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Revista Psicologia Política
versión On-line ISSN 2175-1390
Rev. psicol. polít. vol.21 no.50 São Paulo ene./abr. 2021
ARTIGOS
O cárcere como sintoma no Brasil: psicanálise e implicação social na criação de Frankensteins
The prison as a symptom in Brazil: psychoanalysis and social implications in the creation of Frankensteins
La cárcel como sintoma en el Brasil: psicoanálisis e implicación social em la creación de Frankensteins
Vitória Rosa CougoI; Graziela MioloII
IPsicóloga pela Universidade Franciscana (UFN) e Mestra em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Atualmente participa do Núcleo de Psicanálise da Clínica de Estudos e Intervenções em Psicologia (CEIP/ UFSM) / vitoriarcougo@gmail.com
IIPsicóloga formada pela Universidade Franciscana (UFN) e Mestra em Psicologia Clínica pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Atualmente é Docente no curso de Psicologia e no Curso de Pós-graduação em Clínica Psicanalítica da UFN. É integrante do Grupo de Pesquisa Laboratório de Estudos em Psicanálise, literatura e política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) / grazielamiolo@hotmail.com
RESUMO
Este trabalho tem por objetivo compreender a violência do cenário carcerário brasileiro através das fotografias do juiz Sidnei Brzuska, expostas em seu Facebook, e sua relação com os afetos de fobia e de medo predominantes na cultura do país. Para isso, analisou-se a forma como o discurso capitalista perfaz o laço social e seus reflexos no contexto mencionado. A metodologia utilizada esteve pautada na teoria psicanalítica e no seu pilar de sustentação: a transferência. Concluiu-se que o sistema capitalista propõe um modo de encontro com a lei e de valoração da vida que legitima a precariedade da experiência dos sujeitos que habitam o cárcere.
Palavras-chave: Afetos; Cárcere; Capitalismo; Lei; Psicanálise.
ABSTRACT
This work aimed to understand the violence scene in Brazilian prisons through the photographs from the Judge Sidnei Brzuska, exposed in his Facebook, and relations with affections of phobia and fear, which are predominant in Brazil's culture. For this, the way in which the capitalist discourse makes the social tie and its reflections in the mentioned context was analyzed. The methodology used was based on psychoanalytic theory and on its support pillar: transference. It was concluded that the capitalist system proposes a way in which law and life's value legitimize the precariousness of the experience of the people that inhabit the prison.
Keywords: Affection; Prison; Capitalism; Law; Psychoanalysis.
RESUMEN
El presente trabajo tuvo como objetivo buscar una comprensión acerca de la violência del escenario de la cárcel brasileño a través de las fotografias del juez Sidnei Brzuska, expuestas em su Facebook, y su relación com los afectos de fobia y miedo que predominan em la cultura del país. Para ello, se analizó la forma en que el discurso capitalista representa el lazo social y sus reflejos em el contexto mencionado. La metodología utilizada es tuvo pautada em la teoria psicoanalítica y em su pilar de sustentación: la transferencia. Se concluyó que el sistema capitalista propone un modo de encuentro com la ley y de valoración de la vida que legitima la precariedad de la experiencia de los sujetos que habitan la cárcel.
Palabras clave: Afectos; Capitalismo; Ley; Cárcel; Psicoanálisis.
Introdução
"Um inimigo é alguém cuja história não se ouviu" - essa frase, impactante e provocativa, se apresenta ao longo da leitura do livro "Violência", cujo autor é o filósofo e psicanalista Slavoj Žižek. O efeito de sentido desencadeado fez com que se observasse, durante a leitura, a sustentação do autor para tal ideia, que se exemplifica a partir da convocação do personagem literário Frankenstein, de obra de Mary Shelley. Žižek pontua que esse personagem é apresentado como uma criatura estranha, que desperta afetos de ameaça, de horror e de medo, e que passa a ser compreendido, a partir disso, como um ser alheio a características humanas. No entanto, a referida escritora, na narrativa, "visita o interior de sua mente e pergunta como é ser rotulado, definido, oprimido, excomungado e até mesmo fisicamente distorcido pela sociedade" (Žižek, 2014, p. 49) e permite assim que o dito monstro conte a sua história sob seu ponto de vista. O efeito para os leitores é que essa criatura passa a perder o estatuto de coisa horrenda - com o qual todos, até então, evitam entrar em contato - e começa a se inserir em características consideradas humanas.
Esse fragmento evidencia que o abandono da posição de fuga e de defesa pode permitir a tomada de uma atitude subversiva: olhar e escutar para além das aparências. A partir disso, Žižek aproxima Frankenstein à figura do criminoso supremo, compreendendo que também "o assassino monstruoso [ao ser ouvido] se revela como um indivíduo profundamente ferido e que anseia desesperadamente por companhia e amor." (Žižek, 2014, p.49). A partir dessa metáfora, portanto, apresenta-se a temática deste trabalho: ao se avaliar que a população carcerária no Brasil sinaliza uma posição similar à de Frankenstein, as fotografias do espaço carcerário, registradas por Sidinei Brzuska1, ao assumirem uma postura de denúncia, poderiam ser consideradas subversivas?
Brzuska publica abertamente as imagens anteriormente mencionadas em seu perfil pessoal na rede social Facebook e, ao fazê-lo, apresenta, para acompanhá-las, uma/sua narrativa sobre a situação carcerária do local, a saber, do Presídio Central de Porto Alegre. O recorte de suas imagens, ao retratar a rotina dos encarcerados, questiona tanto as condições a que eles estão expostos quanto à omissão do poder político e social frente à referida situação. Em uma entrevista, datada de junho de 2011 e retirada do meio eletrônico, Brzuska se posiciona: "É uma desumanidade o que acontece dentro das nossas prisões. Chegamos ao limite da tolerância. Se as autoridades continuarem escondendo o preso da opinião pública e se esta continuar achando que presidiário não é gente, o sistema marcha para a barbárie." (Conjur, 2011).
De maneira geral, o atual contexto carcerário brasileiro aponta para uma grave superlotação, relatada pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública como a terceira maior população carcerária do mundo, em números que apontam o dobro de presos por vagas (Ministério da Justiça, 2017). Juntamente a isso, são verificadas: a acentuada precariedade das estruturas prisionais, a baixa reinserção social bem como a ineficiência do Estado em garantir a passagem do preso pelo processo de punição de forma digna (Ministério Público, 2016). Trabalhos como os de Almeida et al. (2010) e de Kolker (2002) nomeiam a experiência carcerária no país como desumana e violenta, atravessada pela imposição de sofrimentos de diversas ordens aos prisioneiros para além da perda da liberdade. Essas informações exprimem que a população carcerária se encontra em uma posição objetalizante frente ao discurso do poder estatal e diante das demandas sociais. Essa objetificação remete à instituição prisional enquanto lugar de depósito, posto que as relações que se estabelecem nesses espaços pouco viabilizam a construção de novos lugares de existência para esses sujeitos.
