PARA INÍCIO DE CONVERSA…
Prezadas/os leitoras/es,
Esse é um texto-carta escrito com as afetações produzidas na relação com o Dispositivo Clínico (DC) um atendimento psicoterapêutico coletivo com pessoas com deficiência visual, desenvolvido no Instituto Benjamin Constant (IBC), iniciado em 2011. O IBC é uma instituição de apoio educacional, médico e de reabilitação para pessoas com deficiência visual localizada no bairro da Urca, na cidade e Estado do Rio de Janeiro. O DC é o desdobramento de uma pesquisa de mestrado intitulada Cartas à deficiência visual: História(s) de um dispositivo clínico (Vianna, 2019) cujo objetivo era, ou melhor, ainda é, compartilhar com a comunidade os aprendizados e afetações desencadeados por essa prática. Tantos anos se passaram e essa experiência ainda reverbera em nós, produz efeitos, mobiliza afetos e possibilidades de escrita e diálogo. Ressaltamos que trechos de diários de campo registros escritos das afetações produzidos pelas diversas equipes que participaram do projeto ao longo de dez anos, nomeados aqui de fragmentos do campo, vez ou outra, irão costurar essas linhas, respeitando a identidade e o sigilo garantido pelo Código de Ética do/a Psicólogo/a e pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem Anna Nery/Instituto de Atenção à Saúde São Francisco de Assis/Universidade Federal do Rio de Janeiro (EEAN/HESFA).
Fragmentos do campo
Conhecido e experienciado de maneiras distintas pelas pessoas que o frequentam, sua aparência extrapola os detalhes físicos de sua estrutura. Conhecer tem a ver com aquilo que afeta e, em nós, gera algum efeito. Nós da equipe de atendimento fomos apresentadas/os de muitas formas ao instituto, de um modo diferente por cada pessoa que encontrávamos por lá. Mas, conhecer o IBC, nesse contexto, se refere a uma experiência encarnada. Experiência que se faz corpo e no corpo. Corpo construído no tempo e com o tempo. Corpo que aprendeu a se encontrar nos corredores longos e estreitos da unidade. Corpo que compreendeu a importância de não andar rente à parede fria e áspera, pois ela orienta o caminhar das pessoas cegas e com baixa visão pela instituição. Corpo que compartilhava o espaço da sala onde ocorriam os atendimentos com um lindo piano que lá fora deixado. Corpo que aprendeu a dialogar com uma bica que pingava lenta, porém, insistentemente, nos fundos da sala. (Diário de Campo)
Dito isso, essa carta-texto, como optamos ética e politicamente por nomeá-la, foi sendo escrita também em outras relações, com pessoas que foram (co)participando da produção dela a partir de diferentes espaços-tempo, compondo uma carta que foi lentamente escrita porque as pausas foram necessárias para a sua maturação. Ela também foi sendo escrita com diversas/os destinatárias/os, até que entendemos que existia algo em comum, a saber: o capacitismo que nos habita, que habita nossos corpos, ainda que em intensidades e formas diferentes. Sendo assim, destina-se ao capacitismo que nos habita, ou seja, a todas/os nós, em alguma medida.
Preparemo-nos, então, pois acompanhar esses relatos fará com que nosso capacitismo seja provocado, confrontado; fará com que ele até tente reagir... Mas respiremos calmamente para continuar nossa conversa com ele. Não o encaramos como um inimigo, mas como um interlocutor que nos questionará e tentará nos guiar pela diminuição da potência de vida considerada incapaz, enquanto nós o convidaremos a construir potência de vida. Bom, situada a nossa escrita, que acreditamos ser um ponto de partida importante para você que nos lerá, podemos prosseguir com as questões-movimento que têm nos atravessado e mobilizado. Não se preocupem, pois, assim como essa carta foi escrita l-e-n-t-a-m-e-n-t-e, em uma velocidade muito própria, não se apresse em lê-la. Tome o seu tempo para que, além de ler, você possa sentir o que ela lhe faz-fazer.
Não faz muito tempo que as discussões em torno do termo capacitismo vêm inteirando as pautas dos movimentos sociais, de modo que se sabia pouco sobre suas articulações e modos de agenciamentos até então. O que aprendemos com a autora do livro Luta contra o Capacitismo, Itxi Guerra, é que “o capacitismo é a opressão que nós, as pessoas deficientes, enfrentamos e surge do sistema capacitista, que é o sistema social, político e econômico que discrimina, violenta, marginaliza e assassina as pessoas deficientes pelo fato de o serem” (Guerra, 2021, p. 27). Segundo a autora, o capacitismo está totalmente atrelado ao modo de produção capitalista, que além de tudo, produz formas de vida padronizadas, sustentadas por “corpos perfeitos” e nos traz isso como norma, de forma estrutural. Portanto, somos socializadas/os em uma sociedade capacitista, costumamos reproduzir isso em nossas atitudes e precisamos disseminar sua desnaturalização e desconstrução.
