COMO SURGE ESSA ESCRITA?
Querido/a leitor/a, antes de tudo, essa escrita surge daquilo que me passa, me atravessa e me toca. Surge das histórias de outro lado da história, o lado das histórias únicas que definem estereótipos (Adichie, 2009), o lado que não pensa no corpo e na cor de quem escreve, pesquisa e produz ciência. Surge das vivências de preconceitos em um espaço que me fizeram sonhar como plural e inclusivo: a Universidade.
Este artigo deriva de minha monografia de conclusão de curso em Psicologia, finalizada em 2022. Essa escrita surgiu de encontros, de caminhos não lineares na pesquisa, de atravessamentos e embarcações que me levaram a encontrar epistemologias desobedientes, monstruosas, em direção ao feio, aleijadas e, sobretudo, feita com corpos não normativos. Corpos que por muitos anos nas ciências foram colocados como objetos de pesquisa, conceituados como anormais, em falta, deficientes, sem eficiência. É um convite para do eu, enquanto um corpo de uma pessoa com deficiência no caminho acadêmico, fazer nós com outras pessoas com e sem deficiência para povoar o mundo e contar nossas histórias.
No caminho do texto você vai encontrar verbos com outros sentidos, além de versos, rimas e cordéis. O dialiverso que COMpõe esse trabalho são os versos produzidos com a diálise que será explicado mais adiante no texto. Pensando em trazer acessibilidade para as pessoas com deficiência visual, os versos e tudo aquilo que rima estará em negrito para que o dispositivo de leitura de tela possa marcar essa diferença no texto. Também preciso lhe dizer que a maior parte dessa escrita foi feita de um lugar cotidiano em que passo quatro horas, três vezes por semana: a diálise.
Durante minhas horas na diálise
Outros movimentos pude fazer,
Enquanto meu sangue era filtrado
Esse trabalho vinha escrever,
Lendo epistemologias psi
Para propor escredialivivência e uma ciência tecer.
Este artigo é composto por algumas paragens marcadas pelos subtítulos, em cada uma vou contando como fui sendo embarcado por discussões políticas, teóricas e epistemológicas e como fui me reconhecendo sujeito ativo desse processo. Embora esses movimentos possam parecer lineares, eles foram tecidos por (des)encontros no intuito de encontrar modos de expressar as questões que me passavam, atravessavam e tocavam. Amparado por Conceição Evaristo (2017) ficciono uma escrevivência, uma composição entre escrita e vida fazendo desta uma produção científica no campo da Psicologia. O objetivo do texto foi percorrer a minha história e formação em psicologia para constituir uma metodologia e um modo de escrita que contemplasse a minha singularidade e existência, como pessoa marcada pela Doença Renal Crônica (DRC). A isso chamei escredialivivência cuja expressão poética em foma de cordel denomino o dialiverso.
DIALIVIVÊNCIAS E DIALIVERSOS
Num encontro com a minha escredialivivência e minhas rimas a professora Alexandra Tsallis nomeou essa expressão como dialiverso, que defino como uma forma de expressão/produção de conhecimento dessa escredialivivência. Escredialivivência significa narrar e contar histórias dessas vivências particulares minhas, mas que são também coletivas das pessoas com doença renal crônica em tratamento de hemodiálise. Dialiverso é a escrita dessas dialivivências e da psicologia que estudo, aprendo e faço em versos e cordéis. Os versos e cordéis se situam numa epistemologia nordestina, uma escrita através da literatura de cordel. A literatura de cordel é um gênero de literatura popular, escritos em rimas a partir de relatos orais e impressos em folhetos, é uma tradição nordestina e nortista. O dialiverso traz em sua composição essa tradição, a força da retirância de uma epistemologia nordestina. Retirância que para Brito (2021, p.38) tem o sentido de deslocamento de saber, assim, no dialiverso desloco os versos de um lugar de conhecimento popular para produzir com eles conhecimento científico.
Ao nó dessas apostas teórico-metodológicas: escredialivivência e dialiverso nos alinhamos ao pesquisarCOM (Moraes, 2010) para COM-por uma pesquisa desse outro lado da história, de corpos de pessoas com deficiência, pessoas negras e de pesquisadores/as monstruosos/as dispostos/as à desobediência epistêmica. Nós somos esses que causam rupturas, nossa presença provoca o enegrecer da universidade e da ciência, nossa afirmação de pessoa com deficiência causa o aleijar da universidade e fazemos a instituição mudar desde dentro dela. Com essas produções aqui escritas desacomodo aulas, pesquisas, caminhos na perspectiva de produzir sonhos acessíveis, tais como ser uma pessoa negra com doença renal crônica e produzir conhecimento dentro da Universidade.
Quando falamos na escredialivivência e no dialiverso enquanto apostas teórico-metodológicas estamos a sustentar a produção de epistemologias a partir de narrativas desobedientes COM-postas por autores/as, pesquisadores/as que, ao contarem suas histórias falam de si e ao falarem de si, falam também de tantos/as outros/as, falam de mundos de enfrentamentos e produção de acessibilidade. Contar uma história para que ela convoque outras histórias ao ser lida ou contada, contar uma história de parceria para inspirar outros/as pesquisadores/as a compor suas pessoas COM as pessoas. São narrativas e histórias de um grupo, de um povo, de um só que COM outros se torna um nós. Um nós que pelas nossas pesquisas produz realidades e mundos (Moraes & Tsallis, 2016) em que as pessoas com deficiência e as pessoas negras importam, pensam, filosofam, povoam e fazem mundos com suas histórias.
O ENCONTRO COMO SUJEITO EPISTEMOLÓGICO
Contar nossa história
É ferramenta de libertação,
Produzir conhecimento científico
Não é só para branco não,
É para mim, pessoa com deficiência
Sujeito epistemológico em construção.
Por muito tempo na ciência a produção do conhecimento partiu de um lado da história, o lado branco, da corponormatividade Mello (2016), do homem cisgênero (aquele que se identifica com o sexo que nasceu) europeu, coloniza(dor). Quando penso na palavra “colonizador” (alguém que coloniza e explora) aponto essa dor em parênteses para lembrar das violências étnico-raciais, sexuais, corporais e psicológicas que a colonização trouxe aos povos originários. Nessa perspectiva quando se pensa em sujeito epistemológico, não se questiona a imagem de quem está produzindo conhecimento científico, está dado que é um corpo branco e sem deficiência.