Acredita-se que as fotografias registradas pelo juiz evidenciam uma violência que não se dá apenas em sua face subjetiva - aquela que Žižek (2014) compreende como visível, explícita e, por vezes, sangrenta -, mas também como uma violência objetiva, chamada de sistêmica - a qual o autor explicita como sendo do campo do invisível aos olhos, aquela que "sustenta a normalidade do nível zero contra a qual percebemos algo como subjetivamente violento" (Žižek, 2014, p. 18). Com base nisso, suscita-se a existência de uma violência anterior àquela que se encontra visível nas imagens do espaço carcerário, ou seja, uma violência que age no reconhecimento dos sujeitos criminosos no laço social, interferindo na possibilidade de indignação da sociedade e do Estado acerca das condições desumanas vivenciadas pelos presos.
Desta forma, buscou-se compreender que a violência objetiva tem profunda relação com as formas de laço social possibilitadas pelo sistema capitalista. Isso viabiliza pensar que a passagem pelo cárcere, a partir desse sistema de laço social, (re)introduz o criminoso em determinados enquadramentos interpretativos, termo cunhado por Judith Butler, onde sua "vulnerabilidade, dor, interdependência, exposição, subsistência corporal, desejo, trabalho e reivindicações sobre a linguagem e pertencimento social" (Butler, 2017, p.15) serão intensificados e precarizados(as), (im)possibilitando seu florescimento no espaço social e político por outras vias, que não a do crime. Esses enquadramentos que se dão, tanto no campo material, quanto perceptual/simbólico, impossibilitam o desencadeamento de determinadas respostas afetivas humanas frente à ameaça, compreendida como desumana, a qual advém desses sujeitos. Nas palavras de Butler (2017):
O fato é que o horror e a indignação são distribuídos de forma diferenciada, e o que vale a pena observar - com surpresa e um registro diferente de horror - é como essa distribuição diferencial permanece, com frequência, despercebida e desconhecida. Não se trata de questionar a nascente compreensão do "horror" como uma resposta afetiva, mas apenas de indagar sobre as ocasiões nas quais o horror se torna a reação predominante, em contraste com aqueles outros encontros com a violência em que o horror se encontra nítida e enfaticamente ausente. (p. 227)
Assim, através das compreensões expostas, este trabalho tem por finalidade compreender de que forma a sociedade brasileira se estrutura para se estarrecer com a violência cometida pelos presos e, concomitante e paradoxalmente, legitimar aquela que se faz presente em suas políticas públicas - a qual, por sua vez, parece estar justificada por ser infligida a seres que carregam o predicado de "não ser gente". Para isso, buscou-se compreender a violência objetiva - presente no ambiente carcerário através da análise da forma com que os laços sociais se constituem no Brasil a partir do sistema de valoração capitalista -, relacionando-a aos afetos disponíveis para os criminosos, os quais, acredita-se, estariam a legitimar suas experiências no cárcere. Tais objetivos estiveram subsidiados em algumas fotografias de autoria do juiz Sidnei Brzuska2, conforme o já referido, e serão apresentadas na última parte do desenvolvimento deste trabalho, de forma a acompanhar o trajeto singular de pesquisa das autoras. Tal estudo baseou-se, primeiramente, nas investigações acerca da temática através dos interlocutores escolhidos para, somente a posteriori, costurar as percepções acerca do mundo simbólico das imagens com as fundamentações teóricas produzidas, oportunizando a elaboração e a criação de sentidos singulares, resultantes da transferência com a temática pesquisada.
Posição metodológica
Compreende-se que, para "olhar e escutar o inimigo" é necessário o abandono da visão do crime possibilitada pelo discurso moral; para isso, pretende-se assumir uma postura metodológica que viabilize reflexões sobre os criminosos brasileiros para além dos rótulos do bem e do mal; do certo e do errado; do legal e do ilegal. Tal postura será possibilitada pela teoria psicanalítica, a qual sustentará uma análise do contexto carcerário de forma a compreender a violência infligida aos presos brasileiros enquanto um sintoma social, constituinte de uma história e que veicula um saber inconsciente sobre as estruturações pulsionais do sujeito/sociedade nessa cultura. Assim, a partir da referida sustentação metodológica, o(a) pesquisador(a) em psicanálise passa a assumir uma posição, denominada por Rivera (2010) de descentramento, compreendido por "um movimento de reviramento, de subversão, de mal-estar na cultura. Tal movimento é a crítica: potência psicanalítica de acompanhar e acentuar a crise que conforma sujeito e cultura - e é capaz de transformar ambos." (p. 224). Essa postura, de descentramento e de subversão, será sustentada por um dos pilares da ética psicanalítica: a transferência.
A partir da transferência, com a temática escolhida, bem como com as fotografias selecionadas em torno dos objetivos deste trabalho, pretende-se desenvolver uma análise psicanalítica dentro de um contexto social e político. Segundo Figueiredo & Minerbo (2006), a transferência é a marca e o alicerce do que singulariza tanto uma pesquisa quanto a prática em psicanálise. Ela diz respeito aos diferentes efeitos e aos distintos caminhos que podem ser produzidos no relacionamento do(a) pesquisador(a) com a temática que escolheu investigar, pois admite a dimensão inconsciente dos processos humanos e da cultura enquanto sustentação da posição do próprio pesquisador(a) na pesquisa.
Assim, devido às circunstâncias emergenciais da temática proposta, acredita-se que esse método pode alavancar olhares, discursos e afetos que propiciem outras perspectivas para o sintoma da violência no contexto carcerário, isso porque "há algo no método psicanalítico que quando opera, traz à luz, revela; ele possui um campo disruptor no campo do sentido comum, possibilitando novas significações, resgatando a polissemia da linguagem e das experiências emocionais" (Herrmann & Lowenkron et al., 2004, p. 86).
Neste trabalho, em especial, supõe-se que tal metodologia possa configurar-se como subversiva porque pretende olhar para esses "Frankensteins Brasileiros", não somente visando a suscitar o deslocamento dos discursos políticos e afetivos dominantes, mas também a possibilitar/desencadear efeitos de humanização, à semelhança do efeito inicialmente pontuado e propiciado pela a criação literária de Mary Shelley.
A partir de agora, faz-se necessário, primeiramente, discorrer acerca do modo como o mal-estar tem permeado as relações sociais e políticas no cenário brasileiro; depois, passar a compreender como tais relações se ajustam ao modo punitivo pelo encarceramento através do sistema de valoração capitalista - o que causa efeitos na administração dos corpos criminosos que assim se encontram.