Ao longo dessa leitura, vocês vão perceber que, além da escolha pela nomeação carta antecedendo texto, outras marcações importantes vão surgindo: o feminino aparece antecedendo o masculino, pois, durante muito tempo, fomos nomeadas pelo masculino, com a responsabilização da língua portuguesa por isso. Aqui desejamos emprestar o feminino a todas as pessoas, sem que queiramos esmagar sua individualidade e sua subjetividade. Essa política de escrita foi adotada e defendida por Monique Brito (2021), mulher branca, sem deficiência, que se dedica a pensarCOM a ciência no feminino diversas formas de opressão na nossa sociedade, que também utiliza, em sua escrita, algumas vezes eu e outras o nós. Essa variação no texto entre as primeiras pessoas do singular e do plural é intencional, explicitando que algumas experiências foram vividas por apenas uma das autoras, embora a carta-texto final seja coletiva. Com isso, desejamos demarcar nossos lugares de experiência, sem esquecermos, porém, que essa construção-reflexiva não tem sido um ato solitário.
ALGUMAS PISTAS TEÓRICO-METODOLÓGICAS: INTERROGAÇÕES AO CAPACITISMO
Nas linhas que seguem, assinalamos as pistas teórico-metodológicas que amparam a presente discussão. Começamos reafirmando que essa carta-texto foi forjada na interlocução com diversos atores, ou actantes como propõe a Teoria Ator-Rede, desenvolvida por Bruno Latour (2005, 2012) e Tobie Nathan (2001), tal como pela Isabelle Stengers (2002) e Vinciane Despret (2011), dentre outras/os. O termo é utilizado para sinalizar a simetria entre atores humanos e não-humanos. E diz mais: um ator (actante) só pode ser definido com base naquilo que ele faz (Latour, 2001), isto quer dizer que para ser rastreável um actante precisa ter agência. Por isso o capacitismo, como um actante, uma vez que seus vínculos e efeitos são evidentes nas discussões produzidas e compartilhadas aqui.
Seguimos com Jeanne Favret-Saada, etnóloga francesa nascida na Tunísia, e sua experiência etnográfica na região do Bocage (Francês), no campo da feitiçaria, onde a pesquisadora resgata a importância da afetação no trabalho de campo. As inquietações registradas no texto Ser afetado (Siqueira & Favret-Saada, 2005), de alguma forma, acolhem e legitimam o caminho que decidimos percorrer: o caminho da afetação. São as afetações que performam essa escrita; escrita que se faz no encontro com as cartas.
Michel Foucault, filósofo e historiador francês, no texto ‘A escrita de si’ anuncia que a carta “faz o escritor ‘presente’ àquele a quem a dirige” (Foucault, 1992, p. 136). O filósofo acrescenta que “a carta faz o escritor ‘presente’ àquele a quem a dirige ... não apenas pelas informações que lhe dá acerca da sua vida, das suas atividades ..., das suas venturas ou infortúnios; presente de uma espécie de presença imediata e quase física” (p. 136). Assim, é para que vocês possam sentir essa presença que nós nos dedicamos a essa escrita. Mas afinal, quem somos nós? Conforme dissemos anteriormente, as autoras desta carta chegaram em momentos distintos de sua composição. Inicialmente, esta carta foi disparada pela psicóloga, doutoranda, mãe e pesquisadora Keyth Vianna, que participou do Dispositivo Clínico durante sua pesquisa de mestrado, orientada por Alexandra Tsallis, mulher branca, sem deficiência, que se dedica aos estudos sobre deficiência e de outros grupos oprimidos enquanto professora universitária. Durante a escrita, outras autoras foram chegando: Dandara Trebisacce, mulher branca, sem deficiência, psicóloga, pesquisadora do campo da deficiência desde a graduação em psicologia e Monique Brito, apresentada anteriormente.
Ah, mas não pensem que é fácil esse movimento, pois para que essa presença possa ser sentida aí, eu, nós, precisamos deixar-nos ver como propõe Michel Foucault (1992), ou melhor, deixar-nos perceber. Esse ajuste no verbo se faz importante, pois em nossas práticas de encontro com o campo e com a escrita apostamos na potência de um contato não visuocêntrico. Ou seja, em que a visão e a observação (esse contato à distância) não são o sentido principal. Nosso contato se dá de outra forma, mais próxima, mais afetada, compondo com outros sentidos tato, olfato, paladar, audição... Diante disso, quanto mais uma escrita for movida pela afetação, mais o texto transborda e, quem sabe, possa afetar também você que nos lê, como sugere Tsallis et al. (2022).