O processo de reparação histórica desse apagamento talvez nunca termine, no entanto, podemos não mais colaborar com esse apagamento. O conhecimento produzido neste trabalho está marcado no tempo, na história, na forma de escrever pela diferença e por todos os encontros possíveis a partir dessas diferenças. Optei seguir pelas desobediências epistêmicas propostas por Érica Oliveira, Maria Laura Bleinroth e Yasmin Silva (2021) às quais convocam as epistemologias feministas brancas e negras e a elas agrego referências do campo da deficiência. É por esse caminho que seguirei contando minha história, do lugar de um homem negro, nordestino, cordelista, pessoa com deficiência (pessoa com insuficiência renal crônica em tratamento de hemodiálise), estudante de psicologia, história essa que, como aponta Mia Mingus (2011), é ferramenta de libertação.
Minha construção como sujeito epistemológico se dá entre os nós que o caminhar da vida acadêmica nos proporciona e nos embarca. Aqui o verbo embarcar tem um outro sentido, um outro movimento. Alexandra Tsallis, Rayanne Francisco e Vitor Freitas (2020, p. 217) trazem o conceito de embarcar na experiência da sala de aula, do encontro do grupo, no sentido daqueles que já estavam embarcados (por dentro do assunto), contar para aqueles que chegavam atrasados o que já tinha sido falado/discutido, para que eles não ficassem de fora dos caminhos já embarcados. Durante meus primeiros períodos da graduação na Universidade Federal de Alagoas não tive acesso a referências sobre deficiência, nas ementas das disciplinas haviam referenciais nem discussões sobre o capacitismo, apesar dos movimentos e produções políticas e científicas no campo da deficiência datarem dos anos de 1970.
Trago nessa escrita meus incômodos, conflitos e cenas de retratos capacitistas vivenciados por este corpo negro, pessoa com deficiência cotista e estudante de um curso que afirma defender a subjetividade e existência de todos os corpos: a psicologia. Minhas inquietações e conflitos com essa psicologia, histórica e predominantemente marcada pela produção de corpos de pessoas sem deficiência, surgem no primeiro período da graduação em 2018, em uma disciplina voltada à pesquisa em psicologia, declaro a um professor do corpo o interesse em pesquisar e produzir conhecimento na temática da saúde mental de pessoas com doença renal crônica no tratamento de hemodiálise, tema esse que atravessou a minha vivência há dezessete anos. “Essa não é minha área de pesquisa”, foi o que ouvi, mas só anos depois entendi que havia sido o primeiro comentário capacitista vindo de um professor. Aqui se repetia o que Samira Costa e José Carvalho (2020, p. 28) sinalizam: a “produção de conhecimento passou por uma assepsia – pela eliminação da vida, dos sinais da vida, dos vestígios do que possa ser vida”. Silva (2022) afirma como a ciência passou a reproduzir conceitos irrevogáveis e certezas universais em sua visão limitada, com base em um saber neutro que produz a neutralização subjetiva do Ser.
No ano de 2020, durante o período pandêmico a professora Marília Silveira foi interpelada por mim em sua disciplina de Processos Grupais I a pensar os movimentos e discussões inexistentes sobre a saúde mental de pessoas com deficiência, tanto na ementa dessa disciplina, quanto no Projeto Político-Pedagógico do Curso de Psicologia (PPC). Nesse interpelar, ela me conecta (a mim e a turma toda) a um vídeo com uma palestra sobre Deficiência Visual e Capacitismo, de uma mulher, pessoa com deficiência visual, psicóloga, professora e pesquisadora, Camila Araújo Alves. A partir dali me senti convocado a pensar o meu lugar enquanto um corpo desobediente e marcado dentro da universidade.
Como pessoa com deficiência
Não sentia me pertencer,
Mesmo com 16 anos
Neste lugar estando a viver,
Usufruindo dos direitos assegurados
Não me identificava com essa parte do meu ser.
Para mim, pessoa com deficiência, negro e estudante de psicologia, Camila enquanto psicóloga, professora, pesquisadora, também pessoa com deficiência, não apenas traz em sua palestra a historicidade do capacitismo no âmbito biomédico e na sociedade, ela me embarca no convite de me tornar sujeito epistemológico através de um fazerCOM e do pesquisarCOM no qual embarquei com a Marília Silveira.
O PesquisarCOM se trata de uma aposta metodológica nascida no campo dos estudos da deficiência visual em que Marcia Moraes (2010) propõe pensar pesquisas em psicologia no campo da deficiência através de uma prática performativa, na qual o fazer da pesquisa é feito com o outro e não sobre o outro. Assim o “PesquisarCOM”, expressão cunhada pela autora, tem mais sentido de um verbo do que um substantivo, verbo esse que indica que o caminho para conhecer o processo de cegar, se faz necessário acompanhá-lo no cotidiano, com as pessoas que vivenciam esse percurso em seu dia a dia (Moraes, 2010). Em sua discussão, a autora percorre as linhas da história do conceito da deficiência, da Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (Organização Mundial de Saúde - OMS, 2008) define a deficiência pelo modelo biomédico enquanto uma impairments - perda, falta ou uma anormalidade corporal (Diniz et al., 2007) questionando também as realidades que foram produzidas com pesquisas pautadas nesse conceito. Essa noção de deficiência como falta segue presente até hoje, escrevemos, aliados a essas autoras para contestar tal ideia.
Em sua palestra Camila Alves retoma essas reflexões e problematiza não apenas o conceito capacitista que marca a deficiência enquanto uma falta, ou uma anormalidade, mas o que ainda é legitimado em nossas relações sociais, nos currículos escolares e principalmente no lugar que se produz conhecimento científico: a universidade. Quando ingressei na universidade para o curso de psicologia, imaginei esse espaço enquanto um lugar plural de possibilidades de mundos e sonhos possíveis, porém, quase na metade do curso me encontrava interpelando docentes quanto à falta de discussões sobre a saúde mental de pessoas com deficiência.
