INTRODUÇÃO
O presente artigo tem como objetivo analisar o movimento social da Neurodiversidade como fenômeno psicopolítico, utilizando-se do Modelo Analítico de Consciência Política para estudar a Associação Brasileira para Ação por Direitos das Pessoas Autistas (ABRAÇA) e seus ativistas, considerando as interações com os demais setores e movimentos que orbitam em torno da causa do autismo.
Para tanto, adotou-se uma abordagem qualitativa, pesquisa de tipo exploratório, descritivo e analítico (Bauer & Gaskell, 2008) utilizando-se artigos de ativistas e de autistas, bem como suas redes sociais e o site da própria ABRAÇA.
Os dados incluíram as publicações do site da ABRAÇA e seus manifestos: Autistar é resistir! Identidade, cidadania e participação política (2019) e o Manifesto da Neurodiversidade Interseccional Brasileira (2021). Também foram observadas as publicações em redes sociais de autistas e membros da ABRAÇA, fazendo-se uma categorização temática, selecionando-se aquelas que se relacionavam com o Modelo Analítico de Consciência Política.
A análise está organizada em torno das sete dimensões do modelo utilizado conforme a versão exposta na obra Psicologia, Políticas e Movimentos Sociais (Hur & Lacerda, 2016): Identidade Coletiva; Crenças, Valores e Expectativas sobre a Sociedade; Interesses Coletivos; Eficácia Política; Sentimentos com Respeito aos Adversários; Metas e Repertório de Ações; e Vontade de Agir Coletivamente. Acrescentou-se a dimensão Sentimentos de Justiça e Injustiça, assim como a Memória Política, que é tratada como uma dimensão transversal às demais.
PSICOLOGIA POLÍTICA
A Psicologia Política é um campo inter e transdisciplinar que recorre a diversas abordagens teóricas e metodológicas para investigar os fenômenos políticos articulados ao psicológico, buscando compreender as dinâmicas do poder, os espaços de representação e de participação e as tensões e disputas narrativas decorrentes desses embates, inclusive em suas dinâmicas simbólicas e afetivas (Hernandez & Bliacheris, 2021).
Na América Latina, a disciplina possui historicamente uma abordagem engajada aos processos de transformação social, dedicando-se aos grupos excluídos das redes institucionais tradicionais (Hernandez & Bliacheris, 2021).
No presente artigo, o movimento social que será enfocado em suas relações com a sociedade será a Associação Brasileira para Ação por Direitos das Pessoas Autistas, por sua adoção explícita dos pressupostos da Neurodiversidade e atuação consistente com os elementos teóricos anteriormente expostos ao propor
um processo de ressignificação e construção da própria identidade autista, não mais como algo a ser corrigido ou curado, e sim como condição neurodiversa de sujeitos políticos que se levantam para denunciar o capacitismo, a psicofobia e para reivindicar suas pautas e seu lugar no movimento de luta por direitos. (ABRAÇA, 2019, parágrafo 8)
Nossa opção para este artigo é dar preferência às vozes dos próprios autistas em contraste à narrativa dominante e consolidada acerca do autismo, o que será feito com base nas publicações nas redes sociais, assim como nos manifestos publicados lançados pela ABRAÇA: Autistar é resistir! Identidade, cidadania e participação política (2019) e o Manifesto da Neurodiversidade Interseccional Brasileira (2021).
CONDIÇÃO DO ESPECTRO AUTISTA
O autismo ou Condição do Espectro Autista (CEA) é definido pela Autistic Self Advocacy Network (ASAN), organização estadunidense de autodefensores (self-advocacy) autistas como “uma deficiência de desenvolvimento que afeta a forma como vivenciamos o mundo ao nosso redor” sendo lembrado que “o autismo é uma parte normal da vida e nos torna quem somos” (ASAN, s.d., parágrafo 1).
O site da organização aponta que algumas características são comuns a muitas pessoas autistas, realizadas de forma diferente da maioria das demais pessoas: pensar, processar os sentidos, movimentar-se, comunicar-se, socializar e a possível necessidade de auxílio para a realização das atividades diárias. Adverte-se que nem todos os autistas possuem todas as características apresentadas. As diferenças cotidianas apontadas levam os autores a classificar o autismo como uma deficiência relacional (Valtellina, 2019) ou de comunicação social (Singer, 2017).
O autista é considerado como pessoa com deficiência para efeitos legais em nosso país, conforme a Lei nº 12.764/2012. Para entender isso, é necessário remeter ao modelo social de deficiência que a concebe como uma questão de caráter coletivo, e não individual. Nesse paradigma, a deficiência é percebida mais como uma forma de opressão do que como uma questão biomédica, decorrente das barreiras que a sociedade impõe à pessoa com deficiência, impedindo a sua participação plena na sociedade (Diniz, Barbosa, & Santos, 2010).
Nas palavras da autista Ariana Carnielli (2021):
No caso de nós, autistas, o mundo é inacessível por muitas razões, por exemplo com barreiras para a nossa comunicação, inacessibilidade sensorial nas escolas e locais de trabalho etc. Como não temos acesso igual à sociedade por causa dessas barreiras, somos pessoas com deficiência. (online)
No campo biomédico, a maior referência sobre o autismo é o DSM, guia editado pela American Psychiatric Association (APA, 2014), que está em sua quinta edição (DSM-V), sendo chamado em português de Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. Nele, o Transtorno do Espectro Autista (TEA) é caracterizado como uma espécie de transtorno do neurodesenvolvimento, sendo caracterizado por déficits na reciprocidade social e a presença de padrões restritos e repetitivos de comportamento, interesses ou atividades.
A leitura de ambos os conceitos sobrepõe duas visões distintas: uma baseada em uma experiência pessoal, singular e concreta centrada na ideia de diferença que se constitui em deficiência quando enfrenta as barreiras impostas pela sociedade e outra, biomédica, que descreve essa singularidade pela linguagem dos déficits, enfatizando o seu desacordo com a norma, sujeito a ser tratado pelos profissionais de saúde.
