INTRODUÇÃO
Nise da Silveira afirmava que um atendimento pode melhorar através do contato afetivo, que a alegria tem um poder inigualável de cura, que a empatia e compreensão da diversidade é um elemento potencialmente restaurador do que há de belo no ser humano. Essa é a forma que compreendemos o trabalho no Núcleo de Acessibilidade da Universidade Federal (NAC) e que propomos, em 2021, a segunda edição do curso letramento acadêmico: elaboração de artigos acadêmicos sob a perspectiva de pessoas com deficiência. O curso, idealizado e construído por um estudante com diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista da universidade, teve como objetivo fomentar a produção acadêmica de discentes com deficiência no âmbito universitário e contou com a participação de 13 estudantes vinculados/as a nove universidades brasileiras.
Tal qual o mundo político e econômico, para Chimamanda Ngozi Adichie (2019, p. 23) “as histórias são definidas, também, pelo princípio de nkali: como elas são contadas, quem as conta, quando são contadas e quantas são contadas depende muito de poder”.
De fato, precisamos nos atentar ao escrever histórias. Sejam elas nossas ou de outras pessoas. A depender de como se conta, as histórias podem criar estereótipos. Mas, segundo Adichie (2019), o problema dos estereótipos não é que sejam mentira, mas que, por sua incompletude, acabam por criar histórias únicas, e, como consequência, a história única rouba a dignidade enfatizando diferenças, ignorando as semelhanças e tornando difícil nosso reconhecimento enquanto humanidade (Adichie, 2019).
Mas, de que histórias falamos aqui? Sobre quem estamos falando? Quem são esses/as estudantes? Nós somos os/as elaboradores/as deste artigo. E quem somos? Somos pessoas com deficiência visual, que tiveram – ao longo da vida – acesso restrito às informações, e, que participaram da segunda edição do curso1 de letramento acadêmico, promovido pelo Núcleo de Acessibilidade da Ufal. Ao mesmo tempo, somos quem coordenou e produziu as duas edições do curso, e, também este artigo: bolsista e assistente social do NAC2.
DEFICIÊNCIA E ACESSIBILIDADE
A Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da Organização das Nações Unidas (ONU) reconhece na deficiência
um conceito em evolução e que a deficiência resulta da interação entre pessoas com deficiência e as barreiras devidas às atitudes e ao ambiente que impedem a plena e efetiva participação dessas pessoas na sociedade em igualdade de oportunidades com as demais pessoas. (Decreto Federal n° 6949/2009, p. 14)
O conceito de barreiras, na legislação brasileira, é compreendido como
qualquer entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que limite ou impeça a participação social da pessoa, bem como o gozo, a fruição e o exercício de seus direitos à acessibilidade, à liberdade de movimento e de expressão, à comunicação, ao acesso à informação, à compreensão, à circulação com segurança, entre outros. . . (Lei n° 13.146/2015, p. 1)
Optamos por seguir um caminho preciso, mas também flexível. Para nós as barreiras existem, pois, há incômodos, aspectos que limitam, e, quiçá aprisionam algumas pessoas com deficiência e/ou famílias. E foi durante a caminhada no curso que - paulatinamente - nos demos conta da importância em nomear as barreiras que enfrentamos/vivenciamos para buscar construir caminhos para acessibilidade.
Assim como a ONU, ao pensar institucionalmente a deficiência na relação das pessoas com as barreiras, a Lei Brasileira de Inclusão da pessoa com deficiência tem o poder de despertar, nos vários âmbitos da sociedade, um olhar mais cuidadoso e reflexivo acerca do como o nosso dia a dia, cidades, instituições etc. são construídas. A lei é — também — um convite! Queremos dizer, com isso, que a sociedade brasileira, suas instituições, cidadãs e cidadãos foram convidadas/os a promover a acessibilidade e inclusão, conceitos que permeiam o diálogo acerca dos direitos das pessoas com deficiência.
E o que é acessibilidade? Para Sassaki (2009), há seis dimensões da acessibilidade, são elas: arquitetônica; comunicacional; metodológica; instrumental; programática e atitudinal. Já a legislação nacional afirma que a acessibilidade deve proporcionar e garantir que todas as pessoas ocupem e vivenciem as cidades, seus equipamentos, instalações etc. com autonomia e de forma segura. Ou seja, sem prejuízo nenhum e independente de onde estamos (zona urbana ou rural), da forma de uso (individual ou coletiva) e de como nos comunicamos.