Escrever cartas é um desafio. E aqui decidimos seguir com ele, apostando na direção que envolve explicitar quem escreve, de onde/quando escreve, e para quem (ou o quê) escrever. Essa é a nossa política de escrita. Não somos as primeiras a praticar tal ousadia. Aprendemos com Gloria Anzaldúa, estudiosa da teoria cultural chicana, teoria feminista e teoria queer, em sua Carta para as Mulheres do Terceiro Mundo: “Joguem fora a abstração e o aprendizado acadêmico, as regras, o mapa e o compasso. Sintam seu caminho sem anteparos. Para alcançar mais pessoas, deve-se evocar as realidades pessoais e sociais — não através da retórica, mas com sangue, pus e suor” (Anzaldúa, 2000, p. 235).
Além de não almejarmos essa suposta neutralidade, outro aspecto se faz presente nessa carta-texto: ela está comprometida com uma política de escrita marcada pelo feminino na ciência, o que significa compreendê-la enquanto uma aposta metodológica. Trata-se, assim, de uma escrita viva. Escrita que não é solitária, mas coletiva, povoada e encarnada. Desse modo, como ressaltam as psicólogas feministas e estudiosas da escrita e da ciência no feminino Marília Silveira e Josselem Conti, “a escrita é uma maneira de experimentar uma prática desse feminino na Ciência” (Silveira & Conti, 2016, p. 58). Desse modo, estar comprometidas com a ciência no feminino tem a ver com “o modo como tratamos o que nos acontece em campo. Fazer aparecer às hesitações, as controvérsias, os momentos que poderíamos ter deixado de fora da escrita, mas decidimos incluir” (p. 58).
Engendrar uma ciência no feminino não se reduz a um adjetivo. O feminino, nesse cenário, extrapola o ser mulher, o que não significa que iremos ignorar as questões de gênero, não é mesmo? Sabemos bem que o lugar delegado às mulheres na atividade científica é aquele da sensibilidade (uma vez que a sensibilidade é geralmente atribuída ao gênero feminino e tomada como contrária à racionalidade); lugar daquelas que simplesmente contam histórias enquanto os homens seriam os verdadeiros cientistas. Mesmo diante da racionalidade dos cientistas homens, não é intenção dessa ciência no feminino insinuar outra razão para a prática científica, mas, como afirma a filósofa e historiadora belga Isabelle Stengers “a exploração daquilo que a razão pode, se for libertada dos modelos disciplinares que a normatizam” (Stengers, 1989, p. 431).
Defender o feminino na Ciência, nas palavras da pesquisadora Maria Rita Rodrigues que em sua dissertação de mestrado se propôs a discutir tal prática, está relacionado “com propagar uma prática localizada, dedicada a acompanhar as pistas daquilo que no campo nos desestabiliza e produz em nós certo estranhamento” (Rodrigues, 2013, p. 39). Acompanhar as pistas do que nos desestabiliza é assumir as controvérsias e os mal-entendidos da pesquisa, como bem sinaliza Vinciane Despret (1999). E isso não é trivial. Pelo contrário, é um desafio acolher aquilo que escapa ao projeto de pesquisa e desarrumam nossas teorias a priori como potência, como possibilidade de construir conhecimento a partir do encontro com o campo e não sobre ele, como salienta Marcia Moraes pesquisadora que se dedica aos Estudos da Deficiência e nos convida a repensar nossas práticas de pesquisa ao propor o termo PesquisarCOM (Moraes, 2010).
Dito isto, o que ansiamos com esta escrita é romper com as hipóteses prévias e a história única, como nos convoca a escritora e feminista Chimamanda Adichie (2009) sobre a deficiência. Nesse momento, convidamos-lhes para o encontro com os diversos modos de existir sem ver, a experimentar o inusitado de uma prática de pesquisa que se faz COM e a seguir as pistas que o campo de pesquisa insinua através do agenciamento de seus actantes.
Voltando ao Dispositivo Clínico, ressaltamos que a palavra dispositivo aqui tem um significado específico, como proposto pelo filósofo francês Gilles Deleuze, fundador da Filosofia da Diferença, para quem o dispositivo é “uma meada, um conjunto multilinear, composto por linhas de natureza diferente” (Deleuze, 1990, p. 12). Agora, imaginem a sala de atendimento… Formada por diferentes cheiros, gostos, memórias, sonhos e histórias. Cada participante, cada história tece diferentes formas e produz diversas texturas, forjando, assim, um tecido heterogêneo e híbrido: o grupo.
