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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.24  São Paulo  2024  Epub 23-Ago-2024

https://doi.org/10.5935/2175-1390.v24e24515 

Dossiê Psicologia e Políticas da Deficiência: Ativismos, aleijamentos e a luta anticapacitista - Artigo

O ENCONTRO COM OS ESTUDOS FEMINISTAS DA DEFICIÊNCIA E A PRODUÇÃO DE NARRATIVAS INSURGENTES

EL ENCUENTRO CON LOS ESTUDIOS FEMINISTAS SOBRE LA DISCAPACIDAD Y LA PRODUCCIÓN DE NARRATIVAS INSURGENTES

THE ENCOUNTER WITH FEMINIST DISABILITY STUDIES AND THE PRODUCTION OF INSURGENT NARRATIVES

MARIVETE GESSER1  , Concepção, Elaboração do manuscrito, Revisões críticas de conteúdo intelectual importante, Aprovação final do manuscrito
http://orcid.org/0000-0002-4091-9754

LAUREANE MARÍLIA DE LIMA COSTA2  , Concepção, Elaboração do manuscrito, Revisões críticas de conteúdo intelectual importante
http://orcid.org/0000-0003-3257-1863

KARLA GARCIA LUIZ3  , Concepção, Elaboração do manuscrito, Revisões críticas de conteúdo intelectual importante, Aprovação final do manuscrito
http://orcid.org/0000-0002-5066-3764

THAÍS BECKER HENRIQUES SILVEIRA4  , Concepção, Elaboração do manuscrito, Revisões críticas de conteúdo intelectual importante, Aprovação final do manuscrito
http://orcid.org/0000-0003-3566-4619

1https://orcid.org/0000-0002-4091-9754 E-mail: gesser.marivete@gmail.com Doutora em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), onde atua como professora do Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFSC e coordenadora do Núcleo de Estudos da Deficiência (NED)

2https://orcid.org/0000-0003-3257-1863 E-mail: laureanelimacosta@gmail.com Psicóloga bolsista na Coordenação de Ações Pedagógicas Especiais da Universidade Federal de Jataí (CAPE/UFJ), colaboradora externa no Laboratório de Educação Inclusiva da Universidade do Estado de Santa Catarina (LEdI/UDESC), doutoranda em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE/USP)

3https://orcid.org/0000-0002-5066-3764 E-mail: karla.drive.15@gmail.com Doutoranda em Psicologia Social também pela Universidade Federal de Santa Catarina (término previsto em dez/2022). Integrante do Núcleo de Estudos da Deficiência (NED/UFSC, desde 2012)

4https://orcid.org/0000-0003-3566-4619 E-mail: thaisbeckersilveira@gmail.com Mestranda em Direito pela Universidade de São Paulo. Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas das Políticas Públicas para Inclusão Social (GEPPIS/USP), da Clínica de Direitos Humanos das Mulheres (CDHM/ USP) e do Núcleo de Estudos sobre Deficiência (NED/UFSC).


RESUMO

O objetivo deste texto é apresentar as contribuições do encontro com os estudos feministas da deficiência para a construção de narrativas insurgentes, comprometidas com a luta anticapacitista. Para tanto, apresentamos brevemente os estudos da deficiência com ênfase nas contribuições das autoras feministas. Em seguida, destacamos as contribuições da justiça defiça (disability justice) para a construção de pessoas politicamente com deficiência. A partir da perspectiva de uma política feminista de escrita localizada (Haraway, 1995), narramos nossos encontros com os estudos feministas da deficiência. Por fim, partindo de nossas vivências e encontros com os estudos feministas da deficiência, apontamos contribuições para a construção de narrativas insurgentes, que coadunam com a produção de novas formas de se relacionar com a deficiência – as quais desafiam o capacitismo estrutural e corroboram a produção de sujeitos políticos. Também defendemos a difusão deste campo no currículo do ensino médio e superior.

Palavras-chave: Pessoas com deficiência; Anticapacitismo; Narrativas insurgentes; Justiça social; Estudos feministas da deficiência

RESUMEN

El objetivo de este texto es presentar los aportes del encuentro con los estudios feministas sobre la discapacidad a la construcción de narrativas insurgentes, comprometidas con la lucha anticapacitista. Para ello, presentamos brevemente los estudios sobre discapacidad con énfasis en las contribuciones de autoras feministas. A continuación, destacamos los aportes de la justicia disca a la construcción de personas politicamente con discapacidad. Desde la perspectiva de una política feminista de escritura situada (Haraway (1995), narramos nuestros encuentros con los estudios feministas sobre la discapacidad. Finalmente, a partir de nuestras experiencias y encuentros con los estudios feministas sobre la discapacidad, señalamos aportes a la construcción de narrativas insurgentes , que en línea con la producción de nuevas formas de relacionarse con la discapacidad - que cuestionan el capacitismo estructural y corroboran la producción de sujetos políticos. Defendemos también la difusión de este campo en el currículo de la enseñanza secundaria y superior.

Palabras clave Personas con discapacidad; Anticapacitismo; Narrativas insurgentes; Justicia social; Estudios feministas de la discapacidad

ABSTRACT

The aim of this text is to present the contributions of the encounter with feminist disability studies to the construction of insurgent narratives, committed to the anti-ableist struggle. To this end, we briefly present disability studies with an emphasis on the contributions of feminist authors. Then, we highlight the contributions of disability justice to the construction of politically disabled people. From the perspective of a feminist politics of situated writing (Haraway, 1995), we narrate our encounters with feminist disability studies. Finally, based on our experiences and encounters with feminist disability studies, we point out contributions to the construction of insurgent narratives, which are in line with the production of new ways of relating to disability - which challenge structural ableism and corroborate the production of political subjects. We also advocate the dissemination of this field in the secondary and higher education curriculum.

Keywords People with disabilities; Anti-ableism; Insurgent narratives; Social justice; Feminist disability studies

INTRODUÇÃO

Este artigo foi escrito durante o ano de 2022, e revisado em 2023, pelas quatro autoras. Antes de sua publicação, em 17 de outubro de 2023, Laureane faleceu. É preciso que isso seja dito e escrito, também para que não seja esquecido. Como escrevemos (Karla e Thais) com Mariana Rosa, em carta lida e circulada em diferentes espaços, Lau morreu em decorrência da falta de uma política pública do cuidado. Morreu porque se atreveu a viver e a sonhar. Não temos mais tempo para lamento, não haverá descanso enquanto não for implementada uma política pública do cuidado. Laureane presente!

Quais os efeitos do encontro com os estudos feministas da deficiência para a constituição da pessoa com deficiência como sujeito político, comprometida com a luta anticapacitista? De que forma esse campo de conhecimentos contribui para que “pessoas descritivamente com deficiência” se tornem também “politicamente com deficiência” (politilly disabled)1? O que podem os estudos feministas da deficiência na produção de novos posicionamentos políticos relacionados à deficiência (que rompam com o capacitismo e que não somente acolham, mas celebrem a deficiência)? Essas foram algumas das perguntas que nos instigaram a escrever este artigo, que é assinado por quatro mulheres com deficiência, todas pesquisadoras comprometidas com a luta anticapacitista.