Portanto, a acessibilidade é uma qualidade, uma facilidade que desejamos ver e ter em todos os contextos e aspectos da atividade humana. Se a acessibilidade for (ou tiver sido) projetada sob os princípios do desenho universal, ela beneficia todas as pessoas, tenham ou não qualquer tipo de deficiência. (Sassaki, 2009, p. 15)
Pensando na vivência da diversidade, o curso abriu um campo de diálogo teórico sobre acessibilidade e barreiras, refletindo sobre a vivência cotidiana das pessoas com deficiência na universidade e demais âmbitos da vida. Por exemplo, quantos espetáculos teatrais acessíveis você assistiu e/ou conhece? Você já usou ledor de texto? Quantas pessoas com deficiência aparecem em estratégias de marketing? Você sabe algo sobre a Língua Brasileira de Sinais (Libras)?
Talvez tenhamos citado algumas questões que você tenha vivenciado e/ou observado, mas, também, é possível que você não tenha pensado em algumas delas. Pois é! Geralmente, as barreiras são facilmente perceptíveis para pessoas que as vivenciam, que são impedidas de acessar algo em razão de barreiras. Barreiras que facilmente poderiam ser rompidas.
As narrativas a seguir contam em primeira pessoa um pouco das experiências de pessoas com deficiência frente às barreiras encontradas em suas vidas na academia. Em diálogo com as teorias de Sassaki sobre acessibilidade, elas nos falam principalmente sobre as barreiras atitudinais, metodológicas e tecnológicas.
ACESSIBILIDADE DIGITAL: DESAFIOS NAS/DAS UNIVERSIDADES
Sou Denis, 49 anos e pessoa com baixa visão. A minha chegada no ensino superior foi bem complicada, especialmente porque minha autoafirmação enquanto pessoa com deficiência somente se deu quando comecei a cursar graduação na Universidade Federal.
O início da vida universitária foi regado por demasiadas “batalhas”. Precisei buscar superar as barreiras que nós, pessoas com deficiência, conhecemos bem, mas algumas vezes tardamos em nomear. Assim como qualquer pessoa, também vivi e vivo momentos de angústias com o curso. Não me assumia como pessoa com deficiência visual, e, por vezes sentia vergonha de pedir apoio, pois, não dominava o uso de tecnologias assistivas e tinha receio em usar a guia para me locomover.
Algumas pequenas barreiras estavam me deixando maluco, eu entrei na graduação e todos à minha volta me condecoraram como inteligente, mas eu me via pequeno, especialmente por ter uma base filosófica escassa.
Pensar em sair de casa para ir à faculdade me causava receio. Era receio dos/as professores/as, das disciplinas e dos momentos de estudo na biblioteca, que eram transtornadores. Na época, eu não tinha a habilidade de estudar por áudios como tenho hoje, então eu não focava no que precisava ouvir e qualquer ruído, conversa ou som externo desviava minha atenção.
O ensino superior possui, muitas vezes, o poder de despertar novas formas de compreender o ser humano, o mundo, a forma de organização da sociedade, nossa história etc. Não é só mais degrau no âmbito do ensino formal, é a oportunidade de perceber a construção do conhecimento e a importância da ciência na materialização da vida e da sociedade. Mas isso requer muita dedicação à leitura. Leitura, que para mim, é acessada de forma diferente de meus/minhas colegas de sala.
Explico um pouco sobre isso. Mas antes, preciso afirmar que todas as pessoas com deficiência visual aprendem, compreendem e vivenciam a universidade de formas diferenciadas. A história de vida de cada um/a pode ser determinante para o processo de ensino-aprendizagem, assim como a acessibilidade. Ou seja, nem todas as pessoas com a mesma deficiência que tenho, no mesmo grau, irão requerer ferramentas, estratégias, acompanhamento e equipamentos iguais. Tenho percebido isso!
A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2019 mostra bem a desigualdade social e a diversidade humana. Embora tenhamos um incremento de 3,6 pontos percentuais (em relação a 2018) dos domicílios nacionais com acesso à internet, há uma população significativa em que a democratização da internet e dos equipamentos eletrônicos não chegou ainda. Essa exclusão digital é permeada por categorias como: classe social, raça/etnia, gênero e território.
