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Revista Psicologia Política

versión On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.24  São Paulo  2024  Epub 23-Ago-2024

https://doi.org/10.5935/2175-1390.v24e24415 

Dossiê Psicologia e Políticas da Deficiência: Ativismos, aleijamentos e a luta anticapacitista - Artigo

MULHERES, CORPOS POLÍTICOS E SUBJETIVIDADES: MODELO SOCIAL DA DEFICIÊNCIA E ATIVISMOS

Mujeres, cuerpos políticos y subjetividades: modelo social de la discapacidad y activismo

Women, political bodies and subjectivities: social model of disability and activism

MARCIA OLIVEIRA MORAES1  , Concepção, Elaboração do manuscrito, Revisões críticas de conteúdo intelectual importante, Aprovação final do manuscrito
http://orcid.org/0000-0002-8581-6126

ANA RAQUEL HOLANDA2  , Concepção, Elaboração do manuscrito
http://orcid.org/0000-0002-7330-9688

GISLANA MONTE VALE3  , Concepção, Elaboração do manuscrito
http://orcid.org/0000-0001-7551-6157

OLGA MARIA TAVARES DE SOUZA4  , Concepção, Elaboração do manuscrito
http://orcid.org/0009-0007-5908-376X

1http://orcid.org/0000-0002-8581-6126 E-mail: mazamoraes@gmail.com Doutora em Psicologia Clínica pela PUC/ S P. Professora Titular do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense, Niterói/RJ.

2https://orcid.org/0000-0002-7330-9688 E-mail: anaraquel.mdh@gmail.com Psicóloga, trabalhadora da área da neuro-reabilitação na rede pública de saúde.

3https://orcid.org/0000-0001-7551-6157 E-mail: gislanavale@gmail.com Doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense, Niterói/RJ.

4https://orcid.org/0009-0007-5908-376X E-mail: olgamtsouza@gmail.com Mestranda em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense. Niterói/RJ.


RESUMO

O objetivo deste artigo é apresentar os sentidos de corpo político da deficiência que fomos construindo e elaborando juntas num percurso de formação que foi realizado com base na leitura e discussão de uma obra de Lígia Amaral, psicóloga brasileira e mulher com deficiência. A concepção e proposição do curso de formação, partiram do movimento social de mulheres cegas e com baixa visão para a universidade, o que nos leva a afirmar que o movimento social de mulheres com deficiência visual produz conhecimento cotidianamente, por meio de seus ativismos, lutas e parcerias com universidades. Desse modo, tomando como pano de fundo a perspectiva do modelo social da deficiência, fazemos um breve histórico do movimento social, feminista, das mulheres cegas e, em seguida, propomos alguns sentidos para o corpo político da deficiência que construímos em articulação com as contribuições de Lígia Amaral.

Palavras-chave: Mulheres; Corpo político; Deficiência; Ativismos

RESUMEN

El objetivo de este artículo es presentar los significados del cuerpo político de la discapacidad que venimos construyendo y elaborando juntas, en un curso de formación que se realizó a partir de la lectura y discusión de una obra de Lígia Amaral, psicóloga y mujer brasileña con discapacidad. La concepción y propuesta del curso de formación surgió del movimiento social de mujeres ciegas y con baja visión hacia a la universidad, lo que nos lleva a afirmar que el movimiento social de mujeres con discapacidad visual produce conocimientos en el día a día, a través de su activismo, luchas y alianzas con universidades. Así, tomando como tras-fondo la perspectiva del modelo social de la discapacidad, brindamos una breve historia del movimiento social feminista de mujeres ciegas y luego proponemos algunos significados para el cuerpo político de la discapacidad que hemos construido en articulación con los aportes de Ligia Amaral.

Palabras clave Mujeres; Cuerpo político; Discapacidad; Activismo

ABSTRACT

This article aims to present the meanings of the political body of disability that we have been building and elaborating together in a training course that was carried out based on the reading and discussion of a work by Lígia Amaral, a Brazilian psychologist and woman with disability. The conception and proposition of the training course came from the social movement of blind and visually impaired women to the university, which leads us to affirm that the social movement of women with visual impairments produces knowledge on a daily basis, through their activism, struggles and partnerships with universities. Thus, taking as a backdrop the perspective of the social model of disability, we provide a brief history of the social feminist movement of blind women and then propose some meanings for the political body of disability that we have constructed in articulation with the contributions by Ligia Amaral.

Keywords Women; Body politic; Disability; Activism

INTRODUÇÃO

Este texto é o resultado de uma produção coletiva escrita a oito mãos para registrar nossa conversatória sobre o tornar-se/fazer-se corpo político, realizada em agosto de 2021, através do curso de formação intitulado ““Mulheres, Corpos Políticos e Subjetividades: Discutindo o Modelo Social da Deficiência””, baseado na obra “Resgatando o passado: deficiência como figura e vida como pano de fundo” de Ligia Amaral (2004). O curso de formação foi uma proposta do Movimento Brasileiro de Mulheres Cegas e com Baixa Visão (MBMC), realizado em parceria com o projeto de pesquisa Perceber sem Ver1 e realizado na Universidade Federal Fluminense (UFF), no curso de Psicologia.

Nos encontros de formação, que aconteceram uma vez por semana, durante um mês, éramos mais de vinte mulheres muito diversas, com corpos divergentes, com diferenças de classe, idade, raça, etnia, território, com histórias e marcas singulares. Nós, mulheres que nos propusemos a realizar esta escrita, estávamos também na roda de formação. Nossos percursos se entrecruzam em diferentes pontos. Marcia Moraes é de Niterói, mulher sem deficiência, professora de Psicologia na Universidade na Universidade Federal Fluminense (UFF), coordenadora da Pesquisa Perceber sem Ver, desenvolvendo há muitos anos atividades de pesquisa e extensão com pessoas com deficiência visual, parceira do MBMC. Gislana Vale, do Ceará, é mulher cega, doutoranda em Psicologia pela UFF, coordenadora executiva do MBMC, e participante do movimento desde a sua fundação até o ano de 2023. Ana Raquel Holanda, do Ceará, é mulher com baixa visão, psicóloga, trabalhadora da área da neuro-reabilitação na rede pública de saúde, integrante do coletivo feminista Helen Keller de mulheres com deficiência e Olga Maria Tavares, do Rio de Janeiro, mestranda em Antropologia pela UFF, é mulher com deficiência física, amputada do membro inferior esquerdo, militante do movimento social da pessoa com deficiência, com histórico de participação no controle social pelos conselhos de direitos.

No curso de formação trouxemos para nossa roda uma outra mulher com deficiência, de outro tempo, Lígia Amaral. Fomos apresentadas à convidada que compareceria entre nós por meio de seu livro (Amaral, 2004) e de sua história. Lígia Amaral legou sua vida à academia, como docente de Psicologia na Universidade de São Paulo (USP) e, transformando suas memórias em investigação científica na sua dissertação de mestrado, fez de si mesma sujeito e objeto de estudo. Para nós, Lígia Amaral foi interlocutora. Misturamos suas palavras às nossas e tecemos uma potente e transformadora conversa fiada. Com os fios de nossas trajetórias fomos estimuladas a bordar textos, relatos, partilhar impressões e afetos gerados pela escrita de Lígia Amaral e de nossas companheiras de formação.

A cada uma das mulheres que se reuniu naquelas quartas-feiras à noite, naquele espaço virtual, um convite se fez chegar. Como tantas coisas nesses tempos de pandemia, o convite veio mediado por toques em telas ou teclas, e foi caloroso o bastante para convencer quem o aceitasse a levar para a roda sua presença e sua história.