A inspiração para escrevermos coletivamente este texto emerge de nossas percepções sobre os efeitos do encontro com o campo dos estudos feministas da deficiência para a transformação de nossas formas de nos relacionar com a deficiência, com as práticas voltadas a essa população, e com a construção de sujeitos políticos. Embora apostemos na potência dos estudos feministas da deficiência para a construção do sujeito político e fortalecimento da luta anticapacitista, acreditamos que esse processo não se faz de forma solitária, mas no encontro com muitas/os outras/os, por meio de estratégias de coalizão. O conhecimento dos estudos feministas da deficiência e dos direitos previstos na legislação brasileira sobre a deficiência, embora fundamentais para a emancipação das pessoas com deficiência, não garante a elas a plena participação social. Isso porque, em contextos fortemente atravessados pelas narrativas capacitistas, pessoas com deficiência são posicionadas como incapazes e aviltadas de seus direitos. Ademais, consoante às observações de bell hooks (2013) acerca de sua prática pedagógica engajada a transgredir os limites impostos pelo patriarcado capitalista de supremacia branca e – acrescentamos – corponormativa, a tomada de consciência das opressões que nos atingem produz frustração, raiva e tristeza. Cientes disso e, também, de que não há outra possibilidade de libertação coletiva a não ser pela reflexão crítica da realidade e pela escolha de desafiar o status quo, hooks nos indica que é necessário sustentar o desconforto emocional inicial ao passo que buscamos maneiras criativas de cruzar fronteiras para, então, nos reconhecer como agentes capazes de alterar os ambientes opressivos nos quais nos inserimos. Nosso encontro com os estudos feministas da deficiência nos leva a cruzar fronteiras, enquanto nosso encontro com as experiências umas das outras nos posiciona a acreditar em nossa capacidade de produzir fissuras na estrutura capacitista.

Escrevemos esse artigo tendo como fundamento os estudos feministas da deficiência, que integram um conjunto de autoras/es que vêm inserindo as contribuições das teorias feministas nos estudos da deficiência, complexificando as análises da experiência da deficiência. Partimos do pressuposto de que o encontro com o campo dos estudos feministas da deficiência produz novas formas de se relacionar com a deficiência, as quais desafiam o capacitismo estrutural por meio da produção de aleijamentos no modo de compreender a deficiência e da produção de sujeitos políticos. Ademais, esse campo tem a potência de produzir percepções outras da deficiência, as quais fissuram o que, sob a narrativa capacitista, é considerado o sujeito típico, instituído como a norma. Isso porque os estudos feministas da deficiência tensionam as narrativas que, sob a égide do capacitismo, patologizam e medicalizam corpos com deficiência. Acreditamos que romper com o capacitismo é condição fundamental para a reinvenção da cidade, das relações com os corpos que lá habitam (ou reivindicam habitar), para a invenção de novos possíveis (outros modos de construção de tempos, espaços e formas de se relacionar com a deficiência). Por fim, entendemos que o encontro com os estudos feministas da deficiência se caracteriza como um bom encontro que, conforme apontam Andre Strappazzon e Kátia Maheirie (2016), a partir das considerações de Gilles Deleuze sobre a obra de Baruch de Espinosa, acontece quando “corpos se compõem de tal forma que a partir de sua relação há um aumento de potência, e, por consequência, um aumento da capacidade de existir” (p. 118).

A literatura tem mostrado que a deficiência vem sendo, majoritariamente, contada a partir da perspectiva fortemente marcada pelo modelo biomédico, que associa a deficiência à tragédia pessoal (Oliver, 1990) decorrente de uma patologia e que coloca as pessoas com deficiência como dignas apenas de serviços médicos voltados à cura/normalidade (Diniz, 2007; Maior, 2017; Mello, Nuernberg, & Block, 2014; Moraes et al., 2017). Nas situações em que as pessoas com deficiência, por mais que se submetam a tratamentos médicos, não conseguem atingir a normalidade, há um entendimento predominante de que essas devam receber ações de caridade (Gesser et al., 2019; Lanna, 2010; Maior, 2017), reproduzindo o que Chimamanda Ngozi Adichie (2019), referindo-se à visão estereotipada e incompleta que o Ocidente tem da Nigéria, nomeou como ‘o perigo de uma história única’. Para a autora, “a história única cria estereótipos, e o problema com os estereótipos não é que eles sejam mentira, mas que eles sejam incompletos. Eles fazem com que uma história seja uma única história” (Adichie, 2019, p. 26). Como verificaremos de forma mais aprofundada no tópico seguinte, a conceituação de deficiência, proposta pelos estudos feministas da deficiência, rompe com a história única da deficiência – apresentando elementos para a compreensão dessa experiência como múltipla, interseccional, circunscrita em um contexto social e político. Marcia Moraes e Alexandra Tsallis (2016), contrapondo-se à história única, argumentam que é necessário contar histórias múltiplas e diversas para povoar o mundo com narrativas outras da deficiência, que rompam com a noção de déficit. A partir do diálogo com a noção de narrativas insurgentes de Bruno Martins (2010), entendemos que o encontro das pessoas com deficiência em movimentos de luta por direitos, sendo esses pautados no princípio feminista de que o pessoal é político (hooks, 2020), é fundamental para fortalecer a luta anticapacitista.

Nossas pesquisas e vivências vêm apontando também que as contribuições dos estudos feministas da deficiência têm o potencial de corroborar a produção de sujeitos questionadores da narrativa capacitista e engajados em movimentos voltados ao fortalecimento coletivo e à luta por direitos. Destacamos o estudo realizado por Ivanovich e Gesser (2023) sobre a construção de um Conselho de Direitos em uma cidade do Vale do Itajaí, no estado de Santa Catarina. As autoras identificaram que o estudo coletivo do livro O que é deficiência, de Debora Diniz (2007), e da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Lei Federal n° 13.146/2015) mobilizou um coletivo constituído por pessoas com e sem deficiência a reivindicar a implementação de um conselho de direitos naquela cidade, bem como instrumentalizou a luta por justiça social. Assim, a difusão de narrativas outras sobre a deficiência – que não seja a da tragédia, vinculada ao modelo médico – contribuiu para que pessoas com deficiência, na coletividade, rompam com o processo de homogeneização cultural que, sob a égide da capacidade corporal obrigatória (McRuer, 2021), e da política da aparência (Garland-Thomson, 2002), apaga a deficiência do espaço público.

Do ponto de vista metodológico, a escrita desse artigo se deu a partir da perspectiva de uma política feminista de escrita, a qual, em consonância com o pensamento de Donna Haraway (1995), parte do pressuposto de que a produção do conhecimento é parcial, localizada e corporificada2. A autora destaca que apenas a perspectiva parcial possibilita uma visão objetiva, uma vez que “todas as narrativas culturais ocidentais a respeito da objetividade são alegorias das ideologias das relações sobre o que chamamos de corpo e mente, sobre distância e responsabilidade, embutidas na questão da ciência para o feminismo” (Haraway, 1995, p. 21). Assim, “A objetividade feminista trata da localização limitada e do conhecimento localizado, não da transcendência e da divisão entre sujeito e objeto” (Haraway, 1995, p. 21). Ademais, Haraway faz uma crítica às perspectivas presentes na escrita acadêmica que se afirmam imparciais e não localizadas, uma vez que só é possível conhecer a partir de algum lugar (localização). Em outras palavras, “na ciência todo olhar é situado, tecido a partir de conexões e mediações que fazem certos mundos visíveis e deixam outros na sombra” (Moraes & Tsallis, 2016, p. 5).

O CAMPO DOS ESTUDOS DA DEFICIÊNCIA E A CONTRIBUIÇÃO DAS AUTORAS FEMINISTAS

O campo dos estudos da deficiência surgiu por volta de 1970, como decorrência das lutas políticas das pessoas com deficiência nos anos de 1960 e 1970, e visou produzir uma virada conceitual na compreensão da deficiência, a qual deixou de ser circunscrita à noção de tragédia pessoal decorrente de se ter um corpo com impedimentos (Barnes, 2012; Oliver, 1990) e se tornou uma questão de direitos humanos (Diniz, 2007; Gesser et al., 2012; Mello & Nuernberg, 2012). Os estudos da deficiência surgiram com uma perspectiva baseada no materialismo histórico (Barnes, 1999; Oliver, 1983, 1990), com destaque para o modelo social da deficiência. Os precursores desse campo, na sua maioria, homens brancos com deficiência física do norte global3, visando subverter a histórica associação da deficiência com a noção de fardo social e de vida não digna de ser vivida (Lifton, 1986; Shakespeare, 2018), buscavam se distanciar de questões centrais aos feminismos, como cuidado, dependência, interdependência, a experiência da dor e a transversalidade da deficiência com outros marcadores sociais da diferença.

