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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.21 no.52 São Paulo set./dez. 2021

 

ARTIGO

 

Mídia, fake news e neoliberalismo: o uso de ferramentas de dominação no pós-verdade

 

Media, fake news and neoliberalism: the use of domination tools in the post-truth

 

Medios, fake news y neoliberalismo: el uso de herramientas de dominación en el pós-verdad

 

 

Luciane CherobiniI; Francisco Luiz MarquesII; Aline Reis Calvo HernandezIII; Patrícia BinkowskiIV

IMestre no Programa de Pós-graduação em Ambiente e Sustentabilidade pela Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS); Especialista em Educação Ambiental pela Universidade do Rio Grande (FURG); Bióloga e Nutricionista pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). E-mail: lucherobini@gmail.com
IIGraduando do Curso de Tecnologia em Sistemas para Internet pelo Instituto Federal Sul-rio-grandense (IFSUL); Jornalista; Radialista. E-mail: chico@sou.faccat.br
IIIDoutora em Psicologia Social e Metodologia pela Universidad Autônoma de Madrid, Espanha; Professora Adjunta da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS; Professora Colaboradora do Mestrado em Ambiente e Sustentabilidade da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS; Coordena o grupo de pesquisa POLEMHIS, Psicologia Política, Educação, Memórias e Histórias do Presente (CNPq). E-mail: alinehernandez@hotmail.com
IVDoutora em Desenvolvimento Rural pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); Professora Permanente no Programa de Pós-Graduação da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS). Coordena o grupo de pesquisa Observatório de Políticas e Ambiente - ObservaCampos (CNPq). E-mail: patricia-binkowski@uergs.edu.br

 

 


RESUMO

A expectativa neoliberal no início do século XXI, ao contrário das previsões, mostrou-se, em pouco mais de uma década, terreno fértil ao gérmen da corrupção que proporcionou a crise ética estampada na política brasileira até os dias atuais. Diante de uma estrutura midiática que avaliza a inépcia de governantes, a manipulação de dados só dá visibilidade ao que é conveniente à elite dominante, autenticando decisões parciais e impositivas. Neste estudo, procura- se mostrar, por meio de revisão bibliográfica, a prioridade que vem sendo dada à crença no que interessa crer, em detrimento dos fatos realmente ocorridos. Para tanto, oportuniza-se um olhar sobre a sociedade neoliberal brasileira, os serviços que lhe prestam as mídias, bem como as fake news, ferramentas que se multiplicam no pós-verdade.

Palavras-chave: Pós-verdade; Neoliberalismo; Fake News; Mídia; Manipulação.


ABSTRACT

The neoliberal expectation at the beginning of the 21st century, contrary to predictions, proved to be, in little more than a decade, fertile ground for the germ of corruption that provided the ethical crisis stamped in Brazilian politics until the present day. Faced with a media structure that endorses the ineptitude of rulers, data manipulation only gives visibility to what is convenient for the ruling elite, authenticating partial and imposing decisions. In this study, we seeks to show, through a literature review, the priority that has be given to the belief in what matters to believe, to the detriment of the facts that really occurred. To this end, a look at the Brazilian neoliberal society, the services provided by the media, as well as the fake news, tools that multiply in the post-truth, is provided.

Keywords: Post-truth; Neoliberalism; Fake News; Media; Manipulation.


RESUMEN

La expectativa neoliberal de inicios del siglo XXI, contrariamente a los vaticinios, resultó ser, en poco más de una década, terreno fértil para el germen de corrupción que proveyó la crisis ética estampada en la política brasileña hasta nuestros días. Ante una estructura mediática que avala la ineptitud de los gobernantes, la manipulación de datos solo da visibilidad a lo que conviene a la élite gobernante, autenticando decisiones parciales y imponentes. En este estudio buscamos mostrar, a través de una revisión bibliográfica, la prioridad que se le ha dado a la creencia en lo que importa creer, en detrimento de los hechos que realmente ocurrieron. Para ello, se ofrece una mirada a la sociedad neoliberal brasileña, los servicios prestados por los medios, así como las noticias falsas, herramientas que se multiplican en la posverdad.

Palabras clave: Posverdad; Neoliberalismo; Noticias falsas; Medios de comunicación; Manipulación.