Esses conceitos impactam na forma de observar e analisar o autismo. Conforme Belek (2019), o estudo do tema costuma se agrupar em dois diferentes polos analíticos, com consideráveis diferenças epistemológicas. De um lado, temos as disciplinas biomédicas que definem o autismo como um transtorno do desenvolvimento marcado por um conjunto de déficits e limitações, investigando causas e sintomas para diagnosticar e propor terapias e tratamentos. O outro polo analítico é formado majoritariamente pelas ciências humanas, desde os campos de estudos mais tradicionais até os mais recentes, como os estudos da deficiência (disability studies) e tendem a observá-lo como uma categoria política e social, sendo um componente central da experiência individual e interações sociais dos autistas.
Nesse campo, será investigado o estabelecimento do autismo como fenômeno socio e psicopolítico e de que forma estrutura e afeta a experiência individual e das interações sociais dos autistas, dando-se atenção a aspectos de linguagem e socialização, identidade e subjetividade. Nesse sentido, é protagonizado o conhecimento e significado construído pelos autistas a partir de suas próprias experiências.
NEURODIVERSIDADE
O termo Neurodiversidade foi cunhado por Judy Singer (2017), socióloga autista australiana, para designar o então nascente movimento de autistas. O conceito nasce imbuído de um posicionamento político acerca da deficiência, que é vista como uma construção social. A autora aponta que a emergência da categoria “diferente neurologicamente” soma-se aos marcadores sociais de classe, raça e gênero, aumentando o alcance da reflexão do Modelo Social de Deficiência (1999, p. 64).
A Neurodiversidade considera o autismo como uma expressão natural da diversidade humana, assim como temos diferenças étnicas e de gênero, também temos distintos cérebros, e estruturas cognitivas que levam a uma pluralidade de modos de ser que devem ser aceitos e até mesmo celebrados (Belek, 2019).
Como definiu a já citada Ariana Carnielli (2021):
Neurodiversidade é a ideia de que diferenças neurológicas como o autismo e o TDAH não são patologias que precisam de cura e sim diferenças naturais, variações possíveis do cérebro humano. A nossa existência é importante e enriquece a sociedade como um todo. (online)
Conforme Vidal e Ortega (2019), o campo dos estudos da deficiência observa no movimento a crítica “ao discurso de dependência e anormalidade, celebração da diferença e uma afirmação do orgulho” (p. 214) que ultrapassa as pessoas e comunidades vinculadas ao autismo, chegando ao campo das políticas públicas.
Tiago Abreu (2022) destaca o que chama de ambiguidade do termo, que se refere tanto a características individuais como a um movimento político e, baseada na obra de Singer, elenca o que considera como quatro objetivos consensuais do movimento: a modificação do discurso estigmatizante das neuro-minorias, destacar os elementos positivos das neurodivergências em oposição à percepção baseada em deficits, lutar pela participação das pessoas neurodivergentes na sociedade e demonstrar que a inclusão beneficia a toda sociedade.
Ao falar em neurominorias, evidencia a conexão com o Modelo Social de Deficiência, que aproxima as pessoas com deficiência aos demais grupos minoritários e amplia o alcance do movimento originado na comunidade autista, mas que passa a abranger outras diferenças neurológicas como Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade, Bipolaridade, Deficiências Intelectuais, Transtorno de Estresse Pós-Traumático e Esquizofrenia (Baker, 2011).
O termo “neurodivergente”, utilizado acima, foi cunhado pela ativista Kassiane Asasumasu e busca evidenciar o caráter político das diferenças neurológicas e acentuar o seu caráter de coletividade, oposto a uma visão individualista da neurodiversidade. (Abreu, 2022).
Entre as principais críticas ao movimento estão as de que eles representam autistas com menor demanda de apoio, não diferenciando entre autistas de alta e baixa demanda (Araújo, Lugon, & Aydos, 2021). Os críticos afirmam ser um movimento elitista que representaria apenas os autistas leves ou de alto funcionamento o que minimizaria as dificuldades e necessidades dos autistas severos (Abreu, 2022).
Segundo Vidal e Ortega (2019), em posicionamento crítico ao movimento, a faceta identitária do grupo configura um exemplo do fenômeno que qualifica como “cerebralização da vida”. Segundo ele, a ideia de neurodiversidade direcionaria para uma subjetividade centrada no cérebro, de origem física, sendo “neurologicamente reais”, segundo seus adeptos. Defende que a adoção do sufixo “neuro” leva à naturalização e normalização da condição autista a partir de uma diferença organicamente localizada, o que seria um reducionismo biológico ao mesmo tempo que se vincula ao discurso científico do campo das neurociências.
ATIVISMO AUTISTA
Os primeiros grupos a se organizar em torno do autismo foram os pais e as mães de pessoas autistas. O seu ativismo remete à década de sessenta do século XX, com a Sociedade Nacional para Crianças Autistas, nos EUA. Outro marco significativo dá-se na primeira década do século XXI, a partir da difusão da ideia de que havia uma epidemia de autismo (Donvan & Zucker, 2016; Silverman, 2015).
A noção de epidemia irá justificar uma urgência em combater o autismo que balizará a geração seguinte, de movimentos relacionados ao autismo dentro do contexto que Anne McGuire denominou guerra ao autismo. Há a consolidação da crença que o autismo é prevalentemente masculino, e é percebido separadamente da pessoa autista, como se fosse uma entidade maléfica. Assim, devia-se buscar e ampliar o acesso ao diagnóstico para curar e prevenir desse mal que vitimava as famílias de autistas (Araújo, 2021).
O maior símbolo dessa geração de ativistas é a organização Autism Speaks e modelo dos movimentos centrados na ideia de conscientização sobre o autismo e luta pelo acesso e incentivo à pesquisa de tratamentos biomédicos. Essa geração de ativistas passou a ser confrontada pelos próprios autistas, que passaram a contestar as narrativas que falavam do fardo, da tragédia e do luto por ter um filho autista, exigindo que fosse respeitado seu lugar de fala e representatividade sobre o autismo.
Costuma-se atribuir o marco inicial do ativismo autista a Jim Sinclair, com seu discurso Don’t mourn us, que é pioneiro em contestar a noção de luto pela perda do filho autista, comum no discurso de pais e mães autistas e em retirar o autismo da perspectiva patológica (Araújo, 2021).