O primeiro encontro foi precedido por palavras que, provavelmente de forma diferente para cada uma, continham já significados relevantes: modelo social da deficiência, corpo político… nada poderia, no entanto, antecipar a potência que a reunião de tantas histórias e presenças produziria. Nosso espaço se construía pouco a pouco com as apresentações, autodescrições, vozes que ganhavam nuances na medida em que se distinguiam umas das outras. Nele, quem falava de si era recompensada com a oportunidade de ouvir as outras. Identificações e diferenças reverberando reflexos e reflexões. Foi possível perceber com nitidez que, naquele território, estava permitido sermos inteiras. Não seria necessário fragmentarmos nossas identidades para torná-las palatáveis à compreensão de quem não está habituado a percorrer as intersecções pelas quais perambulamos.

O objetivo deste artigo é apresentar os sentidos de corpo político da deficiência que fomos construindo e elaborando juntas no curso de formação, a partir da leitura que fizemos do livro de Lígia Amaral (2004). A concepção e proposição do curso de formação, como dito, partiram do MBMC, isto é, do movimento social de mulheres com deficiência visual, para a universidade, representada pela pesquisa “Perceber sem Ver”. O que estava posto era a afirmação de que o movimento social de mulheres com deficiência visual produz conhecimento cotidianamente, por meio de seus ativismos, lutas e parcerias com universidades.

Nas linhas que se seguem, faremos uma breve apresentação da formação e da história do MBMC. Em seguida, falaremos da proposta de escrita de Lígia Amaral, autora que esteve na roda de formação por meio de seu livro, fruto de sua dissertação de mestrado, defendida em 1987. Em seguida, apresentaremos alguns tópicos que discutimos no curso de formação e, ao final, indicaremos aquilo que para nós define e circunscreve um sentido possível para o corpo político da deficiência.

MOVIMENTO BRASILEIRO DE MULHERES CEGAS E COM BAIXA VISÃO

Como pensar e construir uma discussão sobre o corpo político na perspectiva das mulheres com deficiência? Embora seja maioria entre a população com deficiência, as mulheres foram durante muito tempo tratadas apenas como pessoas com deficiência, sendo negadas historicamente questões referenciadas em gênero, classe, raça/etnia e geracionalidade, dentre outras. Nessa condição de invisibilidade e quando desveladas suas trajetórias, essas tomaram uma dimensão estranhada e violada pela curiosidade pública. Assim, suas histórias de resistência e sobrevivência passaram a ser exploradas e reviradas à exaustão. Na maioria das vezes com a “ingênua” afirmação de que exemplificam modelos de superação, palavra insidiosa que no fundo reduz as experiências e vivências das mulheres a algo que remete a jaulas de zoológico: “vejam como fazem, acasalam, dão cria, acham alimento para os filhotes, disputam entre si”. Animais exóticos, representativos de algo insólito para observação e deleite da curiosidade caridosa, pedante ou acintosa de muitas pessoas. Poucas vezes referidas considerando a dimensão do acesso e da intimidade como elementos a considerar.

No intuito de apresentar essa questão, chamamos então para essa roda o conceito de intimidade de acesso2, trazido por Mia Mingus (2011a, 2011b, 2017). Segundo a autora, a intimidade de acesso coloca no centro da discussão sobre acessibilidade duas questões articuladas. A primeira, a de que o acesso é coletivo, isto é, diz respeito a abarcar e acolher coporalidades diversas e singulares. A segunda, diz respeito à dimensão de afeto que está atrelada às questões de acessibilidade. Isso significa que prover o acesso não é apenas sobre recursos e materiais técnicos, é também sobre o afeto de pertencimento que se faz presente em cenários que abarcam e acolhem os corpos diversos. A intimidade de acesso, é em última instância, a nossa interdependência colocada em ação no tecido social, lançando mão de humanos e não humanos, abrindo por essa via a possibilidade de que as pessoas experimentem a afeto de pertencer àquele cenário social e político. Nas palavras da autora:

Não há acesso libertador sem intimidade de acesso, e de fato, intimidade de acesso é um dos principais critérios para acesso libertador. . . . O acesso libertador nos convoca a criar valores para acessibilidade diferentes daqueles que nós temos historicamente tido. Ele demanda que a responsabilidade por acesso se desloque de ser uma responsabilidade individual a uma responsabilidade coletiva. Esse acesso se desloca de silenciar a libertar; de isolar a conectar; de escondido e invisível a visível; de oneroso a valioso; de uma obrigação ressentida a uma oportunidade; de humilhante a poderoso; de espinhoso a criativo. É o tipo “bom” de acesso, os momentos em que nós somos agradavelmente surpreendidos e nos sentimos vistas. É uma maneira de fazer acesso que transforma ambos nosso “hoje” e nosso “amanhã”. De tal forma, o acesso libertador ao mesmo tempo resiste contra o mundo que nós não queremos e ativamente constrói o mundo que nós queremos. (Mingus, 2017, par. 33/34, tradução nossa)

Mulheres com deficiência num espaço de convivência respeitosa com outras mulheres com ou sem deficiência, falam de si, de suas expectativas e enfrentamentos, como diálogo, como conversa cotidiana, na maioria das vezes de forma sensível e sem reservas. Esses são momentos pessoais e de fala não desejosas de julgamento e avaliação, apenas reflexões ou desabafos próprios da convivência de quem durante anos, mais até que isso, séculos, vivendo no anonimato de repente se viu, acintosamente, arrancada do ostracismo para a curiosidade extrema, desacolhedora de sua intimidade, devassadora de seus sentimentos e lutas. É capacitista considerar que invisibilidade pode virar simples sinônimo de exposição, pois só é justo e válido falar de si por consentimento e reconhecimento de percurso, por autodeclaração com tempo e causas definidas e traçadas (Dias, 2013; Mello, 2016).

Frente a essa discussão, foi gestada a ideia de estabelecer, nesse contexto, uma formação que discutisse a dimensão do corpo político das mulheres com deficiência, alinhada também ao que preconiza o modelo social da deficiência apontado pelo marco legal proposto e definido para esse segmento (Decreto nº 6.949/2009). Na perspectiva do modelo social, a deficiência é uma forma de opressão que resulta do encontro entre um corpo com impedimentos e um cenário social com barreiras. Desse modo, para o modelo social da deficiência o que está em causa é um projeto político de transformação social e não de normalização dos corpos diversos. Como dito, essa formação se deu a partir do MBMC. Movimento livre, coletivo de mulheres com deficiência visual, criado em 2015, que tem como propósito trazer a dimensão da participação política e social das mulheres e buscar intervir nas políticas públicas para esse segmento.

Acreditamos ser importante resgatarmos um pouco da trajetória do MBMC, para compreendermos o processo que se construiu até chegarmos à formação. O recorte que ora apresentamos sobre a participação das mulheres com deficiência na vida social e política, não tem como objetivo discorrer sobre a trajetória de mulheres dos diversos segmentos da deficiência, mas sim lançar mão da história de uma parcela do segmento da deficiência visual, o que concorre para a criação do MBMC. Este movimento surgiu respondendo à necessidade de promover a participação das mulheres com deficiência visual, uma vez que até então a referida participação estava restrita a tarefas secundárias e coadjuvantes de apoio às ações protagonizadas pelos homens com deficiência visual.

O primeiro Encontro do Movimento ocorreu em Teresina, no Piauí, em 2015, discutindo inúmeras temáticas. No entanto, a centralidade de sua discussão tinha a ver com a necessidade de visibilizar pautas específicas das mulheres com deficiência visual, não contempladas anteriormente, atravessadas por dimensões de gênero muito mais referenciadas nos homens, do que em outras igualmente reivindicatórias de políticas públicas, como mulheres e pessoas LGBTQIA+. No momento de sua criação, o MBMC trouxe como possibilidade a ideia de se constituir numa organização da sociedade civil (OSC) o que não se concretizou, embora tenha sido discutido um possível estatuto para definir sua atuação.