Na universidade, enquanto um espaço plural todos/as estudantes chegam no intuito de tornar realidade seu sonho do diploma de nível superior, (palavra essa que legitima um lugar de poder/saber na sociedade), haveria, então, seres/ensinos inferiores? Se a universidade é um lugar para todos/as, por que nossas pesquisas demonstram o contrário? Larissa Reis e Francisco Melo (2020) destacam que “os dados do Censo 2015 (INEP, 2018) apontam: alunos com deficiência representam 0,4% das matrículas da Educação Superior”. Só é provável uma universidade enquanto lugar de sonhos realizados, se ela também for um espaço de sonhos acessíveis, de uma ciência feitaCOM pesquisadores/ as com deficiência a exemplo de Mia Mingus (2011), Marco Antonio Gavério (2015), Camila Alves (2021) e Anahí Guedes de Mello (2016), para assim produzirmos acessibilidade e inclusão de modo consistente e consciente.
Os dados da pesquisa de Reis e Melo (2020) apontam para o capacitismo acadêmico que não só exclui corpos de pessoas com deficiência, mas também mantém privilégios sociais de epistemologias de corpos brancos e sem deficiência (Ribeiro, 2019). Por isso, pesquisar a partir de um fazer com o outro, exige um movimento no campo de fazer ciência, o de construir laços e as parcerias durante o caminhar desse processo.
A partir do pesquisarCOM somos convocados/as a fazer ciência e situada, COM as pessoas e não SOBRE elas, assim caminhamos para o lado desobediente da história, desse lugar propomos aleijar e enegrecer epistemologias para tornar os sonhos e mundos acessíveis, caminhando em direção ao feio (Gavério, 2015; Martins, 2009; Mingus, 2011; Oliveira et al., 2021).
Caminhar em direção ao feio
Por Mia Mingus tem outros significados,
Significa pensar em corpos e comunidades
Aleijados, feios e estigmatizados,
Que pela visão de beleza e magnificência
Foram pela sociedade indesejados.
Ao interpelar professora Marília Silveira, ela me embarca nos estudos da deficiência produzidos por pesquisadores/as com e sem deficiência para me inserir nessa construção de sujeito epistemológico e através da minha escredialivivênvia inspirado em Conceição Evaristo (2005) e do dialiverso enquanto apostas e propostas teórico-metodológicas a fazer rupturas, tecer versos e pensar uma psicologia, uma universidade e uma sociedade de mundos acessíveis.
CAMINHOS PARA UMA APOSTA TEÓRICO-METODOLÓGICA ANTICAPACITISTA
Quando pensamos em produzir conhecimento científico desse outro lado da história, situamos uma epistemologia nordestina a qual Monique Brito (2021) em sua tese de doutorado nos embarca: é a problemática que existiu do outro lado da história (uma história branca e situada ao norte geográfico do mundo) de epistemologias que legitimaram uma forma de saber dominante. Pensar uma epistemologia nordestina nomeando-a pela territorialidade de onde estamos produzindo conhecimento científico é uma forma de romper com essas barreiras geopolíticas de produção de saber. Assim, na epistemologia nordestina, Monique Brito retira o estigma do retirante da história da invenção do nordeste e pensa a retirância a partir do devir-retirante, a partir da força daquele que produz deslocamentos, atravessa e ultrapassa fronteiras pelo desejo de encontrar mundos. Sem perder as raízes do povo nordestino que também me constituem, inclusive pela poética dos cordéis.
Aliadas neste caminho (Oliveira et al., 2021) nos ofertam a desobediência epistêmica, a possibilidade de pensar monstruosamente e produzir conhecimento de saberes tradicionalmente não reconhecidos. Assim me autorizam a produzir conhecimento a partir do nordeste, com a força da retirância, dos versos de cordel e das minhas experiências enquanto homem negro com deficiência.
Marcia Moraes e Alexandra Tsallis (2016) nos embarcam a pensar como a aposta teórico-metodológica do pesquisarCOM nos possibilita não apenas narrar histórias como uma forma de escrever a pesquisa, mas também compreender e sermos afetados/as a perceber que a deficiência não se configura como uma falta ou déficit do conceito capacitista da biomedicina. E ainda que várias e diversas são as vidas possíveis das pessoas com deficiência. O que Moraes e Tsallis (2016) nos situam pelo método do pesquisarCOM tece laços a crítica de Donna Haraway (1995) à escrita acadêmica marcada pelo “olhar de deus”, isto é, um olhar que está acima do outro, afastado dele, deslocado dele. Esse “olhar de deus” como nos aponta Conti (2015) nos coloca em risco de produzirmos uma única história. Como nos alertou Chimamanda Adichie (2009) o perigo de uma única história é que ela cria estereótipos, e não é que os estereótipos sejam mentira, mas eles são incompletos. Assim nos cabe perguntar: o olhar de Deus marca qual lado da história? O do cientificismo hegemônico da branquitude de pessoas sem deficiência de um pesquisar sobre o outro. Minha aposta, ao contrário, é um encontro com a diversidade dos corpos de pesquisadores/as monstruosos/as, negros/as e pessoas com deficiência, de um pesquisarCOM,no qual a pesquisa é feita COM as pessoas, é a partir desse lugar que me torno sujeito epistemológico e produzo conhecimento a partir da minha experiência.
Essa inquietação me atravessa, se esperança, do verbo esperançar, na ciência feitaCOM do pesquisarCOM que me embarca Moraes (2010), porque ao fazer pesquisas COMoutros/as e narrar essas histórias para se construir a escrita desses trabalhos, a escrita do “olhar de deus” é aleijada, aleijada não no sentido de falta, mas que circula e assusta nossas ditas normalidades (Gavério, 2015). Neste fazer COM as pessoas com deficiência, não existe um olhar afastado e deslocado do que o cientificismo denomina de “objeto da pesquisa”. Neste movimento aquele que historicamente foi estudado, foi feito “objeto de pesquisa” se torna sujeito, de sua própria história e capaz de produzir conhecimento. Desse outro lado da história, Moraes e Tsallis (2016) ao afirmarem possuir não apenas uma única gramática para a escrita acadêmica, mas várias gramáticas, termos como o pesquisarCOM, escredialivivência e dialiverso trazem rupturas nessa escrita do “olhar de deus” que incomodam modelos hegemônicos de uma única história da ciência.