A partir do final dos anos 80 e início dos anos 1990, o campo dos estudos da deficiência contou com importantes contribuições da epistemologia feminista (Asch, 2004; Fine & Asch, 1988; Garland-Thomson, 2002; Kittay, 1999; Mello, Nuernberg, & Block, 2014; Morris, 1991; Wendell, 1996). Dentre essas contribuições, destacamos o entendimento da deficiência como uma categoria de análise constitutiva da subjetividade (Garland-Thomson, 2002; Mello & Nuernberg, 2012) e da interseccionalidade da deficiência com os marcadores sociais como os de raça, gênero, sexualidade, geração, território e classe social (Fine & Asch, 1988); a crítica à noção de independência e defesa da dependência e da interdependência como inerentes à condição humana (Kittay, 1999; Gesser & Fietz, 2021); a compreensão do cuidado como uma prática social que deve ser valorizada e remunerada (Kittay, 1999; Gesser & Fietz, 2021) e como um direito humano fundamental para aquelas pessoas com deficiência em situação de dependência complexa (Gesser, Zirbel, & Luiz, 2022), cuja manutenção da vida depende dessa prática; a deficiência como uma experiência encarnada (Hughes, 2008; Morris, 1991) e a importância de visibilizar a dor como constitutiva da experiência da deficiência (Crow, 1996; Wendell, 1996).

O diálogo dos estudos da deficiência com a teoria queer (Kafer, 2013; McRuer, 2021) tem sido muito profícuo e culminou na emergência da teoria crip. Essa teoria estabelece relações entre os sistemas de capacidade corporal obrigatória (compulsory able-bodiedness) e heterossexualidade compulsória (compulsory heterosexuality), destacando que o primeiro, de certo modo, produz a deficiência e o segundo produz o queer. Ambos os sistemas se disfarçam como “a ordem natural das coisas” e são fundamentais para a reprodução do capitalismo neoliberal (McRuer, 2006). Além disso, a teoria crip oferece elementos para que as pessoas com deficiência possam resistir ao processo de homogeneização cultural que insiste em apagá-las por meio dos processos de normalização. Por fim, essa teoria tem apresentado importantes contribuições na direção da produção dos tempos crip e da necessidade de se imaginar futuros com a deficiência (Kafer, 2013).

Outra teoria muito importante para os estudos da deficiência é a da disability justice (Sins Invalid, 2019), traduzida no Brasil por Anahi Mello e Helena Fietz (Mello, Fietz, & Rondon, 2021) como justiça defiça4. As autoras vinculadas à justiça defiça apresentam 10 princípios que têm como fundamento central o pressuposto de que ninguém deve ser deixado para trás. São eles: (a) interseccionalidade; (b) liderança dos mais afetados; (c) anticapitalismo; (d) solidariedade entre diferentes causas e movimentos ativistas; (e) reconhecimento dos indivíduos como pessoas inteiras; (f) sustentabilidade; (g) solidariedade entre diferentes deficiências; (h) interdependência; (i) acesso coletivo; e (j) libertação coletiva. Gesser, Zirbel e Luiz (2022) destacam que esses princípios são fundamentais para a construção de uma sociedade comprometida com o acolhimento de pessoas com corporalidades múltiplas. Ademais, os princípios se complementam e fomentam a coalizão entre as pessoas com deficiência e delas com as aliadas da luta anticapacitista.

Acreditamos que o campo dos estudos feministas da deficiência, por ter surgido do ativismo defiça e, por ter produzido efeitos para além da academia – tendo, por exemplo, muitas de suas premissas incorporadas à Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência CDPD) (Decreto Federal n° 6.949, de 25 de agosto de 2009)5 –, apresentam um importante potencial para transformar as pessoas com e sem deficiência que dele se apropriam. Consideramos relevante que esse campo cada vez mais seja difundido tanto na formação de profissionais de diferentes áreas, como também que ele chegue nas comunidades onde as pessoas com deficiência estão inseridas como uma narrativa que faça frente ao capacitismo que está fortemente institucionalizado na vida social.

A CONSTRUÇÃO DE PESSOAS POLITICAMENTE COM DEFICIÊNCIA COMO ESTRATÉGIA PARA FORTALECER A LUTA ANTICAPACITISTA

O fortalecimento da luta anticapacitista demanda, entre outros elementos, a compreensão da deficiência como uma categoria política, que produz efeitos em todo o tecido social. Essa é marcada pela opressão pelas barreiras e pela legitimação dos privilégios às pessoas com corpos lidos como capazes. Tal compreensão, por sua vez, foi construída a partir da luta de pessoas com deficiência (Campbell, 2009; Taylor, 2017).

Mia Mingus (2011) oferece importantes elementos para compreender o processo pelo qual pessoas com deficiência se tornam sujeitos políticos, com uma análise crítica sobre capacidade, poder, privilégio, e como se sentem conectadas e solidárias com outras pessoas com deficiência. A autora diferencia pessoas “descritivamente com deficiência” (descriptively disabled) e “politicamente com deficiência” (politically disabled). O primeiro grupo se refere àquelas pessoas que, embora tenham a experiência vivida de serem pessoas com deficiência – sabem como é usar uma cadeira de rodas, andar com órtese, sentir dor crônica, ter pessoas olhando para elas, serem institucionalizadas, estarem isoladas, não terem acesso a diversas informações – não refletem sobre o capacitismo, discriminação ou, até mesmo, não se nomeiam como pessoas com deficiência. Em relação à pessoa politicamente com deficiência, Mingus (2011) destaca:

Quando digo “politicamente com deficiência”, quero dizer alguém que é descritivamente com deficiência e tem uma compreensão política sobre essa experiência vivida. ... que pensa a deficiência como uma identidade/experiência política, fundamentada em sua experiência descritiva vivida. (Mingus, 2011, s/p, tradução nossa)

Mingus (2011) ressalta que há muitas pessoas descritivamente com deficiência que nunca se identificaram (ou se identificarão) como pessoas politicamente com deficiência. A partir de nossas pesquisas e vivências relacionadas à deficiência, temos identificado que a construção da pessoa politicamente com deficiência é um processo que não pode ser compreendido apenas como uma derivação de ser descritivamente com deficiência. As análises de Fiona Campbell (2009) acerca do capacitismo fortalecem nosso argumento. Essa autora destaca que o capacitismo, ao circunscrever a pessoa com deficiência como alguém que desvia de um padrão corporal considerado típico da espécie humana – perfeito, produtivo, independente, bonito, funcional, saudável e capaz –, promove a dispersão das pessoas com deficiência, que ela nomeia como táticas de dispersão.