Segundo Pesquisa Sobre o Uso das Tecnologias de Informação e Comunicação nos Domicílios Brasileiros
A pandemia Covid-19 tornou mais evidente a exclusão digital de parcela significativa da população brasileira. Dados da TIC Domicílios 2019, coletados em um período prévio à crise sanitária, mostram que a falta de acesso à Internet atinge uma a cada quatro pessoas no Brasil. Também persiste no país, entre os indivíduos que venceram a barreira do acesso, um segundo nível de exclusão digital. O uso da Internet exclusivamente por celular, por exemplo, está associado a um menor aproveitamento de oportunidades on-line, incluindo atividades culturais, pesquisas escolares, cursos à distância, trabalho remoto e utilização de governo eletrônico. (Comitê Gestor da Internet no Brasil - CGI.br, 2020, p. 23)
A minha realidade não é diferente. Durante o período presencial na universidade, me encontrei com a realidade de que precisaria aprender a usar as tecnologias assistivas para seguir no curso. Isso para mim foi impactante e difícil porque era uma habilidade que eu não exercitava no meu dia-a-dia, tive que fazer alguns cursos para aprender a usar a plataforma Google como método de estudo e praticar o uso do Talkback. Mas, de fato, eu nem imaginava que a pandemia iria exigir muito mais de mim.
Em 2020, a universidade retornou às aulas através do Ensino Remoto Emergencial (ERE). E, eu, que já estava ansioso e estressado com o distanciamento social, quarentena, escassez de informações, mortes de pessoas queridas etc., imagina como fiquei ao saber que as aulas seriam desenvolvidas por um equipamento que tenho uma relação frágil: a tecnologia.
Minha relação com a tecnologia é frágil, pois não tive acesso em minha juventude e por muitos anos não exercitei essa habilidade. São elementos anteriores e que, mais uma vez, reiteram o quanto a desigualdade social no país é capaz de determinar o futuro de uma pessoa, quando o/a priva e/ou limita o acesso a itens fundamentais para um bom desenvolvimento humano.
A acessibilidade no espaço digital consiste em tornar disponível ao usuário, de forma a que possa aceder a ela com autonomia, toda a informação que lhe for franqueável (ou seja, informação para a qual tenha código de acesso ou seja de acesso livre para todos), independentemente de suas características orgânicas, sem prejuízos quanto ao conteúdo da informação. A acessibilidade é obtida combinando-se a apresentação da informação de formas múltiplas (seja com uma simples redundância, ou utilizando-se um sistema automático de transcrição de mídias), com o uso de ajudas técnicas (tais como sistemas de leitura de tela, sistemas de reconhecimento da fala, simuladores de teclado etc.) que maximizam as habilidades dos usuários com limitações associadas a deficiências orgânicas. (Torres & Mazzoni, 2004, p. 154)
Algumas pessoas pensam que o uso de tecnologias já é o suficiente para quebrar essas barreiras na acessibilidade. O que torna uma sala de aula acessível para mim é quando professores/as se adaptam às aulas fazendo uso de menos imagens ou imagens audiodescritas, quando os materiais são enviados em áudio e não em textos impressos ou PDF. Muitas vezes os/as professores/as não sabem como tornar a sala de aula acessível, mas posso afirmar - com toda certeza - que o diálogo facilita essa relação e tem o poder de desconstruir barreiras atitudinais e pedagógicas.
DOCÊNCIA E ACESSIBILIDADE: ONDE ESTAMOS?
Mucho gusto! Brás Cubas. Tenho 22 anos, vivo em uma cidade do Nordeste, sou graduando e escritor cego. Minha narrativa se dá, exatamente, a partir do 16 de março de 2020. No dia que iríamos retornar às aulas, mas tudo fechou e parecia que iríamos viver uma eterna e dolorosa “férias”.
Não pode sair, não pode aglomerar, não pode abraçar, beijar, tocar, não pode isso, não pode aquilo, precisa usar isso, usar aquilo. A pauta do momento foi o novo Coronavírus, e, durante longas semanas, fomos bombardeados/as por informações que chegavam através de distintos meios, porém, poucas delas eram acessíveis.
Em meio a tudo isso cheguei a duas conclusões: a primeira, como audiodescritor consultor, reconheci a importância da audiodescrição enquanto recurso de acessibilidade que, por meio de informação sonora, amplia o entendimento das pessoas com deficiência visual em eventos, sejam eles gravados ou ao vivo (Motta & Romeu, 2010). A segunda, como pessoa cega, pude perceber a “insignificância” da barreira arquitetônica, neste contexto, se esta fosse comparada com a barreira comunicacional.