A chegada da internet impactou o ativismo pois o estabelecimento de fóruns de discussões e a posterior adesão às redes sociais permitiu o surgimento de comunidades virtuais. Judy Singer (2017) definiu a internet como um dispositivo protético que uniu autistas isolados e com dificuldades sociais em um organismo coletivo capaz de ter uma voz pública e que serviu de ponto de partida para a elaboração de uma nova identidade. Conforme a autista e mãe atípica Luciana Viegas (2021) escreveu no Twitter:
A ABRAÇA mudou minha ideia de militante. Lembro de uma vez que uma pessoa foi tentar me ofender e disse: “ativista de internet”. Hoje entendo que ativista de internet foi a única opção que algumas PCD’s tem uma vez que os movimentos não tem sido nenhum pouco acessível. (Viegas, 2021, 2 de janeiro)
A ideia de Neurodiversidade dará a esses grupos uma ideia base comum e um modelo analítico para apreender essas vivências, permitindo a adoção de um modo de ação consistente ao nascente movimento social.
Diversos movimentos se organizam em torno da ideia de Neurodiversidade, como a já citada ASAN, nos Estados Unidos, fundada em 2006. O grupo centrou suas demandas nos objetivos trazidos pelo Americans with Disabilities Act, a norma que estabeleceu os direitos das pessoas com deficiência nos EUA, como igualdade de oportunidades, participação plena, vida independente e autossuficiência econômica. Buscavam também mudar os termos do debate público acerca do autismo destacando o empoderamento e apoio às pessoas com deficiência em detrimento da busca de uma cura.
No Brasil, sua congênere seria a ABRAÇA, que também se guia pelos mesmos princípios e tem como referencial os princípios e direitos estabelecidos pela Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD) e a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência.
A ABRAÇA, criada em 2008, insere a promoção dos direitos humanos na perspectiva da CDPD. Ao se apresentar, a associação afirma congregar “pessoas autistas, defensores de direitos humanos e familiares com o compromisso de inclusão, desinstitucionalização, fortalecimento dos laços familiares, respeito à diversidade e [lutar] contra as práticas abusivas e excludentes que afetam a vida das pessoas autistas e de suas famílias” (ABRAÇA, s.d., parágrafo 1).
Ambos possuem as características dos chamados novos movimentos sociais, tais como construção de identidades coletivas, demandas não econômicas, autonomia e participação (Corrêa & Almeida, 2015).
ATORES E DISPUTAS POLÍTICAS NO CAMPO DO AUTISMO
A comunidade do autismo pode ser dividida em 3 (três) setores: profissionais (médicos, demais profissionais da saúde em geral, psicólogos, terapeutas ocupacionais, educação inclusiva), pais e mães de autistas e os próprios autistas (Oliveira, 2021). Cabe apontar, contudo, que há autistas nas associações chamadas de mães e pais, assim como nos movimentos pela neurodiversidade temos mães e pais atuantes (Vidal & Ortega, 2019).
O primeiro movimento a falar em neurodiversidade no Brasil foi o Movimento Orgulho Autista Brasil (MOAB), fundado em 2006, por pais e profissionais cuidadores. A instituição utiliza parâmetros ligados ao modelo médico e o termo “orgulho autista” não faz referência à identidade autista, mas ao orgulho de ter um filho autista (Caitité, 2017). Em seu site, diz que é formado por voluntários: pais, mães, amigos e simpatizantes da causa (Cotta, 2019). Observa-se que autistas não são mencionados no rol de participantes do site. A não nomeação nos faz pensar em uma representatividade inferiorizada, frente aos demais participantes do movimento, em situação que lembra a evolução da sigla “GLS” (gays, lésbicas e simpatizantes) para LGBTQIAP+ (lésbicas, gays, bissexuais, transsexuais, queer, intersexo, assexual e pansexuais e o símbolo de adição significando as demais orientações sexuais e identidades de gênero), para que todas as pessoas da comunidade sejam nomeadas e representadas.
A nomeação situa os sujeitos políticos da ação, respeitando suas identidades.
Entre as diferenças que se notam com relação ao movimento da Neurodiversidade é a ausência de vinculação com o movimento das pessoas com deficiência, estando restrito à temática autista.
Outro importante ator nesse contexto é a Organização Neurodiversa pelos Direitos dos Autistas, a ONDA-Autismo, sucessora da Rede Unificada Nacional e Internacional pelos Direitos dos Autistas (REUNIDA). A entidade destaca o fomento de políticas públicas como parte de sua missão institucional e seu site (2022) assim sintetiza sua visão:
Ser referência e maior representante brasileira como associação sem fins lucrativos na defesa dos direitos das pessoas autistas, bem como uma entidade fomentadora de estudos, formação, promoção e divulgação de tudo que possa ser a favor da conscientização do autismo.
A postura institucional da entidade demonstra a procura pela integração dos diferentes setores que giram em torno do autismo, preocupando-se mais em conciliar diferentes pontos de vista do que em estabelecer conflitos políticos.
A partir de sua definição institucional, observa-se que as referências à neurodiversidade, às políticas públicas e à defesa dos direitos dos autistas denotam uma incorporação de elementos do ativismo autista. Por outro lado, a entidade trata de temáticas comuns ao ativismo de pais, como o diálogo com os profissionais de saúde.
A organização, que é presidida por um autista, mostra sua visão do ativismo com relação ao autismo, qualificando-se como a união entre o ativismo protagonizado por pais, aos quais se somaram os profissionais das diversas áreas que atuam com o TEA e, ao fim, os próprios autistas, no que qualifica como uma “grande onda de conhecimento e conscientização” (ONDA-Autismo, 2022a).
A ONDA-Autismo (2021) também se posiciona oficialmente de modo favorável ao método de análise do comportamento aplicada, também chamada de ABA, do inglês Applied Behavior Analysis, considerada como uma forma de tratamento entre diversas outras com eficácia científica comprovada.
Esse é um ponto de divergência com os movimentos da neurodiversidade que contestam bastante o ABA, por considerar que suas práticas pretendem a normalização de autistas. Os movimentos da neurodiversidade questionam tanto a eficácia do método quanto sua ética, uma vez que pretendem apagar ou restringir traços identitários ou de características que possuem função de regulação emocional, como os stims, movimentos repetitivos utilizados para autorregulação emocional e os flaps, o balançar das mãos (Oliveira, 2021).
Por fim, mencionamos o Instituto Lagarta Vira Pupa, que se define como uma organização formada por mães atípicas. Comparte características de outros grupos de mães, porém diferencia-se por ter diversos pontos de contato com o conceito de neurodiversidade. Definem-se como mães atípicas, termo que remete aos neurodiversos que se consideram neuroatípicos, em referência ao funcionamento neurológico diferente dos padrões tidos como normais, chamados de neurotípicos (Vidal & Ortega, 2019). Assim, a maternidade atípica é demarcada pela presença de filhos ou filhas atípicos ou atípicas.