As táticas de dispersão operam por meio de representações negativas da deficiência que – associadas à catástrofe e à tragédia – desencorajam pessoas com deficiência a desenvolverem uma consciência coletiva e uma cultura da deficiência. Assim, as pessoas com deficiência são desencorajadas a se inserirem em grupos voltados à luta pela remoção das barreiras sociais, pois as narrativas relacionadas à deficiência situam o fenômeno como uma questão individual e não de justiça. As táticas de dispersão também operam como obstáculos à participação de pessoas com deficiência em grupos heterogêneos, uma vez que, quando há o acolhimento de muitos membros estigmatizados, todo o grupo tende a ser lido como inferior e sofrer o capacitismo (Campbell, 2009). Esse não acolhimento da deficiência em grupos diversos se assemelha à noção de “contágio osmótico” proposta pela psicóloga social brasileira Lígia Amaral (1998), quando a autora argumenta que pessoas sem deficiência, quando se relacionam com pessoas com deficiência, tendem a ser lidas também sob a perspectiva da falta. Por fim, as táticas de dispersão também obstaculizam os encontros entre as pessoas com deficiência, os quais, por meio de processos grupais, podem ser muito potentes para a ressignificação da noção de deficiência como tragédia e construção de uma identidade política coletiva voltada à luta por justiça social, conforme já destacado por Taylor (2017).

A fim de fortalecer o argumento do presente artigo de que o encontro com os estudos feministas da deficiência contribui para a construção de pessoas politicamente com deficiência, trazemos aqui o relato de um dos participantes de uma pesquisa desenvolvida no Núcleo de Estudos da Deficiência da UFSC, que teve como objetivo estudar as contribuições da disciplina Psicologia e Pessoas com Deficiência para a formação em Psicologia. Esse participante, até então descritivamente com deficiência, relatou: “A disciplina de Psicologia e Pessoas com Deficiência foi um marco na minha vida e foi o primeiro momento onde eu consegui me olhar no espelho, me reconhecer como pessoa com deficiência e tá bem com isso e tá tranquilo com isso”. Ele afirmou também que esse processo de reconhecimento foi muito importante para que conseguisse desconstruir o capacitismo que era constituinte da sua pessoa e se engajar nas lutas por direitos. Em suas palavras: “[pude] compreender que eu poderia ter um papel fundamental de engajamento e de militância nessa causa” (Relato pessoal concedido em outubro de 20196). Este relato evidencia a potência do encontro com os estudos feminista da deficiência para a construção do sujeito político.

Assim, finalizamos este tópico afirmando que não se resiste sozinha/o ao capacitismo. Resiste-se na coletividade, onde, por meio de encontros com pessoas que vivem a experiência da opressão e/ou que estão engajadas rumo à construção de uma sociedade anticapacitista, é possível delinear estratégias de luta e resistência.

ENCONTROS COM OS ESTUDOS FEMINISTAS DA DEFICIÊNCIA: NÓS POR NÓS E EM COALIZÃO

Nesta seção, serão apresentadas quatro narrativas sobre o encontro com os estudos feministas da deficiência. Essas narrativas foram escritas por cada uma das quatro autoras e expressam memórias e afetações dessa experiência.

REIVINDICAR HABITAR O MUNDO A PARTIR DO ENCONTRO COM OS ESTUDOS FEMINISTAS DA DEFICIÊNCIA, REIVINDICAR ALEIJAR O MUNDO A PARTIR DO ENCONTRO COM FEMINISTAS DEFIÇAS

Laureane Marília de Lima Costa

Minha aproximação ao feminismo foi anterior ao modelo social da deficiência. Embora eu sempre tenha sido descritivamente mulher trabalhadora com deficiência, ou seja, minha experiência vivida, desde o nascimento, é condicionada pelo cruzamento das opressões de gênero, classe e deficiência, fui me tornando politicamente (Mingus, 2011) mulher trabalhadora com deficiência na medida em que encontrava ecos, nos livros e nas redes sociais para as experiências vividas por mim e pelas mulheres da minha família. No início da minha adolescência, fui me tornando capaz de analisar como a combinação de patriarcado e exploração capitalista (Saffioti, 1987, 2015) cerceou as oportunidades das mulheres da minha família, e as experiências que eu observava deixaram de ser entendidas como individuais e passaram a ser compreendidas como coletivas e fruto de processos históricos de injustiça.

Assim, quando entrei na faculdade de Psicologia, sendo bolsista em uma universidade público-privada da região Centro-Oeste do Brasil, conseguia identificar e problematizar comportamentos sexistas e elitistas de professoras/es e colegas em sala de aula, o que acontecia numa frequência e complexidade muito menor em relação aos comportamentos capacitistas. Eu conseguia reivindicar por acessibilidade, mas era difícil sustentar o debate sem me sentir completamente inadequada. Apenas depois da minha apropriação dos estudos feministas da deficiência, percebi que tinha o direito de ter sido mais incisiva nas minhas reivindicações e me dei conta de que minhas escolhas, ao longo da graduação e nos primeiros anos após a conclusão do curso, foram determinadas por tentativas de evitação dos contextos e das pessoas mais capacitistas da faculdade.

Foi no penúltimo ano da graduação que conheci o modelo social da deficiência. Naquela época, uma busca no Google com as palavras feminismo e deficiência me levou ao texto “Modelo social da deficiência: a crítica feminista”, de Debora Diniz (2003) e, a partir de então, passei a me sentir menos inadequada enquanto pessoa, buscava mais textos para ler e adicionava pessoas com deficiência no Facebook, principalmente, pessoas que reconhecia compreenderem a deficiência pela perspectiva do modelo social. Porque precisava me fortalecer no aspecto pessoal, mas resistia em assumir a deficiência como objeto de pesquisa e atuação profissional. Ainda que consumisse as reflexões e produções acadêmicas de pesquisadores com deficiência das regiões Sul e Sudeste, de alguma forma, o atravessamento de classe e territorialidade me fazia sentir que o empreendimento de pesquisa nos estudos feministas da deficiência não era para mim.

Um ano depois da conclusão da graduação, terminando uma pós-graduação lato sensu, voltei como egressa e professora em um curso de licenciatura e outros três de bacharelado. Na ocasião, conhecia o conceito de capacitismo e, reconhecendo a insegurança profissional enquanto professora contratada, o modo que encontrei para problematizá-lo foi conectar a discussão do modelo social da deficiência com a ementa de algumas disciplinas, apresentando a deficiência por um ângulo que os estudantes desconheciam.

Ao constatar que o modelo social não foi transformador apenas para mim, mas para alguns estudantes sem deficiência também, eu decidi que assumiria a deficiência para além do aspecto pessoal e, então, tomei os estudos feministas da deficiência como referencial teórico para o projeto de seleção do mestrado em uma Instituição Federal de Ensino Superior. Nessa instituição, também precisei reivindicar por acessibilidade, mas, diferentemente da graduação, sustentei o debate sem me sentir inadequada, pois o modelo social me ensinou que inadequados são os contextos, não os corpos (Barnes, 2012; Garland-Thomson, 2002; Oliver, 1981; Shakespeare, 2016; Taylor, 2017; Thomas, 2004).

No primeiro ano do mestrado, entendendo a conexão entre pesquisa e militância (Costa, 2021), bem como sentindo que precisava me fortalecer enquanto sujeito político, entrei no Coletivo Feminista Helen Keller de Mulheres com Deficiência, no qual permaneci por quase dois anos, ocasião na qual conheci, dentre outras mulheres com deficiência, Karla Luiz e Thaís Silveira, tendo, pela primeira vez, o desejo de ter amigas com deficiência e iniciando o processo de cura do capacitismo internalizado (Campbell, 2008, 2009). Desse potente encontro, pude participar de projetos de extensão de duas universidades públicas da região sul brasileira, podendo mergulhar mais fundo no campo dos estudos feministas da deficiência e assumir, cada vez mais, a experiência política da deficiência em minha vida pessoal, profissional e acadêmica.

A aproximação de pessoas com deficiência pela leitura de textos em periódicos, blogs ou redes sociais me fez encontrar uma razão para reivindicar habitar o mundo com meu corpo criticamente aleijado (McRuer, 2021); construir amizade com mulheres com deficiência me fez encontrar um sentido para reivindicar aleijar o mundo.