Entre essas várias gramáticas possíveis para escrever a pesquisa, encontro Conceição Evaristo (2005) professora doutora em literatura, mulher negra, demarca seu lugar e afetação na minha produção de saber porque situa esse outro lado da história, da produção de conhecimento feito por um corpo negro de uma mulher. A autora descreve a escrevivência como uma forma narrativa de escrita a partir da “vivência de si e dos seus” (Evaristo, 2017, p. 12). As escrevivências são narrativas de mulheres negras escravizadas que tiveram seu corpo-voz tomados pelos escravocratas como objetos de dominação (Evaristo, 2020). Essa forma de violência sexual, física e psicológica implicou silenciamentos, apagamentos de histórias. São nessas leituras sobre a escrevivência que penso na proposta teórico-metodológica da escre que se refere a escrita, diali situando a diálise e vivência a minha vivência da diálise e de outros/as pessoas que COM-partilham dessas mesmas formas de viver e existir que a minha.
Marília em sua escuta
Me acolheu para seguir em frente,
Na luta contra o capacitismo
Que na universidade exclui o corpo diferente.
O encontro com a escrevivência
Me ajudou a compreender,
Que é possível escrever sobre os processos
Tornando-os ciência e saber.
Escrevivência é outra ciência
São pedaços de processos,
Escritos entre dores
Para resistir aos retrocessos.
No mundo hei de ver
O capacitismo ser borrado,
Pelas escrevivências de outros corpos
Que tentaram ser apagados.
Conceição Evaristo escreveu
Sobre vozes que foram silenciadas,
A escrevivência é minha esperança
De outras histórias serem contadas.
É pela minha dialivivência
Que quero narrar minha história,
Contando ao mundo
O que carrego na memória.
Segundo Pecil Neves, Ricardo Sesso, Fernando Thomé, Jocemir Lugon e Marcelo Nascimento (2020) na população brasileira existiam 133.464 brasileiros em diálise. conforme os dados do Censo Brasileiro de Diálise (realizado em 2018) pela Sociedade Brasileira de Nefrologia (SBN). O estado de Alagoas onde resido foi um dos estados com maior número de renais crônicos com 865 pacientes, ficando atrás do Distrito Federal com 931 pacientes e Rondônia com 874 pacientes. No ano de 2006, eu me tornava um desses tantos mil renais crônicos no Brasil.
De acordo com Francy de Souza, Wellison Pereira e Elizângela Motta (2018) a hemodiálise é descrita como um tratamento feito por uma máquina que realiza o processo do funcionamento dos rins de filtrar e limpar o sangue, assim, a máquina realiza a função renal que o órgão da pessoa em adoecimento não consegue fazer. A máquina filtra e retira do organismo as substâncias residuais que comprometem a saúde do adoecido, como o alto nível de sódio e excesso de líquido no corpo. Além disso, o tratamento dialítico ajuda no controle da pressão arterial e contenção dos níveis de sódio, potássio, ureia e creatinina.
Essa descrição traz os termos técnicos, quando iniciei o tratamento aprendi após alguns anos em uma conversa com umas das médicas que a hemodiálise é uma forma de tratamento paliativo, no sentido de que quando o paciente se torna um renal crônico, não existe uma cura, nem um método curativo, então as formas terapêuticas paliativas que dão continuidade de vida são a diálise e o transplante renal (Cordeiro, Rossetti, Duarte, Moriya, Terçariol, & Ferreira, 2016). Na diálise é possível realizar a filtragem dos resíduos indesejáveis no sangue, por meio de uma máquina, assim, ela funciona como um rim artificial no paciente, para suprir a função que seus rins não fazem o tratamento tem a duração de 4 horas, durante três vezes na semana. O tratamento é realizado através de duas formas, uma é o acesso por via de um cateter central, e a outra, através da fístula arteriovenosa, onde é feita uma ligação com a artéria e uma veia no braço do paciente, que por via de duas punções arteriovenosas é realizado o tratamento Cordeiro et al., (2016). Quando a pessoa é acometida pela DRC, - e esse verbo cai bem aqui, porque o seu significado fala sobre ser atacado, ameaçado, abalado, afetado, o termo é tão marcante quanto o impacto do adoecimento, a primeira forma de iniciar o tratamento, é por via do cateter, pois assim é inserido o acesso central. Após exames de raio-X para visualizar se está em posição que não afete outros órgãos do paciente, já é possível iniciar a sessão de hemodiálise Cordeiro et al., (2016).
Em 21 de agosto de 2006 a minha primeira sessão de hemodiálise me aguardava e eu nem sabia. Dias antes do diagnóstico da DRC, meu corpo vinha sendo marcado por sintomas incomuns para uma criança de oito anos, inchaço em todo corpo, pressão arterial elevada, além de uma infecção urinária. Esses sintomas me levaram a doze dias de internação no hospital da Santa Casa de Misericórdia de Maceió, e fizeram com que a equipe médica chegasse ao diagnóstico da minha falência renal, necessitando assim, iniciar a hemodiálise.
Como se conta a uma criança de oito anos que seus rins não funcionam? Pois bem, também não sei, não há um manual na vida para isso, tampouco uma preparação para que ela esteja pronta para as mudanças que vão ocorrer em sua vida. Então no dia 21 de agosto de 2006, lembro-me de estar na enfermaria e minha mãe que estava comigo desde o início, disse que eu precisava ir fazer uma ultrassonografia, na época, eu já sabia como era realizado esse exame, como não faria nenhum medo, ela havia dito que eu poderia ir acompanhado pela enfermeira, sem ser necessário que ela fosse. Alguns minutos depois, quando cheguei à sala para fazer a “ultrassonografia”, a técnica de enfermagem falou sem delongas “você não vai fazer ultrassonografia, vai colocar um cateter para fazer hemodiálise”. O que você acha que eu fiz? Muitos berros e gritos de “quero a minha mãe”.