 

 

Introdução

Todo momento pós propõe existente situação anterior, um momento pré que, acredita-se, teria como característica a contraposição daquilo que posteriormente exibiria uma mudança. Mas, com relação à verdade, é possível estabelecer, nesse sentido, alguma divisão? Existiriam períodos da humanidade, nos quais se possa afirmar que os fatos demonstravam ter maior valoração, ou toda a existência do homem estaria impregnada de atitudes que fazem da mentira ferramenta própria a interesses acima dos valores éticos que deveria privilegiar?

Esses questionamentos permitem que se vá além em algumas proposições e se formule, enquanto ideia, uma observação digna de análise: o pós-verdade não deveria desfrutar, em dias atuais, do rótulo que lhe é imputado de novidade, visto que aceitar uma suposta verdade que atenda a algum interesse em detrimento de uma evidência é situação que pode ser facilmente identificada em diversos episódios que marcam a passagem humana sobre o planeta.

Se na comunicação tête-à-tête supõe-se convincente a recepção da notícia devido à credibilidade depositada em quem transmite, o ato de cessão dessa credibilidade ocorre toda vez que se divulga a existência de um fato, indicando-o como verídico e identificando sua fonte - um terceiro - como fidedigno. Não deixa de ser como passar um cheque em branco assinado toda vez que se aceita transferir a credibilidade dispensada, avalizando as afirmações de outra pessoa, mesmo quando há dúvidas sobre a solidez de fundamentos naquilo que se transmite.

Não seria à toa que os maiores cachês pagos em campanhas publicitárias, no Brasil, se dirigem a pessoas com ampla divulgação na mídia que emprestam sua imagem à venda de um produto. A própria mídia, seguindo esse raciocínio, presume-se, tenha um preço também para vender sua imagem condicionado, é claro, à necessidade do mercado. Como afirmam Guerra e Barbosa (2017), não há valor senão aquele que lhe dá o interpretante, sujeito capaz de lhe conceder preços diferentes em diferentes eventos, apesar de sabê-lo o mesmo em todas as situações.

A manipulação que os veículos de comunicação impressa, eletrônica e digital exercem por meio das informações que divulgam exibe capacidade de promover grandes transformações. Agregue-se a isso a penetração que as fake news têm junto aos usuários de aplicativos utilizados nas redes sociais e a amplitude dessas transformações se multiplica a proporções imensuráveis. Exemplos disso puderam ser vivenciados em quatro episódios, ocorridos nos últimos cinco anos, onde ficou explícito o pós-verdade: o Reino Unido e a proposta de saída da União Europeia; o impeachment de Dilma Rousseff na presidência do Brasil; a vitória do Não no plebiscito do Acordo de Paz na Colômbia; e a eleição presidencial nos Estados Unidos que levou Donald Trump à vitória.

A partir do livro Psicologia, Comunicação e Pós-verdade, organizado por Pedrinho Guareschi, Denise Amon e André Guerra (2017), procurou-se por meio de resenha crítica analisar a utilização dos meios de comunicação e as repercussões sentidas no contexto brasileiro identificando-se, nesta e em outras obras, o modelo político como plataforma que ascendeu a manipulação midiática no Brasil como ferramenta pós-verdade e se coadunou aos interesses das classes dominantes.

Para isso, procurou-se reunir subsídios sobre temas como mídias, redes sociais, fake news e situá-los em momentos que vão desde os anos finais do século XX até a paralisação dos caminhoneiros ocorrida em maio de 2018, a fim de entender o pós-verdade e disseminar alerta para a necessidade da criticidade e aplicação de valores éticos diante do que é divulgado nos meios de comunicação.

Com esse pensamento, procurou-se atender a um questionamento que se manteve permanente durante todo o trabalho: como se processa a dominação exercida pelas mídias - impressa, eletrônica e digital - no momento pós-verdade que se vive no Brasil?

 

1. A mídia no pós-verdade: manipulação coletiva?

A evolução civilizatória, via de regra, é encarada como um processo positivo. Contudo, apesar de inúmeros resultados construtivos estarem presentes com maior intensidade na memória humana, algumas situações, sob um olhar mais aguçado, poderiam ser consideradas um retrocesso, por exemplo: o progresso sem planificação levou à urbanização desmesurada em detrimento da conservação ambiental, a ampliação do agrobusiness trouxe como consequência o uso de agrotóxicos que hoje atinge patamares alarmantes.

Outra situação que poderia em certas circunstâncias ser encarada como movimento regressivo é o momento sociocomportamental atual que escapa ao conhecimento de significativa parcela da população - vítima de um processo de aculturação - que alheia às consequências que lhe vêm sendo imputadas permite com servil aquiescência a influência do pós-verdade. Rossatto e Leobeth (2017) afirmam que o pós-verdade frequenta com assiduidade os meios de comunicação pelas dúvidas que seu significado tem gerado, assim como à dificuldade encontrada em lhe associar um aspecto positivo.