TRANSFORMAR AS FORMAS DE RELAÇÃO COM A DEFICIÊNCIA A PARTIR DO ENCONTRO COM OS ESTUDOS FEMINISTAS DA DEFICIÊNCIA

Marivete Gesser

Os estudos feministas da deficiência foram importantes para qualificar minhas atividades de ensino, pesquisa e atuação profissional no âmbito da temática da deficiência. Além disso, este campo também contribuiu para que eu me reconhecesse como uma mulher com deficiência e compreendesse essa experiência como política.

Ao longo de toda a trajetória como professora e pesquisadora dos estudos feministas da deficiência, pude identificar as contribuições desse campo para a construção de pessoas politicamente com deficiência e para o fortalecimento da luta anticapacitista. A apropriação da deficiência como uma categoria política produziu uma virada nas minhas pesquisas e práticas junto a pessoas com deficiência e, também, nas disciplinas que ministro no âmbito da graduação e do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina. Pude perceber, igualmente, que difundir esse campo - que surgiu do ativismo defiça - entre coletivos de pessoas com deficiência, tem o potencial de produzir compreensões outras da deficiência, que rompem com a patologização e objetificação dessa experiência. Isso tem me mobilizado a fortalecer as atividades de extensão universitária nessa direção.

Antes de acessar os estudos feministas da deficiência, eu já havia realizado algumas leituras prévias sobre a temática da deficiência. Destaco aqui as autoras brasileiras Sueli Satow (2000) e Ligia Amaral (1998, 2002, 2005), que são posicionados por Mello et. al. (2014) como antecedentes do modelo social no Brasil ao apontarem para o contexto sociocultural como elemento constitutivo da deficiência. Amaral 7 (1987), por ter incorporado em sua dissertação de mestrado a premissa feminista de que o pessoal é político ao fazer uma narrativa de sua própria experiência de mulher com deficiência física em função de poliomielite adquirida na infância, já inspirava o meu trabalho junto às mulheres com deficiência.

Meu encontro inicial com os estudos feministas da deficiência ocorreu quando eu era doutoranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFSC, professora em uma universidade comunitária e psicóloga em uma associação de pessoas com deficiência física do sul do Brasil. O professor Adriano Henrique Nuernberg, coorientador do meu doutorado, apresentou-me o livro intitulado “O que é Deficiência” de Débora Diniz (2007), que me instigou a estudar mais sobre o tema, especialmente acerca das contribuições das autoras feministas, que são apontadas no último capítulo desta obra e já foram brevemente apresentadas na sessão anterior deste artigo. Como psicóloga, eu coordenava um trabalho com um grupo de mulheres com deficiência física, que também foi objeto de estudo da minha pesquisa de doutorado (Gesser, 2010).

O grupo de mulheres ocorreu mensalmente durante seis anos. As leituras acerca dos estudos feministas da deficiência ofereceram importantes elementos para o desenvolvimento de ações que posicionavam as mulheres do grupo como sujeitos políticos. Como dispositivo, utilizei, além dos princípios dos estudos feministas da deficiência, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD, Decreto Legislativo n. 186/2008). Após a leitura e discussão da CDPD junto às participantes do grupo, e análise de diversos pontos dela com base nos estudos feministas da deficiência, foi possível identificar muitas transformações no modo como as participantes concebiam a experiência de ser mulher e pessoa com deficiência. Muitas das dificuldades enfrentadas cotidianamente por elas passaram a ser interpretadas como violações de direitos em decorrência das barreiras sociais que dificultavam sua acessibilidade. Muitas das mulheres do grupo começaram a participar de alguns conselhos de direitos da cidade e nas conferências de direitos realizadas durante o período do trabalho (Gesser & Nuernberg, 2011). As análises realizadas em minha pesquisa de doutorado mostraram que o grupo de mulheres contribuiu para o reconhecimento dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos, para a ampliação da participação social e política em espaços como os conselhos de direitos e para a construção de relações de amizade que transcenderam o espaço da associação de pessoas com deficiência onde o trabalho foi realizado (Gesser, 2010).

Os estudos feministas da deficiência também foram importantes para que eu me reconhecesse como uma mulher com deficiência. A partir de 2021, ainda durante a pandemia de Covid-19, comecei a ser interpelada, inicialmente por pesquisadoras e/ou pessoas aliadas à luta anticapacitista, acerca de minhas “características peculiares” que, na visão delas, me posicionavam como uma mulher autista8. Junto a isso, entrevistei cinco mulheres autistas na pesquisa realizada sobre trajetórias educacionais de mulheres negras com deficiência, que venho desenvolvendo por meio de uma parceria interinstitucional com as professoras Pamela Block da Western University no Canadá, e Valéria Aydos da Unipampa, no Rio Grande do Sul.

Nesta pesquisa, à medida que as participantes iam relatando suas experiências, eu ia me identificando cada vez mais, reconhecendo-me em muitas de suas vivências, dores e estratégias de resistência para se manterem na educação básica e no ensino superior. As vivências delas, em grande parte, foram minhas vivências. Diante disso, resolvi buscar, aos 43 anos, uma avaliação neuropsicológica para autismo. Os resultados da avaliação apontaram que sou uma mulher autista, portanto, com um funcionamento neuropsicológico diferente do que é instituído como norma pelo modelo biomédico.

Os estudos feministas da deficiência tiveram uma contribuição fundamental para eu interpretar a experiência de mulher autista como política e me posicionar como uma mulher com deficiência. Também ajudaram a entender que a força do meu trabalho está ligada a experiência encarnada de ser uma mulher atípica e de ter vivenciado inúmeras opressões ao longo da vida por conta das minhas características neurodivergentes. Este campo de conhecimento também fez com que eu identificasse em mim a força da articulação entre as pedagogias de gênero e o capacitismo que, juntos, contribuíram para que eu aprendesse a mascarar estereotipias para reproduzir a norma ao longo de minha vida, mesmo que isso tenha me gerado muita sobrecarga e, por vezes, uma sensação de inadequação, por mais que eu me esforçasse para parecer adequada.

Saí do consultório psicológico, onde tive uma devolutiva cuidadosa da avaliação neuropsicológica realizada, que em momento posterior foi validada por um médico especialista, aliviada. Foi uma experiência libertadora e de muito autoconhecimento. Baseada no princípio feminista de que o pessoal é político e de que os conhecimentos produzidos são sempre situados (Haraway, 1995), conclui que tornar minha condição de mulher autista visível é algo que está em consonância com o meu campo de estudos. Além disso, corroborando o pensamento de McRuer (2006), compreendo que a minha saída do armário defiça é muito importante para “aleijar a academia”, pois tenho aprendido com as companheiras de luta que a representatividade, quando acompanhada de um posicionamento anticapacitista e voltado à política de coalizão com as lutas de outros grupos marginalizados, importa.

Atualmente, como coordenadora do Núcleo de Estudos da Deficiência da UFSC, sigo, em parceria com pessoas com e sem deficiência, desenvolvendo atividades que integram ensino, pesquisa e extensão em uma perspectiva comprometida com a luta anticapacitista e com a emancipação social. Destaco, dentre essas atividades, um grupo de estudos aberto à comunidade, o qual tem o intuito de difundir os estudos feministas da deficiência para além da academia, reunindo, além de estudantes e pesquisadores, ativistas defiças e profissionais que atuam nas políticas sociais voltadas à garantia dos direitos das pessoas com deficiência.