Esta conclusão se deu quando o Ministério da Saúde orientou sobre as medidas de proteção, as quais, todavia, não chegavam inteiramente a mim, pois os veículos de comunicação não produziam informações acessíveis. Eu, como um bom curioso, tive de recorrer à literatura científica para me cuidar e prevenir. Hoje, o que mais me entristece, é saber que essa inacessibilidade poderia e pode acarretar consequências graves, até mesmo, resultando em mortes.
No segundo semestre do mesmo ano, deparei-me com a dimensão metodológica da acessibilidade, que para Sassaki (2009), está relacionada com o âmbito da educação, trabalho e lazer e deve possibilitar que todas as pessoas tenham a garantia de acesso aos equipamentos públicos (parques, praias etc.), instituições culturais (museus, cinemas, teatros etc.), ferramentas profissionais (computador, slides etc.) e estruturas educacionais (sala de aula, áreas de lazer etc.).
Nas aulas síncronas, não havia audiodescrição para as imagens apresentadas; nas aulas assíncronas, o ambiente virtual não era acessível; e para piorar, os/as docentes disponibilizavam arquivos de texto escaneados, que é ilegível para leitores de tela.
A Universidade Federal, durante o período pandêmico, decidiu realizar um semestre de Período Letivo Excepcional (PLE). E só depois, pensar em retomar de forma virtual “normalmente”.
Mas, para todos/as nós da comunidade acadêmica, esse formato de trabalho foi novo e desafiante. Para nós, estudantes, foi necessário adaptação a esta “nova” forma de aprender e para o corpo docente foi imprescindível rever estratégias na construção do saber.
A relação professor/a-estudante foi complicada, pois, por vezes, o diálogo era perpassado por colegas de classe e não diretamente dos/as professores/as para mim. Vícios de linguagem, como “como vocês podem ver” ou “deem uma olhada no material” tornaram-se cada vez mais problemáticos. Foi necessário lembrar (com certa constância) que eu não estava participando daquela interação. E ter que lembrar isso toda vez torna-se bastante cansativo.
Não obstante, nesse período, o papel do Núcleo de Acessibilidade foi de suma importância ao fazer adaptações dos materiais de estudo, elaborar cartilhas para discentes e docentes com orientações básicas de acessibilidade, promover oficinas inclusivas, cursos de produção de escrita acadêmica para os/as estudantes com deficiência etc. Ou seja, para mim, a promoção de políticas inclusivas produziu um desejo de permanência e possibilitou vivenciar a sala de aula em situação de menor desigualdade.
CAMINHOS VIÁVEIS E INSTITUCIONALIZAÇÃO DA ACESSIBILIDADE
Sou Nilda, tenho 47, sou mulher com baixa visão, estudante de graduação de uma Universidade Federal. Conheci o Núcleo de Acessibilidade (NAC) em 2019, ao ingressar na universidade, quando fui orientada a buscar apoio para meu percurso acadêmico. Porém, minha timidez, por vezes, atrapalha no âmbito comunicacional, pois comunicar-me com outras pessoas é sinônimo de aflição.
Devo dizer que ingressar na universidade trouxe um período de novas adaptações, pois não tinha ideia e nem estava preparada para o que viria pela frente. A universidade foi um marco em minha vida! Até hoje recordo dos momentos de dificuldade e adaptação. Foi na universidade que descobri que precisaria adaptar-me ao uso da tecnologia. Embora o telefone seja meu principal meio de estudar e dialogar com a universidade, eu não possuía vínculo, desempenho e habilidade com este tema. Infelizmente faço parte das estatísticas que apontam para um tardio e complexo acesso à tecnologia.
Com a pandemia do Coronavírus, fiquei em casa! Semanas se tornaram meses e permaneci em casa! Aos poucos o desgaste emocional estendeu-se. O corpo físico também apresentou sinais: ganhei peso e me senti bastante agitada. O confinamento com minha filha adolescente exigiu de mim o exercício da paciência e compaixão, comigo e com ela.