Para que se possa entender a propagação do pós-verdade na sociedade brasileira contemporânea, necessário se faz um breve recuo no tempo até às origens do pensamento neoliberal brasileiro. O neoliberalismo que se instalou no país partir da década de 1980, se respaldava no apelo popular da extinção de um período com mais de 20 anos de ditadura civil militar e acenava com propostas de colocar o trem nos trilhos outra vez - como se ele já estivera nos trilhos alguma vez.

O neoliberalismo, segundo Chomsky (2002), não deve ser visto como novidade, pois corresponde simplesmente a uma versão maquiada da opressão de uma minoria abastada sobre a grande maioria da sociedade, cujos direitos civis e políticos são mantidos esmagados há séculos, à custa de gigantescas desigualdades socioeconômicas. Conforme o autor, essa prática, feudalista em sua essência, contribui para que sobrevivam as privações que passam os povos mais pobres do mundo, incentivando o crescimento sem precedentes das fortunas dos poderosos à custa da expansão dos desastres ecológicos e da instabilidade econômica global.

Acreditava-se, à época do movimento 'Diretas Já', que a realização de uma Assembleia Nacional Constituinte seria um divisor de águas, momento de expectativa onde se esperavam superadas as injustiças, as perseguições, as desigualdades perpetradas contra o povo, trazendo a bem aventurança tão sonhada.

Promulgada a Constituição de 1988, viu-se que muito do que fora sonhado ficara para trás na retórica dos discursos, construindo-se na prática um instrumento que atendia aos interesses da mesma classe dominadora sobre a mesma classe oprimida, e pouco se fora além de uns poucos arranhões em aspectos que se esperava sofressem reais transformações.

Chomsky (1993) explica que, se o governo não pode controlar as pessoas pela força, tem que encontrar uma maneira de controlá-las através do pensamento, induzindo-as a aceitar suas propostas por meio da fabricação de consentimento, deixando-as à margem das decisões, marginalizadas em um tipo de apatia. Esse procedimento já se tornara uso-frequente na política brasileira desde o descobrimento.

Neologismos à parte, a expressão pós-verdade foi eleita palavra do ano de 2016 pelo dicionário Oxford, que a conceituou como: "'um adjetivo definido como relativo a ou denotando circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência na formação da opinião pública do que apelos à emoção e às crenças pessoais'" (Visentini & Leobeth, 2017, p. 245).

Afirmam as autoras que parte da responsabilidade pela ampliação na utilização de tal expressão é creditada às mobilizações políticas e midiáticas que emergiram diante da descrença manifesta que o público demonstra nos meios de comunicação tradicionais - o rádio, a televisão e a mídia impressa - que abertamente estampam, em seus programas, manchetes, editoriais e entrevistas, a ausência deontológica no exercício de atividade que deveria pautar pela verdade.

Cavalheiro e Brandão (2017), em referência ao processo comunicativo afirmam que a ética é necessária e deve ser priorizada para que a compreensão ocorra com respeito e igualdade, diferentemente da promoção de imposições, dominação, enganos e exclusão. Nesse sentido, a ação comunicativa conforme Jovchelovitch (2017) precisa ser um diálogo não coercitivo onde se busca um entendimento mútuo que não ocorra simplesmente para que existam vantagens individuais, como acontece na ação estratégica, que tem como característica a influência ou o exercício pleno da dominação como fim.

Na vida social, entretanto, são percebidas as distorções desse processo nos discursos orientados para influenciar ou enganar: a forma como a mídia destaca temas e trabalha seus modos de dizer corrobora para determinadas construções de imagens que são formadas de organizações, acontecimentos e personalidades; o discurso publicitário constrói representações e evoca sentimentos voltados ao consumo; atores e partidos políticos, na busca pelo poder, se utilizam de estratégias para sobrepor as suas versões dos fatos; na fala comum do dia a dia, as pessoas argumentam de forma persuasiva, visando a determinados interesses ou simplesmente sobrepor seus pontos de vista. (Cavalheiro & Brandão, 2017, p. 86-87)

A manipulação de informações não é fato novo na comunicação circulante em todas as mídias. Detentores de uma concessão do Estado, regulamentada pela Constituição Federal de 1988 que prevê, em seu Capítulo V, a sujeição da mídia eletrônica a princípios e regras como serviço público pertencente aos brasileiros (Constituição, 1988) - portanto, com uso vetado a interesses privados - empresários e conglomerados econômicos fazem uso dos veículos de comunicação de massa com finalidades diversas.