(RE)CONHECENDO O CAMPO DOS ESTUDOS FEMINISTAS DA DEFICIÊNCIA: UM ENCONTRO POLÍTICO COM A EXPERIÊNCIA DA DEFICIÊNCIA

Karla Garcia Luiz

Nasci com deficiência, mas até os 25 anos de idade, me compreendi apenas como uma mulher descritivamente com deficiência. Os atravessamentos de classe, raça e território proporcionaram que a deficiência fosse algo trivial durante parte da minha vida, passando despercebida nos contextos em que eu participava. Após me formar em Psicologia e ser convidada para trabalhar em uma instituição voltada a pessoas com deficiência, aos poucos, fui percebendo que, inevitavelmente, fazia parte de um grupo social com uma história de luta política. Gradativamente, fui compreendendo, também, que precisava buscar recursos teóricos para exercer a profissão de psicóloga naquele lugar.

Como parte desse processo de me tornar uma pessoa politicamente com deficiência, busquei alguma formação no campo da deficiência e encontrei uma especialização em Educação Especial. Terminei o curso com mais críticas e ressalvas do que com satisfação, pois era uma perspectiva totalmente voltada ao binômio norma/desvio, à falta, ao déficit, àquilo que se tem como padrão de normalidade que nós, pessoas com deficiência, jamais alcançaremos. Concluí, então, que precisava buscar outros aportes teóricos, mais compatíveis com o que eu acreditava como pessoa e como profissional.

Nesse momento, além de ir encontrando meus pares em eventos e em compromissos profissionais, encontrei o Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina e o Prof. Dr. Adriano Nuernberg, que estudava o campo da deficiência e coordenava o Núcleo de Estudos da Deficiência (NED/UFSC). Em seguida, quando entrei no mestrado como orientanda do professor Adriano e comecei a ter contato com os estudos (feministas) da deficiência, me deparei com uma teoria que coaduna com o que carecia aprender e nomear como profissional/pessoa politicamente com deficiência.

Quando terminei o mestrado, em 2015, passei em um concurso público e tornei-me tornei psicóloga no Instituto Federal de Santa Catarina, numa vaga de cotas para pessoas com deficiência. Essa experiência foi determinante para que começasse a obter consciência de classe e entendimento, na prática, sobre interseccionalidade. Para assumir o cargo público, tive que ir morar numa das cidades com menores Índices de Desenvolvimento Humano de Santa Catarina. Ao mesmo tempo que pude testemunhar os efeitos da escassez e falta de recurso/acesso extremos naquela população, enfrentei o capacitismo por ter que viver numa comunidade completamente inacessível, em muitos aspectos.

Alguns anos depois, tendo sido transferida para um campus do Instituto Federal de Santa Catarina – IFSC na grande Florianópolis e já cursando o doutorado no PPGP/UFSC como orientanda da Profa. Dra. Marivete Gesser, tive a oportunidade de constatar a força do capacitismo e a contraforça das políticas públicas na vida de uma mulher oriunda do meio rural (agricultura familiar), como a professora Marivete, bem como foi possível ser tocada pelas suas reflexões enquanto uma mulher autista. Ademais, é imensurável a contribuição que as colegas de orientação coletiva provocaram em mim na direção de uma postura mais ético-política. Durante esse período, em meados de 2019, fui contemplada em um processo seletivo para fazer um curso sobre sexualidade no ‘Instituto de Liderazgo Simone de Beauvoir’, através do ‘Programa Saberes em Intercâmbio’, no México. Esse curso buscava produzir estratégias para traduzir as diversas teorias feministas e estudos de gênero alinhados à realidade, tanto pessoal quanto profissionalmente, de modo interseccional – incluindo a deficiência. Um dos pilares dessa formação é o ativismo e há um estímulo para que as pessoas se fortaleçam em coletivos. Nessa ocasião, então, eu decidi entrar para o ‘Coletivo Feminista Helen Keller de Mulheres com Deficiência’. Essa experiência foi bastante intensa e contribuiu fortemente para o reconhecimento dos meus privilégios de raça e classe.

Nesse espaço, tive a oportunidade de trabalhar com muitas mulheres politicamente com deficiência e estabelecer laços profundos de afeto, especialmente com Mariana Rosa, Laureane Costa e Thaís Becker, mesmo depois de ter saído do coletivo em função da sobrecarga de trabalho e de estar grávida naquela ocasião. Reconheço, nessa relação de afeto, um espaço muito importante de debate científico dos estudos feministas da deficiência e de compartilhamento das nossas vivências enquanto mulheres com deficiência, bem como em todos os outros espaços em que pudemos articular o conhecimento com as lutas palpáveis do cotidiano. É desses encontros que reúno força e sentido para seguir sendo uma mulher politicamente com deficiência.

SER NO PLURAL: OS ENCONTROS COM E A PARTIR DOS ESTUDOS FEMINISTAS DA DEFICIÊNCIA

Thais Becker Henriques Silveira

Era final de 2015, o carro em que estava se chocou com um poste, ao fazer uma curva, numa noite chuvosa. Fragmentos de um dia que me “tornou” uma pessoa com deficiência. Mas o que é ser uma pessoa com deficiência? Naquele momento, depois de alguns meses internada em um hospital, seguido por meses em um Centro de Reabilitação, sabia tão somente que usaria uma cadeira de rodas, não moraria mais sozinha e precisaria de apoio para me alimentar, vestir/tirar minhas roupas e um tanto de outras coisas, contadas a mim e à minha família com bastante pesar. Teríamos que nos acostumar, disseram.

Na época, cursava Direito na Universidade Federal de Santa Catarina e me lembro, ao retornar para o início do semestre letivo em 2016, das calçadas irregulares no trajeto até a universidade – as quais, até aquele momento, haviam passado despercebidas por mim. Lembro, também, dos olhares direcionados a mim, que antes passava despercebida pelas pessoas. Não mais. Em algum momento desse (re)encontro com a universidade e comigo mesma, ao compartilhar o sentimento de não pertencimento à universidade, uma amiga sugeriu que me matriculasse em uma disciplina oferecida no curso de Psicologia, chamada “estudos da deficiência”. Disciplina que ela cursou logo no início da faculdade e indicação que, logo de cara, recusei. Se ser pessoa com deficiência já me submetia a constantes violações de Direitos e discriminações, porque levar esse “tema” também para a minha vida acadêmica e profissional? “Jamais!”, eu pensei. Convicta de que não mudaria de ideia.

No semestre seguinte, por falta de opção (confesso) no Direito que conciliasse com as aulas obrigatórias, estágio e fisioterapia, acabei fazendo a referida disciplina e foi nela que me deparei pela primeira vez com o livro O que é deficiência, da Debora Diniz. Lembro de ter ficado intrigada com a reflexão trazida já no título, a qual, honestamente, até aquele momento nunca havia feito. Eu era uma pessoa com deficiência, sempre me diziam isso. Mas o que era “a deficiência”? E, por consequência, o que significava experienciá-la (além de algo nomeado)? Comecei a folheá-lo e, simplesmente, não consegui parar até terminar de ler. A cada página, aquela experiência, que até então parecia ser minha, ganhava contornos coletivos: não era sobre mim, descobri; era sobre nós. Naquelas linhas, que reli muitas vezes, Diniz demarca que a deficiência é o resultado do encontro de alguém (um corpo – como o meu) com outras pessoas e com uma estrutura social pensada para acolher apenas uma pequena parcela da população, a qual deve se locomover, se comunicar, pensar, ser e estar no mundo de um modo bastante estreito, que se encaixe nos padrões da corponormatividade.