O MBMC, embora ativo a partir do seu primeiro encontro no Piauí, enfrentou muitas dificuldades para realizar o seu segundo encontro, que ocorreu em Recife/PE, financiado pelas próprias mulheres participantes por meio do pagamento de suas inscrições e da venda de camisas. Esse evento teve sua data de realização alterada, por coincidir com um campeonato do jogo de damas, destinado ao público masculino. O evento contou com doação de lanches da instituição de cegos local e transporte para as atividades socioculturais, cedido pelo governo municipal. Vale ressaltar que a partir desse encontro incorporou-se à programação o reconhecimento da cultura local da cidade-sede das atividades, assim as mulheres integrantes do evento tiveram a oportunidade de visitar o Museu do Homem Nordestino e assistir ao Festival de Animes Eróticos, contando com acessibilidade da audiodescrição, que aconteceu numa sessão aberta ao público. Durante a realização desse encontro em Recife/PE, as mulheres, em assembleia, deliberaram pela continuidade do MBMC como coletivo livre, sem registro de CNPJ, o que implicou na não dependência de sua manutenção por órgãos governamentais. Assim, seguiu sua trajetória pela busca de uma proposta ancorada na perspectiva feminina/feminista, de promoção da autonomia e participação social.

Durante o seu terceiro encontro, ocorrido na cidade de Salvador/BA, que teve como tema Equidade de Gênero, Autonomia e Participação das Mulheres Cegas e com Baixa Visão, foi apresentado o perfil das mulheres com deficiência visual, com o objetivo de desvendar o espaço ocupado por essas mulheres quanto aos aspectos ligados ao trabalho, vínculos familiares, uso de recursos de acessibilidade, tendo como propósito definir rumos para o movimento. No encontro de Salvador também foi mudada a forma de gestão do MBMC que deixou de ser hierárquica e passou a ser realizada por uma coordenação colegiada, baseada no princípio da circularidade, considerando que no círculo as mulheres estariam na mesma posição e nenhuma se sobreporia às demais, entendendo ser essa uma proposta representativa para a vida das mulheres.

Consideramos importante apresentar a trajetória do MBMC, no intuito de dar conta de como chegamos à discussão temática das mulheres como corpo político e a inserção desse tema no âmbito do modelo social da deficiência e de suas interlocuções. Fazer o movimento social na forma expressa pelo MBMC pode ser entendido no modo como Maria da Glória Gohn, apresenta em seu texto apontando sua intencionalidade ao dizer que os movimentos sociais

utilizam-se muito dos novos meios de comunicação e informação, como a internet. Por isso, exercitam o que Habermas denominou de agir comunicativo. A criação e o desenvolvimento de novos saberes, na atualidade, são também produtos dessa comunicabilidade. Na realidade histórica, os movimentos sempre existiram, e cremos que sempre existirão. Isso porque representam forças sociais organizadas, aglutinam as pessoas não como força-tarefa de ordem numérica, mas como campo de atividades e experimentação social, e essas atividades são fontes geradoras de criatividade e inovações socioculturais. . . . Os movimentos realizam diagnósticos sobre a realidade social, constroem propostas. Atuando em redes, constroem ações coletivas que agem como resistência à exclusão e lutam pela inclusão social. Constituem e desenvolvem o chamado empowerment de atores da sociedade civil organizada à medida que criam sujeitos sociais para essa atuação em rede. . . . Criam identidades para grupos antes dispersos e desorganizados, como bem acentuou Melucci (1996). Ao realizar essas ações, projetam em seus participantes sentimentos de pertencimento social. Aqueles que eram excluídos passam a se sentir incluídos em algum tipo de ação de um grupo ativo. . . . Definições já clássicas sobre os movimentos sociais citam como suas características básicas o seguinte: possuem identidade, têm opositor e articulam ou fundamentam-se em um projeto de vida e de sociedade. (Gohn, 2011, p. 336)

Essas definições se aplicam ao MBMC, que no seu quarto Encontro Nacional, ocorrido em Aracaju-SE, já apresentava em um formato mais dinâmico e aglutinador de mulheres com deficiência visual, sem, no entanto, definir critérios estreitos de participação tais como formação acadêmica ou coisa que o valha. Nesse encontro em Sergipe a discussão do movimento se deu a partir de questões relativas à acessibilidade e do uso de tecnologias assistivas. Percebemos também nesse encontro, a necessidade colocada pelas mulheres de empreender de modo cada vez mais forte a luta por visibilidade e participação na definição de políticas públicas para o segmento, em âmbito local e nacional. Nesse sentido, recorremos às considerações de Anahi Guedes de Mello (2017) quando afirma a relevância da formação política em estudos sobre feminismo e deficiência para que mulheres com deficiência exerçam o controle social das políticas para mulheres. Para a autora, a formação política é fundamental para as redes, coletivos, organizações, movimentos ou grupos de mulheres com deficiência. Isso porque

a perspectiva da transversalidade considera um enfoque múltiplo ou interseccional da discriminação, por entender que as experiências de opressão de um determinado grupo social, como o das mulheres e pessoas com deficiência, podem resultar como de fato resultam da interação de vários fatores ou componentes sociais, o que nem sempre se constata na prática. É o que se vê, por exemplo, no caso das mulheres e meninas com deficiência quando se percebe um inexistente ou pouco enfoque de gênero nas políticas da deficiência, e vice-versa. (Mello, 2017, pp. 170-171)

O Quinto Encontro Nacional do MBMC, ocorrido em Curitiba/PR, se apropriou de novos horizontes e parcerias numa aproximação com o Projeto de Pesquisa “Perceber Sem Ver- UFF”, na necessidade de pensar propostas de formação buscando uma participação mais efetiva junto às mulheres do coletivo. Nesse encontro, discutindo politicamente a categoria trabalho, o movimento trouxe também falas sobre acesso e processos de exclusão ao mesmo tempo em que refletiu sobre a inserção da grande maioria como beneficiárias do Benefício de Prestação Continuada (BPC). Essa discussão se deu pela mediação da Professora Doutora Olívia van der Weid, antropóloga e docente da UFF, reverberando posteriormente em parceria com o Laboratório Corpos Naturezas e Sentidos / LABCONATUS do curso de Antropologia-UFF, para o desenvolvimento do projeto “À flor da pele: poéticas e políticas da cegueira”, bem como a posterior produção de narrativas que ensejaram o movimento a discutir formas de violências que se apresentam na vida das mulheres com deficiência. No encontro de Curitiba foi deliberada a cidade do Rio de Janeiro como sede do próximo encontro nacional, o que não chegou a acontecer de modo presencial, considerando a pandemia de Covid-19.