A pesquisa de monitoramento da propriedade da mídia (Media Ownership Monitor - MOM), realizada em 12 países e publicada pelo coletivo Intervozes e pela organização Repórteres sem Fronteira, revelou que atividades de setores econômicos como saúde, educação, agropecuária, infraestrutura, transporte e mercados financeiro e imobiliário, no Brasil, são também interesses dos donos dos meios de comunicação (Stevanim, 2018). Tal situação agrava-se sobremaneira no país, quando a concentração dos meios de comunicação nas mãos de poucos donos contraria o artigo 220 da Constituição Federal - os meios de comunicação não podem ser objeto de monopólio ou oligopólio - e prejudica a pluralidade e a democracia.

Ao mapear os 50 veículos ou redes de comunicação de maior audiência no país, tanto na mídia impressa, rádio, TV e on-line, o projeto constatou que a concentração da mídia em poucos donos é um indicador de alto risco à pluralidade: os 50 maiores meios de comunicação pertencem a 26 grupos, e metade são de propriedade de apenas cinco grandes grupos (Globo, Bandeirantes, Record, Folha e grupo regional RBS). (Stevanim, 2018, p. 29)

A pesquisa revela, também, que 73% das sedes dos grupos de mídia instalados no país ficam na região metropolitana de São Paulo, numa espécie de centralização do comando, o que contribui para que aconteça um comprometimento na diversidade da informação e, em detrimento de temas que interessam a outras regiões, as decisões editoriais recaiam sobre notícias específicas que atendem a uma pauta direcionada a interesses outros que divergem da finalidade que a mídia deveria ter (Stevanim, 2018).

Essa divergência de propósito é sentida de maneira significativa nas abordagens presentes nos telejornais, quando, segundo Guareschi e Biz (2017), todas as notícias divulgadas sofrem uma filtragem e nenhuma é veiculada sem que haja algum interesse, algum valor ou conotação importante e/ou favorável aos detentores do poder. E prevalecem os tratamentos dados aos fatos antes de divulgá-los, com a preocupação de torná-los digeríveis como remédio do qual se tem previstos os efeitos.

A informação é um detalhe no emaranhado de opiniões e 'impressões dos bastidores'. O fato importa menos do que como os jornalistas/analistas veem o fato. E as opiniões precisam ser ditas rápida e ininterruptamente para que elas passem a 'ser o fato', antes que o leitor/telespectador possa tirar suas próprias conclusões. O contexto não é mais formado pelas circunstâncias que envolvem o fato em si, mas pelas opiniões dos jornalistas que o enquadram e embrulham para o público. (Queiroz, 2016, p. 1)

Nesse cenário, cujo pano de fundo contempla a ascensão ao poder como objetivo a ser alcançado e exibe o acúmulo de capital qual entidade entronizada, são brindados com credibilidade falsos acontecimentos, depoimentos e testemunhos que contribuem para que seja aceita, complacentemente, uma situação de pós-verdade:

Paralelo à evolução tecnológica, os aparatos de dominação assumem a mesma dinâmica de evolução, com o intuito de pleitear a involução dos intelectos a serem apropriados, instaurando o imediatismo nas consciências que, ao elencarem (in)voluntariamente o consumismo, a otimização do tempo para a eficácia de tal pleito e a personificação da apreensão destes arquétipos, se torna mais prodigiosa mediante o avanço da tecnologia que, aparelhada para dominação, imputa a mera execução operacional e determinada objetividade acrítica. (Rezende, 2016, p. 542)

É, portanto, na apropriação indébita da condição de verídicas que pseudoverdades ganham espaço nos meios de comunicação e, sem serem submetidas a qualquer avaliação crítica por parte do receptor, acabam exercendo influência nas suas atitudes, criam tendências comportamentais, ditam modismos e estilos, geram necessidades e estimulam o consumismo.