Os grupos contavam com pelo menos oito pessoas com deficiência visual do IBC, cuja triagem era tarefa da própria instituição. Os encontros aconteciam uma vez por semana, com duração aproximada de 1h 30min, e era conduzido por até cinco pessoas. A cada semana uma/um participante da equipe, num esquema de rodízio, assumia a tarefa de registrar no diário de campo as afetações do encontro enquanto os/as demais integrantes conduziam o atendimento clínico.
Também é importante contar que não se tratava de um atendimento de grupo nos moldes que costumamos presenciar. Isto é, não se tratava de um grupo aonde uma/um única/o profissional conduzia o processo. Quem participou do grupo sabe! A proposta era bem diferente: tratava-se de um atendimento coordenado por mais de uma pessoa, como estudantes de psicologia e profissionais da área. A ideia era produzir uma relação de mais horizontalidade para os encontros, descentralizando a/o psicoterapeuta como a pessoa que detém todo conhecimento. Era uma conversa entre pessoas com deficiência e pessoas sem deficiência. Um encontro entre cegueira e vidência, em que a produção de vida e cuidado nunca foi unilateral. Não existiam ali pessoas que cuidavam e outras que eram cuidadas. O cuidado era produzido no encontro.
Compartilhar as histórias registradas nos diários de campo é uma aposta metodológica dessa produção textual, pois narrar essas histórias é também ressignificá-las, é tecer possibilidades no que tange a outras formas de ser e estar no mundo. Por isso o faremos, inclusive para que elas também reverberem por aí, em seus corpos. Nesse instante, lembramos-nos do artigo Contar histórias, povoar o mundo: a escrita acadêmica e o feminino na ciência escrito por Marcia Moraes e Alexandra Tsallis (Moraes & Tsallis, 2016) em que as pesquisadoras ressaltam a potência de contar as histórias das pessoas que participam dos nossos dispositivos de pesquisa. Com isso, entendemos esse exercício como uma prática política, ratificando o compromisso de fazer jus ao encontro com o campo e de resistir às narrativas hegemônicas da deficiência, aquelas que encerram as pessoas com deficiência nos estigmas da incapacidade e do infortúnio, como pressupõe o discurso cultural dominante que sustenta a teoria da tragédia pessoal, como destaca o doutor em sociologia e estudioso do campo da deficiência Bruno Martins (2005).
Fragmentos do campo
Chegou o dia: é hoje que começo a participar dos atendimentos no IBC. Estava ansiosa e receosa. Faz uma tarde linda na Urca/RJ, dia ensolarado, coração acelerado pela expectativa do que estaria por vir. Adentro o instituto e logo uma mistura de sentimentos e sensações me invadem. Eu nunca tinha visto tantas pessoas cegas num só lugar. Era tudo novo pra mim… Bengalas, óculos de sol e uma criança cega subindo e descendo a escada correndo definem meu primeiro encontro com a cegueira. Gente, alguém está vendo aquela criança? O que eu faço? (Diário de Campo)
O trecho acima foi registrado num diário de campo após minha primeira visita ao IBC. O meu encontro com o instituto e, por consequência, com a deficiência visual, se dá através da minha participação enquanto estagiária de psicologia no projeto de pesquisa já mencionado e coordenado pela professora Alexandra Tsallis na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Tal experiência inspirou a escrita da minha dissertação de mestrado nomeada Cartas à deficiência visual: História(s) de um dispositivo clínico (Vianna, 2019) e, agora, mobiliza outras pessoas na escrita desta carta.
Ainda hoje, relembrar minhas idas e vindas à instituição desperta muitas sensações. Sim, é fato: estar lá certamente mobiliza e convoca deslocamentos. Eu? Eu saía bagunçada. Isso fica explícito no trecho em que evidencia minha surpresa com uma criança cega correndo. Que ignorância a minha pensar que uma criança que não vê, iria se contentar em ser algo menos que criança! Mas o que esperar? Crianças correm, sobem e descem escadas sem pensar no perigo. Perigo? O que é isso? Algumas até acreditam ter asas.
Keyth Vianna ao ler o diário destaca a frase: “Gente, alguém está vendo aquela criança?” e, em seguida, me convida a refletir sobre a importância que atribuo à visão, ou seja, ao fato daquela criança não estar sendo vista e, por isso, quem sabe, estivesse em perigo, indefesa ou coisa assim. Questionar se aquela menina teria capacidade de brincar sem se ferir devido à ausência da visão, sem dúvida denuncia o meu capacitismo. Não sabia o que fazer diante daquela criança isenta de olhares, mas que nem por isso estava desamparada, como acreditava. Não sabia como cuidar daquela menina naquele lugar. Lugar da alteridade, da diferença que me habitava; da diferença que nos habita e constitui. Não sabia o que fazer com a minha vidência num lugar onde ela não era necessária. Fiquei um tempo com esse não saber, anos, na verdade, até finalmente entender que, ver, ali, não fazia a menor diferença. A diferença era eu!