Segundo Gabriela Guedes, que se apresenta no Twitter, entre outros predicados, como “Mãe Atípica, Preta Autista/TDAH”:
A natureza materna não se modifica pela deficiência de um filho. O que modifica nossa maternidade é a dificuldade que encontramos para que nossos filhos tenham minimamente acesso, cidadania e senso de pertencimento.
Ser mãe atípica não é título, é MARCADOR SOCIAL e isso já deveria ter sido entendido há muito tempo. Uma mãe atípica com ou sem deficiência continua ocupando o mesmo lugar de invisibilidade social. (☹ Guedes, 2022)
Em sua carta de valores, o Instituto Lagarta Vira Pupa (2021) adere ao modelo social de deficiência. Apesar de bastante vinculada ao autismo, amplia o escopo de sua atuação a todas as pessoas com deficiência e compromete-se com a diversidade e com a luta anticapacitista, que busca o reconhecimento dos direitos das pessoas com deficiência ao lado de outras minorias sociais.
Araújo, Lugon e Aydos (2021) observam que parte do movimento da neurodiversidade se situa próxima ao campo político-ideológico progressista, o que também ocorre com as posições do Instituto. De modo oposto, o MOAB (2020) se apresenta próximo ao bolsonarismo enquanto a ONDA-Autismo (2022b) se apresenta como apartidária.
MODELO DE ANÁLISE DA CONSCIÊNCIA POLÍTICA
O movimento da Neurodiversidade será estudado conforme o modelo analítico para estudo da consciência política proposto por Salvador Sandoval e Alessandro Silva (2016), que vem sendo utilizado como forma de analisar e compreender movimentos sociais e o engajamento político de seus membros. É um modelo dinâmico, que vê a consciência política como pensamento a ser conscientizado, divergindo da literatura prevalente nos EUA, que se utiliza de enquadramentos interpretativos ou marcos de referência, os denominados frames, de caráter eminentemente descritivos, dando uma visão estática e fragmentada do objeto de estudo (Sandoval & Silva, 2016). Para o autor, a consciência diz respeito aos significados que os indivíduos atribuem às interações e acontecimentos em suas vidas, dando sentido e servindo de guia de conduta em seu ambiente social.
A consciência política, neste sentido, emerge da interação entre o universo cultural em que o indivíduo se insere e a cognição do sujeito. É um processo de negociação e disputas constantes que vão construindo significados nas relações interpessoais. A consciência política surge do cotidiano e é expressa pelo sujeito na sua vida diária, em suas relações intersubjetivas, em uma via de mão dupla na qual somos influenciados e influenciamos as pessoas que nos cercam e o universo cultural em que estamos submersos. Assim, a consciência política é uma espécie de releitura de si mesmo e de sua posição diante das estruturas sociais. Nesse sentido, toda consciência de si é social e política.
Ainda, conforme Sandoval e Silva (2016), a consciência é um conceito psicossocial que, ao atribuir significados aos fatos e às relações cotidianas do indivíduo, serve de guia de conduta, permitindo ao indivíduo tomar as decisões em determinado contexto.
O modelo, de acordo com os autores, representa tanto as dimensões psicossociais de um indivíduo como a sua disposição de agir conforme esse saber, estando formado por 7 (sete) dimensões: (1) Identidade Coletiva; (2) Crenças, Valores e Expectativas sobre a Sociedade; (3) Interesses Coletivos; (4) Eficácia Política; (5) Sentimentos com Respeito aos Adversários; (6) Metas e Repertório de Ações; e (7) Vontade de Agir Coletivamente.
Além das dimensões anteriormente citadas, podemos falar da memória como verdadeira dimensão transversal às demais na medida em que “existe um diálogo constante entre memória e experiências, uma mediando a outra” (Ortolano, 2019, p. 73).
O modelo é representado por Sandoval e Silva (2016, p. 48) desta forma:
Trazemos também a representação de Beatriz C. Puccini (2018, p. 70) para o modelo. É utilizada a forma de mandala que mostra graficamente ao leitor a ideia de inter-relação entre as diferentes dimensões do modelo que se tocam e se encadeiam formando um núcleo-tema (Puccini, 2018), uma vez que são dinâmicas e em processo de constante movimento, mudança e influência uma sobre a outras.
Havendo sido trazidas as dimensões do modelo de consciência política, passamos à análise dos dados, trazendo os diferentes fluxos pesquisados à luz desse referencial analítico.
PRIMEIRA DIMENSÃO: IDENTIDADE COLETIVA
A identidade coletiva, para fins de análise pelo modelo de consciência política, será aquela categoria social em que o sujeito irá refletir e agir politicamente.
A demanda da ação política coletiva se sustenta no tripé instrumentalidade, identidade e ideologia, segundo Klandermans (2015, p. 146) que define a identidade pessoal como um lugar na sociedade e a identidade coletiva como um lugar compartilhado. Essa é a dimensão que reflete os sentimentos de pertencimento ao grupo, com laços de lealdade e solidariedade que são formados no processo de politização do indivíduo, conforme Sandoval e Silva (2016).
O tema da campanha do ‘Mês de Aceitação do Autismo’ do ano de 2021 da ABRAÇA foi Identidade Importa. Como diz Rita Louzeiro (2017):
assim como o orgulho negro é importante para a construção da identidade negra de maneira positiva, assim como o orgulho gay serve para a afirmação positiva da identidade homossexual, nesse mesmíssimo sentido, há o orgulho autista. (Facebook)
O movimento descarta a ideia que o sujeito tenha autismo, como algo apartado de seu corpo. Ao contrário, a subjetivação e individualização do sujeito se dá a partir do autismo que irá conformar a sua identidade, pois a pessoa não tem autismo, ela é autista (Araújo, 2021).
A identidade coletiva também é reforçada na adoção do lema do movimento das pessoas com deficiência, o nada sobre nós sem nós. Note-se que a própria reiteração da palavra nós nas manifestações dos ativistas da Neurodiversidade demonstram a importância dada e o grau de desenvolvimento dessa dimensão no movimento.