Nesse intercurso, até acontecer o VI Encontro Nacional virtual no RJ, utilizando recursos tecnológicos como base das relações sociais em tempo de trabalho e vida social acontecendo de modo remoto, o MBMC que já realizava grande parte de suas ações de modo virtual desde sua criação, uma vez que suas membras vivem em diferentes estados da federação, buscou desenvolver tecnologias de formação, participação e lazer que resultaram numa tecnologia social3 denominada de Enquete, um debate sobre temas diversos, utilizado como processo formativo e informativo das mulheres, propiciando momentos interativos e de diálogos sobre temas e assuntos ligados à própria participação social, política, bem como o marco legal da deficiência e suas abordagens cotidianas a partir do governo vigente e a ameaça posta diuturnamente aos direitos conquistados. Considerando esse aspecto colocamos aqui a fala de Adriana Dias que permeia essa ação do MBMC:

se recortarmos em gênero, as mulheres com deficiência são sempre as mais esquecidas, mais pobres e mais vulneráveis. A deficiência, em mulheres, nas classes mais pobres é fruto muitas vezes de gestações mal acompanhadas e partos de alto risco. Meninas, jovens e mulheres com deficiência são muito mais vulneráveis a abusos sexuais que as que não têm deficiência. (Dias, 2013, s/p)

Essa discussão, dentre outras, esteve sempre presente nos processos de diálogo e formação do MBMC, possibilitando modos de coletivização de temas comuns entre as mulheres, reduzindo ao mesmo tempo as condições de apartação entre experiência e elaboração teórica do conhecimento. Outra tecnologia social se caracterizou pela criação do Boteco Virtual como forma de promover a socialização e o reconhecimento do lazer para mover a sociabilidade, reduzindo assim os efeitos da privação da vida social em tempos de pandemia e reclusão ao espaço doméstico. Esse lugar se qualificou como forma de ampliar as interações entre as mulheres e o modo possível de participar da vida pública mesmo que de forma virtual. Uma terceira tecnologia social presente no movimento ficou representada pelo Sábado com Cultura, destinado a apresentação de filmes, documentários e outras atividades, que na maioria das vezes incluía debates e rodas de conversa sobre as apresentações. Nesse contexto se buscou trazer vivências e discussões sobre acessibilidade, muito embora sua principal função tenha sido sempre o acesso e fruição dos bens culturais, muitas vezes negados às pessoas com deficiência e, em especial, às mulheres.

É, portanto dimensionadas pela profusão dessas tecnologias sociais que chegamos ao sexto encontro do MBMC, cujo tema foi Enfrentamento a Violência Contra as Mulheres com Deficiência e Fortalecimento da Rede de Proteção. Levou-se em conta, para a escolha desse tema, a compreensão de que no Brasil a violência contra as mulheres se apresenta como uma doença social, que cresce diuturnamente, em todas as regiões do país, em todas as classes sociais, nas mais diversas faixas geracionais , étnico/raciais, sobre mulheres Cis ou Trans. No entanto, por sua ainda invisibilidade, embora inserida em todas as intersecções citadas anteriormente , as mulheres com deficiência estando incluídas nessa violência passam, na maioria das vezes, ao largo do alcance das políticas públicas e da rede de proteção que pode vir a prevenir e reduzir esses índices. Quando pensamos a violência contra as mulheres com deficiência, assim como para outros segmentos, é importante ressaltar que ela não ocorre apenas de modo físico, mas também pode ser caracterizada como psicológica, patrimonial, educacional, sexual e é agravada pelas barreiras sociais ou físicas, bem como pela complexidade da condição de cada mulher, sendo infringida por diversos agressores parceiros, família, instituições e a sociedade em geral (Costa, 2020). O intuito de descortinar esse tema no sexto Encontro do MBMC foi dar a conhecer às mulheres presentes como reconhecer as diversas formas em que a violência se apresenta, onde buscar apoio e ajuda para desconstruí-la e retomar o caminho de suas vidas, concorrendo para tanto a discussão da elaboração da identidade e o autoconhecimento como força vital, apresentado pelas professoras Marcia Moraes e Olivia van der Weid, ambas parceiras do MBMC, através de projetos e ações realizadas. Nesse encontro foi apresentado material audiovisual produzido com as mulheres do movimento tratando das diversas formas de violência personificadas em suas vidas, posteriormente apresentado na 32ª Reunião Brasileira de Antropologia-RBA, promovida pela Associação Brasileira de Antropologia-ABA e Universidade Estadual do Rio de Janeiro- UERJ e no Colóquio Franco-Latino-Americano de Pesquisa Sobre Deficiência ocorrido virtualmente, com o título “Circulando marcas, gestos e afetos: gênero, corpo e deficiência visual no encontro em roda”. Essa discussão também foi levada pelas mulheres do MBMC, nos 20 anos do Primeiro Fórum Social Mundial, que ocorreu com o tema “O protagonismo da pessoa com deficiência no curso histórico do fórum social mundial: a luta pelo reconhecimento das diferenças”. Transcrevemos aqui a fala das mulheres com deficiência proferida no Fórum/21:

Nós, mulheres com deficiência, temos propriedade para reivindicar nossos direitos. Nesse sentido, o principal papel do feminismo de mulher com deficiência é promover a inclusão do enfoque da deficiência nas políticas públicas de gênero, ao mesmo tempo que promovemos a inclusão do enfoque de gênero nas políticas para pessoas com deficiência. Sendo assim, o nosso feminismo se caracteriza como feminismo interseccional de mulheres com deficiência. Para além disso, nos reconhecemos pretas, indígenas, LGBTQIA+, e temos uma luta que não é apenas nossa, mas de todes que se reconhecem nas diversidades. Queremos ser percebidas nas nossas singularidades, com nossos corpos diferentes, termos autonomia sobre ele, sobre nossa sexualidade, nossa vida; queremos ter efetiva participação nas diversas instâncias da vida pública, sejam elas de natureza política, social, econômica, cuja organização acontece nas representações dos Movimentos Sociais, Partidos políticos, Conselhos, etc. Que nossa voz seja ouvida em todos os espaços. Vivemos e somos invisibilizadas em um contexto de pandemia, desemprego, precarização do atendimento em saúde, em educação, no não atendimento a nossa prioridade vacinal, considerando nossas vulnerabilidades e interações com o meio. Falta inclusão, acessibilidade e políticas públicas para as mulheres. Não podemos continuar permitindo que esse desmonte de direitos conquistados continue a ter impactos negativos em nossas vidas. Precisamos construir as políticas públicas que realmente merecemos, e não as que os governantes se dispõem minimamente a nos conceder. Dizemos não também a todas as violências que se abatem sobre nós, sejam elas de que natureza for. Nada sobre as mulheres sem as mulheres! Nossa fala, nos pertence. (Vieira, Canizares, Vale, França, & Victa, 2021, s/p)4

É nesse contexto reivindicatório que se constrói o sétimo Encontro Nacional do MBMC, ainda na modalidade virtual, considerando a nova onda da Covid-19 que impediu sua realização presencial. O encontro foi sediado na cidade de Fortaleza/CE, tendo como tema Mulheres com Deficiência Visual Novas Narrativas Para Novos Tempos. Nessa proposta, assim como nos encontros anteriores, o MBMC trouxe para participação nas mesas temáticas e conversatórias mulheres cegas expressando assim a representatividade de suas elaborações profissionais e acadêmicas, pela ocupação desses lugares por mulheres com deficiência e consequentemente, seus corpos políticos, discussão proposta na formação que deu origem a essa escrita. É importante dizer também que o movimento retoma a ideia de transversalizar essa participação para mulheres com outros corpos, outras deficiências e outras definições interseccionais. Desse modo, as falas e discussões contaram com a presença de uma mulher surdo-cega, uma mulher com deficiência física de afirmação de gênero não binário, mulheres negras e mulheres representantes dos povos originários.