Nas sociedades democráticas contemporâneas os valores são estabelecidos como mercadoria, fomentando uma cultura pré-fabricada em um âmbito totalitário, mistificando a concepção de divisão de classes estabelecida, pois, além do caráter inebriante instigado por uma práxis consumista, a disponibilidade dos produtos aliada a uma determinada possibilidade de compra - mesmo que seja falsa por aspectos inerentes à própria estrutura - se torna um desejo compactuado, independentemente da classe a que pertença o indivíduo que, a partir de então, recebe a patente de consumidor. (Rezende, 2016, p. 543)

Assim, se constroem estereótipos que servem aos interesses oligárquicos como matéria-prima para a perpetuação dos mesmos clãs instalados no poder geração após geração, que, enraizados, mantêm o exercício de um processo político que tem como uma de suas marcas a retroação.

Como arma à disposição de um arsenal utilizado na consolidação da dominação, a comunicação instantânea mostra facilidade de penetração e transita livremente pelos estratos sociais. Sugere ao usuário o sentimento de inclusão e pertencimento a uma coletividade que lhe acolhe, a descoberta de um espaço que lhe complementa, mantendo-o alheio aos distanciamentos econômicos e/ou culturais à sua volta, oferecendo-lhe segundo Guareschi e Biz (2017) acontecimentos recentes e serviços, enquanto reúne informações a seu respeito que permitirão o uso do marketing certo em futuras situações.

 

2. A mídia digital e os riscos no pós-verdade

Há uma conexão estabelecida entre a sociedade e a internet - que deixou de ser vista como um mundo à parte. Veículo de interesse econômico e corporativo nas mãos de uma minoria que o manipula conforme necessidades sociopolíticas, a rede mundial molda e define "...desde nossa comunicação, os estereótipos que reproduzimos, passando pela espionagem virtual e controlando os fluxos da cidade" (Betat, 2017, p. 229).

Em fevereiro de 2004, o Facebook surgia na internet como mídia social e rede social virtual. Iria atrair, em curto espaço de tempo, pessoas que migravam do Orkut, além de usuários que utilizavam as plataformas de comunicação ICQ, Yahoo Messenger, Skype (ainda ativo) e MSN Messenger (que mais tarde se transformaria no Windows Live Messenger, disponível ainda nos dias atuais). Em 2005, três ex-funcionários do PayPal criavam o YouTube, plataforma de compartilhamento de vídeos, que, em novembro de 2006, seria adquirida pelo Google. Em julho de 2006, o Twitter se apresentava ao público como outra rede social virtual, estabelecendo-se na 12ª posição do ranking global, conforme levantamento de junho de 2018 (Alexa, 2018).

Em 2009, entrava em operação um aplicativo multiplataforma de mensagens instantâneas que iria fidelizar, em números aproximados, um bilhão e meio de usuários diários ativos, conforme dados apurados em janeiro de 2018 (Soares, 2018), sendo que 120 milhões desses usuários já estavam cadastrados no Brasil em maio de 2017 (Estadão, 2017): o WhatsApp, fenômeno que se integrou ao dia a dia das pessoas e adquiriu status de ferramenta imprescindível.

O Instagram, disponível aos usuários desde 2010, oferece o compartilhamento de fotos e vídeos através de uma rede social online, com a possiblidade de aplicação de filtros digitais e compartilhamento em outras redes sociais.

Repentinamente, descobriu-se que é só ter disponíveis o sinal do wi-fi e a respectiva senha, ou o acesso à rede de dados funcionando, e a comunicação está estabelecida com os amigos, próximos ou distantes - muitos deles nem se pensava existissem, outros nunca serão encontrados pessoalmente - a um simples deslizar dos dedos no teclado do smartphone, a tal ponto que, em um segundo, participa-se de uma campanha que busca minimizar os efeitos do aquecimento global no Alaska e, em outro, sabe-se todos os detalhes do vestido da nova princesa da Inglaterra e seu comportamento durante o casamento real.

Palfrey e Gasser (2011) explicam que o mundo que se descortina com o uso da mídia digital permite ao usuário não somente se comunicar com seus pares, mas também interagir com o conteúdo, manipulando-o, criando novas formas de expressão, por meio de texto, imagens, vídeos e arquivos de áudio que podem ser posteriormente compartilhados, não mais apresentando suas características originais.

Admita-se que esse tempo pós-verdade exiba características que lhe atribuem o significado de um novo padrão de comportamento, no qual "veracidade ou falsidade, existência ou inexistência, não fazem a menor diferença" (Amon & Idiart, 2017, p. 53), onde é dedicado valor maior àquilo que ratifica a opinião que se tem sobre um fato em detrimento do fato em si. Feito isso, agregue-se a esse contexto a necessidade manifesta que as pessoas têm de encontrar canais para transmitir e compartilhar suas ideias e convicções. Estaria assim delineado o terreno propício à comunicação por meio de instrumentos capazes de, penetrando em todas as esferas sociais, indiscriminadamente, reunir posicionamentos e preferências que denunciam gostos e escolhas, caminho aberto à influência e, posteriormente, à dominação.