Quando a militância busca a formação e afirmação desta identidade, essa dimensão encontra-se fortalecida. Não por acaso, essa qualidade é a que sofre grande parte dos ataques dos oponentes ao movimento, que caracterizam seus membros como gente muito funcional (Vianna, 2017) que seria uma minoria dentro dos autistas ou, não os consideram representativos, pois não seriam verdadeiros autistas, acusação bastante presente nos debates protagonizados pelos ativistas do movimento.
Dessa forma, a própria noção da existência de um ativismo autista é colocada em cheque pelos oponentes do movimento, pois pessoas que se expressariam com tal desenvoltura não seriam autistas de verdade. Como Rita Louzeiro desabafou nas redes: “Pessoas autistas que dizem o que estou dizendo aqui não somos consideradas puras, nos acusam e nos atacam, dizem que não somos autistas de verdade” (Louzeiro, 2021b, parágrafo 1).
Luiz Henrique Magnani (2021, p. 119), pesquisador autista, aponta que quem rompe o imaginário rígido de como seria um autista deixa de ser percebido como tal, sendo visto pelo público e por seus interlocutores sobre o tema como “não sendo ‘autista o suficiente’ para ter legitimidade para falar sobre autismo”.
Rita Louzeiro contesta aqueles que acreditam “que há um autismo verdadeiro, um autismo ‘severo’, difícil, complicado” em oposição a um falso autismo, “leve”, muito fácil de lidar, “que não precisa de nenhum suporte”, já que “a pessoa namora, trabalha, escreve, lê, fala, é até criativa” (Louzeiro, 2018, parágrafo 1).
Essa diferenciação é sustentada pela utilização de déficits (de comunicação, de sociabilidade) para caracterizar o autismo. Assim, a legitimidade autista é maior quanto maiores são suas limitações e qualquer atividade feita de modo autônomo pode ser usada como motivo para afastar o autismo.
Carol Souza (2022) aponta que essa classificação em mais ou menos autistas, de acordo com seu grau de suporte, gera uma situação em que uns não têm direito de opinar, porque não são suficientemente autistas e os outros não têm condições de opinar, pois são considerados incapazes. Essa contradição está presente na expressão muito normal para ser autista, porém muito estranho para ser normal (Coletivo Inclusive Unirio, 2021).
Ao afirmar de forma peremptória que “nós, autistas, somos pessoas com deficiência” (ABRAÇA, 2021, parágrafo 5), o Manifesto da Neurodiversidade Interseccional Brasileira aponta que ser uma pessoa com deficiência faz da identidade coletiva autista, assim como o antirracismo e o apoio à luta antimanicomial fazem parte dos objetivos do movimento, estabelecendo assim um vínculo com as demais lutas sociais de grupos marginalizados e ampliando o alcance de sua influência social e ação coletiva:
Vivemos em comunidades tradicionais, quilombolas e ciganas, em áreas rurais, vilas e pequenas cidades. Somos pessoas migrantes, refugiadas, em situação de rua, pobres, encarceradas, institucionalizadas, e somos também líderes comunitários e gente da classe trabalhadora. Somos pretas, faveladas, periféricas, não-brancas, LGBTQIA+, indígenas, povos de terreiro e pessoas com outras deficiências. Usamos os mesmos serviços que os demais e estamos em todos os lugares. (ABRAÇA, 2021, parágrafo 2)
A interseccionalidade constante do título do manifesto se expressa no entendimento que autistas são atravessados por outros marcadores sociais, além de sua neurodivergência e que as reivindicações do movimento devem considerar raça, gênero, classe e sexualidade dos autistas.
6.2 SEGUNDA DIMENSÃO: CRENÇAS, VALORES E EXPECTATIVAS SOBRE A SOCIEDADE
Esta dimensão do modelo diz respeito às crenças, aos valores e às expectativas sobre as relações sociais elaboradas pelos membros do grupo. O significado individual e coletivo dado a essas experiências será a base para a construção social da realidade, tendo papel fundamental tanto para a subjetivação do sujeito quanto para o seu pertencimento ao movimento.
Como indicam Sandoval e Silva (2016), essa dimensão manifesta-se na reflexividade sobre as relações estabelecidas no cotidiano, espaço que Agnes Heller (2014) mostra como de não reflexão, até mesmo porque seria inviável refletir sobre cada uma de nossas pequenas decisões diárias, sob pena de perdermos a capacidade de ação. Assim, somos guiados pelo pragmatismo e por aquilo que a autora chama de ultrageneralização. O processo de conscientização dá-se na ponderação sobre a realidade e a busca do sujeito de imprimir as suas convicções e interesses em suas ações diárias.
A partir da análise do cotidiano, o psicólogo social Martin-Baró (2017) constata que a vida está organizada por um universo simbólico organizado de forma a atender aos interesses das classes dominantes e impedir os processos de mudanças. Os elementos da realidade são dados como óbvios e, por isso mesmo, raramente questionados ou revisados, o chamado senso comum, que justifica e viabiliza opressões. O processo de desmascaramento e desnaturalização do senso comum a ser desenvolvido pelos movimentos sociais é chamado por Martin-Baró de desideologização, sendo que o papel da Psicologia Social é o de participar nesse processo, assumindo o ponto de vista dos oprimidos ao desenvolver pesquisas sobre essas realidades, de forma dialética e comprometida com os processos emancipatórios.
O movimento da Neurodiversidade, ao refletir sobre as opressões sofridas no cotidiano, ataca o senso comum e passa a disputar o conceito de autismo, questionando o modelo biomédico que domina essa narrativa e que se propõe como neutro e científico, pretendendo-se imune a ideologias.
Esses movimentos podem ser observados nas redes sociais, local em que os autistas têm conseguido quebrar essa rotina, em especial ao apontar de forma sistemática as atitudes capacitistas e psicofóbicas a que estão sujeitos, externando seus valores e usando-os para moldar as relações à sua volta.
Como exemplo dessa prática, em que o ativista deixa de aceitar passivamente e passa a refletir sobre seu cotidiano e atitudes que estão ao abrigo do senso comum, estão as intervenções de Rita Louzeiro (2020) ao denunciar como os elogios cotidianos recebidos por autistas e outras pessoas com deficiência escondem o capacitismo ao utilizar alguma habilidade ou característica positiva como consolo para a deficiência.