Fobia, medo e horror: a lógica do aprisionamento como sintoma social
A partir da leitura das produções do filósofo francês Michel Foucault, compreende-se que, historicamente, se tem a necessidade de isolar o que/aquilo que produz estranheza, incômodo e medo no espaço social (Foucault, 1972/2015). O crime é, então, uma ameaça visível para a civilização, e aquele que o comete, por quebrar com os contratos que a regem, sofre implicações diretas no que concerne à sua participação nos laços sociais. Na Contemporaneidade, ainda, podem-se associar a isso as interpelações massivas da mídia e de outros aparatos que estabelecem a comunicação no social, como, por exemplo, as redes sociais, que, no caso, focam a criminalidade e a violência nas cidades brasileiras, despertando, nos sujeitos, medo, horror e insegurança. A par de a mídia se constituir um recurso tecnológico importante para o social, pois narra realidades, arquiva memórias e ajuda a construir a história, compreende-se o quanto seu sistema de alcance e seu modo de sistematizar as informações (e valores) têm poder na construção de determinados enquadramentos aos criminosos e na legitimação de determinados discursos e afetos que serão então projetados nesses sujeitos (Dias & Guimarães, 2014).
Em decorrência dessa realidade e como resposta à violência e à insegurança exacerbadas, verifica-se, no Brasil, a produção de modos de vida pautados na incessante busca por proteção, caracterizando o que Dunker (2015) denomina por "lógica de condomínio". Por esse entendimento é que se pode perceber o quanto os sujeitos a isso se submetem, pois aumentam os muros e as grades das suas casas, mudam-se para condomínios extremamente vigiados e isolados, evitam caminhar à noite pelas ruas, esquivam-se de se relacionar com os outros pelo medo da frustração e, até mesmo, afastam-se do sentir, a partir da ingestão de medicamentos que eliminam a tristeza, a ansiedade e a angústia. Esses afetos e desafetos parecem ter relações importantes no modo como o mal-estar tem se estruturado na sociedade brasileira. Afinal, esses muros são construídos concreta e simbolicamente e, ao se avançar nessa metáfora, compreende-se a noção do que está legitimado: o mal está/fica do lado de fora, a fortalecer um sintoma social que se defende por meio do aprisionamento - tanto dos corpos que representam a periculosidade, quanto dos que se protegem dela - como promessa de bem-estar e segurança (Dunker, 2015).
Para Safatle (2016), o efeito de tais (des)afetos serem predominantes no cenário social brasileiro para a política é que ela se torna o equivalente à ação de gerir fobias - considerando-se, como fobia, um afeto que localiza, em objetos específicos, tanto o medo com relação a eles, quanto a busca pelo deles distanciar-se ao máximo, pois um encontro do sujeito com esse objeto pode ser, para o primeiro, desestruturante, enlouquecedor e produtor de imensa angústia. Uma sociedade que se orienta a partir desse afeto produz uma política que se estrutura com base no investimento de fuga, de afastamento e de destruição das figuras eleitas enquanto responsáveis pelo mal-estar social. Essa organização social, ao mesmo tempo em que incita relações de medo e de insegurança, viabiliza aos sujeitos livres projetarem a responsabilidade pela conformação social vigente apenas a alguns. Desse modo, aqueles que se apresentam, visivelmente, como ameaçadores, são compreendidos como responsáveis por toda e qualquer desorganização social; em vista disso, proporcionam alívio e descomprometimento ao restante da população (Davis, 2019). Nessa disposição social, o Estado cumpre sua função, a de protetor da sociedade a partir da produção de políticas que visam ao aumento da segurança através da promessa de aprisionamento ao maior número de sujeitos que venham a ameaçar a estabilidade social, acreditando evitar, com isso, o desencadeamento do mal-estar (Safatle, 2016).
Sigmund Freud (1930), em seu escrito "O mal-estar na civilização", atenta para a natureza fundante e constitutiva do mal-estar e para o desamparo na experiência civilizatória. Nesse sentido, Safatle (2016), ao realizar uma leitura atual dos processos da cultura, relacionando-os com a psicanálise, compreende que a condição de desamparo deve ser permanentemente afirmada em uma cultura enquanto atributo para a coesão dos corpos sociais, compreendendo que a sua negação pode resultar em experiências sociais sintomáticas. Assim, de acordo com o modo de estruturação política em torno do mal-estar na cultura brasileira, evidencia-se o porquê de os criminosos brasileiros serem associados à figura de Frankenstein. Afinal, eles passam a estar investidos por afetos similares aos circundados no monstro fictício, porque são considerados os responsáveis pelos afetos desagradáveis que permeiam o ambiente social brasileiro. Com isso, as posições sociais que se marcam contrárias ao desejo de fuga, de afastamento e de extermínio com relação a esses sujeitos são hoje impossibilitadas. No entanto, cabe ressaltar que as relações com o mal - pensando especificamente, neste caso, com o crime - não estiveram sempre ligadas à necessidade de aprisionamento do corpo criminoso no mundo ocidental. Tal configuração é singular da Modernidade e cabe aqui dar-se um passo atrás e compreender tanto a chegada desse modo de punição na história quanto suas possíveis relações com o sistema capitalista.
Segundo Foucault (1973/2015), a punição do criminoso passou a estar ligada diretamente ao discurso jurídico-penal e à instituição carcerária somente a partir do século XVIII. As leis jurídicas e o encarceramento surgiram como práticas punitivas complementares no lugar dos chamados rituais de suplício. Esses rituais, por sua vez, ocorriam diretamente sobre o corpo explícito e visível do criminoso, causando um dano, uma marca, como por exemplo, por meio da "fogueira para o herege, [d]o esquartejamento para os traidores, [d]o desorelhamento para os ladrões, [d]o furo da língua para os blasfemadores etc." (Foucault, 1973/2015, p. 11). Essas táticas de poder tinham, por função, equivaler o crime ao castigo, de maneira que, por vezes, o crime poderia ser pago por meio do corpo de um familiar do criminoso. Analisa-se que esse modo de punição possuía uma troca simbólica peculiar, uma vez que a justiça era feita por meio de criações e significados que aproximavam crime e castigo, além de ser executada publicamente, causando a sensação de retidão à população e de pagamento pelo crime ao criminoso.
Compreende-se que, a partir do momento em que o corpo do criminoso passa a ser administrado por meio de seu cerceio, no cárcere, ocorrem transformações nos mecanismos de troca simbólica que perpassam os laços sociais entre a sociedade e o criminoso, pela via do mal-estar. Afinal, alterações em tais mecanismos têm, por consequência para o ambiente social e político, novas formas de se relacionar com a lei, tanto do ponto de vista simbólico, quanto jurídico, gerando novas formas de vivenciar o desamparo. Isso, obviamente, desencadeia a irrupção de novos sintomas e, consequentemente, o estabelecimento de relações éticas particulares. Dessa forma, é possível analisar essas transformações por meio da teoria psicanalítica através da dinâmica das pulsões3 e de suas repressões, as quais passam a sofrer influência do discurso capitalista e têm reflexo nas formas com que o reconhecimento do criminoso vai se dar no espaço social.
Superego e capitalismo: afinal, quem se torna um Frankenstein?