As conversatórias tiveram a participação das parcerias do movimento, que apresentaram suas discussões e entendimentos na direção do pesquisarCOM (Moraes, 2010), trazidos pelo Projeto de Pesquisa Perceber Sem Ver- UFF, pela Pesquisa Poéticas do Corpo trazida pelo LABCONATUS- UFF e a discussão da ocupação de espaços performáticos, trazidos pelo Projeto Encenação da Universidade Federal do Acre- UFAC. O entendimento que perpassou as conversatórias foi o de que a acessibilidade estética e poética precisa permear os processos de participação das mulheres no acesso, fruição e proposição de uma política de cultura que contemple as diversidades humanas e as singularidades dos corpos e corpas nas suas interseccionalidades de gênero, classe, deficiência, geracionalidade, território, raça/etnia. Entendendo assim que a discussão sobre os corpos políticos das mulheres transversaliza, necessita e propõe processos que avancem para além da deficiência e da corpo-normatividade. Esses processos são sociais, definidores das relações públicas desses corpos e essencialmente éticos, construídos coletivamente por corpos com e sem deficiência, realizando assim seu caráter político.

No curso desta história do MBMC que se abre para convocar outras mulheres para compor sua roda, é que foi realizado o curso de formação em 2021, convocando Lígia Amaral por meio de seu legado e sua escrita, para discutir os sentidos dos corpos políticos da deficiência.

CONVERSATÓRIA COM LÍGIA AMARAL

A política de escrita dos trabalhos de Lígia Amaral está, por um lado, assentada no gesto incansável de narrar para interferir nas concepções hegemônicas da deficiência como falta. De outro lado, ela refaz as condições da própria pesquisa, já que narra com e a partir de sua condição de mulher com deficiência física, adquirida na infância, em decorrência da poliomielite.

Nossa roda de formação, como dito, era formada por mulheres muito diversas. Um dos caminhos para tecer a coalização entre nossos corpos diversos e múltiplos está na direção com a qual nos engajamos em nossos ativismos e em nossas práticas de pesquisa. Trata-se de pesquisarCOM (Moraes, 2010) as pessoas e não propriamente sobre a deficiência. Isso significa dizer que no processo de pesquisar e de produzir conhecimento nos transformamos juntas. Não há lugar para uma sujeita do conhecimento que extrai informações de seus objetos de pesquisa. Há um processo partilhado de construção de conhecimento. PesquisarCOM é também lutarCOM, ou seja, é afirmar, de modo radical, que a pesquisa é mais uma ferramenta de luta contra as opressões à deficiência, no sentido mesmo que Mike Oliver (1992) nos convoca a pesquisar no campo dos estudos da deficiência, afirmando o caráter emancipatório do conhecimento.

Assim, o curso de formação foi construído de forma que a palavra circulava horizontalmente. Estávamos engajadas na construção de sentidos possíveis para o corpo político da deficiência, aprendendo umas com as outras, ensinando umas às outras. Eis aí mais um sentido possível para o fazerCOM que se apresentava no modo como tecemos nossos vínculos na Formação.

O resgate da produção de Lígia Amaral, como foco central de nossas leituras no Curso, não foi casual. A autora foi e é uma referência importante na pesquisa, no ensino e na extensão na área da deficiência, em especial na interface com a Psicologia Social. Quando resgatamos o trabalho de Lígia Amaral, nos demos conta de que sua produção bibliográfica não fez parte da formação profissional de duas de nós, Psicólogas, uma com dez anos de formada, outra com trinta e três anos de conclusão da graduação. Ora, sabemos que o apagamento da produção de mulheres com deficiência é parte do capacitismo estrutural que constitui os modos como nos relacionamos, ainda hoje, com a deficiência. Retomar o trabalho de Lígia Amaral foi um gesto de escrever de novo seu nome no cenário das produções relevantes no campo dos estudos da deficiência e da Psicologia Social. Foi um gesto político de resistir ao apagamento, de revivê-la com a força e contundência que estão nos seus textos, que há mais de três décadas clamava por uma sociedade não opressora aos corpos com deficiência. Clamava ainda pela inclusão do tema da deficiência em todas as graduações e pós-graduações em Psicologia, sua área de atuação. Num curso de formação sobre corpos políticos da deficiência, retomar Lígia Amaral foi uma proposta e, ao mesmo tempo, uma resposta de nosso grupo de mulheres ao esquecimento de sua produção, de sua insubmissão.

Nosso curso se realizou no difícil ano de 2021, quando a pandemia da Covid-19 seguia nos impondo lutos, perdas e sofrimentos. A realização da formação foi também um modo de cultivar, de alimentar as nossas codependências. Porque aqui há mais uma dimensão do pensarCOM a deficiência – como nos convoca Lígia Amaral (2004) - e como temos afirmado com o PesquisarCOM (Moraes, 2010): há uma ethos do cuidado envolvido na ação de pesquisar e de produzir conhecimento. São ações que se interconectam: pesquisar e cuidar – este é um sentido muito forte de fazerCOM os outros a pesquisa. Cuidar no sentido de cultivar e nutrir nossas relações. A preposição COM como elo que nos ligava como sujeitas engajadas numa prática de formação e de pesquisa que foi, também, um espaço de cuidado, de cultivo de histórias, de politização da deficiência, de emancipação.

Lígia Amaral ousou escrever sua dissertação de mestrado para narrar, na primeira pessoa do singular, sua experiência como mulher com deficiência vivendo, ao mesmo tempo, num mundo capacitista e num cenário de coalizações/alianças parciais com outras pessoas com e sem deficiência, com quem pôde experimentar o afeto de “pertencer” aos lugares e tempos por onde circulou. Pertencer naquele sentido que também Mia Mingus (2011a, 2011b) explora, pela via do afeto, como o que ela experimentou com Seu Lopes, motorista do ônibus que a levava para a escola. Mia Mingus (2011b) chama de intimidade de acesso aquilo que Lígia Amaral (2004) narra quando fala do seu encontro com Seu Lopes, alguém que, neste mundo sem acessibilidade, se desloca com um jeito espontâneo, sem piedade, sem embaraço ou constrangimento: “sair do seu assento, dar um passo em direção à porta, com uma das mãos levantar a mala, com a outra, a mim. Só” (p. 73).

A autora faz-se, em seu texto, corpo político, narrando histórias encarnadas da deficiência que se conectam com outras histórias e que fissuram a suposta neutralidade do corponormativo. O que importa em seu texto é “resgatar a experiência e colocá-las em palavras, pois não é o fato de ter vivido, mas o de formular o que vivi – esse sim, sublinhado. São pistas. São trilhas” (Amaral, 2004, p. 158). Tais pistas não são um manual, nem um tratado, nem uma pedagogia, ela diz.

Minha narrativa não se insere, portanto, no mundo da literatura e pretende ser absorvida pela ciência . . . ela postula para o status de uma experiência concreta que possibilite um nível de reflexão sobre o tema da deficiência. Talvez não um pensar sobre, mas um ‘pensar com’. . . (Amaral, 2004, p.154, grifo nosso)

É interessante notar que já em 1987, ano da publicação original deste trabalho, Lígia Amaral chamava a atenção para o pensar com a deficiência e não sobre a deficiência, mais um modo de dizer nada sobre nós sem nós. O que a autora coloca em ação é uma narrativa encarnada nas suas localizações de gênero, classe, raça e deficiência. Com e a partir de tais marcas ela tece uma potente análise tanto das incidências das opressões sociais em sua vida, quanto das insurgências cotidianas que vai afirmando em seu percurso.

As diversas narrativas corporificadas da deficiência são potencialmente insurgentes também porque se conectam com outras. Importa saber, como diz Donna Haraway (2019), que histórias contam histórias. Pois que se apenas se narram histórias – como diz Edu O. (2021) – da bipedia, da corponormatividade, então se repetirá ad nauseam a narrativa da deficiência como um problema individual, como tragédia e como perda. Como deter, interromper e subverter esta máquina política e social de narrar a deficiência como tragédia? Um dos modos de respondermos a esta pergunta está, justamente, na multiplicação e amplificação das narrativas insurgentes da deficiência e foi este o motor do curso de formação. A proposta do curso, como dito, foi a de resgatar a insurgência de uma mulher com deficiência que nos antecedeu. Um resgate histórico, político e também da memória.