A realidade não visual daquela criança que brincava nas escadas me fez repensar a centralidade da minha visão. Isso mesmo! Naquele lugar, a alteridade estava encarnada no meu corpo, a confortável normalidade adquirida pelo simples fato de ser uma pessoa vidente não me poupou da estranha sensação de não estar ajustada àquele contexto.
Aquela criança, aquela menina... Eu sequer sei o seu nome, não me recordo da sua fisionomia, tudo aconteceu tão rápido, eu estava tão distante. Queria poder agradecer. Contar que seu jeito-criança-cega encontrou meu jeito-adulta-vidente, e que esse encontro tem, ainda hoje, produzido efeitos. A gente aprende desde muito cedo que a vida de uma pessoa cega é uma tragédia e reproduzimos isso de uma forma muito sutil. A construção da hegemonia social tem essa característica: a sutileza. É um comentário aqui, uma reportagem ali, uma conversa acolá, e nós vamos consolidando a deficiência enquanto sinônimo de incapacidade. E cabe ressaltar que, mesmo sutilmente construído e reproduzido, o capacitismo produz efeitos extremamente violentos para as pessoas com deficiência que são oprimidas por esse sistema.
Compartilhamos aqui o que temos re-conhecido do capacitismo em nós pesquisadoras sem deficiência a partir do re-encontro com o campo de pesquisa com pessoas com deficiência e com novas literaturas, protagonizadas por pessoas com deficiência. Dessa forma, ao nos permitirmos enfeitiçar e reenfeitiçar pela experiência descrita no fragmento de campo anterior, percebemos o capacitismo que nos habita ao associarmos uma criança cega se movendo de forma livre e espontânea ao perigo eminente, como se uma criança com deficiência precisasse de constante observação, por sua incapacidade de manter-se segura devido a ausência da visão. E mais: como se a visão garantisse alguma segurança e proteção a uma criança que estava brincando. Eis aí o que Joana Belarmino (2004), jornalista com deficiência visual, nomeia de paradigma visuocêntrico. Este, segundo as pesquisadoras Virgínia Kastrup e Maria Clara de Almeida e o pesquisador Felipe Carijó, entende o sentido da visão como principal forma de conhecer o mundo, assumindo “o estatuto de centralidade, ou seja, de sentido dominante, exercendo a função do controle dos demais. A visão domina porque ela sintetiza as sensações trazidas pelos outros sentidos, totalizando-as” (Kastrup, Carijó, & Almeida, 2010, p. 116).
Uma vez que o capacitismo é agenciado por nós e através das nossas práticas, faz-se necessário expor o argumento do modelo social da deficiência de que não são as limitações corporais por si só que tornam uma pessoa deficiente, mas sim o contexto no qual estão inseridas que submete a deficiência à experiência de incapacidade. Este modelo emerge na década de 1970, na Europa e nos Estados Unidos, forjado no seio de um movimento conhecido como Disability Studies (em nossa língua, Estudos sobre Deficiência) atrelado às lutas políticas nos anos 1960 e 1970 das pessoas com deficiência por uma vida independente e pelos direitos civis, como ressalta a argentina, doutora em Direito, Agustina Palacios (2008). Seus líderes tinham como representantes principalmente homens com deficiência física que buscavam subverter a lógica da deficiência vinculada estritamente ao corpo, exigindo que a deficiência fosse discutida em outros termos, isto é, naquele de uma sociedade incapaz de acolher a alteridade.
Eu encontro no modelo social da deficiência o argumento de que não são as variações corporais por si só que tornam uma pessoa deficiente. Uma coisa são os impedimentos corporais; outra coisa é vivenciar a experiência da deficiência. A incapacidade atribuída às pessoas com deficiência só faz sentido se considerarmos o contexto no qual estão inseridos, os discursos e as práticas que legitimam o corpo perfeito e apto enquanto padrão corporal. Tal a importância disso, que em 2006 a Organização das Nações Unidas (ONU), no art. 1º, após os constantes debates políticos e acadêmicos define, através da Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência, que pessoas com deficiência são “aquelas que têm impedimentos de natureza física, intelectual ou sensorial, as quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade com as demais pessoas” (ONU, 2006).
Aí está o desafio que o modelo social da deficiência nos convoca: reconhecer nossa responsabilidade enquanto co-autoras/es de uma realidade que segrega e exclui. Mas reconhecer apenas não basta, é preciso mais; é preciso ir além. Devemos reparar com práticas e discursos inclusivos e anticapacitistas a opressão experienciada pelas pessoas com deficiência.