A teoria psicanalítica compreende que a dinâmica das pulsões e suas repressões ocorrem através de regulações/limitações que serão internalizadas na estrutura psíquica do sujeito, formando o superego - instância, em parte, inconsciente, que representa a lei simbólica. O superego é fruto da experiência social civilizada e tem por função barrar as pulsões de se satisfazerem livremente (Freud, 1925/2011). Desse modo, a delimitação do proibido e do permitido para o sujeito social ocorrerá de diferentes formas, de acordo com as contingências de cada tempo histórico. Assim, a lei4 simbólica é atravessada pelos discursos predominantes no espaço social e político de uma cultura; no entanto, mesmo que assim se efetive, se estrutura nas relações mais arcaicas do sujeito - naquelas vivenciadas, em sua maioria, com o pai e com a mãe, na infância. Essa lei é distinta da Lei5 concreta, proposta nos códigos jurídicos que regem a sociedade, pois se inscreve no processo de constituição do sujeito que será mediado pelo olhar e pela fala do Outro - sua família e a sociedade em que se insere. Ou seja, é a partir de um discurso pré-existente à capacidade linguajeira do infante que ele se tornará sujeito. Assim, o infante se torna sujeito a um discurso/saber que nomeará, a partir da linguagem corrente no mundo, suas ações. Porém, em função do sujeito adaptar-se à linguagem, e não ao contrário, ela será sempre, em parte, inacessível e faltante, o que atesta o limite insuperável entre a coisa e a palavra, entre o sujeito e o Outro, entre a cultura e sua história, entre a lei e sua origem (Quinet, 2012). Esses limites representam a marca do que é, fundamentalmente e em parte, inacessível, inalcançável e inconsciente na humanidade falante. Decorre disso que a linguagem e os discursos são, em uma só vez, condição de mal-estar e possibilidade de acesso aos códigos plurais - Leis - da cultura, que sustentam a sociedade neurotizada.
A partir dessas considerações, convoca-se a proposição de Kehl (2002), na qual o sujeito da contemporaneidade encontra-se desestabilizado em relação às significações/simbolizações da linguagem, não somente em função do distanciamento que o sentido da vida tem tomado das reflexões filosóficas, mas, também, de sua aproximação das razões de mercado. De forma complementar, Safatle (2008) acredita que tal desestabilização6 tem estreita relação com a economia capitalista exacerbada. O discurso capitalista propõe um modo de satisfação das pulsões onde o capital é o meio para a obtenção do gozo7, sempre passível de alcance e alojado em objetos concretos: mercadorias, propriedades, etc. Esse discurso viabiliza uma ética do desejo que passa a constituir as relações através de um imperativo de gozo, o que produz uma espécie de direito ilimitado a ele. Assim, os limites, representados pelo superego, tornam-se enfraquecidos, pois passam a ter mais relação com o mundo material do que com o mundo simbólico, cujas consequências se dão a nível do pacto social (Birman, 2014).
Quando o espaço social e político produz discursos que procuram administrar os limites pulsionais na contramão da repressão superegoica, incitando a satisfação em seu imperativo, "em última instância, isso nos faz passar de uma sociedade da satisfação administrada para uma sociedade da insatisfação administrada" (Safatle, 2008, p. 133). A partir dessa dinâmica, a das pulsões, fabrica-se uma posição subjetiva social, na qual o encontro com a Lei estará em justaposição à sua possível transgressão, o que traz, por consequência, um enfraquecimento dos códigos normativos, devido a seu caráter facilmente anulável. Essa condição de formação do superego, em sua dimensão cultural, dificulta o encontro da sociedade com o mal-estar da lei/Lei de forma igualitária, o que garantiria a condição fundamental de existência civilizatória para a psicanálise, comentada anteriormente, o desamparo (Safatle, 2008).
O próprio Estado democrático brasileiro age violentamente inúmeras vezes através da abertura de exceções em nome da segurança social, espraiando, com isso, seus limites. Seu poder reprime, com ações violentas, uns em prol do bem-estar de outros. Acerca disso, Agamben (2004) compreende que esse estado de exceção, do qual o governo democrático brasileiro se utiliza - não limitado, portanto, a governos totalitários -, configura-se, assim, como um sintoma que se cria em uma estrutura política e cultural bastante complexa. Ainda, "se a norma pode ser suspensa, sem, no entanto, deixar de estar em vigor, é porque sua significação não reconhece um campo seguro de designações. Como se a anomia fosse interna ao próprio funcionamento normal da Lei", afirma Safatle (2008, p. 88). Considerando-se a anomia 8 um dos reflexos dos sintomas estruturados de acordo com as questões abordadas, compreende-se que o capitalismo influencia na possibilidade de o Estado e de o campo jurídico legitimarem estruturas normativas que agem em contradição, sem serem reconhecidas como contraditórias.
A partir dessa estruturação política em torno da Lei, cabe questionar: o que sustenta e diferencia a gestão e o reconhecimento dos corpos, distinguindo os que devem ser reprimidos, através da violência (para garantir o bem-estar de outros), daqueles que devem ser protegidos e, em sua boa condição, assegurados? Para responder a tal questão, analisa-se que o sistema capitalista pauta a valoração da produção social através do capital monetário, o que causa uma dissociação entre a produção e o seu valor de mercado e, ainda, entre o trabalho do sujeito e o seu salário/pagamento. Com base nisso, supõe-se que essa dinâmica simbólica não se encontra alheia à forma com que os sujeitos são valorados/reconhecidos no espaço social, o que significa afirmar que os sujeitos também passam por um processo de valoração econômica, indicando que suas possibilidades/impossibilidades - limites - no espaço social e político se dão em torno de sua riqueza, de seu poder, de seu potencial de produção e de consumo (Safatle, 2008).
Essa valoração da produção social que se efetiva através do capital e da riqueza produz um empobrecimento simbólico nas relações interpessoais na cultura, afinal, a possibilidade de um sujeito transgredir no espaço social sem, com isso, ser punido, vai estar relacionada com a sua produtividade/improdutividade de capital, situação essa que causa uma associação entre Lei e capital (Safatle, 2016).
Nesse sentido, avalia-se que o capitalismo se articula com o sistema penitenciário e assim o faz, efetivamente, com relação ao tempo designado ao criminoso passar pela instituição - o que causa uma dissociação e um empobrecimento também na relação entre a punição e o crime. Isso porque, da mesma forma como se tem que o pagamento do salário ao trabalhador retribui a ele a energia por ele mesmo utilizada para a produção, tem-se que a pena correspondente à infração cometida pelo criminoso não se estrutura em termos de reparação ou de ajustamento exato, mas em termos de quantidade de tempo (perdido) em liberdade - para a produção (Foucault, 1973/2015). Com relação a isso, cabe referir Melossi e Pavarini (2006), os quais suscitam a possibilidade de pensar o sujeito penal enquanto efeito de uma relação de punição, não como razão para que essa ocorra. Não só isso, para esses autores, as formas com que essas punições são estabelecidas estão fortemente relacionadas com o modo capitalista de produção e suas consequentes trocas simbólicas, o que vai acarretar uma economia política do corpo. Mas, pergunta-se: uma economia política, mas de que corpo? Ou, em outras palavras, de quem são os corpos desvalorados e, portanto, reconhecidos como criminosos no Brasil? Ainda: de quem são esses corpos que ocupam as instituições carcerárias do país? Esses questionamentos constituem-se como fundamentais, afinal, conforme aponta Zaffaroni (1991), se todas as pessoas que cometem crimes fossem igualmente criminalizadas, provavelmente não haveria pessoas, no universo social, que já não tivessem sido, diversas vezes, alvo de sanções definidas pela Lei.