TERCEIRA E QUARTA DIMENSÕES: INTERESSES COLETIVOS E SENTIMENTOS COM RESPEITO AOS ADVERSÁRIOS
Essas dimensões da consciência política partem dos interesses simbólicos e materiais do indivíduo e como se opõem aos objetivos de outros grupos. Essa relação de oposição de interesses leva à identificação dos indivíduos e grupos adversários na sociedade. O estabelecimento dessa relação adversária é tão importante para os movimentos políticos que Sandoval (2015) declara ser impossível a mobilização para a ação coletiva sem um adversário visível.
A identificação de adversários em comum também é um importante elemento de coesão grupal. Há alguns meses, em uma conversa com um militante pela Neurodiversidade na internet, uma das primeiras frases que ouvi no diálogo foi que ele detestava Alysson Muotri, biológo brasileiro expoente da chamada cura do autismo e um dos principais alvos de críticas do movimento.
De forma parecida, Rita Louzeiro, ao ser questionada em uma conversa informal, qual seria o adversário do movimento autista, respondeu de pronto: “o modelo médico”. Daquela declaração aparentemente vaga, surgem os protagonistas do modelo médico de deficiência, quem é por ele beneficiado e os aliados políticos que dispõem. A própria denominação de modelo médico mostra a posição desses profissionais como elementos centrais nessa concepção, que vê na pessoa com deficiência um corpo defeituoso que deve ser consertado por meio de tratamentos e terapias.
Assim, esse modelo organiza relações de poder em torno dos profissionais responsáveis por prescrever os tratamentos destinados a sanar as anomalias dos corpos de seus pacientes, missão que contará com a participação ativa dos demais profissionais de saúde, da família e da própria pessoa com deficiência.
De certa forma, Muotri personifica o modelo médico e o papel de inimigo dos movimentos ao atacar a neurodiversidade por colocá-la como política e polarizadora, chamando seus ativistas de radicais, extremistas e intolerantes, defendendo a utilização dos recursos destinados ao autismo para pesquisas em detrimento a serviços que amparem os autistas e chegando mesmo a profetizar o fim do autismo em decorrência das pesquisas genéticas (Muotri, 2016).
Do mesmo modo, segundo Oliveira (2021) ao acatar de modo acrítico os tratamentos e a patologização do autismo, transformando-o em um problema, os grupos de pais de autistas, entram em embate com os autistas. A adesão ao modelo médico e a consequente pressão por serviços médicos, muitas vezes dispendiosos, faz com que esse segmento seja também visto como adversário pelos ativistas da neurodiversidade.
QUINTA DIMENSÃO: EFICÁCIA POLÍTICA
A eficácia política é a dimensão que trata dos sentimentos do sujeito acerca de sua capacidade de agir em situações políticas. Sandoval e Silva (2016) explicam essa dimensão com base na Teoria da Atribuição, conforme formulada por Hewstone, em que se distinguem três espécies de causas que explicam acontecimentos, a partir dos quais se pode traçar alguns paralelos com os modelos de compreensão de deficiência, percebendo-se no modelo social de deficiência, ao localizar a opressão nas barreiras levantadas pela socidedade, como o de maior eficácia política.
No primeiro tipo, o sujeito identifica as causas dos eventos da vida em forças transcendentes, como a natureza, a história ou Deus. Assim, intervir nessas situações estaria além das possibilidades de ação do indivíduo, o que gera conformismo. A deficiência é percebida como um fardo ou uma tragédia, levando ao sentimento de submissão diante da angústia social, cabendo à pessoa com deficiência aguardar o auxílio ou a ajuda externa, como propõe o modelo caritativo de deficiência, que importava na exclusão ou segregação da pessoa com deficiência pela sociedade.
Essa referência a causas naturais ou à vontade divina como origem das situações políticas aparecem de modo bastante semelhante ao que Martin-Baró (2017) chama de fatalismo, muito presente na realidade latino-americana. Essa característica psicossocial é mostrada como obstáculo para as mudanças sociais, uma vez que a vida do indivíduo está definida de antemão e ele não tem o poder de mudar o próprio destino, levando a sentimentos de aceitação do sofrimento, de resignação e a um comportamento marcado pelo conformismo, submissão e passividade, quadro que pode ser transformado pela conscientização política.
A segunda hipótese de causalidade debita a causa das situações políticas ao próprio indivíduo, que deve ser capaz de lidar com elas. Nesse caso, há a busca de soluções pessoais para problemas sociais, levando à autoculpabilização e à impossibilidade de agir. Este estágio corresponde ao modelo médico de deficiência que localiza a deficiência na própria pessoa que, então, será objeto de tratamento médico individualizado. Nesse modelo, vige a integração, mecanismo social em que a pessoa com deficiência pode vencer a segregação desde que consiga superar, por si mesma, as barreiras que lhe são impostas pela sociedade.
Essas duas primeiras explicações são de baixa eficácia política e travam as articulações grupais e as possibilidades de ação. Ambas levam à conclusão de que as soluções para os problemas da vida são externas, alheias ao sujeito. No caso da pessoa com deficiência, a levam a ser objeto de caridade ou do saber e ações médicas.
A terceira fonte da causalidade é aquele que aponta as ações de outros grupos ou pessoas como fonte de angústia social, dimensão afetiva, portanto psicossocial, da opressão a que é submetido pela sociedade. Essa convicção permite ao indivíduo acreditar no potencial de sua ação para remover as fontes de seu sofrimento social e promover a mudança pela ação política. Como afirma Puccini a respeito (2018, p. 66), “é principalmente quando o indivíduo localiza no outro ou nos outros a força geradora do problema a ser combatido é que ele se instrumentaliza para agir coletivamente contra o sofrimento”.
Essa perspectiva permite que o sujeito tenha a motivação necessária para que se empodere e aja como um ator social, buscando mudar sua realidade. Essa dimensão relaciona-se com o modelo social de deficiência, que localiza na sociedade a fonte de opressão social e dos problemas a combater para remover a angústia decorrente da situação de desigualdade sofrida.
A ação do movimento tem como objetivo promover a inclusão social pela remoção dos impedimentos estabelecidos por outras pessoas ou grupos. O Manifesto: Autistar é resistir! Identidade, cidadania e participação política (2019) já traz, desde o título, as articulações com o modelo social, concebido com base na identidade e buscando cidadania e participação. Como assinala Magnani (2021), o verbo “autistar” está relacionado à expressão da identidade autista, como ato de resistência e ressignificação da condição neurodiversa.