Fragmentos do campo
Em seguida Cristina retoma e começa a falar de uma das maiores violências que sofreu em sua vida: “Mas não era para eu estar assim, é por causa daquele infeliz do meu ex-marido”. Bruna troca de lugar comigo e senta ao lado dela. A fala de Cristina se desdobra e ela conta que tinha com ele uma vida na qual era frequente os dois se agredirem mutuamente. Certa vez ele a agrediu com muitas pauladas na cabeça, dizendo que queria matá-la. Ela vai parar no hospital, depois na delegacia da mulher onde faz queixa oficial. Acontece que ela ficaria com sequelas desse episódio, pois havia sido atingida parte do cérebro responsável pela visão. Conta que saiu do hospital dizendo que estava ficando cega, mas que a família não acreditou. Cristina diz não ter dado em nada sua denúncia e conta que o ex-marido disse que ela perdeu tempo denunciando-o, já que ele estava solto e podia matá-la se quisesse. Há 2 anos ela afirma não ter envolvimento com o tal sujeito, desde o ocorrido. “O que você me fez deixou marcas”, disse ela ao agressor. Cristina fala com muito pesar que agora nenhum homem “normal” vai querer saber dela, que ela é cega e que eles poderão enganá-la já que ela não terá como vigiar seus passos. (Diário de Campo)
Acompanhei Cristina por um tempo no DC. Sua situação financeira era precária, o que era muito comum no IBC. Alimentava o sonho de ser mãe. Vivia sozinha e sentia falta de uma companhia. Lembro-me de ouvi-la narrar esse episódio, foi um daqueles encontros em que a garganta fecha e as palavras não fazem sentido. Tinha um carinho especial por ela, não sei explicar, só sentia. Muitas vezes, nós da equipe de atendimento, passávamos parte da sessão segurando suas mãos; lado-a-lado seguíamos. Cristina, uma mulher negra marcada por um episódio de violência que a fez perder a visão e, desde então, passou a experimentar a opressão vivida por distintos marcadores sociais da diferença: pobreza, negritude e deficiência. É fundamental ressaltar os desafios de ser uma mulher com deficiência, problematizar e sinalizar a invisibilidade e, como ressalta a antropóloga feminista Anahí Mello, “a dupla desvantagem devido a uma complexa combinação de discriminação baseada em gênero e deficiência” (Mello & Nuernberg (2012, p 639). É uma batalha como aponta a também antropóloga Debora Diniz, uma “dupla batalha: pelo seu sexo e pelo corpo com lesões” (Diniz, 2007, p. 59).
Aqui ressaltamos algo que o capacitismo insiste em nos fazer esquecer: que pessoas com deficiência possuem histórias que vão além da deficiência. Que possuem essa identidade, e muitas outras relacionadas à gênero, raça, classe social, orientação sexual, e por aí vai. São pessoas que possuem desejos, amores, sonhos e histórias singulares de vida. Camila Alves (2016) mulher cega, doutora em Psicologia e ativista dos direitos das pessoas com deficiência nos convoca a apostar nas narrativas de resistência e nas experiências de quem as conhece na carne, tornando a história da deficiência e de outras diferenças algo menos teórico, mais real e vivido.
É pertinente ressaltar a colaboração da epistemologia feminista Eva Kittay (1999) para os estudos sobre deficiência e de como a discussão entre corpo, gênero e relações de poder se entrelaçam na experiência social da deficiência. Sabe-se que as primeiras reivindicações dos movimentos feministas, de modo geral, foram a de denunciar a opressão experienciada pelas mulheres. Dentre as inúmeras contribuições, na perspectiva conceitual, entre os campos de Estudos Feministas e de Gênero e os Estudos sobre Deficiência, Anahí Mello e Adriano Nuenberg (2012) que se dedicam aos estudos da deficiência ressaltam a desnaturalização do corpo, uma vez que este constrange a corporalidade hegemônica tomada como referência. Nesse sentido, a interseção entre as categorias gênero e deficiência denuncia o corpo enquanto construção social, histórica e cultural, definindo pelo que ele pode e não pode fazer/ser.
A primeira geração de teóricos do modelo social da deficiência era liderada por homens com lesão medular, e foram nomeados pelas teóricas feministas como membros da elite dos deficientes, como lembra Anahí Mello e Adriano Nuenberg (2012). O que, por sua vez, mantinha as mulheres, com e sem deficiência, subjugadas aos discursos e práticas dominantes de gênero e classe. É nesse contexto que surge a segunda geração desse modelo, pautado nas reivindicações das teóricas feministas que trouxeram à tona as discussões em torno da importância do cuidado, da experimentação de um corpo doente e com dor. Além disso, “foram as feministas que introduziram a questão das crianças deficientes, das restrições intelectuais e, o mais revolucionário e estrategicamente esquecido pelos teóricos do modelo social, o papel das cuidadoras dos deficientes” (Diniz, 2007, pp. 3-4).