Ao passar do tempo o confinamento era a única certeza de que tinha. Com a chegada do Período Letivo Excepcional (PLE) encarei o desafio de desenvolver a habilidade no uso do telefone para assistir aulas, comunicar-me, estudar e preparar atividades avaliativas. A universidade, que antes era um universo infinito, foi se resumido a um aparato tecnológico.
O semestre foi intenso e exigiu exaustivamente de todas/os nós, estudantes e professoras/es. Aparentemente a carga de trabalho acadêmico não se adequou à nova realidade de estudo à distância. Penso que o aprendizado poderia ter sido mais intenso e profundo se todo corpo docente adequasse os materiais e avaliações ao momento em que estávamos vivendo. E que o desgaste emocional do confinamento e a exaustão mental da sobrecarga acadêmica interferiu em nosso bem-estar.
Sassaki (2009) comenta sobre a acessibilidade instrumental. Entendo-a como a construção de políticas que proporcionam instrumentos, utensílios e ferramentas adequadas para o pleno desenvolvimento das atividades exigidas. Nesse sentido, a universidade proporcionou editais para aquisição de equipamentos de tecnologia, concessão de chip de dados e empréstimo de equipamentos. No entanto, nem todas as pessoas conseguiram acessar, pois havia imensas dificuldades em entender os novos processos, editais. E especialmente, em razão do uso de formulários, o que nem sempre é simples para fazer em um telefone.
O NAC emprestou-me um tablet e um gravador de voz. O acesso a esses dois equipamentos e a autorização — por parte dos/as professores/as — de utilizar o gravador de voz durante as aulas, favoreceu bastante meu desenvolvimento acadêmico. Para nós, pessoas com deficiência visual, assistir aula e fazer anotações durante uma aula se torna impraticável quando você possui apenas um equipamento.
Autorizar o uso de gravador, por parte de pessoas com deficiência visual, é quebrar barreiras pedagógicas, mas também atitudinais. Particularmente, talvez seja importante a universidade investir e insistir na acessibilidade atitudinal. Aparentemente é algo simples, mas exige aprofundamento nas ações de gestão, nas articulações interinstitucionais, nas práticas pedagógicas inclusivas, nos investimentos da política de inclusão, e, sobretudo, nas ações de reflexão e construção de práticas equitativas.
Sem dúvida, a acessibilidade é um caminho repleto de possibilidades. E, de fato, as demais barreiras são rompidas especialmente quando a acessibilidade atitudinal é uma prática (não apenas discurso) de toda comunidade acadêmica. Certamente cultivei boas amizades e obtive apoio de uma parte do corpo docente, mas - também - posso afirmar que vivenciei discriminação, especialmente por parte de colegas estudantes. Mas, aproveito a oportunidade de expor e reafirmar que estou determinada a cumprir meu propósito e com apoio de POLÍTICAS INSTITUCIONAIS avançarei!
ACESSIBILIDADE COMUNICACIONAL E MEDIAÇÃO DA INFORMAÇÃO
Meu nome é Fausto Silveira, tenho 47 anos, sou casado, tenho um filho e sou pessoa com deficiência visual, baixa visão. Nasci com toxoplasmose congênita e após um ano de tratamento fiquei curado, no entanto minha visão foi afetada, em especial, meu nervo ótico.
O ingresso na universidade me fez deparar com outras desafiadoras situações e barreiras, que a meu ver é, também, reflexo de toda uma vida olhando para mim mesmo por uma perspectiva errônea e equivocada. Talvez isso tenha tido início na minha convivência familiar, onde desde pequeno me fizeram acreditar que eu poderia ser e fazer o que quisesse. De fato, no início, essas frases soavam como um alento para mim, mas com o passar do tempo e das minhas vivências fui abraçado por uma realidade cruel e muito dolorosa que a cada dia me preenchia de incerteza e tristezas, pois o que haviam me dito sobre “fazer o que quisesse e ser o que quisesse” estava caindo por terra.
A frustração vinha a cada “não pode”, “não consegue” ou mesmo uma simples e desconcertante rejeição, tanto no âmbito profissional quanto no pessoal, nas brincadeiras que eu não era escolhido e pelas paixões não correspondidas, quiçá, debruçadas no aspecto discriminatório e preconceituoso das garotas e por pressão de suas famílias.