Conforme dados retirados do último levantamento de Informações Penitenciárias (INFOPEN), realizado em 2016, existe uma predominância de negros (64%), de jovens entre 18 e 29 anos (55%), com baixa escolaridade (51%) e baixo nível social e econômico no perfil da população carcerária. Além disso, roubo e tráfico de drogas estão entre os crimes que mais levam as pessoas ao cárcere no Brasil, perfazendo uma porcentagem de aproximadamente 70% dos presos (Minitério da Justiça, 2017). Tais dados possibilitam concluir que a maior parte dos sujeitos encarcerados no Brasil cumpre pena por crimes relacionados a problemáticas econômicas e se enquadra em perfis marginalizados da população. Entende-se, com isso, que esses sujeitos se tornam inimigos da sociedade hoje porque se configuram, dentre outras questões, não somente como desviantes da lógica de valoração da vida estabelecida no laço social pelo sistema capitalista, como também de empecilhos a ela. Assim, estão eles em permanente vigilância no cárcere não para que se tornem produtivos, mas para que não atrapalhem a produção e o consumo do restante da sociedade (Foucault, 1973/2015). Diante disso, a punição do corpo criminoso na Modernidade parece não ter, por finalidade, possibilitar à população o valor simbólico da retidão e ao criminoso o ajustamento de condutas através da punição, mas sim viabilizar tanto a exclusão quanto o deslocamento, dos enlaces sociais e políticos, daqueles corpos que não possuem valor capital.
A partir das constatações evidenciadas, compreende-se que a implantação do sistema capitalista perpassa não só a substituição da administração do corpo criminoso da prática do suplício para o encarceramento, como também influencia no empobrecimento simbólico das relações estabelecidas entre a sociedade, o Estado e os sujeitos que têm relação com o crime. Esse empobrecimento simbólico, pautado na negação do desamparo e do mal-estar para uns e na intensificação de tais experiências para outros, impossibilita que as relações sociais se deem de forma a considerar a alteridade e a vivência democrática, ocasionando, com isso, a irrupção de sintomas sociais. Afinal, se o crime cometido pelos prisioneiros é um atentado contra a sociedade que não leva em consideração o proibido e o permitido, convém reconhecer que esse é um sintoma que não se restringe à figura do criminoso, possuindo relações com o ambiente social e político que o circunda. Tanto a produção como o consumo, o crime, a política e a punição representam modalidades de gozo bastante similares, que agem no contexto brasileiro em conformidade com uma lei simbólica fragilizada, à medida em que suas ações desconhecem limites, inviabilizando a experiência da alteridade/autoridade mencionada.
No entanto, a partir do momento em que esse sintoma não é reconhecido enquanto social, facilmente se projeta a responsabilidade - pelos sentimentos de medo, fobia e horror - na figura dos criminosos, aqueles que exerceram uma violência visível, quando então são tomados como inimigos sociais. Para esses, a punição passa a ser entendida como "uma medida de proteção, de contra guerra que a sociedade tomará contra este último." (Foucault, 1973/2015, p. 31). Essa medida será executada, em parte, pelo Estado e por seu sistema jurídico de Leis que, conforme Foucault (1973/2003), parece ter sido feito para os pobres. Afinal de contas, se os ricos as infligem, não há punição. Ou, pelo menos, não há uma punição que atravesse o corpo, desumanizando-o, porque os ricos, além de serem julgados por semelhantes - juízes e promotores que provém, em sua grande maioria, de classes elitizadas - são eles que possuem o capital, o bilhete de passagem para o mundo do infinito, onde os desejos são ilimitados, e a Lei não tem condições de ser inscrita. Assim, questiona-se: de que forma haveria a inscrição da condição de desamparo a todos os corpos da cultura, em uma sociedade em que a posse de capital determina quais são os sujeitos a serem protegidos pela Lei e aqueles que serão violentados pela mesma ordem, compreendidos como causadores do mal-estar? Aquele que deve ser negado ao invés de afirmado enquanto condição pulsional de estabelecimento da democracia na civilização?
Da Lei ao lixo: observando os Frankensteins em consonância com a ética do aprisionamento
Até o presente momento, discorreu-se acerca das implicações do modo de laço social proporcionado pelo sistema capitalista e seus reflexos na inscrição das leis/Leis, bem como sobre as afetações no modo com que o corpo criminoso é reconhecido na sociedade brasileira. A partir de agora, este estudo passa a verificar como essas questões se associam à impossibilidade de determinados afetos sociais serem despertados frente à violência subjetiva na qual os presos se encontram, ou seja, quando expostos nos espaços carcerários brasileiros.
Com base nisso, retoma-se que as violências visíveis nas prisões do Brasil denotam a precariedade da manutenção dos direitos mínimos de dignidade humana, assegurados pelas Leis no país. As imagens que serão apresentadas na sequência, não somente comprovam a inviabilização do cumprimento da Lei de Execução Penal - criada em 1984, exatamente com a finalidade de proporcionar aos criminosos direitos que lhes garantissem a sua humanidade na passagem pelo processo punitivo (Lei de Execução Penal, 1984) -, como também atesta que o Estado se ausenta da responsabilidade em mediar os espaços de encarceramento - o que permite que a desumanidade e a violência sejam infligidas/aplicadas apenas a uma parcela restrita da população. Além de estar agindo de maneira contrária à norma (que o Estado mesmo toma a si), supõe-se que, com isso, estará veiculando a legitimação de determinados enquadramentos interpretativos à população carcerária.
Conforme Birman (2010), na Modernidade, as manifestações de guerra entre as populações passam das grandes catástrofes e implosões violentas - quando o grupo mais forte e numeroso fisicamente vencia - para as confrontações políticas discursivas que, de maneira menos visível, organizam o laço social, precarizando a existência de uns e potencializando a de outros. Ou seja, a circulação da morte na cultura vincula-se ao campo político e aos modos de se governar os corpos compreendidos dentro de um mesmo Estado-Nação. Com isso, as diferenças e os conflitos entre os integrantes sociais de um mesmo grupo tornam-se assuntos ligados à autoridade do Estado, quando então a sua capacidade de mediação dos conflitos vai se opor aos mecanismos da guerra, evidenciando o fundamento intrínseco entre as relações éticas e as condições de inscrição da alteridade/autoridade no espaço social. Assim, o modo de organização desse espaço social dito civilizado resguarda o uso da violência ao Estado, considerando-o como aquele que saberá fazê-lo quando necessário e que, com isso, sustentará a sua autoridade e a organização social (Birman, 2010).
