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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.24  São Paulo  2024  Epub 23-Ago-2024

https://doi.org/10.5935/2175-1390.v24e24505 

Dossiê Psicologia e Políticas da Deficiência: Ativismos, aleijamentos e a luta anticapacitista - Artigo

POSICIONAMENTOS DE ESTUDANTES BRASILEIROS DE UNIVERSIDADES PÚBLICAS SOBRE OS CONCEITOS NORMATIVOS RELACIONADOS À DEFICIÊNCIA

Posiciones de estudiantes brasileños de universidades públicas sobre conceptos normativos relacionados con la discapacidad

Positions of brazilian students from public universities on normative concepts related to disability

ISABELLA DE OLIVEIRA FACIN1  , Concepção, Coleta de dados, Análise de dados, Elaboração do manuscrito
http://orcid.org/0000-0002-9994-5690

GABRIEL FILIPE DUARTE AMARAL2  , Coleta de dados, Elaboração do manuscrito
http://orcid.org/0000-0003-2400-376X

LUCIA PEREIRA LEITE3  , Concepção, Coleta de dados, Elaboração do manuscrito, Revisões críticas de conteúdo intelectual importante, Aprovação final do manuscrito
http://orcid.org/0000-0003-2401-926X

1https://orcid.org/0000-0002-9994-5690 E-mail: isabella.facin@unesp.br Graduanda em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista (UNESP/Bauru) e bolsista PIBIC/CNPq.

2https://orcid.org/0000-0003-2400-376X E-mail: gabriel.duarte@unesp.br Graduado em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista (UNESP/Bauru) e bolsista PIBIC/CNPq

3https://orcid.org/0000-0003-2401-926X E-mail: lucia.leite@unesp.br Livre-docente em Psicologia da Educação. Professora Associada do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Psicologia do Desenvolvimento e da Aprendizagem, da Faculdade de Ciências - UNESP/Bauru


RESUMO

Buscou-se investigar o conceito circulante de deficiência entre universitários, uma vez que sua análise é fundamental para a construção de esferas sociais menos excludentes, por meio de formulário on-line contendo questionário sociodemográfico e a Escala Intercultural de Concepções de Deficiência (EICD) a estudantes de universidades públicas brasileiras das cinco regiões do país. Obteve-se 1568 respostas, sendo que os dados foram tratados estatisticamente. No universo pesquisado, os grupos apresentam maior ou menor tendência à concordância com enunciados das concepções Social e Biológica, e discordância dos da concepção Metafísica. Os achados mostram indicativos para atuação da Psicologia junto aos futuros profissionais, contribuindo para uma análise mais crítica da deficiência, promovendo o reconhecimento da diversidade humana e a ruptura com padrões normativos que concebem corpos diferentes como disfuncionais ou incapazes, seja por características comportamentais, sensoriais ou físicas.

Palavras-chave: Concepção; Escala; Deficiência; Ensino Superior; Psicologia

RESUMEN

Buscamos investigar el concepto actual de discapacidad circulante entre estudiantes universitarios, ya que su análisis es fundamental para la construcción de ámbitos sociales menos excluyentes, a través de un formulario en línea que contiene un cuestionario sociodemográfico y la Escala Intercultural de Concepciones de Discapacidad (EICD) a estudiantes de Universidades públicas brasileñas de las cinco regiones del país. Se obtuvieron 1.568 respuestas y los datos fueron tratados estadísticamente. En el universo investigado, los grupos presentan mayor o menor tendencia a estar de acuerdo con afirmaciones de las concepciones Social y Biológica, y en desacuerdo con los de la concepción Metafísica. Los hallazgos muestran indicaciones para la acción de la Psicología con los futuros profesionales, contribuyendo para un análisis más crítico de la discapacidad, promoviendo el reconocimiento de la diversidad humana y rompiendo con los estándares normativos que conciben diferentes cuerpos como disfuncionales o incapaces, ya sea por razones conductuales, sensoriales o físicas.

Palabras clave Diseño; Escala; Discapacidad; Educación Superior; Psicología

ABSTRACT

We sought to investigate the circulating concept of disability among university students, since its analysis is fundamental for the construction of less exclusionary social spheres, through an online form containing a sociodemographic questionnaire and the Escala Intercultural de Concepções de Deficiência – EICD (Intercultural Scale of Conceptions of Disability) to students from Brazilian public universities from the five regions of the country. 1568 responses were obtained, and the data were treated statistically. In the universe researched, groups show a greater or lesser tendency to agree with statements from the Social and Biological conceptions, and disagree with those from the Metaphysical conception. The findings show indications for Psychology’s action with future professionals, contributing to a more critical analysis of disability, promoting the recognition of human diversity and breaking with normative standards that conceive different bodies as dysfunctional or incapable, whether due to behavioral, sensory or physical characteristics.

Keywords Conception; Scale; Disability; Higher education; Psychology

INTRODUÇÃO

A experiência da deficiência e o discurso sobre ela são modulados por variáveis dispostas num determinado tempo e sociedade, isto é, são relacionais, pois não emergem naturalmente da diferença estrutural ou funcional dos corpos. Entretanto, ainda são vigentes formas mais ou menos emancipatórias de se conceber a deficiência, o que impacta no trato com as designadas pessoas com deficiência (PCD) no acesso a seus direitos e cidadania - à medida que dependem de mediação humana.

Investigar a compreensão do fenômeno da deficiência pela comunidade – em especial a que está em processo formativo acadêmico, como é a população universitária, alvo deste estudo – se faz de maior interesse, uma vez que esta é/será responsável pelo processo de humanização desses sujeitos, os quais muitas vezes encontram-se em condições de acesso restringidas por características diversas de seu corpo em face a uma sociedade em que o capacitismo impera.