Atualmente sou graduando de uma Universidade Federal. Estou no segundo semestre, e, infelizmente constatei que algumas realidades, do tempo de Ensino Médio, ainda persistem. Apesar do avanço tecnológico evidente, parece que as mesmas dificuldades e barreiras seguiram existindo no principal âmbito de produção de conhecimento: a universidade. Segui impossibilitado de enxergar o quadro, ler e acompanhar as leituras, acompanhar as explicações dos/as professores/as etc. Foram inúmeras as barreiras que encontrei.
Não, não pretendo aceitar afirmativas incongruentes. É possível — através das tecnologias assistivas — uma pessoa com deficiência visual ter acesso ao que está escrito no quadro. É direito garantido nosso acesso ao material adaptado (nos mais diferentes formatos). Certamente professores/as possuem capacidade de descrever uma imagem, gráfico etc. Da mesma forma que os/as colegas de sala podem construir — comigo — estratégias que me façam partícipe das atividades etc. Infelizmente eu não sou o único que não está enxergando. Há, muitas vezes, uma indisponibilidade coletiva!
A Pandemia do Coronavírus me distanciou da sala de aula e do convívio com colegas e professores/as, pessoas que me encorajam, mas não garantem a acessibilidade que necessito na sala de aula. Também me desafiou a descobrir a importância e necessidade do amplo acesso às tecnologias assistivas. De fato, sinto que o distanciamento do ambiente de sala de aula prejudicou minha capacidade de concentração, aprendizagem e rendimento, pois nem sempre, em nossas casas, temos um ambiente adequado para estudo etc.
Não obstante, observei que o distanciamento me aproximou do convívio familiar, me colocou em menor risco no que se refere ao trânsito e uso do transporte público. Mas, talvez as cidades e universidades ainda necessitem investir em políticas de acessibilidade pedagógica para pessoas com deficiência. Sem dúvida, um plano de políticas de acessibilidade e inclusão contribuíram para traçar estratégias de êxito das pessoas com deficiências.
O balanço é que as universidades públicas e privadas devem entender que não são apenas estruturas físicas, equipamentos, tecnologias etc. As instituições são compostas por pessoas, que necessitam assumir — com apoio — as responsabilidades que lhes cabe, que precisam se sentirem acolhidas e cuidadas ao invés de serem mais um número de matrícula etc. Poderia citar aqui inúmeras questões, mas sou completamente consciente de que as instituições sabem o que devem promover, assim como todas as pessoas que as compõem.
No momento da pandemia, precisei me adaptar ao uso das tecnologias assistivas. Em meu caso utilizo notebook e celular, mas sinto que estou vivendo um período de descobertas e de grande conflito pessoal. Sinto, como muitas outras pessoas, as consequências de um ensino médio sem acessibilidade e inclusão. O interessante é que em meu caso não se trata de conseguir acompanhar adequadamente todo processo fundamental do meu curso e sim da convivência com o capacitismo, onde na maior parte da minha vida tudo que eu fazia era “bom” independente do resultado. Infelizmente me apeguei a esse “estilo” de ser/estar na vida, me conformando e aceitando tudo, não exigindo a garantia de meus direitos. É isso, antes acreditava que ser deficiente e ter conseguido (seja lá o que for) estava bom.
Mas que tal se construíssemos a educação de forma equitativa, respeitando as singularidades? Que tal se, professores/as, planejassem e elaborassem, sempre, planos de ensino que respeitem as peculiaridades de estudantes com deficiência?
É através da educação política que hoje entendo que a deficiência não é doença e sim uma condição! Aprendi que não queremos facilidades e sim acessibilidade! Que não somos melhores e nem piores que ninguém, somos apenas diferentes.
A ACESSIBILIDADE ALÉM DAS NORMATIVAS
Sou Tobias, bolsista do núcleo de acessibilidade de uma Universidade Federal e pessoa com diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista (TEA). Iniciei no NAC pouco tempo antes da pandemia do Coronavírus se instalar. O trabalho no NAC começou como algo desafiador desde o momento da seleção, quando eu, que havia aceitado recentemente o diagnóstico me coloquei em dúvida: eu poderia ocupar um espaço em que, teoricamente, serviria para assistir pessoas com individualidades como a minha?
Feito o processo seletivo, tive diversas dificuldades em adaptar-me com a minha antiga-nova vida. Ao começar a me entender melhor, vi que as barreiras comunicacionais, caracterizadas pela falta de acessibilidade nas relações interpessoais (Sassaki, 2009), eram reais, quando antes me pareciam ilusórias. Em diversos momentos recebia instruções, cumprimentos e comentários que nunca entendi, mas busquei sempre rir e acenar positivamente com a cabeça. Penso que talvez as pessoas gostem disso, mesmo que não seja um sentimento real.