Tomando as relações discursivas ocasionadas pelo sistema capitalista, referidos anteriormente, e a situação estatal exposta, compreende-se que: (a) o uso da violência não é mais o fundamento da autoridade do soberano, como ocorria nos rituais de suplício, e sim aquilo que se torna necessário, dentro do espaço carcerário, à medida em que as estruturas de controle legítimas - representadas pelo Estado e suas Leis - perdem sua eficácia simbólica (Foucault, 1973/2003) e (b) que este empobrecimento simbólico ocasiona uma mediação conflitiva que se sustenta muito mais em função da valoração da vida em questão do que na existência da prática do crime - o que problematiza o laço social.
Ao que parece, a dissociação entre punição e crime fez com que o pagamento do crime também perdesse sua eficácia simbólica no espaço político, visto que por esse viés, se torna necessário conceber aos criminosos outras formas de punição - visíveis - para que a sociedade tenha o sentimento de retidão e de pagamento do crime. No entanto, o que fica invisível é que, para essa considerada vingança acontecer, se torna necessária a execução de um outro crime - o do Estado contra essa população. Acrescenta-se a isso, ainda, que o surgimento das facções criminosas nos presídios passa a possibilitar a garantia de acesso aos presos a mínimas condições de dignidade, ou seja, são essas facções que protegem os presos da violência veiculada pelo Estado. É sabido, no entanto, que, por vezes - e não poucas vezes -, esses ganhos vêm acompanhados de submissões outras, que acabam por reproduzir uma lógica perversa de marginalização da existência.
Essas questões suscitam que o reconhecimento legal - que se dá por meio das Leis e que deve valer para todos os seres humanos - oferece a falsa impressão de que o exercício da cidadania já é, por natureza, de todos. Butler (2017) atenta que a cidadania é algo que deve ser permanentemente conquistado no intercâmbio com o social, ou seja, existe algo de "extralegal para se tornar um cidadão, na realidade, até mesmo para se chegar a ser um sujeito capaz de comparecer diante da [L]ei." (pp. 200-201). Cabe aqui relembrar o que foi citado no início deste trabalho: ser um Frankenstein determina logo a impossibilidade de ser afetado pulsionalmente por afetos de amor e de cuidado. Carregar a representação do monstruoso, produtor de mal-estar - e não capital - e ainda ladrão das propriedades daqueles que produzem, por vezes, levando-os à morte, talvez termine por impedir a circulação de afetos de indignação às condições desumanas no meio carcerário. Assim, quando a existência dos criminosos no espaço social encontra-se enquadrada como ameaça à existência do restante da sociedade e de suas propriedades, podendo anulá-las, suas vidas não são reconhecidas como humanas e vivíveis, o que nos permite supor que talvez já estejam socialmente mortas/invisibilizadas. Afinal, conforme Butler (2017), para que vidas sejam reconhecidas como vidas humanas e inseridas no laço social de cuidado e de amor seria necessário, anteriormente, serem compreendidas como vidas passíveis de luto. No entanto, de que maneira seria possível reconhecer essas vidas como vidas humanas, passíveis de experiências carcerárias dignas e, portanto, capazes de luto se até mesmo o Estado, aquele que deveria resguardar a população de condições de barbárie, não o faz?
Dessa forma, aceitar que o modo de valoração da vida imposto pelo sistema capitalista encontra-se atravessado, nas produções afetivas, por questões que permitem à sociedade questionar a violência cometida pelos presos e, ao mesmo tempo, legitimar aquela que ocorre em suas experiências no cárcere possibilita interpretarmos os caminhos das pulsões na sociedade atual e as posições éticas e políticas possíveis de serem assumidas em relação aos presos. Diante disso, não se pode desviar de que o crime cometido pelo Estado - e compactuado pela sociedade - não é questionado, pois é executado contra aqueles que causam medo e fobia no espaço social. Tal sintoma aprisiona os corpos sociais e os impede de se identificarem enquanto interdependentes e responsáveis pela violência que produzem. Esses afetos imobilizam a sociedade e o Estado, impossibilitando-os de romperem com a lógica que estrutura e mantêm, de forma latente, a negação da existência digna dos criminosos no cárcere brasileiro.
Realidade precária e olhar político: resgatando a humanidade dos Frankensteins
Com o cenário social e político anteriormente explicitado e interpretado, abre-se espaço para visualizar a intimidade daqueles marginalizados pela ética social vigente no contexto real do cárcere, a partir das fotografias selecionadas do juiz Sidnei Brzuska. Tem-se a intenção de expressar, através de uma experiência de espelhamento ético, reflexões e análises elaboradas até o momento, compreendendo-se os modos de existência daqueles que habitam o campo do discurso social apenas pela via da violência. Assim, escolheram-se as fotografias de acordo com a possibilidade de apresentar ao leitor o contraste entre o visível e o invisível, entre a Lei e a sua ineficiência e entre a precariedade do espaço carcerário e a potência criativa possibilitada pela transferência. Seguem as imagens:
Essas imagens foram escolhidas e associadas, pois se compreende que elas apresentam uma amarragem comum: os nós (físicos e metafóricos) que se apresentam nas duas fotos. Na primeira foto, pode-se interpretar que o nó simboliza a impossibilidade de sentar no balanço, esse como um espaço destinado ao infantil. Na segunda foto, o nó simboliza a possibilidade de geração de energia à cela. A claridade que aparece como resultado dos nós, possivelmente arquitetados pelos presos, elucida a tentativa de garantia de alguma condição humana. No entanto, ao encontrarem-se visíveis e desprotegidos, ameaçam o perigo de um choque. Esses "nós" anunciam um paradoxo: ao mesmo tempo em que significam a precariedade do espaço carcerário, simbolizam a criação do ponto de vista energético e pulsional. Nesse sentido, analisa-se que o significante9 "nós" destacado pode significar, a princípio, duas coisas: (a) são nós, substantivo, "entrelaçamento de fios" (Houaiss, 2009), que enlaçam e unem duas ou mais coisas - coisas que antes estavam distantes/separadas - e (b) Nós, pronome, primeira pessoa do plural, que dá a possibilidade, pela materialidade da língua, a referência do falar em nome de um coletivo, pelo entrelaçamento de vários "eus". A partir dessas associações, compreende-se que há enlaces possíveis entre os significantes nós/Nós, relacionados às pulsões, ao infantil e à condição à qual os encarcerados encontram-se enquadrados.