Ao discorrer sobre as vulnerabilidades associadas à condição de deficiência, Mello (2016, p. 3272), apoiada em estudiosos internacionais, diz que o capacitismo “alude a uma postura preconceituosa que hierarquiza as pessoas em função da adequação dos seus corpos à corponormatividade”. Na sequência, relata que essa categoria acaba por definir como as PCD são reconhecidas incapazes pelo contexto, perpetuando esse modo de concebê-las em várias esferas (trabalho, educação, no cuidado, nos relacionamentos afetivos e/ou sociais mais amplos etc.). Para a autora, esse mecanismo “advém de um julgamento moral que associa a capacidade unicamente à funcionalidade de estruturas corporais e se mobiliza para avaliar o que as pessoas com deficiência são capazes de ser e fazer para serem consideradas plenamente humanas” [grifo dos autores].

Nas últimas décadas, o debate sobre a deficiência se ampliou na realidade brasileira. A Constituição Federal de 1988 trouxe garantias legais às PCD em âmbitos diversos, ampliando suas possibilidades de participação nos espaços educacionais, de saúde, de trabalho, de lazer, entre outros. No entanto, ainda são presentes normas que definem a deficiência de modo categorial (física, auditiva, visual, mental1 e múltipla) como uma limitação ou incapacidade para o desempenho de ordem individual, como pode ser percebido na leitura do Decreto Federal n° 5.296/2004. Tal perspectiva, ainda fortemente circulante na sociedade, coaduna com o modelo biomédico para compreensão da deficiência, sendo esta vista como um atributo orgânico e inerente ao sujeito. Portanto, essas diferenças são tomadas como prejuízos que geram impeditivos para o desenvolvimento humano; dessa forma ações interventivas devem ser criadas para reabilitar o sujeito deficiente.

No entanto, tanto na concepção de deficiência como no trato as pessoas que se encontram nessa condição, as mudanças começaram a ocorrer mais acentuadamente após a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007 (Decreto n° 6.949/2007). Cabe destacar que este protocolo influenciou muitos países, inclusive o Brasil, país signatário, ratificado pelo Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009. Passa-se a então adotar que “Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas”, definição reiterada na Lei Brasileira de Inclusão - Estatuto da Pessoa com deficiência- Lei n° 13.146/15. Portanto, percebe-se uma nova forma de conceituar a deficiência, deslocando de uma visão centrada no sujeito, ao dirigir o olhar para aspectos socioculturais, indicando a presença de barreiras como limitadoras da participação nas esferas comuns. A normativa conceitua, no seu inciso VI do Art. 3, que barreiras atitudinais são “atitudes ou comportamentos que impeçam ou prejudiquem a participação social da pessoa com deficiência em igualdade de condições e oportunidades com as demais pessoas”, que figuram como atitudes envoltas por discursos preconceituosos em relação àqueles enquadrados como PCD, atribuindo-lhes caráter inferior, de menor valoração, de incapacidade e similares (Leite, Oliveira, & Cardoso, 2019).

É notável que a LBI pauta-se numa perspectiva social de se conceber a deficiência, que em alguma medida tem aderência aos preceitos do modelo social delineado na década de 70, pela Union Physical Impairment Against Segregation - UPIAS (traduzido por “Liga dos Lesados Físicos Contra a Segregação”), composta por autores do Reino Unido identificados como PCD, que definiam a deficiência como uma experiência de exclusão em uma sociedade hostil à diversidade de corpos (Diniz, 2007); isto é, como mais uma possibilidade de o sujeito ocupar um lugar no mundo, sem perder de vista as particularidades impostas por condições que marcam suas diferenças. Esta concepção oportuniza a inclusão por se distanciar de uma forma normativa de conceber o humano, colocando como responsabilidade social a participação daqueles que apresentam diferenças significativas, procurando ir na contramão da individualização estigmatizante.

Condizendo com uma perspectiva sociológica crítica, a qual subsidia uma prática psicológica politicamente orientada, a deficiência emerge e se agrava junto ao sistema de produção capitalista, o qual demanda um tipo específico de corpo “que se encaixa à máquina” (Piccolo & Mendes, 2013, p. 460), satisfazendo a padronização exigida na produção em larga escala. Tem-se a partir deste modus operandi alicerçado num viés produtivo, o estabelecimento de um padrão normativo para classificar os corpos e suas condutas, com respingos na manutenção de uma sociedade profundamente excludente, dado que as condições de vida são produzidas a partir da capacidade do sujeito em ser bem sucedido ao vender sua força de trabalho.

As lutas sociais para o aceite do modelo social competem com o chamado modelo biológico, o qual, pautado em saberes biomédicos, localizam a deficiência como anomalia perante a um padrão de estrutura e funcionamento do corpo humano. O paradigma biológico/orgânico até hoje se configura como referência hegemônica para lidar com o fenômeno em muitas esferas sociais no cenário brasileiro. A experiência de “corpo com algo fora da norma” humilha e segrega, pois individualiza; coloca-se, portanto, a deficiência como um atributo próprio de um componente orgânico disfuncional, faltoso. Como consequência, as ações destinam-se ao próprio corpo da pessoa que porta a condição “deficiente”, restringindo-se muitas vezes à assistência, com a expectativa de que o sujeito se adeque ao meio (Diniz, 2007; Leite, 2017; Mello, Nuernberg & Block, 2014). Nas palavras de Soares e Araújo (2021, p. 627), “A ideia sobre considerá-las pouco ou nada produtivas, por vezes, contribui para antecipar atitudes de modo a ‘proteger’ pessoas com deficiência. Desse modo, seríamos bondosos em poupar estas pessoas das situações e/ou participações sociais para as quais seriam consideradas inaptas”.