Debora Diniz (2003) aponta que um dos pontos em comum entre o movimento feminista e os estudos sobre deficiência é o fato de que tanto o feminismo quanto os estudos sobre deficiência se dedicam a combater a desigualdade e a opressão de grupos vulneráveis. Adriana Dias (2016), doutora em antropologia social, também compartilha desse argumento ao compartilhar o Relatório Mundial sobre Deficiência de 2011, que expõe que a taxa de prevalência de deficiência no sexo feminino é de 19,2%, enquanto nos homens é de 12%. O relatório afirma que mulheres recebem menos cuidado na infância, principalmente nos países menos desenvolvidos e, por isso, desenvolvem deficiência como consequência de abusos sexuais e partos mal conduzidos. Além disso, “as mulheres e meninas com deficiência apresentam taxas mais altas de violência baseada no gênero, abuso sexual, negligência, maus tratos e exploração do que as mulheres e meninas sem deficiência (sp)”, e não termina por aí, pois “mulheres com deficiência física e cegas, duas vezes mais, surdas, cinco vezes mais, e com deficiência intelectual ou múltipla, nove vezes mais.
PRÁTICAS ANTICAPACITISTAS: QUANDO O PESSOAL É POLÍTICO
Não sei vocês, mas quando nos deparamos com a expressão “o pessoal é político” ficamos intrigadas com as palavras “pessoal” e “político” em uma mesma frase. O que sabemos é que ela foi usada pela primeira vez num ensaio escrito na década de 1970 pela jornalista e ativista feminista Carol Hanisch (1969) e intitulado The Personal is Political, compondo a coletânea Notes from the Second Year: Women ‘s Liberation (traduzido aqui como ‘Notas do segundo ano: libertação das mulheres’). Uma informação interessante é que, em momento nenhum do texto, a autora utiliza a expressão tal como a conhecemos hoje, o que ela afirma é que “os problemas sociais são problemas políticos’’ (sp). Uma curiosidade é que o mérito de ter nomeado o texto com o título o pessoal é político é atribuído às organizadoras do livro Shulamith Firestone e Anne Koedt (1970).
Mas o que queremos de fato ressaltar é que o texto que tornou famosa a expressão “o pessoal é político” emerge na segunda onda do feminismo no final dos anos 1960, fermentado pela experiência dos grupos de conscientização feminista criados como parte do Women’s Liberation Movement nos Estados Unidos. O Movimento de Libertação das Mulheres tinha como pauta pensar politicamente as experiências pessoais vividas pelas mulheres no ambiente privado, evidenciando que “os problemas vivenciados no seu cotidiano tinham raízes sociais e demandavam, portanto, soluções coletivas”, como afirma a antropóloga Cecília Maria Sardenberg (2018, p. 18).
Para nós, pesquisadoras mulheres, compreender o contexto em que surge essa discussão do pessoal e do político mobiliza muitas afetações. Não poderia ser diferente, já que somos mulheres; mulheres-brancas-pesquisadoras que ao se dedicarem à prática científica experienciam, ainda, as opressões destinadas ao ser mulher numa sociedade patriarcal. O encontro com a expressão “o pessoal é político” nos convoca, então, a pensarmos politicamente as experiências pessoais das mulheres e de outros grupos oprimidos, como as das pessoas com deficiência.
Dito isto, compartilhar os relatos de pesquisa e os escritos que surgiram do encontro com o DC não tem a ver com um narcisismo de nossa parte, não escrevemos simplesmente para expor as lembranças e afetações de uma experiência. Experiência aqui não é sinônimo de um acontecimento, de algo que aconteceu; antes, tem a ver com aquilo que nos acontece. O professor de filosofia da Educação, com grande contribuição no estudo da experiência, Jorge Bondía afirma que “a experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca” (Bondía, 2002, p. 21).
Posto isso, escrevemos com a convicção de que narrar histórias, as histórias que nos tocaram, tem um papel político, pois cada história contada traz consigo o seu mundo, logo não se trata de nós, mas do que nos vincula. Josselem Conti (2015) afirma que o pessoal se torna político quando o encontro com o outro extrapola o eu e convoca a nós. Essa carta, portanto, é um convite à construção de um “nós”, pois o que poderia ser tomado como uma experiência estritamente pessoal das pesquisadoras torna-se um ato político porque conecta outras histórias e denuncia que os desafios experienciados pelas pessoas com deficiência não podem ser tomados como algo estritamente pessoal e individual. Ao anunciar a co-responsabilidade das práticas que forjam a experiência da deficiência multiplicamos e anunciamos as diversas possibilidades de existência.