O estado psíquico infantil porta algo de extra-humano, afinal, suas pulsões não se encontram totalmente inscritas na cultura e, consequentemente, nas Leis. Nesse sentido, essa inscrição é de responsabilidade ética daqueles que cuidam da infância e que, por isso, devem inseri-la nos laços da cultura através dos interditos que perpassam a condição de afetamento pulsional decorrente da incontornável relação de interdependência. Com isso, nesse período, a criança experencia uma relação de cuidado primária, quando se encontram vulneráveis as vontades e as necessidades daquele que o maneja e cuida (França & Rocha, 2015). Essa condição de inserção do considerado pequeno selvagem na cultura pode ser associada à condição de precariedade da vida, compreendida por Butler (2017) como sendo um estado de desamparo, no qual todos os sujeitos se encontram, quando perpassados na experiência em sociedade. Isso retoma, na discussão proposta por este trabalho, a ideia de que os corpos, para tornarem-se corpos humanos, necessitam de investiduras de afetos, de amor e de cuidado, para que tenham condições de florescer.
Assim, se a condição de prisão no Brasil priva os sujeitos que ali vivem de afetos e de cuidados os mais fundamentais, suscita-se a associação entre os presos e o estado de vulnerabilidade/ selvageria infantil. A visibilidade dos nós, no cárcere, enquanto impossibilidade, na primeira foto, - e enquanto ameaça, na segunda foto, lembra os afetos que circundam a figura dos presos, fazendo metáfora ao distanciamento que a sociedade e o Estado estabelecem em relação a eles, haja vista que os criminosos encontram-se na prisão à mercê das delegações do Estado que o (des)cuida e o (des)valora, rompendo com os nós que costuram o Nós. Tais reflexões incidem na seguinte questão: se a infância é compreendida como um momento em que o corpo necessita de proteção, de cuidado e de investimento e que ele estará atravessado pelos discursos predominantes da cultura: o que se sustenta de infantil nesse corpo então marginalizado pelo sistema de valoração capitalista?
Essa imagem, por sua vez, foi escolhida por tratar de uma questão essencial à vida: a alimentação. O ato de alimentar-se para (sobre)viver, em que há, ao mesmo tempo, entre o homem e outros, semelhanças (pela natureza) e diferenças (pela cultura). No entanto, quando se visualiza o preso apoiando seu alimento em uma sacola de plástico, aquela que abriga o lixo da casa daqueles que, supostamente, estão inseridos no laço social de cuidado e de amor, compreende-se o quanto é simbólica e, ao mesmo tempo, crua, a desumanização que percorre a passagem do preso pelo poder prisional. Na medida em que o Estado, representante da Lei, e a sociedade brasileira, porta-voz das problemáticas que viabilizam a existência democrática, não se preocupam em fazer a norma estar em vigor nestes espaços. As premissas que foram estipuladas a fim de garantir o amparo ao cuidado dos corpos criminosos no cárcere não têm alcance. Por um lado, a passagem da punição por meio dos rituais de suplício para o encarceramento possibilitou um empobrecimento simbólico na relação entre o criminoso e a sociedade, em função de diminuir a singularidade das punições e afetar a valoração dos criminosos. Mas, em tese, por outro lado, essa transformação deveria possibilitar uma punição reconhecida como mais civilizada, posto que o tempo aprisionado resguardaria o corpo criminoso da violência das marcas visíveis e reais ocasionadas nas práticas de suplício. No entanto, o que se percebe, através das fotografias do juiz e dos trabalhos pesquisados, é que a transformação nos mecanismos de ação do poder e das formas de se fazer "guerra contra os inimigos", pelo menos nesse campo, não se tornou menos bárbara.
Sendo assim, compreende-se, mais uma vez, o quanto esses seres precisam perder as características humanas mais fundamentais, como, por exemplo, a perda de sua possibilidade de acesso às condições mais banais de vida, para que a violência infligida no cárcere seja invisibilizada e (des)afetada. Ainda, pode-se considerar, em relação a isso, a afirmação de que o reconhecimento humano do sujeito encarcerado é gradualmente afetado na medida em que seu corpo se torna alvo de projeções sociais de vingança. Afinal, ter-se-ia coragem de infligir tais condições a alguém que se considera enquanto parte do laço social, inserido em uma relação de cuidado e de amor? As imagens expostas, portanto, (a) explicitam os enquadramentos interpretativos degradantes e precários, os quais marcam a população criminalizada no Brasil, da mesma forma como (b) propõem que esse mesmo contingente se torne o dejeto de uma sociedade que só reconhece o Outro na medida em que esse gera capital. É como se os presos, ao tornarem-se sem valor no espaço social, fossem descartados, assim como os desejos são facilmente deslocados de um objeto a outro, dentro do consumo capitalista, ou seja, da mesma forma que objetos se tornam obsoletos, sem utilidade alguma, passíveis de descarte, uma parcela determinada dos humanos, aparentemente, também.
Rivera (2010) compreende que o catador de lixos é aquele que se volta para aquilo que foi rejeitado pela sociedade, reapresentando-o, para o social, sob novas formas, e apontando-o como passível de uma certa (re)utilidade. Com base nisso, acredita-se que o olhar para as imagens selecionadas e compartilhadas pelo juiz, as quais representam a realidade carcerária brasileira, pode/pôde produzir outros enquadramentos. Por meio de elaborações linguajeiras, suscitadas no contato transferencial das pesquisadoras com os materiais pesquisados e analisados, este trabalho lançou-se, portanto, às possibilidades de efeitos estético-políticos - uma vez que, inicialmente, as próprias fotos tiraram, do lugar comum de descarte, a vida desvalida desses sujeitos "feios" e "disformes".
Fazer política é refletir, criticar e criar os modos de conformação com a realidade, construindo outros modos de vida possíveis. Assim, olhar para a estética das imagens e escutar o contexto social e político do Brasil, fomentando a posição de descentramento das pesquisadoras, possibilitou a produção de rupturas e de dissensos naquilo que está posto na cultura, configurando-se como uma atividade política. Nesse processo, metaforicamente compreendido a partir do exercício do catador de lixos, buscou-se sensibilizar afetos, representar possibilidades, tornar visível o invisível e ativar a circulação de falas mudas - inconscientes (Ramos, 2012).
A partir dessa análise, compreende-se que, para que um Nós se constitua, é necessário o enlace de outros nós. Ou seja, é no reconhecimento da condição de interdependência e de desamparo, a qual todos os sujeitos do espaço social estão expostos, que se torna possível percorrer afetos nos nós - laços sociais - que sintam os prisioneiros enquanto parte do Nós e, consequentemente, reconheçam que suas existências são responsabilidade de todo o espaço social e político. Tal questão é viabilizada, neste trabalho, através do encontro da psicanálise na cultura, na medida em que se abordou o sintoma carcerário enquanto um sintoma social, instaurado no Nós - e não enquanto sintoma pertencente apenas a uma parte da população marginalizada. Junto a isso, sustenta uma posição ética de questionamento frente às condições legais e extra-legais de proteção e cuidado fornecida pelo Estado e sua nação aos seus inimigos.