Outra concepção amplamente difundida é a metafísica: desde a Idade Média, enraizada no cristianismo, entende-se o fenômeno da deficiência tanto como algo demoníaco quanto divino. A conduta perante às PCD eram também ambíguas, variando tanto de tortura, aprisionamento e segregação, à caridade e benevolência. Há que se recordar que a sociedade brasileira tem a matriz religiosa cristã muito presente no seu modo de viver e atribuir razões e sentidos aos diversos fenômenos em que as crianças precocemente são expostas, convivendo com as interferências religiosas ao longo da sua história, transmitidas geracionalmente com um viés de sobrenatural. Tal modo de conceber, implica numa dificuldade em romper com o status de santidade atribuído às PCD, pois

exige de nós a capacidade crítica do ceticismo no tocante a superação de suas marcas preconceituosas no contexto social contemporâneo, afinal, muitos ainda, sob o olhar piedoso, dirigem-se às pessoas com deficiência como verdadeiros anjos, seres incomuns, uma espécie de seres celestes em íntima conexão com Deus, a própria representação do bem. (Soares & Araújo, 2021, p. 623).

Sinteticamente, tanto o enfoque biológico/médico como o metafísico/religioso podem perpetuar uma omissão da sociedade no tocante à promoção de condições que possibilitem o desenvolvimento dos sujeitos com deficiência de forma emancipada.

Em meio a esta disputa que lega às pessoas com deficiência oportunidades (ou a falta delas) de participar da vida social com equidade em relação às que não apresentam, Leite, Cardoso e Oliveira (2021) propõe a Escala Intercultural de Concepções de Deficiência (EICD), um instrumento elaborado por uma equipe de pesquisadores do Brasil, Espanha e Portugal, utilizado na investigação da concordância com enunciados que trazem frases ilustrativas das três formas de se conceber a deficiência anteriormente apresentadas: de caráter religioso cristão (concepção Metafísica), biomédico (Biológica), e as quais a vinculam ao contexto em que se apresenta (Social).

A partir das premissas traçadas, apresenta-se o objetivo central deste estudo, que consistiu em identificar as concepções de deficiência em estudantes de universidades públicas das cinco regiões brasileiras, analisando com base em três conceitos nominativos de deficiência (de viés metafísico, biológico e social) pela associação com variáveis sociodemográficas dos respondentes, a saber: gênero, identidade sexual, etnia.

Por ser o lócus do estudo o Ensino Superior, é oportuno mencionar, de modo conciso, que a previsão de ações e recursos para o fomento a participação de PCD em níveis mais elevados de ensino está amparada nos preceitos descritos na Política Nacional de Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva (Ministério da Educação e Cultura, 2008).

Neste documento há a preconização do acesso da PCD aos espaços de formação, considerando as diferentes modalidades de barreiras de acesso e a transversalidade da educação especial, cabendo aos sistemas de ensino as adequações necessárias à inclusão, desde o ingresso, garantindo sua formação e permanência. O documento orienta a necessidade da provisão e recursos humanos e materiais para a “promoção da acessibilidade arquitetônica, nas comunicações, nos sistemas de informação, nos materiais didáticos e pedagógicos, que devem ser disponibilizados nos processos seletivos e no desenvolvimento de todas as atividades que envolvam o ensino, a pesquisa e a extensão” (p. 8).

Preocupado com tais questões, o Plano Nacional de Educação - PNE, regulamentado pela Lei n° 13.005/2014, que trata de política educacional a ser implementada no período de 2014 a 2024, dispõe na Meta 12.5 providências para ampliar as políticas de inclusão e de assistência estudantil na educação superior, para ampliar as formas de acesso e a permanência de “estudantes egressos da escola pública, afrodescendentes e indígenas e de estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação, de forma a apoiar seu sucesso acadêmico” (Lei n° 13.005/2014).

No entanto, como trazem Oliveira, de Melo e Da Silva (2020), a problemática da inclusão no Ensino Superior não pode ser pensada de maneira isolada, sendo necessário um olhar mais abrangente para a “correlação de forças” (p.169) em disputa. Para que seja feita uma reestruturação mais profunda das estruturas universitárias e a construção de uma cultura inclusiva, apontam a necessidade de maior sensibilização da comunidade universitária, aqui posto o corpo docente, os funcionários e estudantes com e sem deficiência.

PROCEDIMENTOS

NATUREZA, INSTRUMENTO E COLETA DE DADOS

A pesquisa, de caráter exploratório, qualitativa-quantitativa e analítico-descritiva, teve como cenário o ambiente virtual, durante a pandemia de Covid-19, para a aplicação da Escala Intercultural de Concepções de Deficiência - EICD (Leite, Cardoso, & Oliveira, 2021). A EICD é um instrumento de pesquisa, caracterizada como uma escala tipo Likert de cinco pontos – variando de “discordância total” a “concordância total”, com termo intermediário de “nem discordo nem concordo”. Possui 43 assertivas divididas em três concepções: ‘Metafísica, Biológica e Social. Concepção Metafísica’ (11 itens): deficiência como fenômeno sobrenatural, ligada ao plano espiritual e/ou sobrenatural, relacionada a manifestações de um plano divino e/ou cármico, como no exemplo: “A família da pessoa com deficiência é preparada por Deus para recebê-la”. ‘Concepção Biológica’ (17 itens): deficiência ligada ao próprio organismo e ao seu conjunto de limitações ou déficits, tendo como norma um padrão orgânico nos quais os desvios são entendidos como falha ou mau funcionamento; exemplo de item: “A deficiência pressupõe um mau funcionamento orgânico, que compromete o desenvolvimento humano”. ‘Concepção Social’ (15 itens): deficiência sendo um complexo resultado de interações da PCD com o contexto social, econômico e político, em relação a esse contexto, uma característica orgânica e/ou comportamental será considerada como vantajosa ou não; a exemplo: “A deficiência é definida de acordo com a interpretação que cada cultura faz dela”. Seus critérios de construção e parâmetros estatísticos podem ser consultados em Leite, Cardoso, e Oliveira, 2021).