A adoção do modelo social de deficiência pelo movimento autista é o que estrutura o entendimento dessa dimensão do modelo de consciência política, sendo justificado por sua maior eficácia política diante das demais opções.
SEXTA DIMENSÃO: VONTADE DE AGIR COLETIVAMENTE
A dimensão que se refere à vontade de agir coletivamente tem caráter instrumental e avalia a predisposição do indivíduo para agir, a fim de enfrentar as injustiças e desigualdades cometidas contra ele e seu grupo.
Sandoval e Silva (2016) destacam 3 (três) aspectos condicionantes para a ação: os custos e benefícios das lealdades e laços interpessoais que condicionam a participação coletiva, ganhos ou perdas pessoais e riscos. No processo de tomada de decisão do ativista, será avaliada, ainda, a capacidade organizacional para implementar as ações coletivas propostas.
Nesse contexto, faz-se necessário mencionar as “tretas”, como são chamadas as discussões ocorridas no ambiente digital, que podem decorrer das respostas a comentários de uma postagem do ativista, da participação dos debates em uma postagem de outra pessoa seja em um perfil individual ou em algum grupo de rede social ou, ainda, a participação organizada em um evento ao vivo realizadas de forma online.
As tretas possuem dimensão discursiva e simbólica a um só tempo. Os desgastes e pontos de desacordo, ou mesmo as opiniões originais e inovadoras formuladas no ativismo digital são assim nomeadas. Trata-se de uma espécie de código ativista para identificar, justamente, essas zonas discursivas em disputa, oposição e conflito em relação a outros discursos.
Nesse sentido, possuem uma importante função grupal, sendo um atestado da existência do ativismo da neurodiversidade, ao lhe dar visibilidade em grupos que lhe são indiferentes ou mesmo hostis. Ao fazer isso, criam polêmicas que revelam a existência de conflitos, demonstrando a existência de um dissenso, o que tem um evidente contorno político, sendo a defesa dessas posições também formadora de consciência política na prática.
No ativismo autista, são comuns as queixas de exaustão após a ocorrência das tretas, principalmente em função da agressividade e ataques pessoais a que o ativista é submetido, obrigando-o, muitas vezes, a se retirar temporariamente das redes. A exposição pessoal e a possível estafa é um dos riscos decorrentes da participação ativa no movimento.
Se por um lado, esse ônus individual acaba por prejudicar a mobilização coletiva, por outro, o esgotamento de um colega de ativismo também faz com que ele seja mais valorizado no grupo e com que os demais busquem protegê-lo, o que intensifica os laços pessoais.
Os ganhos do participante do movimento inserem-se na dinâmica psicopolítica, onde o movimento é ao mesmo tempo ação e lugar de acolhimento das vulnerabilidades e identidades pessoais sendo formativo da identidade política e coletiva. O ativista também se torna sujeito que postula o debate, introduzindo o dissenso na esfera pública ao revelar as interesses individuais e coletivos que indicam o caminho de novas ações, projetos e políticas.
SÉTIMA DIMENSÃO: METAS E PROPOSTAS DE AÇÃO COLETIVA
Esta dimensão ocupa-se da forma como os participantes do movimento percebem a correspondência entre as metas coletivas com as demais dimensões do modelo e com suas aspirações e capacidades individuais. Essa dimensão é decisiva para que o sujeito permaneça no ativismo, envolva-se em ações coletivas e sinta-se satisfeito com suas convicções e ações. Ainda, é fundamental para que a influência social aconteça, pois quanto mais o ativista vê suas expectativas atingidas, mais atuante e mais pessoas e recursos poderá trazer para o movimento.
Observa-se a relação das metas e propostas com as estratégias e ações coletivas já adotadas e com as aspirações e os interesses individuais, como os sentimentos de eficácia política e injustiça, por exemplo. O ativista, nesse sentido, verifica a adequação das metas coletivas a seus próprios interesses, como nesta publicação de Rita Louzeiro (2021a, parágrafo 3) em que trata de suas dificuldades no ambiente de trabalho:
O mercado de trabalho tem umas exigências que tornam tudo mais pesado pra quem é autista. Espero que a luta do ativismo atual resulte em mudanças que permitam a pessoas autistas focarem em fazer bem o seu trabalho sem ter que focar tanto em atender a exigências de normalidade.
A inserção laboral não é o único ponto de convergência de metas individuais e coletivas. O ativismo em rede, o uso e reconhecimento do termo neurodiversidade na literatura, o surgimento de mais espaços para as vozes autistas ativistas, sua participação em eventos, são metas coletivas que se traduzem em representatividade e possibilidade de reconhecimento e expressão individuais do ativista que tem suas expectativas alcançadas.
SENTIMENTOS DE JUSTIÇA E INJUSTIÇA
Desde que o Modelo de Análise da Consciência Política foi idealizado ele tem passado por diversas alterações e aperfeiçoamentos decorrentes de sua aplicação prática. Uma dessas mudanças refere-se às emoções, um aspecto importante e presente em todo processo de conscientização política, não se restringindo a uma determinada dimensão. Por essa razão, o autor não considera mais os sentimentos de justiça e injustiça como uma dimensão específica do modelo, por entender que se trata de mais um, dentre os diversos sentimentos emotivos que impulsionam a participação política (Sandoval & Silva, 2016).
Essa dimensão trazia a ideia da percepção de reciprocidade entre obrigações e recompensas. O sentimento de injustiça surge da sensação de falta de equilíbrio entre o que a sociedade impõe e o que lhe oferece em troca, leitura que é complexa e condicionada pelo contexto social em que o sujeito se insere. Como Sandoval e Silva (2016) apontam, os movimentos sociais se formam em torno de uma injustiça a ser combatida que irá legitimar seus interesses e responsabilizar seus adversários.
O sentimento de injustiça é uma emoção muito importante e mobilizadora para o movimento das pessoas com deficiência, em geral, e para os autistas, em particular, em razão das inúmeras barreiras impostas pela sociedade para exercer direitos básicos (mobilidade, acesso à educação, trabalho etc.) no cotidiano.