Diniz, naquele momento, também me apresentou aos estudos feministas da deficiência (ou segunda geração do modelo social, como nomeou). Autoras, mulheres com deficiência, feministas engajadas no ativismo, que acolheram, mesmo sem saber da minha existência, a dor que, por vezes, sentia ao ser encarada, julgada, impedida, por exemplo, de almoçar no restaurante universitário ou ir com amigas na biblioteca estudar, porque o trajeto era inacessível, “tinha” que fazer fisioterapia no horário e/ou porque não havia ninguém para me levar. Foi também lendo esse livro que me entendi enquanto uma mulher com deficiência que depende de cuidados para sobreviver – os quais, não por uma coincidência, eram (e ainda são) prestados, sobretudo, por minha mãe: um trabalho invisibilizado e não remunerado, elas me ensinaram.

Ter acesso ao livro da Debora semeou em mim o interesse pelo estudo da deficiência, que procurei nutrir através de outros materiais, espaços e pessoas, quando a referida disciplina terminou. Foi nessa procura que encontrei o Núcleo de Estudos da Deficiência da UFSC, que foi e continua sendo central para a minha formação enquanto pesquisadora no campo dos estudos da deficiência e da justiça da deficiência, bem como no processo de me tornar uma mulher politicamente com deficiência (Mingus, 2011). Ler sobre a deficiência, a partir de uma perspectiva que considero crítica e emancipatória, discutir em conjunto textos e ideias e compartilhar experiências vividas num espaço permeado de afeto me possibilitaram politizar e coletivizar experiências que antes eram percebidas por mim como individuais e decorrentes apenas do meu corpo – o que impactou não só minha formação acadêmica e profissional, mas quem sou, como me percebo nesse mundo e nas alianças que fiz desde então.

Alguns meses depois de formada, em meados de 2019, vi no Instagram a campanha “Seu feminismo reconhece as mulheres com deficiência?”, do Coletivo Feminista Helen Keller. Na postagem9, as integrantes do Coletivo diziam que “o exercício da nossa cidadania, assim como o de outros grupos, não é negociável. Não podemos aparecer na pauta de defensores de direitos humanos apenas em respostas a discursos vazios, carregados de lágrimas e confetes, de primeiras-damas”. Esse trecho me tocou profundamente e logo pensei que precisava conhecer essas mulheres e fazer parte desse movimento. Fiquei no Coletivo por cerca de um ano e meio, período em que também ingressei no mestrado em Direitos Humanos na Universidade de São Paulo e teve início a pandemia do novo coronavírus.

O referido Coletivo Feminista Helen Keller, além de possibilitar o engajamento político, a reivindicação de direitos, a construção de materiais informativos e formações coletivas, fortalecendo o movimento de mulheres com deficiência feministas no Brasil, presenteou-me com companheiras de luta, mulheres com deficiência, que, a cada dia, ensinam-me mais sobre ser no plural. No encontro com elas, me permiti compartilhar medos e inseguranças também relacionadas à deficiência, como, por exemplo, falar sobre o desgaste emocional de ser alguém que depende de outras pessoas para (sobre)viver em um contexto político-econômico capitalista e neoliberal como o brasileiro, que preza pelo “individual” e “produtivo”. Foi com essas mulheres com deficiência que aprendi, na prática, que ocupar espaços é necessário, mas são as pessoas, as relações e os encontros que nos permitem verdadeiramente pertencer. O afeto é mesmo revolucionário, enunciaram as teóricas feministas da deficiência e me mostraram, na prática, as mulheres com deficiência, companheiras de luta, que hoje chamo de amigas.

ENCONTRAR-SE COM OS ESTUDOS FEMINISTAS DA DEFICIÊNCIA: PRODUZIR COALIZÕES, DIFUNDIR O CAMPO E FORTALECER A LUTA ANTICAPACITISTA COM NARRATIVAS INSURGENTES

A análise de nossas trajetórias de encontro com e a partir dos estudos feministas da deficiência – campo de estudos que surgiu a partir da luta política das pessoas com deficiência e que reivindica uma compreensão da deficiência que rompe com a narrativa da tragédia pessoal – indicou que esse produz efeitos transformadores na vida das pessoas com e sem deficiência, que atuam ou não junto a esse grupo social. Sendo assim, nesse último tópico, abordaremos a potência desse encontro para a construção de pessoas politicamente com deficiência, para a produção de coalizões entre pessoas com deficiência e outros grupos marginalizados, para a transposição deste campo para o seu lócus de trabalho, e, por fim, para a necessidade de inserção dos estudos feministas da deficiência no currículo do ensino médio e superior.

A respeito da coalização entre pessoas, sobretudo, mulheres com deficiência, Luiz, Costa, Rosa e Silveira (2023), em narrativas que abordam o afeto e a emancipação, demarcam que, a partir da amizade que construíram também enquanto mulheres com deficiência feministas, compreenderam que o afeto pode ser político e a luta política pode ser amorosa. Isso porque, nesse espaço seguro que criaram, podem compartilhar suas dores, inseguranças e, ao mesmo tempo, se fortalecem juntas para reivindicar mudanças contextuais para si, para aquelas que amam e para tantas outras que não conhecem, mas que também são atravessadas pela experiência da deficiência (seja própria ou por meio de relações de cuidado e mediação de atividades de vida diária estabelecidas). Sobre esse politizar que se dá no (e por meio do) encontro, escrevem:

Mesmo sem pretendermos fazer de nossa amizade um espaço político, percebemos que a intersecção do gênero com a deficiência a politiza. Por vezes, foi nos dito que não deveríamos ficar próximas de outras pessoas com deficiência, afinal, assim estaríamos “chamando a atenção para a deficiência”, destacando-a, colocando-a em evidência, o que, em uma sociedade corponormativa como a nossa, deveria ser evitado na maior medida do possível. Percebemos, no entanto, que essa é uma estratégia para nos manter afastadas umas das outras. Estratégia que encontra fundamento no reconhecimento do potencial revolucionário que nosso encontro tem. Que sabe que o amor partilhado entre nós nos fortalece e nos ensina que nosso corpo é potência e nossa união, impulso.

Muitas vezes partilhamos situações que nos fazem sentirmos solitárias, exaustas, inseguras, questionando a nós mesmas, a exemplo de se estaríamos ou não exagerando quando reagimos a falas e atos capacitistas ou, ainda, se seríamos menos ativistas por sofrermos por eles. Ao compartilharmos, percebemos que esses sentimentos são coletivos e, mesmo sem pretensão, nomeando-os conseguimos, cada uma ao seu tempo, ressignificá-los e, assim, nos fortalecemos para o agir político. (Luiz, Costa, Rosa, & Silveira, 2023, tradução nossa)

Essa perspectiva dialoga com o conceito de reparação histórica feminista de Diniz (2022). Segundo a autora, “lembrar-se e narrar-se é subverter a história já contada” (p. 128), uma vez que a reparação se dá no reconhecimento de uma injustiça cometida contra alguém. Portanto, a reparação acontece, efetivamente, quando uma mulher se permite afetar pelo sofrimento da outra e, a partir desse lugar, busca romper/fissurar/ subverter os marcos de poder hegemônicos que violam os direitos dessa mulher – nesse caso, o capacitismo.

Outra grande contribuição dos estudos feministas da deficiência é o potencial que esse campo tem em produzir coalizões entre pessoas com deficiência e outros grupos socialmente marginalizados. Esse campo de estudos, ao colocar no centro do debate a noção de que a deficiência é uma experiência interseccional e reivindicá-la como uma categoria de análise (Garland-Thomson, 2002; Gesser et al. 2012), convoca, ao nosso ver, as/os teóricas/os de raça, gênero, sexualidades, classe e outros campos que se dedicam ao estudo de populações oprimidas, a abraçarem a deficiência em suas pesquisas e lutas, concomitantemente, convoca ativistas e pesquisadoras/es com deficiência ao reconhecimento das semelhanças do capacitismo com outros sistemas de opressão, como o cisheteropatriarcado, o racismo, o capitalismo, que se atravessam, interconectam e se retroalimentam. Kafer (2013) muito bem alertou sobre a necessidade de não apagarmos a deficiência, mas, ao contrário, imaginarmos futuros com a deficiência. A autora destaca que “devemos começar a antecipar presentes e imaginar futuros que incluam todos nós” (Kafer, 2013, p. 46, tradução nossa).