Entre os meses de dezembro de 2021 a março de 2022, foi feito o envio de e-mails contendo o convite à pesquisa para todas as universidades públicas do país (federais e estaduais), por maior número de canais institucionais possível: foram coletados os endereços de e-mail disponíveis nas páginas institucionais oficiais da Pró-Reitoria de graduação, Pró-Reitoria de Pós-graduação, Núcleo de Acessibilidade e Inclusão (NAI ou similares), além dos endereços de assessoria de comunicação, coordenação dos cursos de graduação e de programas de pós graduação. Também foram contatados pesquisadores parceiros, alunos e professores de outras instituições, via e-mail ou ainda por aplicativo de mensagens e redes sociais, com a finalidade de se obter maior número de respondentes para cada região.

A aplicação da EICD em estudantes de universidades públicas brasileiras foi veiculada por meio dos formulários do Google Workspace e Google Forms, contendo perguntas com alternativas abertas e fechadas. Precedendo a EICD, na primeira página do formulário esteve disposto o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e e-mail de contato para dúvidas, respeitando as normas éticas. Esta forma de aplicação visou favorecer o esclarecimento de dúvidas e o preenchimento do instrumento por um número maior de estudantes. Caso o termo tenha sido afirmado, o estudante teve então acesso a questões sobre variáveis sociodemográficas do respondente, a serem tomadas como medidas para comparações intra e inter-grupos; e logo em seguida, à escala. Salienta-se que esta pesquisa foi conduzida dentro dos padrões éticos exigidos pela Declaração de Helsinque e pela Resolução nº 510, de 07 de abril de 2016, do Conselho Nacional de Saúde do Brasil e possui Certificado de Apresentação para Apreciação Ética, com parecer favorável, Protocolo nº 13476713.5.0000.5398 – CAAE/Plataforma Brasil.

O ambiente virtual possibilitou alcançar um total de 59 instituições, somando um número total de 1568 respondentes em todas as regiões. Em termos particulares, tivemos 204 respondentes da região Norte; 268, da região Nordeste; 310, da região Centro-oeste; 385, da região Sul e 401, da região Sudeste. Tivemos ainda 13 respondentes que declararam não ser brasileiros nativos, sendo que quatro informaram seu país de origem: dois da Angola, um da Itália e um do Japão.

PROCEDIMENTOS DE TRATAMENTO E ANÁLISE DOS DADOS

Os dados obtidos por meio do formulário virtual da EICD foram tabulados de acordo com os critérios estabelecidos pelos autores da escala, codificados e transpostos para o software de análise estatística IBM SPSS® versão 20 (IBM, 2021). Nas análises inferenciais paramétricas realizadas com três ou mais grupos (“região”, “gênero”, “identidade sexual”), foi utilizado o teste ANOVA com correção Tukey HSD. A análise interpretativa das respostas buscou examinar quais as concepções de deficiência mais concordantes e/ou discordantes e suas implicações de acordo com a Tabela 1.

Tabela 1 Intervalos de valores de concordância e discordância por concepção de deficiência 

Concepções Discordância Tendência à discordância Tendência à concordância Concordância
Metafísica 11 a 22 23 a 27,4 27,5 a 43 44 a 55
Biológica 17 a 34 35 a 42,4 42,5 a 67 68 a 85
Social 15 a 30 31 a 37,4 37,5 a 59 60 a 75

Fonte: (Leite, Cardoso, & Oliveira 2021).

O número de itens, os valores mínimos e máximos e o valor de corte, em cada uma das três concepções são: (a) concepção metafísica (11 itens, valores de 11 a 55, com 27,5 como valor de corte); (b) concepção biológica (17 itens, valores de 17 a 85, com 42,5 como valor de corte); (c) concepção social (15 itens, valores de 15 a 75, com 37,5 como valor de corte).

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Dentre as cinco regiões brasileiras (indicado na Tabela 2), não foram encontradas diferenças significativas em questão de concordância ou discordância das concepções de deficiência - os valores de p são todos superiores a 0,05 (p > 0,05), ou seja, não foi constatada significância estatística entre as categorias. Pode-se observar a formação de subconjuntos estatisticamente homogêneos através do Teste Post Hoc Tukey HSD: a variável “Região” não se configurou como decisiva para a exibição de mais ou menos concordância em relação a determinada concepção. De acordo com os Intervalos de valores dispostos da Tabela 1, tem-se que: todas as regiões apresentam discordância da concepção Metafísica, tendência à concordância da concepção Biológica e tendência à concordância da concepção Social.

Tabela 2 Valores de concordância com as concepções por região do Brasil 

Concepção Região Média DP p-valor
Metafísica Norte 17,62 8,296 0,500
Nordeste 16,50 8,364
Centro-oeste 17,28 8,680
Sul 17,34 8,885
Sudeste 17,72 9,382
Biológica Norte 49,18 14,232 0,541
Nordeste 47,77 14,473
Centro-oeste 48,47 13,045
Sul 49,54 13,783
Sudeste 49,10 13,700
Social Norte 46,18 12,802 0,611
Nordeste 45,91 13,642
Centro-oeste 46,60 13,433
Sul 46,70 12,692
Sudeste 47,46 12, 588

Fonte: autoral.