Considerações finais
Conclui-se este trabalho com algumas pontuações, visto que se reconhece e se deseja que essa temática continue reverberando indagações e abrindo espaço para outras construções. A perspectiva possibilitada pela compreensão da função política dos afetos, através da psicanálise e da ontologia, pôde auxiliar este trabalho a causar uma ruptura com a ideia de que os afetos e a política necessitam encontrar-se em campos distintos da existência humana civilizada. Os afetos são produtores de movimentações no campo político e determinam a forma com que os investimentos pulsionais irão permear os modos de governo dos corpos. Assim, ao inserir o olhar e a escuta psicanalítica aos "Frankensteins Brasileiros", possibilitou-se a evocação de interrogações acerca das desumanidades experenciadas no cárcere, abrindo espaço para se reconhecer aspectos singulares e complexos da política brasileira enquanto analisadores das dimensões éticas da cultura em questão. A partir disso, criaram-se perspectivas para a compreensão da impossibilidade de os sujeitos se indignarem com a condição de violência propiciada no cárcere. Além disso, reconhece-se que esses (des)afetos são apenas uma parte visível de um profundo e complexo sintoma social que perpassa relações enfraquecidas com o campo simbólico da lei, tornando a portabilidade do capital o meio de produção de comoção.
À medida em que se tomou uma posição que se distingue da perspectiva puramente moral do crime/criminoso, se pôde reconhecer a possibilidade de existência de uma satisfação pulsional dentro da singularidade das atividades criminosas predominantes no Brasil. Afinal, a partir do crime contra a propriedade, os sujeitos marginalizados têm condições de serem visibilizados e investidos no Nós, mesmo que por meio de afetos de medo e horror e de desejos de extermínio. A partir da experiência de gozo pulsional pelo crime, a população marginalizada torna-se passível de uma punição violenta legítima, visualizada através das fotografias do juiz, que pouco a insere na lógica produtiva ascendente nos discursos vigentes no laço social, de forma que a punição é tornar-se sem valor - sem valor capital - o que tem, por consequência, um afastamento cada vez maior da sociedade e do Estado da responsabilidade quanto ao cuidado desses corpos.
Assim, encerra-se esta conclusão com uma frase bastante comum no cenário político brasileiro acerca das problemáticas sociais e carcerárias "Bandido bom é bandido morto", aforisma esse que comporta em si aportes de muitas das reflexões desenvolvidas neste trabalho, pois bandido é o nome dado àquele que pratica atividades criminosas e a ele remete-se um desejo de morte. Devemos, portanto, questionar as condições para que alguns sujeitos sejam enquadrados como bandidos e outros não, possibilitando, por esse meio, a crítica de uma aparente criminalização seletiva que não somente viabiliza relações sociais e políticas patológicas como também impede a sociedade de se co-responsabilizar pelos sintomas violentos que produz. Tal questão evidencia que as Leis, por serem construções do social, pautadas na linguagem, devem ser também alvo de reflexões em outros campos de saber, para além do estatal e do jurídico, a fim de que não se tornem a-críticas e a-éticas, posto que sua aplicação/não aplicação perpassa questões humanas e, portanto, constitui-se campo de reverberações das repetições inconscientes dos impasses sociais de cada tempo histórico.
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Recebido em: 24/07/2019
Aprovado em: 23/03/2020
1 Juiz da Vara de Execuções Criminais de Porto Alegre/RS.
2 Essas imagens foram selecionadas a partir do contato com o perfil pessoal do referido autor das fotos, na rede social Facebook, não necessitando de autorização para serem utilizadas neste trabalho. Mesmo assim, frisa-se que se buscou contato com o autor para sua anuência, a qual foi dada sem ressalvas.
3 O conceito psicanalítico de pulsão diz respeito à carga energética somática advinda dos estímulos nervosos do corpo e que produzem representantes psíquicos, sendo eles: o afeto e a ideia. Para a psicanálise, a vida humana civilizada se movimenta a partir destas pulsões, que buscam serem satisfeitas. Porém, no seu encontro com os laços sociais, essas pulsões vão adquirindo sentidos e limitações, permitindo e singularizando a vivência social de diferentes formas na história. (Roudinesco & Plon, 1998)
4 Em "Totem e Tabu", Freud (1913/ 2013) discorre acerca do mito concebido por ele como fundador da cultura. Esse mito é constituído através do assassinato do pai primevo que ocupava um lugar de soberania ilimitada em relação aos filhos, de maneira que despojava do uso de suas pulsões de forma onipotente, barrando os filhos da experiência de gozo. A união desses filhos gerou a morte desse pai, possibilitando a dissolução da pulsão antes centralizada por ele; diante disso, esses filhos não estariam mais na posição de submissão frente ao pai, podendo possuir uma parcela de gozo. No entanto, foi necessário criar um pacto que preservaria o lugar simbólico do pai inocupado, para que todos pudessem experenciar o gozo de forma limitada, porém igualitária - sob pena de terem o mesmo fim do pai. Esse lugar passou a cumprir uma função simbólica que podemos elucidar como a possibilidade da vivência em uma civilização democrática. Esse lugar simbólico, que se chama de lei simbólica, cumpre uma função ambígua às pulsões. De um lado: o sentimento de culpa - mal-estar - que se desencadeia através da realização do desejo de morte do pai, que era um pai que oferecia segurança; de outro: o sentimento de prazer que esses filhos sentiram através da destituição da posição onipotente do pai.
5 Importante ressaltar a preocupação em colocar o termo 'Lei' em letra maiúscula. Essa pontuação é fundamental, visto que, neste trabalho, serão abordadas as concepções de Lei jurídica e lei simbólica como sendo distintas em seu papel na cultura. A primeira é resultado da ética moral que rege o processo de civilização, e a segunda é a lei simbólica, fruto do inconsciente.
6 Ressalta-se que o capitalismo não é a única relação possível com a desestabilização do homem em relação às significações da linguagem e as consequências simbólicas que isso tem para o sujeito da contemporaneidade. No entanto, neste trabalho, tal ponto será o foco das análises.
7 Para a psicanálise, o conceito de gozo diz respeito ao encontro do desejo do sujeito com a lei simbólica, com um limitador.
8 Frisa-se que a anomia não é um fenômeno característico apenas das sociedades capitalistas, ocorrendo também em regimes comunistas. No entanto, no regime comunista, a anomia e, portanto, a não vigência do processo democrático no que tange às relações estabelecidas pela forma de laço social vigente, se conforma através de um desvirtuamento daqueles que possuem e ocupam o poder de funcionamento do Estado. Já no sistema capitalista, a corrupção decorre devido à fragilidade da lei diante daqueles que detêm o poder econômico, acarretando a singularidade pontuada neste trabalho acerca do psiquismo que se constitui diante dessa última conformação social. (Herculano, 2006)
9 "Retomado por Jacques Lacan como um conceito central em seu sistema de pensamento, o significante transformou-se, em psicanálise, no elemento significativo do discurso (consciente ou inconsciente) que determina os atos, as palavras e o destino do sujeito, à sua revelia e à maneira de uma nomeação simbólica". (Roudinesco & Plon, 1998, p. 708)