O que pulsa nas linhas deste texto é nosso desejo de disseminar os frutos que germinaram no e a partir do nosso curso. É, portanto uma escrita para difundir as histórias que construímos juntas. Disseminar histórias: para que? por que? para interferir onde? Contar histórias é uma forma de povoar o mundo com narrativas diversas, múltiplas, que nos permitem viver os encontros com a deficiência de modos mais densos, mais situados. Cada história que se conta, se desconta do apagamento. É preciso narrar como uma estratégia política de resistência a uma outra narrativa que, especialmente em nosso país, hoje, quando escrevemos este trabalho, no ano de 2022, tem a ambição de ser hegemônica.

O capacitismo estrutural é um modo de organizar nossas relações cotidianas, socioafetivas, segundo uma hierarquia que coloca os corpos supostamente capazes como a realização máxima da nossa corporalidade. Tudo e todos que deste polo máximo se distanciam são – em alguma medida – tomados como incapazes, são subalternizados. Há diferenças e variações nesta hierarquização de corpos que precisam ser analisadas interseccionalmente, conforme as localizações de gênero, raça, classe e deficiência. A genealogia do capacitismo remonta ao eugenismo nazista, como salientam Adriana Dias (2013) e Jéssica Teixeira (2020) em suas pesquisas, seja na antropologia – no caso de Adriana, seja na arte e na perfomance, no caso de Jéssica. São duas mulheres, uma com deficiência, outra habitante de um corpo estranho (como ela se identifica) que produzem interessantes análises do capacitismo em nosso cotidiano. O capacitismo é um modo de narrar e de segregar o que importa – o corpo capaz – do que não importa – os corpos incapazes. Não é uma narrativa abstrata, que se faz lá longe, no mundo das ideias. É aqui, materialmente, cotidianamente, na mídia, nos prédios sem acesso, nos decretos que propõem a volta da educação segregada, na secundarização da acessibilidade, nos sentimentos de rejeição aos corpos velhos, estranhos, nas mais diversas estruturas materiais e afetivas com as quais tecemos nossas vidas diárias. Resistir às opressões envolve também cultivar outros imaginários, fomentar outras histórias de viver e morrer bem neste mundo. A resistência pode ser, como diz Haraway (2019), manter presentes para nós, de modo compartilhado, que outros mundos são possíveis, que outras gramáticas se tecem nos cotidianos das vidas com deficiência. A resistência pode ocorrer quando não se é enfeitiçada pela sensação de totalidade, de inevitabilidade, de fim de jogo, de coisa inescapável. Ela é um modo de nos transformarmos juntas, nos tornarmos-com, fazendo-nos mais potentes umas com as outras, na interdependência de nossos vínculos. E se multiplicarmos as narrativas da deficiência, da nossa corporalidade, e se contarmos outras histórias? Não se trata de narrarmos belas e edificantes histórias, porque estas só existem nos contos de fadas e, neste caso, não operam as transformações sociais e políticas de que precisamos: aquelas que tornarão nosso mundo mais crip, isto é, mais estranho, mais queer, mais diverso, menos binário (Gavério, 2015). As narrativas situadas da deficiência são marcadas por insurgências cotidianas. Como nos ensina Lígia Amaral (2004), elas são interpelações contundentes e diárias ao mito do corpo sadio. Portanto, narrar, contar histórias corporificadas da deficiência pode ser um gesto de povoar o mundo com narrativas anticapacitistas, pode ser um gesto de reconhecer-se politicamente como pessoa com deficiência neste mundo que insiste em celebrar o corpo-normativo.

Reconhecer-se politicamente com deficiência - que sentidos tem essa expressão? Mingus (2011a) nos ajuda a destrinchar estes sentidos. A autora faz uma interessante distinção entre ser descritivamente deficiente e ser politicamente deficiente. Esta questão também esteve conosco em nosso curso de formação, quando uma de nós comentava que ser mulher com deficiência não faz de ninguém um corpo político. Qual é o trabalho a ser feito então na direção da afirmação do corpo político da deficiência? Era o que nos perguntava uma parceira, durante a nossa formação. Respondendo a esta pergunta, Mingus (2011a) afirma que

quando digo “descritivamente com deficiência”, refiro-me a alguém que tem a experiência vivida de ser pessoa com deficiência. Elas podem não falar sobre capacitismo, discriminação ou até mesmo se chamar de “com deficiência”, mas elas sabem o que é usar uma cadeira de rodas, sentir dor crônica, ter pessoas olhando para você, ser institucionalizada, andar com uma cinta, estar isolada, etc. Existem muitas pessoas que são descritivamente com deficiência que nunca se tornaram ou se identificaram como “politicamente com deficiência”. Quando digo “politicamente com deficiência”, quero dizer alguém que é descritivamente com deficiência e tem um entendimento político sobre a experiência vivida. Quero dizer de alguém que tem uma análise sobre capacitismo, poder, privilégio, que se sente conectada e é solidária com outras pessoas com deficiência (independentemente da linguagem que você usa). Refiro-me a alguém que pensa a deficiência como uma identidade / experiência política, alicerçada na sua vivência descritiva. (par. 20, tradução nossa)

As narrativas contra-hegemônicas da deficiência se fazem de muitas maneiras, em muitos lugares: no cotidiano, nas artes, nas redes sociais, nas ruas, nas relações sociais, na vida e na obra de uma autora como Lígia Amaral (2004), em algumas pesquisas e atividades de extensão que se realizam nas universidades brasileiras.

MÉTODO E MEMÓRIAS DOS ENCONTROS: NOSSA RODA DE FORMAÇÃO

Como salientamos, os encontros de formação aconteceram no ano de 2021, reuniram 25 mulheres, a maior parte delas com deficiência visual, uma com deficiência física e algumas sem deficiência. Foram realizados quatro encontros, cada um deles com duas horas de duração. A dinâmica dos trabalhos era realizada em roda, no formato virtual, de modo que a cada encontro debatíamos uma parte pré-definida do livro de Lígia Amaral (2004). A fim de garantir que o livro pudesse ser acessado por todas as mulheres, foi necessário digitalizar o livro da autora, gerando um arquivo em formato word, legível pelos programas de acessibilidade. Este trabalho foi realizado por Mariana Calefi, como parte de seu trabalho como apoiadora de uma doutoranda cega no Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense, onde o livro de Lígia Amaral havia se tornado referência bibliográfica em um dos grupos de pesquisa.

Na escrita desta seção do artigo, contamos com as memórias de nossos encontros. São memórias afetivas, que nos impactaram e foram por nós buriladas nas reuniões que tivemos para elaborar este texto. As memórias afetivas são como fios de Ariadne que nos conduziram aos afetos que o curso mobilizou em cada uma de nós. Fizemos uma composição entre estes fios de Ariadne que cada uma de nós puxava, de tal modo que o que se lê a seguir é uma memória coletiva e retrabalhada por nós quatro, que assinamos jutas este texto.

Em um de nossos primeiros encontros, somos inspiradas a dividir um tanto de nossos sentimentos sobre esse jeito nosso de estar no mundo. A certeza de carregar a marca da diferença aparece na vida de cada uma de modo próprio. Repete-se, contudo a constatação de que essa certeza é fruto das noções que os outros nos fornecem sobre como somos percebidas, como somos ou não dotadas de valor, como encontramos nos espaços ressonância para nossas características ou as vemos sumir ao olhar alheio que nos avalia antes por uma escala distorcida pela associação de deficiência com incapacidade.