Aquele dia ficou marcado
Até hoje na minha história,
O encontro com o adoecimento
Que marcou minha trajetória,
Era uma tarde de sexta-feira
Nunca esqueci essa memória.
Já se passava onze dias
Em que eu estava hospitalizado,
Tinha vindo de Paulo Jacinto
Com o xixi avermelhado,
Em Maceió na Santa Casa
No Irmã Inocência fui internado.
Na pediatria daquela Unidade
Conheci outras crianças,
Sobreviventes do adoecimento
Suas marcas e mudanças,
Colorir vários desenhos
Era parte da nossa esperança.
A primeira amiga que conheci
Tinha cabelos lisos ondulados,
Falava rindo a todo tempo
Andava para todos os lados,
Conversávamos o tempo todo
Só dormir para nos deixar calados.
Essa outra amiga
Que amava comer,
Detestava o que a diálise
Tinha lhe impedido de fazer:
Comer tudo o que queria
Miojo vivia a esconder.
Tinha uma outra amiga
Tímida que amava louvar,
Era da igreja evangélica
Hinos nos ensinava a cantar,
Essas três são amigas
Que um dia espero encontrar.
Na época eu era um menino
Com oito anos de idade,
Não sabia muita coisa
Brincar era minha felicidade,
Não esperava aquele encontro
Que mudaria minha realidade.
Eu era um menino saudável
Cabelos castanhos e fortinho,
Negro, colecionava Power Ranger
Mãe diz que eu era “marrudinho”,
A hemodiálise já fazia parte
Da minha família no caminho.
Esse nome hemodiálise
Minha mãe até conhecia,
Seu irmão, meu tio
Toda semana, a diálise ele fazia,
Mainha não imaginava
Que ela seria nossa companhia.
Era dia vinte e um de agosto
Outra manhã de internamento,
Minha mãe apreensiva
Não esperava aquele momento,
Fui colocar o cateter
Para iniciar o tratamento.
Na sala para fazer o exame
A enfermeira fui perguntar:
Onde está a máquina de ultrassom?
Os instrumentos estava a estranhar
Imediatamente ela respondeu:
Vamos colocar cateter pra você dialisar.
Naquele instante eu não sabia
O que dizer, o que falar,
Indefeso abri a boca
Aos gritos comecei a chorar,
“Eu quero a minha mãe”
Foi o canto que passei a ecoar.
Ninguém havia me explicado
O que ia acontecer,
Muito menos hemodiálise
Nem que ela eu ia fazer,
A resposta da enfermeira
Só piorou o meu sofrer.
Com muito choro e muito grito
Minha mãe veio me acalmar,
A psicóloga e a doutora
O procedimento nos foi explicar,
Passo a passo do cateter
E o que era dialisar.
Um dos afetos importantes
Que guardo daquele dia,
Foi a doutora segurar minha mão
Em meio a minha agonia,
Dizendo que naquele momento
Ela seria minha companhia.
Seu gesto de acolhimento
Nela me fez confiar,
Após colocar o cateter
Fui para a sala dialisar,
Não sabia que por muitos anos
Cotidianamente, ali iria estar.
Já são dezesseis anos
Dessas minhas dialivivências,
Das vivências da diálise
Tenho produzido ciências,
Na psicologia tenho embarcado
Em narrativas e suas vivências.
Aqui deixo a minha escredialivivência, também vivenciada por outros/as brasileiros/as que semanalmente têm seus corpos atravessados com a rotina de ida ao hospital, punção arteriovenosa ou cateter, mudança alimentar e impactos psicológicos pelos atravessamentos da diálise. Pesquisas (Hagemann, Martin, & Neme, 2018; Oliveira et al., 2016; Schmidt, 2019) apontam que diversas pessoas com DRC sofrem de problemas psicológicos como depressão e transtornos de ansiedade em virtude do tratamento de hemodiálise, visto que, durante o processo de adoecimento, somos marcados por diversas mudanças peculiares que podem influenciar a forma como compreendemos e determinamos a nossa existência.
Depois de anos sem refletir sobre esse trauma, sobre essa marca no início do meu diagnóstico, que a priori foi sem nenhuma humanização para se contar a uma criança de 8 anos que iria fazer hemodiálise, em uma conversa com uma mestranda de Marília Silveira, Karla Karoline Viana (psicóloga que trabalhou em uma clínica de hemodiálise com crianças e me ajudou a pensar a práticas de humanização nesse meu trabalho), falei que não havia um manual para se dar aquela notícia a uma criança, mas sua resposta e vivência de ter compartilhado aquela cena com outras crianças, foi bem diferente do que eu vivi: “Lá onde eu trabalhava tínhamos uma boneca que no seu corpo, os órgãos saiam, então eu explicava que aquele órgão, o rim, não estava fazendo o seu trabalho no corpo e por isso ela/ele precisa fazer aquele procedimento para ficar bem”. Sem dúvidas, se meu encontro com a diálise tivesse sido dessa forma, aquela vivência de gritos e muitas lágrimas teriam sido bem diferentes. Ela continuou “é, não existe um manual, mas existe empatia, existem diretrizes do SUS de um cuidado humanizado para se chegar ao paciente e contar as coisas”, me disse.
No caminhar enquanto pessoa com deficiência, pessoa com doença renal crônica, estudante de psicologia, homem negro e cordelista pensar a escredialivivência enquanto aposta teórico-metodológica para aleijar a psicologia é buscar trazer o corpo-voz de outros/as pessoas com doença renal crônica a partilharem suas vivências em pesquisas feitasCOM e também por pesquisadores/asCOM, como escrevo nesse trabalho.
Assim me situo, embarcado por Erika Oliveira, Yasmin Silva e Maria Laura Bleinroth (2021) nesse lugar de pesquisador monstruoso e desobediente epistêmico, embarcado por Monique Brito (2021) nas epistemologias nordestinas, embarcado por Mia Mingus (2011) em direção ao feito para COMpor minhas apostas teórico-metodológicas escritasCOM - embarcado por Marcia Moraes e Alexandra Tsallis (2016) - as minhas escredialivivências - embarcado por Conceição Evaristo (2005) - e os meus dialiversos. Começo pela minha história, para que outras também futuramente possam ser contadas, embarcadas por este artigo.