Na leitura da tabela 2, observa-se que a população por este estudo amostrada, advinda de universidades públicas brasileiras (compreendendo as cinco regiões) apresenta-se, de forma geral, em discordância de enunciados que atrelem a deficiência a uma matriz Metafísica, de cunho religioso, e em tendência a concordância com dizeres que a atribui a modelo sustentados por concepções Biológica e Social. O resultado referente à primeira concepção não causou estranhamento, uma vez que se espera que ambientes universitários sejam, sobretudo, laicos e permissíveis à diversidade (considerando que os enunciados presentes na EICD para esta concepção são cunhados em uma mentalidade fundamentalmente cristã).

A concepção biológica traz uma visão que favorece a conformação à norma e ao capacitismo, isto é, uma conduta que identifica o sujeito tido como PCD como incapaz ou inapto a participar da vida social, de menor valia por apresentar o conjunto de características que o enquadra como uma pessoa com deficiência. Isso se dá pelo caráter de “tragédia pessoal” (Diniz, 2007), atribuído ao fenômeno da deficiência: indistinto do fato biológico da diferença marcada no corpo (também compreendido por “lesão”). Essa concepção impede o movimento de olhar para além do indivíduo fora da norma, uma vez que se espera a adequação deste ao meio (Leite, 2017).

Já o modelo Social toma um caminho oposto. Como trazem Piccolo e Mendes (2013), a UPIAS (1976, pp. 3-4), propositora desse modelo, advoga que: “a deficiência é algo imposto, sob a base de nossas lesões, pela maneira como somos desnecessariamente asilados e excluídos da plena participação na sociedade” (citado por Piccolo & Mendes, 2013, p. 470). Como colocado pelos autores brasileiros no mesmo texto, entende-se que este modo de conceber é promotor do ampliamento do “grau de flexibilidade da sociedade em se adaptar às mais diversas diferenças” (p. 471), ou seja, é tolerante à diversidade humana, desse modo, se diferencia dos demais uma vez que sustenta e valoriza uma participação mais efetiva da PCD nos diversos contextos, reconhecendo-a como sujeito de direitos.

Fundamentado no materialismo histórico, Diniz (2003) sintetiza o modelo social criado pela UPIAS como sendo postulado em dois argumentos: “deficiência é um fenômeno sociológico e lesão uma expressão da biologia humana isenta de sentido” e “a solução não deveria se centrar na terapêutica, mas na política” (p. 2). Em outras palavras, as desvantagens relativas a ser identificado como uma “pessoa com deficiência” se deveriam mais às barreiras enfrentadas, e, em se eliminando tais barreiras, esta população exercitaria sua independência, tida esta como um valor ético fundamental do modelo (Magnabosco & Souza, 2019).

A autora identifica as semelhanças entre a teoria nascente abordando deficiência com os estudos de gênero: ambos propunham a desessencialização de conceitos – como trazem Magnabosco e Souza (2019, p. 2), em se desessencializar a desigualdade, se “deslocou o significado da deficiência das lesões para o contexto social, como fizeram as teorias de gênero ao separarem o sexo, pensado a partir do corpo biológico, do gênero, compreendido como construção histórica e social”. As consequências de tal revolução teórica são vistas na inadmissibilidade de justificar opressão e segregação com base em diferenças até então entendidas como “naturais”, uma vez que passaram a ser concebidas como fruto da socialização de uma determinada história e sociedade, portanto sendo significadas socialmente.

Investigando a trajetória da UPIAS, Diniz (2007) e Piccolo e Mendes (2013) trazem o fato histórico de que os autores, autoidentificados como deficientes físicos, buscaram no desenvolvimento do novo conceito de raça por acadêmicos negros – o qual explicava a discriminação racial como o produto de uma sociedade, e não advindo de características fenotípicas (o que se atribui ao “biológico”) – a lógica para o modelo social, o qual veicula essa nova concepção de deficiência. Apesar dessa interseccionalidade em relação aos estudos sobre raça, os autores apontam que não há “evidência mais explícita da ligação dos estudos sobre deficiência com outros grupos minoritários” (Piccolo & Mendes, 2013, p. 471).

Ao se deter nas variáveis sociodemográficas dos respondentes em contexto universitário, algo semelhante foi observado: são poucos os grupos minoritários que respondem de forma consistente em concordar com discursos favoráveis à superação de barreiras atitudinais por meio de luta e justiça social, ou seja, em consonância à discordância de concepções que trazem elementos de natureza capacitista.

Levando em conta a interseccionalidade, Mello, Nuernberg e Block (2014) apontam uma progressão hierárquica na formação e complexificação do estigma conforme atravessam os marcadores sociais da diferença, gerando reações de repulsa em relação ao corpo desviante, perpassando diferentes corporeidades que performam as deficiências, em modos de viver que perpassam noções como a de raça e etnia, assim como identidade de gênero e sexual. Pode-se depreender que o tratamento isolado (e progressivamente, individualizado) dos marcadores sociais resulte em maior alienação e opressão, uma vez que não sejam concebidos fatores comuns, socialmente produzidos como geradores de condições desviantes, valoradas negativamente e subalternizadas.