Enquanto contávamos histórias em que nos deparamos com a sensação de ser tomadas por algo menos que gente em momentos marcantes de nossas trajetórias, uma de nós recorda-se do trecho do livro em que Lígia Amaral (2004) fala do ser diferente:

A sensação é mais ou menos a de estar completamente vestido à beira mar, de entrar num velório e não conhecer ninguém, nem mesmo o morto; de falar português em Tóquio, de mencionar Skinner na cantina da PUC... Só que não é estar errado ou diferente – é ser errado, ser diferente. Não é uma questão de estado, é uma questão de existência. As pessoas têm pés e pernas que se movem e as movem; que se encolhem, estendem, flexionam; que fazem papel de medidores entre o desejo e o ato de andar, correr, saltar e – até mesmo – parar. Não ter pernas, ou tê-las semi ou totalmente paralisadas, é ser diferente e é também ser errado. Pernas e movimento são duas faces da mesma moeda. A falta de uma das faces indica uma falsa moeda ou – na melhor das hipóteses – moeda inacabada. Tanto uma como a outra (excetuando colecionadores excêntricos) não encontram quem as queira. Porém, seu portador não tem como livrar-se dela. (p. 45)

Em mais de um momento, partilhamos umas com as outras a sensação de deslocamento que nos acomete em impasses que o cotidiano nos traz. Quantas gafes já fizeram com que nos sentíssemos constrangidas, até nos darmos conta de que não erramos, por exemplo, ao colidir com alguém, pois não há como ser cega e enxergar a pessoa parada no meio do caminho. O “erro” de ser quem se é parece manchar nossos atos mais simples com uma insegurança advinda da possibilidade de sermos a moeda não corrente que a autora usa para ilustrar no trecho que segue:

Lembro-me de uma tarde em que passeava pela cidade de São Francisco. Numa das ruas, apinhada de pessoas fazendo truques e exibições em troca de dinheiro, uma grande caixa de papelão. De tamanho suficiente para abrigar um rapaz e sua clarineta que, todavia, não eram vistos do lado de fora. À primeira vista, dois canais de comunicação com o público: Uma pequena fenda, com as instruções para a introdução do dinheiro, e outra, bem maior – na verdade uma janela -, que se abria para que o jovem tocasse um solo à vista das pessoas. Brasileiramente, introduzi uma moeda de um cruzeiro. Imediatamente a clarineta soou em forma acusatória e a moeda foi devolvida, com grande impulso, por uma terceira abertura até então não notada. Rimos muito. Do ponto de vista do músico, simplesmente o exercício de um direito: recusar a moeda diferente. Do ponto de vista da moeda, embora não se tratando de algo falso ou inacabado, o não aceitar por não ser válida, e não válida por ser diferente. E é como se eu fosse músico e moeda ao mesmo tempo, mas como uma dessemelhança fundamental, pois ser diferente implica em ser moeda não corrente, mas não implica no exercício do direito de rejeitá-la. Então, como conviver com o inaceitável? Negando? Tornando-se parte do museu de excentricidades da vida? Supervalorizando a diferença, tornando-a lucrativa? Em relação à moeda, posso escolher exibi-la num chaveiro, ou até mesmo num estojo de veludo; usá-la para um número de mágica, exercício de tato ou calço de escrivaninha capenga. Posso também jogá-la no lixo ou esquecê-la no fundo da gaveta. Como fazer qualquer uma dessas coisas se a moeda sou eu? Sempre se pode enfatizar a riqueza de detalhes do lado perfeito. É o famoso: “feia, mas tão simpática”, “aleijada, mas tão inteligente, tão sensível, um rosto tão lindo…”. A tendência parece ser então a de minimizar, às vezes a de negar, o aspecto errado ou diferente. Mas -grande impasse – ele continua existindo. Não se pode jogar um pó mágico sobre a perna paralisada, o rosto deformado, os braços retorcidos, e torná-los invisíveis. Não se pode jogar outro pó mágico e desencadear o funcionamento dessas partes. Não há pó mágico. Pó que nos faça driblar o tempo e o espaço em que vivemos, as pessoas que somos. Somos. Sou. Cada um de nós, os diferentes, deve ter achado seus próprios caminhos, com maior ou menor sucesso, com maior ou menor alegria ou tristeza. O meu caminho, conheço bem. Dele, posso falar. Nele posso perceber meus momentos de chaveiro, de calço de escrivaninha, de moeda esquecida no fundo da gaveta. Posso entrever também a ênfase no perfeito, a valorização do “outro lado”, e tantas coisas. (Amaral, 2004, p. 45)

Na certeza de que não adianta desejar essa solução mágica que nos transformaria em moeda comum, sabendo ainda que nossos caminhos foram cruzados por todas essas funções da moeda, falamos de como nos fizemos pessoas a partir, ou a despeito, de como fomos jogadas na gaveta ou expostas na vitrine.

Entre nós, essa discussão foi o ensejo para que ficasse notória a importância de assumirmos politicamente a identidade de mulher com deficiência. Em uma reunião de mulheres que construíram caminhos diversos que as levaram ao ativismo, sabíamos que, juntas, éramos mais que uma coleção de moedas danificadas. Ali era evidente que nossa busca por compreender o teor político de nossos corpos nos levaria a subverter as narrativas do erro, da falta, da falha que nos acompanha e nos forja.

Nossa discussão foi marcada por muitas semelhanças. Foram inúmeras as vezes em que o que dizia uma companheira encontrava eco nas marcas adquiridas em nossos caminhos singulares. Houve um ponto em que todas nos identificávamos e também nos distinguíamos: usamos recursos, tecnologias, adaptações que possibilitam que atuemos no mundo de forma mais efetiva e, ao mesmo tempo, fazemos isso, cada uma, à sua maneira.

Temos hoje aparelhos de celular, bengalas, próteses, aparelhos auditivos, instrumentos para escrever em braile, áudio descrição, piso tátil e tantas outras coisas que acoplamos aos nossos corpos para acessar um mundo que não foi desenhado para nossas corporalidades. Seria ingênuo, porém pensar que essas ferramentas são utilizadas por nós da mesma forma. Nossos corpos carregam histórias não restritas à deficiência. Vivemos experiências que se somam e nos presenteiam com memórias gravadas também no movimento, na pele e nos sentidos. Dessa forma, contou-nos uma mulher que, quando criança, desenvolveu um jeito de, sem a visão, colocar refrigerante no copo e não derramar; outra nos disse que, ao tornar-se mãe, passou a carregar na bolsa coisas de que precisaria ter à mão garantindo o seu jeito de cuidar do seu filho, como mulher com deficiência, com suas especificidades; empolgadas, exibíamos nossos “sisteminhas”5 desenvolvidos despretensiosamente apenas para dar conta das demandas que a vida apresenta. Alguns desses jeitos nossos foram elaborados quase clandestinamente. Nessa conversa, de repente, esse nosso modo, essa gambiarra com a qual aprendemos a nos virar, ganha status de coisa valiosa. Pela fala de Lígia Amaral sobre os sisteminhas, sentimo-nos convidadas a olhar com respeito para o que sabemos fazer diante dos impossíveis ou dos possíveis difíceis.