QUEBRAS ÀS NOSSAS EPISTEMOLOGIAS DO CAMPO PSI: O QUE O DIALISAR NOS ENSINA SOBRE ISSO?
Em um dos encontros de orientação com Marília Silveira, pensamos juntos ao que nos embarcou sua amiga Ester Mambrini quando a questionou se conhecia a etimologia da palavra diálise. Dia significa “através de” e lise significa “quebra”, então a sustentação dessa metodologia da escredialivivência é uma escrita através da quebra de uma vivência. Quebra no sentido de um corte abrupto, uma mudança, como se dá ali quando me encontro com Camila e sou embarcado no pesquisarCOM. Foi uma quebra de vida quando recebi o diagnóstico lá em 2006, foi uma quebra de vida quando já estudando psicologia me encontro no lugar político da deficiência. Foi outra quebra de vida do lugar político quando me afirmei um homem negro, produtor de conhecimento e sujeito epistemológico.
No pesquisarCOM pensamos essas quebras, produzimos rupturas e deslocamentos, quando Moraes e Tsallis (2016) nos apontam que para fazerCOM e tecer as linhas que COMpõem a pesquisa, uma das formas de afirmar o COM dessas outras gramáticas da escrita acadêmica, é contar não apenas uma, mas muitas histórias. As histórias da deficiência por vezes estão carregadas por reproduções do pensamento capacitista, do déficit ou da falta. As histórias da deficiência estão também marcadas pelo desengano, pela impossibilidade ou também pelo “heroísmo” das superações cotidianas de se ser uma pessoa com deficiência em um mundo criado para a corponormatividade (Mello, 2016). Contar muitas histórias, nesse caso, consiste em contar processos, complexificar realidades, tatear mais, errar no sentido da errância, caminhar junto, dar as mãos, sentar ao lado.
Embarcado a proposição de Marília Silveira e Josselem Conti (2016) considero que ao apostar nessas muitas narrativas, abrimos brechas para problematizar as únicas histórias sobre a cegueira e a loucura, e aqui acrescento eu, através da escredialivivência, problematizar as únicas histórias sobre a diálise. Essas únicas histórias são apontadas por Conti (2015, p. 14) como histórias que acabam perdendo suas ligações, são histórias que se desconectam dos espaços que foram realizadas e terminam produzindo conceitos e categorias que se tornam universais. Contar histórias é também conectar coisas, pessoas, ideias, histórias. Em contraponto às únicas histórias, Conti (2015, p. 15) nos embarca a pensar nas histórias únicas, que são tecidas por subjetividades, com aberturas que permitem outras versões a respeito do outro. Assim, problematizar e pensar essas únicas histórias sobre a cegueira, sobre a loucura (Silveira & Conti, 2016) e sobre diálise, nos permite através do pesquisarCOM, do escreverCOM e da escredialivivência, COMpor narrativas que povoam o mundo com dialiversos, dialivivências com outras partículas de histórias, de outros olhares
No lugar que o capacitismo
Histórias tenta apagar,
PesquisarCOM é aposta
Na ciência, histórias contar,
Do perceber sem ver 1
Para a psicologia aleijar.
Para COMpor essas rupturas na psicologia e na universidade, vamos pensar no processo da diálise. Na diálise, a máquina faz o processo de um rim artificial que o meu rim orgânico não faz. Nela, todo o meu sangue é filtrado por esse rim artificial para remover o excesso de líquido que fica retido no meu corpo, assim como as substâncias tóxicas. A falta da diálise pode corroborar para que toxinas como o potássio, o fósforo, a uréia e creatinina, quando não filtradas, me façam passar mal.
Quando propomos dialisar a psicologia e a produção de conhecimento, esse movimento da diálise, dessa quebra, nos faz pensar em epistemologias que nos possibilitem fazer essa separação do que é tóxico na vida, na universidade e na sociedade. Podemos pensar como toxinas que produzem mal-estar: o machismo, a homofobia, o racismo, o capacitismo. Essas toxinas, sem serem dialisadas, filtradas, sem essa quebra da diálise, elas terminam apagando existências, produzindo mal-estar físico, psicológico e social. Por isso, dialisar para nós é verbo, a escredialivivência é metodologia e o dialiverso uma de suas expressões.
Para contar histórias através da escredialivivência, narradas com o dialiverso, nos apropriamos de um fazerCOM (Moraes, 2010) para não reproduzir pesquisas e escritas sobre o olhar de deus (Haraway, 1995), tampouco um único lado da história (Conti, 2015). No pesquisarCOM, Moraes e Tsallis (2016) quanto ao contar histórias de vidas marcadas pela cegueira, apontam o escreverCOM enquanto uma forma de se comprometer politicamente e epistemologicamente com as pessoas COM quem pesquisamos. Compromisso este que acontece no encontro, que se torna um laço de luta para combater e colocar em evidência, qualquer narrativa que se afirme não marcada (Moraes & Tsallis, 2016).
Silveira e Conti (2016) afirmam do que é feita essa escrita do outro lado da história, uma escrita COMposta pela experiência, do verbo experienciar. Essa experiência, Jorge Larrosa Bondía (2002) descreve como “o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca” (p. 21). No curso de psicologia, me encontro com essas proposições e me formo nessas apostas desobedientes para pesquisarCOM, escreverCOM, as minhas e outras escredialivivências e dialiversos que me passam, me tocam e me acontecem.
A proposta de escreverCOM
Se compromete com histórias,
Narrativas construídasCOM
Através de afetos e memórias,
Que o capacitismo tenta apagar
Excluindo corpos-trajetórias.
Na escrita do escreverCOM
O pesquisarCOM vai se comprometer,
A contar vivências particulares
Narradas do perceber sem ver,
Possibilitando outras formas
De no mundo se perceber.
A PSICOLOGIA QUE EU PENSAVA: SAÚDE MENTAL PARA QUEM?