A força da dominação sempre será diretamente proporcional à inconsciência dos dominados a respeito de sua própria submissão. É o não saber dos dominados que contribui para o desfecho satisfatório do dominador, já que este necessita dos dominados como cúmplices de sua dominação, processo este no qual a inconsciência é o elemento mais relevante. (Guareschi, Amon, & Guerra, 2017, p. 341)

Se a mídia digital cativou boa parte do público ao oferecer rapidamente acesso a notícias e outras informações em tempo real, os usuários que deixaram de acessar os canais convencionais desconhecem que, nas ondas da nova tecnologia, também navegam notícias de autenticidade duvidosa que, segundo Cavalheiro e Brandão (2017) são capazes de disseminar perplexidade e tumulto na comunicação que atende aos processos sociais.

Temos que em um contexto pós-verdade fatos objetivos são menos relevantes para a opinião pública do que argumentos dedicados à mobilização emocional das pessoas, bem como às suas crenças. Ou seja, há uma mudança de valor quanto à verdade, que, nessa circunstância, passa a ser aceita ou desejada na medida em que ela se adequa às concepções já formadas pela pessoa. (Rossatto & Leobeth, 2017, p. 293)

Se a primazia que os fatos, supunha-se, exerciam sobre as crenças, sofreu abalo a partir da expansão da informação digital instantânea e descomprometida que as novas mídias (WhatsApp, Youtube, Facebook, Twitter, Instagram etc.) implantaram, boa parcela de culpa deve ser creditada à ânsia que os indivíduos têm expressado pela interação imediata, oportuna demonstração de pertencimento a um grupo ou segmento social, onde as opiniões convergem para os mesmos propósitos, alguns entendendo sobre o que estão se manifestando, outros não. Segundo Rossatto e Leobeth (2017), quando concorda com a opinião de alguém, a pessoa acaba por replicar a informação que recebe, sem sequer apurar sua veracidade.

Por mais que se tenha habilidades de seleção - que talvez seja a competência educativa do milênio - ainda assim restará sempre uma angústia indissolúvel - por mais competentemente ignorada que ela seja: qual o critério de seleção podemos usar para selecionar a pertinência dos fatos - a sua veracidade - senão a crença na própria capacidade de discernimento? (Guareschi et al., 2017, p. 340)

E essa capacidade de discernimento, que permanentemente deveria estar em estado de alerta, em alguns momentos, parece suscetível a cochilos. Conforme Betat (2017), o uso de artifícios que a mídia utiliza para manipular opiniões não é nenhuma novidade, o que chama atenção são as estratégias que se diversificam rapidamente e alcançam as redes sociais como um fenômeno, com quantidade assustadora de notícias falsas que, assim como podem gerar dúvidas sem grandes consequências, também podem se tornar uma ameaça à estabilidade socioeconômica de um país.

 

3. Fake news: abusos em ambiente pós-verdade

O mundo digital pós-verdade, no qual transitam informações acessadas diariamente via redes sociais, tornou-se ambiente propício à indução, à manipulação e às fake news. Mas o que é fake news? Literalmente, a tradução do termo na língua inglesa é notícias falsas, contudo no contexto midiático a expressão agregou, também, outro significado mais amplo, visto que pode definir uma postagem que ganha credibilidade e força, promovendo forte impacto no meio social - apesar de não verídica - pela divulgação maciça que tem e pela não contestação que os receptores demonstram, aceitando-a e encaminhando-a a outro usuário, dando-lhe uma espécie de aval. "Estas notícias falsas ganham credibilidade e força dependendo daqueles que as propagam e sua influência na rede" (Quirós, 2017).

Alguns episódios da história recente tiveram seus desdobramentos associados à dimensão que atingiram nas mídias sociais com o uso de fake news. Conforme Visentini e Leobeth (2017), quatro fatos tiveram alcances que extrapolaram o perímetro dos países de origem e repercutiram no mundo inteiro: o Brexit, no Reino Unido; o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff no Brasil; o plebiscito do Acordo de Paz na Colômbia; e a eleição de Donald Trump para presidente dos Estados Unidos.