Ao nos depararmos com nossa diversidade, nos perguntamos: que cara tem a deficiência? Com o que ela se parece? Que olhares recebe ao se mostrar? Quando é aglutinada a outros marcadores sociais de opressão que constituem a grande variedade do humano, pode até alimentar a ilusão de que se disfarça na diferença. A verdade é que a deficiência não pode ser neutra. Ela não pode ser apenas mais uma das tantas formas de estar no mundo que não acarreta em vantagem ou prejuízo para quem a vivencia enquanto houver linhas tão bem delimitadas separando o que faz parte do padrão, quem é produtivo, o que é belo e o que não. Mas nossa roda de mulheres não foi composta por desavisadas. Os percursos que nos trouxeram a esse encontro deixaram óbvio para cada uma que a deficiência tem lugar, tratando-se da sociedade capitalista em que estamos inseridas, dentro do que é feio e indesejável.

Diante desse saber, alguns pontos marcantes de nossas conversas giraram em torno de como e quando nós, mulheres com deficiência, em maioria, nos deparamos com essa crua realidade. Deficiências sensoriais como a cegueira se tornam perceptíveis em interações que costumam ser mediadas pela visão. Deficiências físicas mostram-se ao olhar do outro quando se coloca a ausência do movimento ou da parte do corpo com a qual certa mobilidade se relaciona. Cadeiras de rodas, próteses, bengalas, são tantos os símbolos que podem ser ostentados ou ocultados de acordo com a forma que a deficiência ganha no espelho interno, feito de vidro social, no qual nos refletimos. Existem, porém, aquelas características que não podem ser guardadas: o olho que não está, a deformidade que aparece, aquilo que foge do padrão aos gritos. Não são essas marcas que levam mulheres com deficiência a se identificarem como politicamente com deficiência. Não são só nossas deformidades, visíveis ou não, que conformam nossos corpos políticos.

Apesar de o conceito de deficiência ser marcado pela compreensão de que se trata de um fenômeno relacional, ainda é frequente que se busque no corpo de quem vivencia essa experiência os marcadores, geralmente associados aos impedimentos, que acionam os mecanismos que tantas vezes tornaram-se tópicos em nossos encontros. Mecanismos que se expressam nas atitudes costumeiramente desencadeadas pela presença da deficiência em público. A ajuda que se impõe desastrada, bem intencionada, mas sem contar com a possibilidade de que a pessoa auxiliada saiba qual a melhor forma de ser conduzida; no comentário jocoso que faz piada da diferença sem se importar de expor o diferente ao desconforto.

Em certo encontro, uma companheira relatou os primeiros momentos após adquirir a deficiência em que passou a frequentar a universidade. Naquela altura, seu corpo declarava em suas cicatrizes e curativos os fatos recentes e doloridos de sua história. Um gracejo feito por um professor com sua imagem comparada a de um personagem presente em muitos contos infantis como vilão, trouxe uma dor repleta de raiva, dor e raiva que nós, mulheres daquela roda, experimentamos também ao ouvi-la. Vivemos essa combinação de sentimentos muitas vezes em nossos caminhos. Ser submetida a ocupar o lugar do ridículo, do grotesco, é uma experiência que encontra eco não só na história das nossas existências pessoais, mas faz parte da imagem construída historicamente da deficiência. Esse lugar solitário, desumano, hostil não é desejável. Quem nele permanece, não o faz sem que empenhe significativa parte de sua autoestima. Talvez por isso aquilo que declara a deficiência no corpo possa ser percebido como tabu mesmo entre quem tem na experiência da deficiência parte constituinte de sua identidade política. O recurso ao disfarce da perna amputada com o vestido longo, os óculos escuros cobrindo os olhos enevoados da cega, a foto que não revela a parte do corpo que transportaria, sem escalas, a pessoa para o ponto de partida do mecanismo já mencionado.

Em outro momento, uma mulher partilhou sua angústia por precisar se submeter a uma intervenção médica que tornará sua deficiência mais visível. A cegueira nela não era nova, mas, após o procedimento necessário, se apresentará de forma mais notória, testemunhará para quem a visse sua condição. Ela própria reflete que nunca buscou esconder a deficiência. Ao contrário, sempre fez questão de ocupar todos os espaços que a sociedade torna quase impenetráveis para nós. O que é então essa sensação? O que torna tão difícil sustentar a deformidade, a ausência de um olho, aquilo que falta? Talvez seja mesmo muito revolucionário que a partir dos corpos com deficiência ousemos propor um mundo livre de opressões, de padrões, de simetrias.6

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para finalizar este texto, deixamos registrada uma narrativa que fizemos juntas, para desenhar um sentido de corpo político da deficiência:

corpo político fala/estuda/escreve sobre

o que quiser e não só sobre deficiência;

fala/estuda/escreve inclusive sobre deficiência.

corpo político não é sobre superação,

nem heroísmo

corpo político não é só olho ou audição,

é corpo sensível

corpo político não é corporação,

é coalizão

corpo político não é de uma única deficiência,

mas se interpela por outras deficiências

corpo político é protagonista da sua própria história,

da sua própria vida

corpo político é sobre ser rigorosamente lagarta

para ser borboleta

corpo político é mover-se nos olhares de dentro e de fora

da própria experiência

corpo político é o que sente incômodos

que são partes do voar

corpo político é o que causa incômodos

(necessários) nos outros

corpo político é de muitos lugares

corpo político fala de suas experiências e

das incursões nos territórios dos outros

corpo político é gente

corpo político tece relações de interdependência

com outras pessoas com deficiência,com outras pessoas

corpo político aprende com os outros,

com a alteridade

corpo político está no cotidiano

e não só na academia

corpo político contagia, dissemina e chama os outros, as outras

corpo político é coletivo.

corpo político se faz COM as outras pessoas,

em coalização, com outras narrativas da deficiência que não a hegemônica

e é isso que mais uma vez fazemos hoje aqui, neste encontro do MBMC.

1A pesquisa Perceber sem Ver está vinculada à Graduação e à Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminese, com a coordenação de Marcia Moraes. O foco do trabalho é realizar ações de pesquisa e extensão que tomem a direção do pesquisarCOM (Moraes, 2010) as pessoas com deficiência e não sobre a deficiência. A perspectiva emancipatória é o que embasa tanto as ações de pesquisa quanto as de extensão.

2A expressão utilizada pela autora no original é acessintimacy. Em discussão com grupos de pesquisadoras no campo dos estudos da deficiência, acordamos em utilizar intimidade de acesso como tradução já que o sentido da expressão é o de um afeto de pertencimento compartilhado, experimentado nas relações interpessoais entre pessoas com e sem deficiência.

3Tomamos o conceito de tecnologia social no sentido proposto pelo ITS Brasil, disponível em: https://www.itsbrasil.org.br/tecnologia-social

4Vieira, Carol, Canizares, Ewelin, Vale, Gislana, França, Josiane, & Victa, Taís (2021). Gênero: o protagonismo das mulheres com deficiência. In Movimento nacional das pessoas com deficiência / Fórum social mundial 2021 (texto não publicado).

5Sisteminhas é como Lígia Amaral (2004) nomeia os jogos de corpo que faz no cotidiano para lidar com situações e cenários não acessíveis.

6Neste ponto é importante lembrar Mia Mingus (2011a) quando nos convoca a um movimento subjetivo e político em direção ao feio, como um gesto de insubmissão ao que Amaral (2004) nomeia como o mito do corpo sadio e que hoje podemos nomear como corponormatividade. Convocar e assumir o feio em nós é, para Mia Mingus, urgente para fissurarmos a corponormatividade.

Financiamento

Marcia Moraes é bolsista de Produtividade no Cnpq e Cientista do Nosso Estado/FAPERJ.

Consentimento de uso de imagem

Não se aplica.

Aprovação, ética e consentimento

Não se aplica.

REFERÊNCIAS

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Recebido: 05 de Outubro de 2022; Revisado: 29 de Novembro de 2022; Aceito: 27 de Outubro de 2023

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