Como mencionei no início desse artigo, quando ingressei na psicologia, desde o meu primeiro período, tive o interesse em pesquisar sobre a saúde mental de pacientes renais crônicos, saber como além das afetações físicas, se caracterizavam as afetações psicológicas que marcam esses/as pacientes, afetações essas que também me marcavam. Nesse período ainda não tinha sido embarcado no pesquisarCOM, nem nas escrevivências, ainda pensava em uma metodologia de pesquisa escrita SOBRE as pessoas com insuficiência renal crônica em diálise e não uma escrita COMposta por elas. Minha escolha de cursar psicologia iniciou sendo uma admiração pelo fato dela conseguir ajudar cada ser humano, em cada uma de suas complexidades. Inclusive por ter me ajudado em meus processos das quebras do dialisar com o diagnóstico, a mudança de rotina, a mudança na alimentação, nas minhas dialivivências.
Algumas noções e inquietações com o olhar de deus (Haraway, 1995) na ciência e na própria Universidade, só vim perceber enquanto estudante de psicologia e não como uma pessoa com deficiência. Embora me afirmasse uma pessoa com deficiência, pessoa com insuficiência renal crônica em diálise, muitas vezes eu não me sentia pertencente desse lugar. Coube-me aqui, depois de longos anos, refletir sobre quem eu era, não só o Leonardo, mas o Leonardo pessoa com insuficiência renal crônica em diálise, o Leonardo pessoa com deficiência. Compreender que uma dessas partes do Leonardo, não está desligada das outras, mas que todas elas estão em um só, no meu corpo. Portanto quando produzo conhecimento é um conhecimento produzido por um homem negro, nordestino, com deficiência, quando sofro uma violência, é um homem negro, nordestino com deficiência que a sofre. Foi assim que compreendi o conceito de interseccionalidade (Collins & Bilge, 2021) na carne de minha própria experiência. Nesse meu corpo que é sujeito, que é pessoa com insuficiência renal crônica em diálise, que é uma pessoa com deficiência. Martins (2009) explica que a deficiência não está deslocada do corpo da pessoa com deficiência, mas que a deficiência está ligada a subjetividade, a existência do sujeito.
Esse outro lado da história, que Martins (2009) nos faz pensar e refletir, dialoga com o que aposta a metodologia do pesquisarCOM. Nos convocando a escrever histórias, partilhar vivências e narrar mundos em que a experiência de ser pessoa com deficiência não está deslocada do sujeito, mas queCOMpõe sua subjetividade. Esse lado da história, de epistemologias desobedientes, feitasCOM, problematiza e questiona a Universidade enquanto um lugar para todos/as.
Na metodologia do pesquisarCOM
Encontrei uma psicologia,
Que tece cuidado e acolhimento
Dessa excluída minoria,
Que escreveCOM outros/as
Histórias do dia a dia.
Pude através da escrevivência
Outra psicologia encontrar,
Situada em narrativas
Que a fala de si ecoa em lar,
Histórias de muitos outros/as
Que ninguém pode apagar.
Dessas metodologias desobedientes
Situo a minha escredialivivência,
Com as rimas do dialiverso
Versando para tecer ciência,
FeitaCOM esses corpos
De pessoas com deficiência.
A Universidade me foi prometida como um lugar diverso, plural, que acolhe todos os corpos, um lugar de caminho para realização de sonhos possíveis. Depois da experiência vivida, trazida neste artigo, quero deixar uma pergunta que me inquietou: Como realizar sonhos possíveis sem que eles sejam acessíveis?
Marcia Moraes, Bruno Sena Martins, Fernando Fontes e Luiza Teles Mascarenhas (2017) nos apontam que existe uma redução de pessoas com deficiência no ensino, assim como disciplinas e projetos que discutem essa temática, apesar de que, no país existem políticas educativas de inclusão para o ingresso de pessoas com deficiência na universidade. Isto mostra que sem uma Universidade acessível, não existe nela um lugar para sonhos possíveis.
Uma das coisas a qual o pesquisarCOM nos convoca, é a nos engajar nas lutas para tecer rupturas e criar e povoar mundos. Durante a pandemia da Covid-19 (com dois anos de ensino remoto) uma das pautas mais discutidas nas reuniões do colegiado do curso de psicologia da Universidade Federal de Alagoas foi as dificuldades que os/as alunos/as com baixa visão e cegos estavam tendo para receber materiais acessíveis, o motivo: alguns docentes comprometidos com essa psicologia plural, com essa universidade para todos/ as não estavam disponibilizando os conteúdos com acessibilidade. Numa reunião dessas foi proposto pela direção do curso fazer oficinas de acessibilidade quando interrompi a proposta dizendo a um dos docentes: “Professor, a ideia de oficinas é bem importante. Contudo, se estamos fazendo uma psicologia inclusiva, é importante também incluir em nossas discussões e ementas de disciplinas a temática do capacitismo, porque não fazer entrega de materiais com acessibilidade, é continuar reproduzindo o capacitismo”. Depois da minha fala, a coordenação do curso levanta uma ideia (semelhante a outra já realizada antes, com o tema do combate ao racismo): “vamos fazer uma carta-compromisso anticapacitista”! Com o término da reunião foi montada uma comissão com docentes e discentes (algumas pessoas com deficiência) para a escrita dessa carta compromisso do Instituto de Psicologia por uma psicologia anticapacitista.
Eu poderia dizer que a escrita da carta compromisso por uma psicologia anticapacitista aconteceu, que em algumas disciplinas houve a discussão da deficiência (essa parte e só essa foi verdade). Em nossa primeira reunião para elaboração da carta (digo nossa, porque me dispus a compor a comissão), quando discorri sobre a ausência das discussões sobre o capacitismo em nossa formação, uma docente mencionou que o termo “capacitismo” se tratava de um modismo das novas discussões e que ele já vinha sendo discutido na psicologia há muito tempo com outros nomes. Pois bem, a verdade é que a existência sobre acessibilidade no curso de psicologia só vem aparecer no Projeto Político-pedagógico do Curso (PPC) de Psicologia do ano de 2013, no que se refere aos últimos planos de 1998 e 2006 o termo deficiência parece voltado ao compromisso da prática psi no atendimento dessas pessoas. Ali falar sobre capacitismo não se tratava (nem se trata até hoje) de modismo, mas de resistir aos apagamentos e exclusões que as pessoas com deficiência vivenciam na universidade.