As barreiras comunicacionais interferiram diretamente numa segunda barreira pessoal que sentia na época, a instrumental. A barreira instrumental caracteriza-se pela falta de acessibilidade em recursos instrumentais como utensílios de estudo, utensílios domésticos e meios de tecnologia, como computadores, celulares etc. (Sassaki, 2009).
As barreiras instrumentais, no recorte da tecnologia para pessoas autistas, aparecem quando preciso acessar determinados recursos e o excesso de informações dificulta um foco hábil para construção de uma linha de raciocínio. Precisei trabalhar com computadores, quando antes isso era algo que eu odiava, pois sempre fui do time lápis e papel. Além de qualquer dificuldade, os computadores nunca fizeram parte dos meus hiperfocos. E, assim, precisei tirar um tempo para mim, sozinho, em casa, para que pudesse estudar e me adaptar a essas barreiras minimamente. Até consegui, mas parece ter sido por pouco tempo.
Com a Pandemia, toda a minha construção de conhecimentos havia sido destruída, como um sujeito no espectro autista, a adaptação a esta mudança de rotina bruta me acarretou diversos problemas executivos. Comecei a trabalhar fora de hora até a exaustão, a não trabalhar quando deveria, atrasar alguns materiais ou terminar e esquecer de fazer o envio. Pouco a pouco senti-me definhar.
Foi quando aconteceu o episódio mais complicado para mim: toda a família estava doente, inclusive eu, porém, tinha um material para ser entregue e meu ritmo estava completamente desacelerado. O conjunto de fatores fez com que tivesse a maior das crises de hiperfoco da minha vida. Trabalhei por 26 horas seguidas, sem pausas para banheiro, comida, água, até o completo desgaste, foi quando desmaiei.
A gestão do NAC compreendeu meu desgaste — embora não vos tivesse explicado — e consegui um momento de pausa para recuperação, onde fiz atividades reduzidas até recuperar o meu ritmo de trabalho, englobando assim uma terceira dimensão, a metodológica. Para Sassaki (2009), a dimensão metodológica está atrelada à adequação dos métodos e técnicas de trabalho a fim de evitar o desgaste, respeitando, assim, as individualidades.
Durante meu período de atividades reduzidas, numa conversa entre amigos/as, surgiu a ideia de realizar um curso. O curso seria voltado às pessoas com deficiência visual e iria contribuir com suas escritas de textos acadêmicos, primordialmente, artigos. O curso aconteceu durante o Período Letivo Excepcional (PLE) me mantendo 100% focado e voltado à realização do curso, sem distrações. A ideia cresceu e a primeira edição do curso foi um sucesso, senti-me bem!
O PLE acabou e precisei começar as atividades acadêmicas de forma remota. No início pareceu uma boa ideia, afinal, estaria na minha casa e organizando minhas atividades da melhor maneira possível. Com o decorrer do tempo percebi que o período letivo a distância era uma loucura, cada docente exercia suas atividades por um meio diferente, alguns com aulas síncronas, outros assíncronas, alguns via e-mail, outros /as por chamadas de vídeo ou pastas de documentos online. Para mim o período letivo a distância foi insuportavelmente desgastante e, na verdade, não consegui extrair nem o mínimo das minhas habilidades acadêmicas.
Sobrevivi ao primeiro período letivo obrigatório e agora finalizamos a segunda edição do Curso de Letramento Acadêmico para PcD. Para mim, o desenvolvimento do curso foi conturbado em minha organização, atraso de prazos, desvios de planejamento, mas — por fim – o curso acabou acontecendo. Mas, a segunda edição, veio em um período letivo obrigatório onde demandas acadêmicas, unidas às do curso tornou algo prazeroso em exaustivo, com o tempo descobri que esse sentimento era também dos/as cursistas. No entanto, a gestão do NAC sugeriu algumas alterações no planejamento do curso que resultou na escrita desse texto a várias mãos, mas não sei como narrá-las aqui, já que estou fazendo uso do pretérito perfeito e o tal acontecimento é presente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A escrita coletiva deste artigo mobilizou memórias, fazendo reviver momentos angustiantes na universidade, mas contribui para reafirmar que não há garantia de direitos sem a existência de políticas públicas e institucionais, e, em especial, as políticas para educação especial.