Dentre as várias situações vistas como injustas, destacam-se aquelas em que é exigido do autista que se comporte como se fosse neurotípico. Para tanto, são necessárias algumas táticas adaptativas. O uso continuado dessa estratégia é chamado de masking ou camuflagem, a supressão ou mascaramento de características autistas para atender as exigências de aparentar normalidade em situações cotidianas ou de trabalho. Pesquisas apontam que o masking pode acarretar prejuízos à saúde mental, como o burnout e maior tendência ao suicídio (Pearson & Rose, 2021).
Conforme relata Rita Louzeiro (2019b, parágrafo 2):
Durante essa semana, performando neurotipicidade pra tentar sobreviver nesse mundo dominado pelos padrões neurotípicos, tive que lidar com uma série de coisas que me exauriram. Tive que socializar um monte, participei de reuniões, calculei o que dizer em situações em que isso era muito importante, atendi e fiz ligações telefônicas, lidei com um barulho constante de uma obra dentro do meu local de trabalho. Como resultado disso tudo, estou exausta e sinto dores pelo corpo. A sensação é de ter capinado um lote inteiro, debaixo de um sol bem quente (sim, eu já capinei um lote debaixo de sol quente e sei como é).
O sentimento de injustiça aflora de uma situação em que é exigido do autista um grande esforço para realizar atividades corriqueiras o que provoca sentimentos de raiva e indignação, que são afetos fortes e potencialmente mobilizadores à ação política.
Autistas são cotidianamente prejudicados pelo fracasso da sociedade em remover muitas das barreiras enfrentadas nos ambientes públicos, escolares ou de trabalho. Por exemplo, o excesso de ruídos, de cheiros ou o uso de lâmpadas fluorescentes, duas questões sensoriais que podem comprometer o bem-estar dos autistas e que são apontadas por Rita Louzeiro (2019a, parágrafo 3):
Porque a maioria das pessoas parece ok com ambientes hiper barulhentos, cheios de cheiros fortes, luzes insuportáveis. Porque a recepcionista da biblioteca sequer está ouvindo o maldito barulho de zizzzzz numa lâmpada prestes a queimar. Ninguém vê que a maldita lâmpada está piscando.
Essas dificuldades, muitas vezes imperceptíveis às pessoas neurotípicas, levam a aflorar o sentimento de injustiça. Percebe-se uma imposição, pela sociedade, de maiores obrigações às pessoas com deficiência, ao mesmo tempo em que os prejudica ou exclui na repartição das recompensas. Esse quadro faz com que muitos ativistas contestem a ideia de meritocracia, o que se torna mais evidente nas vozes vindas de corpos que trazem em si atravessados outros marcadores sociais de diferença, como no caso da condição de autista, mulher e negra.
MEMÓRIA POLÍTICA, UMA DIMENSÃO TRANSVERSAL
A Memória Política é uma categoria transversal ao modelo analítico de consciência política. Embora não esteja expressamente alinhada a algum dos eixos apontados por Sandoval e Silva, a memória perpassa as dimensões de forma transversal, estabelecendo conexões com cada uma delas, em uma relação dialética. Como afirma Soraia Ansara (2008, p. 54):
[A] memória estimula a consciência política e proporciona formas de ação coletiva, da mesma maneira que a consciência política - como mostraram os relatos - pode ser determinante na construção de uma memória política. Nesse sentido, reafirmamos que entre elas existe uma via de mão dupla, motivo pelo qual a memória coletiva não está separada da consciência política, ou seja, ela é atravessada pela consciência política.
A memória política é um conceito interdisciplinar importante para a Psicologia Política, constitui uma dimensão analítica no estudo dos fenômenos políticos, destacando-se a dimensão emocional como um de seus elementos centrais. Hernandez (2020, p. 19) adverte que “a memória política não é nem memória histórica, nem a memória social elaborada por alguns grupos sociais a partir de interesses próprios”, porém, “está atravessada pela memória histórica e social”.
Aline Hernandez (2020) vislumbra quatro elementos da memória política: contexto de experiência, sujeito, temporalidade e narrativa. A memória política surge da interpretação do passado, pela ótica do presente, tendo em vista as trajetórias pessoais e as relações de poder que permeiam o cotidiano do sujeito e que impactam na percepção da realidade que vive, brotando das linhas de tensão em que os questionamentos e litígios levam a uma ressignificação do passado por uma nova narrativa que contesta o discurso hegemônico e que se vincula a uma visão de futuro.
Há um diálogo constante entre a memória individual e a coletiva, sendo importante à constituição da identidade pessoal e grupal e ao sentimento de pertencimento.
A memória autista é atravessada pela recordação dos tratamentos desumanos e degradantes a que autistas foram submetidos, constituindo uma peça fundamental na formação de seus posicionamentos políticos. Como diz Rita Louzeiro (2020a, parágrafos 1 e 2): “Por que a gente luta tanto? Os pacientes do hospício de Barbacena (Colônia) chegavam em vagões de carga, chamados de ‘o trem dos doidos’, onde deveria haver muitos dos chamados autistas severos.”
Cada vez que um autista escreve e torna público seu depoimento, está registrando uma memória política no presente, escrevendo em nome próprio, reivindicando sua própria representatividade e pondo em xeque o fato de falarem por ele. Ainda, essas memórias confrontam e tensionam as visões dominantes sobre como um autista deve ser ou se comportar em sociedade.
CONCLUSÃO
O presente artigo buscou analisar o movimento social da Neurodiversidade como fenômeno político, utilizando-se do Modelo Analítico de Consciência Política para estudar a Associação Brasileira para Ação por Direitos das Pessoas Autistas e seus ativistas, considerando também a interações com os demais setores e movimentos que orbitam em torno da causa do autismo.
A ABRAÇA sobressai-se como representante do ativismo autista. Conforme seu próprio nome diz é uma associação e que está se consolidando, na prática, como um movimento social. Hoje em dia, o ativismo pela neurodiversidade apresenta-se mais como uma teia ou rede, sendo a ABRAÇA e seus ativistas um de seus elos fundamentais.
Para entender o ativismo é fundamental também entender que o Movimento da Neurodiversidade atua por soluções coletivas, e não individuais, baseadas em direitos, e não em tratamentos biomédicos, o que é reforçado pela sua forma de atuação.
A forma como esse ativismo expressa-se na sociedade, as relações que estabelece com seus possíveis aliados e o próprio conceito do que é o autismo apontam para um terreno fértil de pesquisas para se apreender esses novos, porém fascinantes e necessários conceitos.