Esses episódios têm em comum estratégias de convencimento do público fundamentadas em notícias falsas, apelo a valores e crenças, uso indiscriminado de novas tecnologias e, inclusive o aprimoramento desses aparatos visando à conquista de objetivos traçados por agentes desses casos. Até então, estava em um terreno totalmente inimaginável a saída do Reino Unido da União Europeia, a ascensão de Donald Trump à Casa Branca, a vitória popular do 'não' ao Acordo de Paz que colocaria fim ao estado histórico de violência de guerra vivenciado na Colômbia, e o golpe que tirou da presidência do Brasil a primeira mulher eleita para governar o país. (Visentini & Leobeth, 2017, p. 246)

Vale lembrar que os quatro episódios citados ocorreram no ano de 2016 e têm em comum a mobilização em campanhas pró e contra as mudanças que eram propostas, o que marca o apelo à população para que se posicione - de direita ou de esquerda - em um processo de extrema polarização da opinião pública, cujo cenário fora construído para somente duas possibilidades: ou a favor, ou contra (Visentini & Leobeth, 2017).

Outro acontecimento que merece atenção por ter apresentado episódios onde se via explícita a existência de fake news na circulação de informações foi a paralisação dos caminhoneiros, que eclodiu em 21 de maio de 2018, durou 11 dias, manteve o bloqueio de rodovias em 24 estados e no Distrito Federal, provocando, além da falta de transporte coletivo no período, o desabastecimento desde combustíveis até gêneros alimentícios em todo o território brasileiro.

Como resultado, o governo federal, após negociações com representantes da categoria, cedeu às exigências dos manifestantes, reduzindo quarenta e seis centavos no preço do diesel por litro, comprometendo-se a manter o valor estabelecido por dois meses e garantindo que novos reajustes passariam a ser mensais. Além disso, a isenção de pedágio em caminhões com eixos suspensos seria garantida por medida provisória, 30% dos fretes da Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB) seriam realizados por caminhoneiros autônomos e a tabela mínima de fretes entraria em vigência, também, por medida provisória em curto espaço de tempo (Alessi & Avendaño, 2018).

Duas situações ficaram evidentes durante a paralisação dos caminhoneiros: a cobertura seletiva que os veículos de comunicação da mídia tradicional dedicavam ao fato e, descaradamente, filtravam o que deveria ser divulgado ao público, destacando os pontos negativos do desabastecimento e não divulgando o maciço apoio que a população dava ao movimento; e a divulgação de fake news que agitavam bandeiras políticas das mais variadas cores, identificadas com campanhas de propósitos diversos, que assomavam as mídias sociais e provocavam um desencontro generalizado de informações.

Com respeito às fake news, a revista IstoÉ fez um levantamento, em 28 de maio de 2018, e relacionou as notícias falsas que se destacaram nas mensagens compartilhadas pelo WhatsApp durante o movimento: o corte da energia elétrica - garantia que o governo cortaria a energia elétrica em todo o país se a greve não acabasse; bloqueio do WhatsApp - anunciava uma atualização do aplicativo que bloquearia seu uso para dificultar a comunicação entre os caminhoneiros; confusão na Câmara dos Deputados e estado de sítio - revelava um quebra-pau entre os deputados e que o estado de sítio estaria sendo decretado pelo presidente Michel Temer; a renúncia presidencial - dava conta da renúncia iminente de Michel Temer devido à crise ter atingido proporções incontroláveis; e, por fim, a intervenção militar - revelava o deslocamento de tropas, inclusive, com detalhes de operações secretas do Exército para derrubar o governo e, em alguns casos, incentivava o apoio da população ao movimento como único caminho para restaurar a ordem (IstoÉ, 2018).

O encerramento do movimento mostrou novas situações: o aplicativo WhatsApp, que fora utilizado na comunicação entre manifestantes, servindo para combinar estratégias e passos que se tornariam fundamentais, transformou-se em canal onde eram forjadas notícias falsas, após os acordos firmados, envolvendo decisões judiciais e atos legislativos ficcionais, além de incitar a retomada das obstruções nas principais rodovias do país (Veja, 2018). Mas, se em alguns momentos o movimento expunha divergências entre suas lideranças, o que se viu, ao final, foi uma retomada ordeira e gradativa das atividades que levou em conta o bom senso em detrimento aos estímulos que as fake news tentavam provocar.

Não exclusivamente pelo ocorrido na paralisação dos caminhoneiros, mas, de modo geral, pela proliferação descontrolada que notícias falsas assomam as redes sociais, providências - apesar de tímidas em primeiro momento - começam a ser implantadas e discutidas.