Como sustenta Ndlovu (2019), em virtude de serem excluídos por estruturas inacessíveis, alguns alunos com deficiência acham que sua admissão à universidade é barrada por suas diferenças físicas, sem se darem conta de que é sociedade que os exclui - isto é, estão diante de barreiras (as quais, segundo o autor, são produzidas e sustentadas pela estrutura colonial). Coadunando com o modelo social, “é a sociedade que promove deficiência e limita, e não as diferenças” (Ndlovu, 2019, p. 9., tradução nossa2).

Com relação à variável “gênero”, todas as categorias analisadas apresentam valores de médias enquadrados como discordância da concepção Metafísica, tendência à concordância da concepção Biológica e também da concepção Social, de forma homogênea segundo o Teste Post Hoc Tukey HSD. Entretanto, não o fazem da mesma forma: para as duas primeiras concepções, verifica-se diferença significativa através do valor de p, com o grupo “Feminino” apresentando os maiores valores de média em ambas. Na concepção Social, em que os grupos respondem de maneira mais homogênea (valores com p > 0,05), pode-se destacar que o grupo “Feminino” é o que exibe a menor média, enquanto o “Outros” (15 respondentes distribuídos nas cinco regiões, que inclui as autodenominações “Prefiro não responder”, “Gênero Fluido”, “Não Binário”, “Alien”, “Andrógino”, “Bixa”, “Sapatão não binarie”, “Lésbica” – as cinco últimas com apenas um representante cada) possui a maior, sendo também o qual produz os menores valores de média nas duas outras concepções, nas quais há diferença estatística.

Tabela 3 Valores de concordância com as concepções por gênero no Brasil 

Concepção Gênero Média DP p-valor
Metafísica Feminino 17,75 9,050 0,027
Masculino 16,50 8,340
Outros 16,36 7,308
Biológica Feminino 49,56 13,690 0,011
Masculino 47,69 13,906
Outros 44,32 13,940
Social Feminino 46,24 13,037 0,071
Masculino 47,32 12,866
Outros 51,08 12,728

Fonte: autoral.

Nos resultados da aplicação de uma versão anterior da EICD, porém em docentes e técnicos administrativos de uma universidade pública, Leite, Oliveira e Cardoso (2019) encontraram diferenças com significância estatística para o público feminino: as docentes foram as que mais pontuaram na concepção social, enquanto as funcionárias técnicas tiveram a maior pontuação na concepção metafísica. Tais achados foram interpretados dizendo que níveis mais elevados de aprendizado podem ter influenciado numa postura mais crítica em relação à deficiência e pelo maior envolvimento das mulheres com a religião em nossa cultura. Na pesquisa em tela, observou-se que o público feminino apresentou valor de média superior nessa concepção quando comparado aos demais, coadunando com os achados do estudo com universitários de Martins e Nascimento (2022) em que identificou-se “que as mulheres consideram-se mais religiosas e também possuem um maior repertório de crenças e práticas religiosas do que os homens” (p. 2).

Recorda-se que a concepção metafísica de deficiência é atravessada por noções que remontam à tradição religiosa, notadamente o cristianismo, que sublinha o que é diferente e diverso ora como algo divino e elevado, ora como abjeto e repugnante. Ao mesmo tempo em que marca e estigmatiza aquilo que é diverso como algo distante e que deve permanecer na diferença, no que se pode chamar de uma ética cristã (Strelhow, 2018), é igualmente demarcada uma postura de caridade, de ajuda e de tolerância voltada para esse objeto de estranhamento, estabelecendo uma dualidade de aceitação e rejeição.

Cabe dizer que os valores de média produzidos pelas categorias supracitadas tenham sido equivalentes, citando uma diferença que remete à desigualdade (dado o trabalho que se exige, o qual é subvalorizado) entre os papéis de gênero que cada qual desempenha no tocante a tarefas de cuidado. O modelo social da deficiência, inicialmente proposto pela UPIAS – a saber, composta homens brancos com lesão medular – foi reformulado através da crítica feminista, e, em sua segunda geração (datando da década de 1990), passou a considerar “o cuidado como princípio ético e a igualdade pela interdependência como um princípio de justiça mais adequado nos estudos sobre a deficiência” (Magnabosco & Souza, 2019, p. 2). Figura em primeiro plano não mais a independência, mas a interdependência; e passa-se a assumir que existem “desigualdades de poder no campo da deficiência que não serão resolvidas por ajustes sociais” (Diniz, 2003, p. 5) em decorrência da severidade de suas limitações. Tal reconfiguração não ocorre sem conflitos ideológicos: as teóricas feministas – mulheres com deficiência ou cuidadoras de PCD – sofreram acusações de estarem fazendo ressurgir a postura caridosa legada às PCD até o momento de reformulação da concepção de deficiência (em voga estava principalmente a de cunho biomédico), e de que o cuidado substituiria a independência, recolocando as PCD no lugar de subalternidade por sujeição.

Dentre os grupos minoritários aqui amostrados, o “Outros” é o mais interessante: ainda que tenham se apresentado como homogêneas, a referida categoria produz as menores médias em relação às demais para as concepções identificadas como individualizantes, estigmatizante das diferenças humanas (concepções Metafísica e Biológica), pontuando mais concordante com a concepção Social. Destaca-se o reduzido tamanho da mostra: ainda que desponte certa coesão para a categoria, necessita-se um maior contingente para se fazer afirmações mais robustas.

A tabela 4 demonstra como a autoidentificação como LGBTQ+ não se colocou como uma variável significativamente relevante para a variabilidade das respostas em relação às concepções sobre deficiência (sem diferença estatística significativa: p > 0,05): nas três concepções analisadas as categorias são estatisticamente homogêneas e apresentam discordância da concepção Metafísica, tendência à concordância da concepção Biológica e tendência à concordância da concepção Social.