Na universidade, no curso de psicologia, depois de interpelar professora Marília Silveira com essas questões que não estavam colocadas no PPC do curso, tampouco nas disciplinas a respeito da saúde mental das pessoas com deficiência, após ser embarcado nas apostas teórico-metodológicas do pesquisarCOM e da escrevivência, passei a COMpor meus trabalhos situados nessas metodologias e pautando essas questões em outras disciplinas.
O primeiro desses trabalhos foi na disciplina de Processos Grupais II, nosso tema de oficina era pensar uma proposta de intervenção voltada à autoimagem de pessoas com deficiência auditiva e visual, além disso, uma integrante do grupo, a que apresentou os aspectos teóricos da autoimagem, é pessoa com deficiência visual, então pensamos juntos e propomos aos demais relacionar a autoimagem com a deficiência. Para minha surpresa, os artigos que encontramos para fundamentar nossa proposta de intervenção, estavam voltados à arte, sendo ela uma forma de resgatar e ressignificar a autoimagem (Dutra et al., 2018; França & França, 2009). A arte vinha sendo a minha forma de expressar minha escrita em trabalhos criados através da literatura de cordel, do dialiverso.
Outra experiência marcante foi na integração das disciplinas de Práticas Integrativas I e Psicologia das Relações de Trabalho I, onde tivemos a oportunidade de entrevistar alguém cuja prática nos interessasse, ninguém mais veio à minha memória, senão Camila Araújo Alves. Fiz contato pelo WhatsApp com Marília, disse a ela meu interesse, ela falou com Camila e me repassou seu número. Tive o interesse de entrevistar Camila e ouvi-la sobre questões específicas além da entrevista, queria ouvir sua escrevivência enquanto mulher, psicóloga, doutoranda em Psicologia e pessoa com deficiência.
Camila me compartilhou pérolas sobre sua forma de pesquisarCOM, sua prática com a terapia reichiana e seus desafios quanto às questões de acessibilidade que ainda dificultam seu acesso a materiais científicos. Da escrevivência de Camila, pude externar todo meu afeto em um cordel e produzimos uma cartilha acessível sobre tal experiência.
A oportunidade dessa entrevista
Contribuiu para nossa formação,
De conhecer práticas profissionais
Durante nossa graduação.
A entrevista com Camila Alves
Foi de inteira importância,
Conhecer seu trabalho e pesquisa
Foi de grande relevância.
Camila Alves é uma psicóloga
Engajada na luta da deficiência,
Contra todo capacitismo
Que exclui outras existências.
Sua forma de pesquisarCOM
Faz o resgate de outras existências,
Que o capacitismo tenta apagar
Das pessoas com deficiências.
Essa aproximação com a Camila
Foi de grande contribuição,
Para pensar o trabalho da psicologia
Em sua área de atuação.
A escrevivência da Camila borra e desfaz (Evaristo, 2020) os discursos capacitistas que se perpetuaram e perpetuam na sociedade e na academia sobre os corpos das pessoas com deficiência. Seu modo de pesquisarCOM é um ato de resistência contra hegemonias capacitistas que pensam em pesquisar sobre os corpos e não COM os corpos de pessoas com deficiência.
QUESTÕES PARA SE DEIXAR, VERSAR, RIMAR, DIALISAR E ALEIJAR
Enquanto escrevo, enquanto me encontro com esses escritos, um misto de emoções transborda meu peito, olho as marcas da diálise em meu corpo, mas não me vejo mais diferente, não me vejo mais fragilizado, não me vejo mais incapacitado. A escrita, o encontro com um saber científico da escrevivência de Conceição Evaristo (2017), da minha escredialivivência escrita pelo dialiverso e do pesquisarCOM de Márcia Moraes (2010), feitoCOM Mia Mingus (2011), COMposto por mim, traz esperança na contribuição de outros trabalhos que serão feitosCOM pessoas com deficiência e que virão a borrar e desfazer as perspectivas capacitistas da deficiência na sociedade e nos corpos de pessoas com deficiência (Evaristo, 2020).
Escredialivivendo este artigo, revivendo minhas memórias, olhando as marcas no meu corpo, consigo perceber uma comparação da diálise e da terapia. A diálise além de me proporcionar a sobrevivência enquanto aguardo um transplante, em cada sessão ela faz o movimento incrível que os rins fazem. Ela consegue filtrar toda toxina do meu sangue e a cada terça, quinta e sábado que volto lá, ela faz esse mesmo movimento. O fato dela fazer essa filtração, não me deixa isento das vivências e emoções a cada dia, pelo contrário, ela me permite continuar vivendo, apesar de todas outras toxinas que ela precisará filtrar nas minhas idas e voltas à ela, ela me permite dialiviver!
A partir dessa experiência penso na importância do acompanhamento psi para uma pessoa com insuficiência renal em diálise, a terapia possibilita o sujeito se encontrar com essas questões tóxicas da vida que lhe marcam e ajuda a filtrá-las. Nesse filtro não significa que elas irão acabar, mas que é preciso continuar fazendo esse movimento, de ressignificar e viver. Penso que ressignificar os movimentos da vida para um renal crônico, além da diálise, o ajuda a viver, a sonhar, a existir.
Para mim, escreverCOM essas apostas desobedientes não é só produzir ciência, é me sentir ainda mais vivo, é uma forma de contar uma história, de evitar que ela seja esquecida, é fazer da escredialivivência minha forma de ressignificar, borrar e desfazer os discursos do capacitismo que olha o meu corpo, marcado pela diálise, como incapacitado e o deslegitima enquanto sujeito. Entretanto, para muito além da minha deficiência tenho autonomia para estudar, sonhar e com a escredialivivência produzir conhecimento científico feitoPOR e COM uma pessoa com deficiência.
Proponho a escredialivivência
Para pesquisas escrever,
COMpostas por sujeitos/a
Que lhes chegam a responder,