaço privilegiado para o surgimento das competências e potências, há muito negadas pelo 'olhar manicomializador'. Além disso, é também o ambiente para a descoberta de desejos e aptidões, funcionando como um 'laboratório' de talentos, além da instância última para o 'descongelamento' das habilidades, frequentemente invisibilizadas pelas longas vivências em manicômios.
Zeca nos provoca ainda a refletir sobre o lugar do trabalho na vida de todos nós e na nossa sociedade, dentro da lógica produtivista/capitalista, e suas repercussões na saúde da coletividade, questionando o nosso modelo de trabalho como o centro da vida adulta, com suas jornadas intermináveis, que serve mais para satisfazer nossos prazeres consumistas do que para nos organizar subjetivamente e garantir meio de sobrevivências. Ele prova que o trabalho tem seu lugar, mas que não precisa ser o centro, e sim compor nossas experiências junto com as outras vivências de afetividade, lazer, relacionamentos, espiritualidade, etc.
Esse também é o caso de Manoel e Naldo, frequentadores do projeto municipal de geração de renda 'Mentes que Fazem', para quem o trabalho proporciona mais que o capital financeiro, uma vez que não há uma remuneração fixa pela atividade desenvolvida no espaço. A participação no projeto tem também um caráter de sociabilidade e trocas afetivas, fato evidenciado pelos interlocutores.
Eccel e Grisci (2011), em sua pesquisa sobre trabalho e gênero, trazem dos discursos de seus interlocutores a compreensão de que o homem que adoece se torna 'meio homem', pois o trabalho se liga diretamente às expectativas sociais projetadas nos homens na manutenção da ordem social patriarcal, do lugar de provedor.
Deste ponto de vista, mas do um lugar que não procura reafirmar o que foi dito pelos entrevistados da pesquisa citada, apenas se aproveitar da metáfora provocada, a possibilidade de desenvolver atividade laboral caminhou no sentido da reconstrução de Naldo e Manoel como 'homens inteiros'. Mais que isso, o trabalho, neste contexto, ofereceu-lhes a possibilidade de reinventar suas masculinidades, entendendo-as plurais e se afastando dos signos frequentemente associados ao ideal de homem na sociedade, que também são grandes causas de adoecimento psíquico.
Se o trabalho constrói regimes de poder entre os homens, como compreendido por Eccel e Grisci (2011), Manoel e Naldo o entenderam como o espaço em que também se era possível a produção de outras subjetividades masculinas, de um lugar não-tóxico, questionando os lugares de provedor, da (hetero)sexualidade e dos papéis/funções laborais frequentemente associadas ao homem, pois trabalham com atividades consideradas tipicamente femininas, como o artesanato, a tapeçaria e o bordado. O trabalho é então o ambiente no qual Manoel e Naldo se reinventam cotidianamente como homens, produzindo novas masculinidades para si e para seu entorno.
Para Zé, o trabalho não é uma realidade atual, devido às suas debilidades físicas, emocionais e algumas repercussões de seu processo de envelhecimento, mas foi um elemento evocado em seu discurso constantemente. Trabalhou desde muito cedo no engenho onde morava com o pai, desenvolvendo a maioria das atividades de plantação, capinação, colheita e planejamento, e talvez por isso a atividade laboral tenha sido dotada de um sentido tão particular.
Nos hospitais, onde Zé passou boa parte de seus 51 anos, sempre procurou ocupar-se, pois sempre achou que o trabalho tem uma função imprescindível em sua economia psíquica. De acordo com Goffman (1987), a questão é que, diferente dos trabalhos fora dos manicômios, os que lá são desenvolvidos são vazios de sentido, voltados para atingir os objetivos da instituição, sem considerar seus lugares nos processos de individuação e os desejos de quem os realiza.