Tabela 4 Valores de concordância com as concepções por identidade sexual no Brasil 

Concepção Você se identifica como LGBTQ+? Média DP p-valor
Metafísica Sim 16,79 8,464 0,390
Não 17,47 8,928
Prefiro não responder 17,86 8,739
Biológica Sim 48,21 13,883 0,537
Não 49,04 13,815
Prefiro não responder 49,76 12,722
Social Sim 46,85 13,272 0,917
Não 46,59 12,942
Prefiro não responder 47,14 12,138

Fonte: autoral.

Na tabela 5, a variável “etnia” revela-se estatisticamente homogênea para as concepções Biológica e Social: em ambas apresenta tendência à concordância. Quanto à concepção Metafísica, ainda que todas as categorias pertençam ao intervalo de valores de discordância seguindo a Tabela 1 e não apresentem diferenças significativas segundo o valor de p (p > 0,05), o Teste Post Hoc Tukey HSD aponta para uma cisão estatisticamente significativa, gerando dois subconjuntos: na mostra, a categoria “Indígena” enquadra-se como mais radicalmente discordante (valor de média = 14,33), enquanto a “Prefiro não responder” (valor de média = 20,69) está mais próxima ao limiar superior do intervalo de discordância (atingido na pontuação 22). As demais categorias possuem todas médias similares, (variando decimais na média de 17) sendo enquadradas nos dois subconjuntos.

Tabela 5 Valores de concordância com as concepções por etnia no Brasil 

Concepção Etnia Média DP p-valor
Metafísica Preta 17,40 9,801 0,574
Parda 17,22 8,402
Indígena 14,33 12,257
Branca 17,33 7,353
Amarela 17,59 8,617
Prefiro não responder 20,69 8,804
Biológica Preta 49,99 14,467 0,115
Parda 47,51 13,617
Indígena 49,75 17,037
Branca 49,51 16,046
Amarela 47,09 13,712
Prefiro não responder 50,88 13,634
Social Preta 46,14 13,327 0,757
Parda 47,28 13,071
Indígena 47,42 13,079
Branca 46,49 13,747
Amarela 44,53 13,75
Prefiro não responder 45,44 12,844

Fonte: autoral.

As categorias das minorias sexuais (autoideintificados como LGBTQ+) e “etnia” produziram resultados inconsistentes, majoritariamente concordantes com concepções que são discordantes (simultaneamente, as concepções Biológica e Social). Isso aponta que a vivência como uma pessoa potencialmente discriminada – por seu modo de viver e/ou com demarcações culturais no corpo, que sofre por opressão sistemática, que são parcialmente ou não contempladas pelos mesmos direitos que as pertencentes a grupos hegemônicos – não implica diretamente no imbricamento ou unificação de lutas sociais diversas, ou de posicionamento mais crítico em relação a outras classificações, como na deficiência, foco deste estudo. É preciso ressaltar ainda que se trata de amostras numericamente reduzidas, tanto para as minorias sexuais quanto para grupos étnicos, como os indígenas, quando equiparados aos demais grupos, uma vez que sequer houve respondentes deste na região Sul.

Pode-se inferir que esses respondentes universitários autoidentificados como minorias não sejam sensíveis ou não coadunem com a perspectiva de que diferentes sistemas de opressão são transversalizados ou interseccionais, ou ainda que teriam uma gênese comum, tal como suscitam autores que advogam por abordagens interseccionais, decoloniais, ou contextualizadas pelo panorama capitalista (Gesser, Nuernberg, & Toneli, 2012; Mello, 2019; Ndlovu, 2019; Piccolo & Mendes, 2013). Valendo-se desses paradigmas, a antropóloga Mello (2019, p. 49) aponta como a combinação de marcadores sociais de diferença – tais quais a identidade de gênero e sexual, raça, regionalidade – operam de forma “transversalizada” (ou seja, não meramente “somando-se” um marcador ao outro, mas em intersecção) na potencialização de barreiras, em especial, a atitudinal; evidenciando a importância de se investigar o arranjo dessas variáveis.

Para além de uma hipótese que vise justificar a parca correlação entre lutas por equidade – tendo em vista que aqui se expressam primeiramente numa dimensão de concordância com conceitos, preditora de atitudes – considerando combinações de diferentes marcadores sociais e a deficiência em marcadores de privilégios e/ou alienação, há também a dialogicidade com a oportunidade (ou não) do contato com PCD, especialmente em ambientes acadêmicos, em que sua participação ainda é pequena, conforme pode ser observado no Resumo técnico do Censo da Educação Superior de 2021 (INEP, 2023), que indica a presença de 61.258 matrículas desse público, representando 0,68% do total de matrículas.

A ocupação das PCD nos espaços de produção de conhecimento, enquanto necessária para uma discussão anticapacitista ampliada sobre o engendramento das opressões nesses espaços (Angelucci, Santos, & Pedott, 2020), também qualifica o debate acerca das condições de sua participação. Ainda, o contato e a convivência entre alunos, funcionários e docentes com e sem deficiência favorece a criação de uma rede de sociabilidade, qual age como facilitadora do processo inclusivo pelo acolhimento, consideração das singularidades e diferenças não mais restritas à marginalidade e enfrentamento ao preconceito, uma relevante barreira atitudinal, conforme foi detalhado no trabalho de Batista e Nascimento (2018), realizado por meio de aplicação de questionários e entrevistas com estudantes universitários com deficiência. Vê-se assim que não basta apenas garantir o acesso ao Ensino Superior e aos espaços de formação por meio de políticas que favoreçam a entrada: deve-se igualmente ocupar-se da permanência, condições de acesso ao conhecimento historicamente produzido e conclusão do curso em questão (Oliveira, Melo, & Silva, 2020), e a já preconizada necessidade de se criar uma cultura de inclusão aponta para este horizonte político.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo em tela objetivou conhecer como estudantes de instituições públicas de Ensino Superior de todas as regiões do país se posicionam diante de enunciados que remetem às diferentes concepções de deficiência. Sabe-se que esse tema é complexo e passível de interpretações distintas, conforme anunciado em tópicos anteriores.