Ao longo do curso e escrita deste artigo, percebemos que publicizar nossas narrativas/histórias enquanto pessoas com deficiências visuais — distintas — no âmbito universitário é estratégico, pois expõe posturas limitadas, mas também, possibilidades. Ao mesmo tempo em que apresenta barreiras que precisam de intervenção política e técnica para garantir nossa acessibilidade e inclusão em sala de aula e na universidade.
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010), cerca de 24% da população brasileira têm algum tipo de deficiência. De que forma as universidades federais estão promovendo a acessibilidade do corpo discente com deficiência? Em nosso artigo apresentamos as vivências de um grupo pequeno, porém diverso. Um grupo que acessou as políticas institucionais, ainda que estas sejam limitadas e escassas. As narrativas tratam das barreiras apontadas por Sassaki (2009) que estão arraigadas no cotidiano da sociedade e no “universo” acadêmico.
Exprimimos aspectos de privações e limites vividos da infância até a universidade. As narrativas que nos fizeram subjugar barreiras e lançar desafios — injustos e impossíveis de enfrentar de forma solitária — foram sendo percebidas ao longo do tempo, através de processos individuais, mas especialmente na coletividade. Quiçá o curso, ao agregar diversas pessoas com deficiência visual, tenha sido importante para nosso despertar e demandar que políticas de acessibilidade sejam prioridade.
De acordo com os relatos, pode-se perceber que as barreiras arquitetônicas se tornaram irrisórias durante a pandemia Covid-19. Em contrapartida, a desconstrução das barreiras tecnológicas se torna extremamente importante, pois, uma vez que o domínio de equipamentos tecnológicos e o acesso às tecnologias assistivas se tornaram substanciais.
Embora a dimensão tecnológica tenha o seu papel importantíssimo na vivência das pessoas com deficiência, percebe-se que as atitudes individuais por parte de docentes e colegas de sala, necessitam - também - promover a autonomia e garantir a acessibilidade para quem requer adaptações. Ou seja, digamos que não existam barreiras digitais e tão pouco arquitetônicas. Se a comunidade acadêmica não vislumbrar a acessibilidade das pessoas com deficiência, dificilmente a sala de aula (mesmo que virtual) será acolhedora e acessível pedagogicamente. Não é possível contabilizar a acessibilidade. Ou ela está se dá de forma completa, vinculada em todos seus elementos apontados por Sassaki (2009) ou ela deixa de ser acessibilidade.
Como dito por uma das autoras, o “simples” ato de proibir que uma pessoa com deficiência visual grave a aula, pode tornar o estudo posterior inacessível, pois enquanto videntes registram com anotações, este processo para uma pessoa com deficiência visual é inexecutável, tenso e ineficiente.
De fato, exercitar a capacidade de escrita é necessário no âmbito acadêmico, especialmente por ser uma forma de deixar nosso registro no mundo. E o curso de letramento acadêmico tentou desenvolver a escrita, o registro de vivência. De um modo que abraçasse as necessidades das pessoas participantes, que compreendesse as problemáticas existentes dentro da construção política das universidades, e, acima de tudo, respeitasse os ritmos e individualidades de cada sujeito.
A coletividade na escrita deste artigo denota como esta parceria entre as partes, a troca e o estudo conjunto se faz produtivo, enriquecedor e fortalecedor, algo que afirma e reafirma a escrita e a potência de pessoas com deficiência durante seus processos de inclusão e ocupação de espaços de protagonismo acadêmico.
Em um aspecto somos intransigentes, é necessário que as Universidades Públicas e Privadas avancem no que se refere à análise de conjuntura, avaliação, autoavaliação e planejamento de políticas de inclusão e acessibilidade. E cresçam através do diálogo com todas as pessoas envolvidas no processo: pessoas com deficiência, bolsistas e servidores/as.
Acreditamos na capacidade de resistência e resiliência individual, coletiva e institucional, também somos conscientes de que setores solitários não avançam e constroem o que é necessário para nossa permanência na universidade hoje. A construção de debates e a efetivação de políticas de acessibilidade estão longe de atingir o plano ideal, mas precisamos fomentar - urgentemente - o investimento financeiro e humano nas políticas de acessibilidade e inclusão das universidades.