Já Erizinho vislumbra a inserção no mundo do trabalho através do investimento nos estudos. Como sua educação formal foi interrompida pelas inúmeras internações em hospitais psiquiátricos, nos quais passou longos anos, agora ele se organiza para retomar os estudos, pois não quer desenvolver um trabalho apenas para ganhar dinheiro, e, no momento, nem precisa, uma vez que também possui as rendas do BPC e do PVC.
O pensamento de Erizinho coaduna com o das autoras Ribeiro e Léda (2004), que também compreendem a importância do trabalho integrado à vida das pessoas, não como simples meio de sobrevivência. Par elas, o trabalho tem sentido quando dá aos sujeitos a possibilidade de realizar seus projetos de vida, sonhos e fantasias, desvinculados do mero acesso aos bens materiais e suas simbologias.
Nas experiências de nossos interlocutores, é possível perceber que o trabalho é fonte de vida, podendo ser um espaço privilegiado para a produção de saúde no contexto da desinstitucionalização. Suas narrativas também nos fizeram entender que no trabalho é possível produzir saúde a partir de inovações dos lugares tradicionais na nossa sociedade, incluindo o próprio campo do trabalho, mas também permitindo novos olhares da relação entre a loucura e a produção na sociedade capitalista.
Arte, cultura e vida
De acordo com Amarante e Torre (2017), a relação entre a arte e o campo da saúde mental não é nova, ainda que apenas recentemente a expressão artística tenha tido seu valor terapêutico reconhecido, ao alargar as possibilidades de inovação e intervenção no cotidiano de diferentes dispositivos, e produzir subjetividades outras, através de um fazer criativo, implicado e transformador. Nas nossas narrativas, duas formas de expressão artística foram privilegiadas pelos interlocutores: a música e o teatro.
Zé e Zeca faziam usos diversos, quase compulsivos, de música. Agitavam antes (durante e depois) de consumir e o faziam sem qualquer moderação. A música era o instrumento mediador de socialização, pois era assim que sempre nos convidavam a conversar, mas era também a forma de mostrar poder, saber-poder, pois de música tudo sabiam, jogando sabiamente com a nossa relação de pesquisador-interlocutor.
Em sua pesquisa sobre a relação entre saúde mental e arte através da música, José Luiz Siqueira e Ângela Lago (2012), compreenderam que a expressão musical se relacionava com a saúde em vários aspectos, pois pode atuar como mediadora no processo de acesso à memórias-afetos das pessoas, proporcionar elaboração de conteúdos psíquicos nos jogos com as letras, ritmos e danças, reduzir o estresse e a ansiedade, auxiliando na estabilização do humor, facilitar processos de aprendizagem e plasticidade cerebral, agir como recurso expressivo e proporcionar momentos catárticos.
Zé, particularmente, tinha uma relação com a música e suas memórias tão forte, que em alguns momentos seus olhos quase podiam projetar as memórias-afetos acessadas através dos sons que ouvíamos enquanto conversávamos. Durante as nossas interações, era frequente que Zé experimentasse algumas ausências do mundo exterior e se voltasse para si, hora nos convidando a ir juntos, por vezes nos deixando 'de gaiatas no navio'. A música era o portal de acesso às lembranças felizes e ao mundo das fantasias e dos sonhos, uma sábia professora, um excelente relaxante e um poderoso antidepressivo.
Em Zeca, a música produzia intensos jogos de linguagem, oferecendo a possibilidade de reinvenção e elaboração das suas próprias histórias. Seu discurso, sempre permeado e recheado de referências musicais, era construído e reconstruído a todo momento, a partir das reflexões que as trilhas sonoras de nossas conversas suscitavam. Se, como afirmam Liliam Silva et al. (2013), a música funciona como um importante meio de comunicação, essa era a estratégia eleita por Zeca para editar, montar e veicular sua narrativa de vida, enquanto, em catarses, trabalhava seus conteúdos em associações livres entre recordar, repetir e elaborar.