O posicionamento de Kafer nos incita a trazer a deficiência para as lutas antirracistas, anticlassistas, antiLGBTQIA+fóbicas e a deficiência abraçar, em coalizão, as pautas relativas a gênero, sexualidade, raça, classe, geração, dentre outras, para, conjuntamente, lutar contra as diferentes opressões. Nessa direção, Gloria Anzaldúa (2021) propõe uma potente e importante coalizão entre os grupos sociais cujos corpos divergem da norma, a qual consideramos fundamental para o fortalecimento da luta anticapacitista, e a coalizão entre as diversas lutas. A autora destaca que grupos atravessados por inúmeras opressões, que representam uma ameaça por não se enquadrarem às normas vigentes, devem se juntar e coligar para reverter isso. Essa tem sido a nossa aposta, que vem sendo fortalecida pela criação de inúmeros espaços de encontro, afeto, luta e coalizão.

Ademais, a análise de nossos encontros com os estudos feministas da deficiência tem apontado sobre a importância de esse campo ser amplamente difundido tanto na educação básica como no ensino superior, com o intuito de transgredir os currículos capacitistas, para fazer uma analogia com a noção de transgressão dos currículos patriarcais da supremacia branca proposta por bell kooks (2013). Todas nós experienciamos transformações importantes na forma de conceber a deficiência, nas nossas práticas profissionais junto a pessoas com deficiência (todas hoje trabalhamos com questões relacionadas a essa população) e em nós mesmas.

Tal resultado coaduna com outros estudos realizados no âmbito da formação, como, por exemplo, na pesquisa feita por Pearson et al. (2016) com o objetivo de compreender como o currículo em estudos da deficiência influencia as perspectivas e práticas de estudantes de pós-graduação na área da educação, a qual identificou que as/os participantes apresentaram transformações na conceitualização da deficiência, nas práticas profissionais, e neles próprios. Também, o estudo realizado por Gesser e Martins (2019) junto às professoras e aos professores da educação básica, participantes do Curso de Especialização em Gênero e Diversidade na Escola apontou que, após cursarem a disciplina “Deficiências e Inclusão”, esses apresentaram concepções de deficiência mais próximas ao modelo social da deficiência, compreendendo-a como uma experiência de opressão pelas barreiras. Finalmente, o estudo realizado por Gesser, Lorandi, Pereira e Silva (2022), visando identificar as contribuições da disciplina “Psicologia e Pessoas com Deficiência” para estudantes do curso de Psicologia, identificou que os participantes, que antes de terem cursado a disciplina tinham uma concepção de deficiência fortemente associada ao modelo médico, passaram a conceber essa experiência baseada no modelo social, como uma experiência de opressão pelas barreiras (todos afirmaram perceber barreiras que até então passavam despercebidas). Além disso, a maior parte dos entrevistados (11 de 14), também conseguiu se apropriar das contribuições dos estudos feministas da deficiência, destacando elementos como a dependência e a interdependência como parte da diversidade humana, a deficiência como uma categoria interseccional, e o cuidado como uma questão de justiça. Outras importantes contribuições da disciplina se referem à percepção das pessoas com deficiência como sujeitos políticos que lutaram pelos seus direitos hoje contemplados em diversas legislações brasileiras e internacionais.

Destacamos que o encontro de nós quatro se deu no bojo de um projeto de extensão de uma universidade pública federal, cujo objetivo é difundir o campo dos estudos da deficiência entre pessoas com e sem deficiência, sejam elas profissionais, pesquisadoras, ativistas, influenciadoras digitais ou interessadas na temática –, tal projeto reafirma o compromisso social da extensão universitária, a qual contribui com o deslocamento da leitura tradicional da academia como uma “torre de marfim” (Brown, 2020; Garland-Thomson, 2002). Por reconhecermos as transformações – na nossa subjetividade, na nossa atuação profissional, no nosso delineamento de pesquisas e no nosso posicionamento enquanto sujeitos políticos – oportunizadas pelos encontros a partir do referido projeto de extensão, ressaltamos a relevância da defesa da universidade pública, gratuita e popularmente referenciada, o que perpassa por financiamento público suficiente. A precarização e desvalorização da universidade pública, dentre tantos malefícios à sociedade brasileira, representa o rompimento das possibilidades de novos encontros – e transformações – como o que aconteceu conosco.

AGRADECIMENTO

Agradecemos ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pela bolsa na modalidade Produtividade em Pesquisa recebida por uma das autoras do artigo.

1Como será abordado mais adiante, Mia Mingus (2011) aponta que pessoas descritivamente com deficiência são aquelas que têm impedimentos corporais e até experienciam as inúmeras barreiras mas, em dissonância com as pessoas politicamente com deficiência, não tem uma compreensão política dessa experiência.

2Donna Haraway enfatiza a importância de se considerar o olhar “que inscreve miticamente todos os corpos marcados, que possibilita à categoria não marcada alegar ter o poder de ver sem ser vista, de representar, escapando à representação. Este olhar significa as posições não marcadas de Homem e Branco, uma das várias tonalidades desagradáveis que a palavra objetividade tem para os ouvidos feministas nas sociedades científicas e tecnológicas, pós-industriais, militarizadas, racistas e dominadas pelos homens” (1995, p. 18).

3Embora seja bastante difundida a narrativa de que quem iniciou o campo são homens brancos do norte global, Martins (2012) destaca que existiram ativistas espalhados por diversos países do mundo, e Barnes (2012) apresenta evidências de que houve mulheres que também participaram desse processo por meio do relato de suas experiências de opressão em um livro organizado por Paul Hunt.

4Na mesa redonda 04, que foi uma das atividades do VII ENADIR – Encontro Nacional de Antropologia do Direito e que contou com a participação de Anahí Mello, Helena Fietz e Gabriela Rondon (2021), as duas primeiras teóricas propuseram a tradução do termo “Disability Justice” para “Justiça Defiça”. Defiça é um termo que vem sendo muito utilizado no ativismo das pessoas com deficiência.

5A CDPD foi ratificada por 185 países ao redor do mundo, a exemplo do Brasil. Para maiores informações, consultar o site das Nações Unidas: https://www.un.org/development/desa/disabilities/convention-on-the-rights-of-persons-with-disabilities.html

6A pesquisa na qual esse relato foi obtido teve a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da UFSC e houve a autorização do participante para a utilização do seu relato para fins acadêmicos.

7Embora a obra de Amaral não chegou a abordar os princípios da dependência e da interdependência, que são centrais para os estudos feministas da deficiência, essa autora brasileira já tinha um importante alinhamento com alguns princípios dessa teoria.

8Em decorrência de uma crítica ao processo histórico de patologização das neurodivergências, tenho preferido utilizar a expressão “pessoa/homem/mulher autista”, ou “pessoa/homem/mulher no espectro autista” à “pessoa com transtorno do espectro autista (TEA)”. Entendo esse posicionamento como político e em consonância com a luta das pessoas com deficiência para dissociar a deficiência da doença.

Financiamento

A primeira autora do artigo recebe financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) na modalidade Bolsa Produtividade em Pesquisa, nível 1D.

Consentimento de uso de imagem

Não se aplica.

Aprovação, ética e consentimento

Não se aplica.

REFERÊNCIAS

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Recebido: 15 de Novembro de 2022; Revisado: 29 de Novembro de 2023; Aceito: 29 de Novembro de 2023

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