Em tese, observou-se que a população por este estudo amostrada, apresenta, de forma geral, discordância de enunciados que atrelem a deficiência a uma matriz Metafísica, de cunho religioso cristão, e em tendência a concordância com dizeres que a atribui aos modelos sustentados por concepções Biológica e Social para compreendê-la. Atrelado a isso, observa-se altos índices de desvio padrão entre os conjuntos de respondentes nos itens analisados neste artigo. Isso implica em dizer que mesmo os subgrupos analisados deixam de apresentar posicionamento marcante nos modos de compreender a deficiência. Achados semelhantes foram encontrados em estudo conduzido por (Leite, Cabral, & Lacerda, 2023), que compararam concepções de estudantes de universidade pública e privada.

Era esperado que os respondentes tivessem uma pontuação mais elevada nos modos de compreender a deficiência como uma marca social, uma vez que a universidade pública se coloca como uma instituição laica, de posicionamentos críticos da sociedade pautados nos preceitos científicos. No contraponto, como os participantes apresentaram tendência em concordar com enunciados relativos ao modelo de ordem biológica, de natureza individual, hipotetiza-se que podem apresentar atitudes que impelem à corponorma – vivenciadas na forma de barreiras atitudinais, ou seja, identificando a condição de deficiência no próprio sujeito e nas (im)possibilidades do meio para a sua participação social.

Tomando por objeto não o indivíduo, mas seu meio, a concepção Social é valiosa por seu uso na análise da condição na qual as PCD se encontram, pois oportuna considerar outras formas de opressão interseccionais que esses sujeitos possam vir a sofrer e enfrentar, apontando indicadores úteis para se pensar na inclusão em diversas esferas (Mello, Nuernberg, & Block, 2014). Com isso, percebe-se que a análise se amplia, tendo em vista que se deve levar em conta tais determinantes, sendo prudente que se lance um olhar para o modo como se interseccionam, ou seja, para a interface de marcadores sociais, datados num dado momento histórico, para que se possa compreender a deficiência de maneira relacional.

É oportuno mencionar que se reconhecem os limites do estudo aqui retratado, ou seja, que representa uma parcela dos profissionais em formação oriunda de diversas universidades públicas brasileiras, e, nesta direção, novas pesquisas devem ser conduzidas para o aprofundamento dos dados com outros públicos e/ou instrumentos de pesquisa complementares.

No entanto, numa análise macroscópica, entende-se que os achados ainda não são suficientemente concordantes com o modelo social. Espera-se que num futuro próximo, o cenário ilumine e responsabilize mais o contexto na direção de promover ações que combatam os preconceitos, estigmas e barreiras, e que as PCD possam ser vistas e valorizadas nas suas diferenças.

Postula-se, por fim, que as concepções de deficiência, veiculadas em discursos, norteiam práticas profissionais, podem ser tomadas como indicativos de formas de agir cotidianas; assim como podem vir a subsidiar a elaboração de políticas públicas. Assim, investigar os conceitos circulantes de deficiência é fundamental para a construção de esferas sociais mais inclusivas, principalmente ao se considerar o público pesquisado, o qual potencialmente atuará, direta ou indiretamente, com pessoas com deficiência, por se tratarem de profissionais em formação. A compreensão da deficiência advém do diálogo e do debate por meio da articulação de visões que se inter-relacionam, oriundas de campos de saberes que possibilitam a apreensão da sua complexidade, sendo que esse debate se inscreve na participação da vida social da PCD, materializando-se em políticas públicas e inscrevendo-se em um contínuo no tecido social.

Ao mesmo tempo em que as conjunturas políticas circunscritas em uma determinada época de uma região ou país, movimentos sociais advogam por práticas que refletem ou fundamentam-se em discursos mais inclusivos; e, a nível acadêmico, é também sua problematização que permite que mudanças objetivas sejam concretizadas. O estabelecimento de medidas mais concatenadas com pautas que reivindicam os direitos das PCD garantidas pelas políticas públicas, solidifica tais princípios e promove a maior participação desse público, favorecendo o seu processo de humanização. Reitera-se, portanto, que é ideal que a materialização de práticas e intervenções em Psicologia seja politicamente orientada por modos mais críticos de análise, compatíveis com a luta anticapacitista.

1Termo em desuso, sendo substituído na literatura científica por Deficiência Intelectual, conforme pode ser consultado no DSM-5: Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. (Artmed, 2014).

2From the social model of disability perspective, it is society that disables and limits, and not impairments”.

Financiamento

Bolsa - PIBIC/CNPq - Reitoria - Edital 4/2021 - Ações Afirmativas RT 3387 e RT 3394. Bolsa PQ/CNPq – Proc. 404410/2023-5.

Consentimento de uso de imagem

Não se aplica.

Aprovação, ética e consentimento

Certificado de Apresentação para Apreciação Ética, com parecer favorável, protocolo nº 13476713.5.0000.5398 – CAAE/Plataforma Brasil.

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Recebido: 11 de Novembro de 2022; Revisado: 20 de Setembro de 2023; Aceito: 26 de Outubro de 2023

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