No combate aos impactos (sociais, jurídicos, políticos e econômicos) negativos das notícias falsas que - em razão da velocidade e visibilidade que alcançam - têm o poder de influenciar eleições, por exemplo, algumas redes sociais, como o Facebook, criaram uma rede de checagem de fatos, as quais contam com os serviços de diversos meios de comunicação, aliados à checadores independentes ... Destarte, um dos maiores desafios no combate às 'fake news' é assegurar que qualquer medida para coibir sua divulgação, não afete a liberdade de expressão. (Balem, 2017, p. 4-5)

Sobre esse posicionamento das mídias digitais em relação ao aumento das fake news nas campanhas eleitorais brasileiras, verifica-se que algumas medidas já vem sendo criadas, como o acordo que o Tribunal Superior Eleitoral-TSE assinou, em junho de 2018, com o Facebook e o Google, onde fica comprometido o combate à desinformação gerada por terceiros. Moura (2018) explica que esta iniciativa se assemelha ao acordo entre o TSE e dez partidos políticos, já em vigor, que garante a manutenção de um ambiente eleitoral que evite a disseminação de notícias falsas.

 

Considerações preliminares

Longe de discutir a ambivalência presente na interpretação do que seria verdade, visto que cada sujeito pode entendê-la conforme suas concepções e convicções, este ensaio procurou relacionar a realidade que se presencia no meio social, com todos os seus apelos midiáticos e direcionamentos ao consumo, à manipulação velada que exercem os canais de comunicação - impressa, eletrônica ou digital - aos interesses de uma minoria abastada que detém o poder no Brasil.

Procurou-se aqui explanar alguns dos passos que foram trilhados desde a disseminação do pensamento neoliberal, no Brasil, até as manifestações de maio de 2018, demonstrando que a mídia - impressa, eletrônica e digital - sempre esteve ao lado das oligarquias, servindo como ferramenta para a dominação da população e a manutenção dos mesmos poderosos no poder, à custa de alarmantes desigualdades socioeconômicas. Retrato inconteste do período pós-verdade no qual se vive, onde veracidade ou falsidade não fazem diferença desde que se tenha justificado o fim, a manipulação de informações se vê sentida na divulgação de qualquer acontecimento, por mais trivial que possa parecer.

Se o declínio do valor e da credibilidade que os meios de comunicação exercem junto à população já é sentido, avaliar a penetração que novas mídias estão construindo se torna necessário, bem como o quanto manipulam as opiniões das pessoas, visto que têm sido apontadas como responsáveis por mudanças em cenários que até pouco tempo não seriam imaginadas. O pós-verdade, impulsionado pelas mídias em tempo digital, cada vez mais deixa o cognoscível para segundo plano, fazendo prevalecer o "como" ao "o quê" e, nesse contexto, onde a dominação inibe direitos e faz com que sejam esquecidas as subjetividades, avivar o propósito de novos ventos torna-se quase uma obrigação.

Regule uma máquina de uma certa forma em uma situação externa determinada e ela será 'compelida' a atuar de uma maneira determinada (desconsiderados os elementos do acaso). Mas sob circunstâncias comparáveis, um humano é somente 'incitado e inclinado' a fazê-lo. As pessoas podem se inclinar a fazer o que elas estão incitadas e inclinadas a fazer; seu comportamento pode ser previsível e um cálculo prático de motivação pode ser possível, mas em teorias de comportamento sempre vai faltar um ponto crucial: a pessoa poderia ter escolhido agir de outra maneira. (Chomsky, 1998, p. 12)

Mas, para que se reflita sobre o que está sendo construído e qual a contribuição que se dá à tudo o que se vê, é fundamental enxergar além, querer mudar, pois só desejando o novo se consegue alcançá-lo, alimentando todo dia a expectativa de que esse continuum alcance transformações, que o panorama que hoje se descortina, conforme Bloch (2001, p. 55), se mostre "... também perpétua mudança."

Não pretende-se encerrar as discussões, aqui brevemente apresentadas, visto que o tema pós-verdade propõe amplitude de abordagens possíveis e se mostra inviável pretender levantá-las no espaço limitado de uma única publicação. Considera-se, ao final deste trabalho, que uma continuação do que aqui foi exposto poderia aprofundar em outras direções o assunto, dando-lhe maior abrangência e entendimento.

 

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Recebido em: 21/09/2019
Aprovado em: 06/11/2019

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