Manoel e Naldo, a partir da sua inserção no 'Mentes que Fazem', produzem diálogo com a arte e cultura a partir do teatro. Neste espaço, reinventam-se, quase literalmente, nas trocas de personagem, em montagens de 'pôr em cena' seus elementos de loucura e de fora dela também. Para Amarante e Torre (2017), a arte possibilita a produção de rupturas na cultura de uma maneira geral, através das quais são possíveis a (re)inserção social e a transformação social, em especial no surgimento de um novo lugar para 'o/a louco/a' a partir de sua experiência neste campo.
Os jogos teatrais são também instrumentos potentes na produção de saúde, pois possibilitam a elaboração das experiências, emoções e sensações, proporcionando uma constante atualização subjetiva, abrindo espaço ao devir. Além disso, Manoel e Naldo também fazem do teatro o espaço para política na discussão sobre direitos humanos, universais e cidadania.
Através de sua manifestação artístico-cultural, nossos interlocutores subvertem também o lugar "padrão" imposto à arte no campo da saúde mental, o da terapia/reabilitação, pois inovam constantemente as práticas produzindo novos sentidos sobre seus próprios processos de vida, adoecimento, 'ensaudecimento' (neologismo utilizado para caracterizar o processo de produzir saúde) e relações, inaugurando constantemente novos modos de subjetivação para si e para o campo da saúde mental.
Além disso, enquanto brincam com os territórios de discriminação, preconceito e exclusão, facilitam debates sobre as interseccionalidade que compõem suas histórias de vida e atravessam seu adoecimento, oferecendo novos entendimentos sobre o lugar da arte no campo da saúde mental e da produção coletiva, estabelecendo-a como espaço privilegiado também para a transformação da realidade sociocultural vigente.
Algumas considerações
Pensar sobre a saúde mental no contexto da desinstitucionalização é sempre um exercício potente, importante e necessário. Este artigo, que se empenhou em desenvolver uma defesa do viés antimanicomial neste campo, partiu de uma concepção da reforma psiquiátrica e da luta antimanicomial como caminhos possíveis para a transformação da realidade de pessoas que muito sofreram nos longos anos de hospitalização psiquiátrica. Assim, reafirma-se o posicionamento político de defesa dos direitos humanos, de um cuidado em saúde mental pautado na liberdade e nas concepções de saúde como práticas cotidianas a serem produzidas em coletividades.
Apesar da maioria dos debates no contexto da reforma psiquiátrica já estabelecer uma relação positiva com a loucura, com o adoecimento psíquico e com o processo saúde-doença, objetivamos aqui ampliar ainda mais o escopo de possibilidades através dos quais são possíveis pensar e repensar nossas relações com sujeitos em sofrimento psíquico e a partir daí nossas próprias vivências e aflições, através da promoção de um debate sobre a mudança do paradigma no campo de estudos da saúde, com foco em suas possibilidades de criação. Além disso, é importante refletirmos sobre os impactos desse novo paradigma no contexto da desinstitucionalização, que consideramos ser campo privilegiado para a as inovações dos jogos institucionais.
Foi através da abertura para conhecer as histórias de vida desses cinco homens cujas narrativas utilizamos na produção deste texto que nos foi possível pensar as repercussões da desinstitucionalização e da inserção no PVC na sua saúde, e entender que estratégias são desenvolvidas no dia a dia para sua manutenção, e a importância do território-bairro-comunidade em seus processos de vida.
Por fim, pensar sobre produção de saúde foi também entender a importância da liberdade, de estabelecer outras relações com a cultura e com as instituições e formar novas conexões, pois nossos interlocutores assim o faziam, excedendo-se e se libertando, produzindo novas condições de vida a partir de suas próprias renovações, permitindo-se ser mutáveis e criadores. Eles nos mostraram que produzir saúde é trabalhar e ter lazer, desfilar corpos nas praças e serpentar nas ruas, andar pelo bairro e sentir-se comunidade, agir em coletividade e ser em possibilidade.
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Recebido em: 25/02/2019
Aprovado em: 19/09/2019