A experiência da qual falamos (aquela que nos passa, nos toca) é uma experiência encarnada e, por isso, vocês estão diante de uma experiência que se fez e se faz corpo. Um corpo pesquisadora corpos pesquisadoras. Corpos que vinculados a novos actantes mobilizam e convocam outros corpos para essa escrita. Quanto a isso, trazemos a discussão proposta por Bruno Latour (2008) sobre o corpo. É muito boa! Mas não é simples! O autor afirma que para se estar vivo é preciso ter um corpo. Mas a que corpo Latour se refere? O bom é que a resposta vem através das palavras do próprio autor, quando afirma que: “ter um corpo é aprender a ser afetado, ou seja, efectuado, movido, posto em movimento por outras entidades, humanas ou não-humanas” (p. 39). Mas confidenciamos que essa resposta gerou outro embaraço: como se aprende a ser afetado? Quem é que ensina? Percebemos aqui a possibilidade de fazer dialogar a experiência de que falamos mais acima com esse corpo que é feito através daquilo que nos passa, nos acontece, nos toca. Logo, não se trata de um corpo qualquer, mas de um corpo que se articula, que é construído nas relações que travamos com o mundo e nas experiências de afetação. Abaixo, um fragmento do campo, que talvez lhes façam sentir e construir uma experiência-afetação própria, para além das compartilhadas aqui:
Fragmentos do campo
Helena diz: “Eu não desisto nem sei por que, mas não desisto... . Vou levando, não sei desistir”. Ela relata que teve uma semana difícil. Continua mudando os remédios, visto que sempre acontece de um remédio resolver um problema e criar outro; fala do incômodo de sentir que os médicos a tratam como cobaia, caso de estudo, uma vez que eles não têm certeza de como ajudá-la. Conta ainda que se sente forte por ver como a Zélia é forte, como a terapia a fez forte. Helena fala um pouco das dificuldades de todos, isso o que a motiva a não desistir, e afirma: “A vida é feita ao vivo, você não pode editar e tirar as partes ruins. Tinham me dado seis meses de vida, sexta-feira esses seis meses fazem um ano! De tanto passar a perna na morte acho que ela vai desistindo de mim. Agora também eu quero viver! Só de raiva!” Zélia diz: “Vocês me deram a mão e eu caminhei. Caminhei, caminhei e hoje me sinto mais forte. Eu acredito no grupo! Espero vê-los ano que vem. Quando o grupo tá no trilho a gente caminha que é uma beleza!” (Diário de Campo)
É lindo! Fiquei me perguntando se ela está viva... Que capacidade de produzir fim ela teve! Impressionante! Claro que isso me atravessa particularmente nesse momento devido ao diagnóstico de câncer de mama. Fico pensando no paliativo como manto de cuidado. Muitas coisas se definem no fim, ou melhor, a pergunta do sentido ganha outra força quando nos defrontamos com o fim. O que queremos deixar como resposta. O que continua de nós quando nós não estamos. Nesse momento, ressoa para mim o que ela quis dizer com “agora quero viver só de raiva”. Ela me fez ver uma lindeza na raiva. Os budistas dizem que a ação irada é aquela capaz de salvar um filho de cair no precipício. Você o segura pelos cabelos. Que puxão de cabelo, né?! Ficar viva de raiva é produzir sentido pela puxada de cabelo. (Diário de Campo)
Vocês perceberam que estamos compartilhando fragmentos do campo da forma mais ampliada possível, com impressões, afetações, narrativas, tanto de quem esteve no grupo, quanto de quem leu um relato e o está sentindo em outra temporalidade? Pois é, a experiência da qual nos fala Bondía (2002) não se encerra em um tempo-espaço pré-definido. E vocês, o que sentem com essa experiência-leitura?
CAPACITISMO: HISTÓRIA ÚNICA?
Narrar as histórias do DC é como espalhar modos de existência e possibilidades de vida ainda não pensadas. Narrar as histórias do DC é confrontar a história única da deficiência. Já ouviram falar sobre a História Única? Ainda não? Vamos a ela! A História única está condicionada às relações de poder. Para Chimamanda Adichie (2009) não é possível falar dessa História sem mencionar como as narrativas são contadas, quem as conta, quando e quantas vezes são propagadas.
Pensemos na História da deficiência... Essa que inscreve as pessoas cegas e com baixa visão nas narrativas da incapacidade condicionando à deficiência ao desvio de uma norma corporal capitalista, que entende o corpo sem deficiência como aquele com maior capacidade de produção. Mas será que sempre foi assim? Se entendermos que sim, então quem contou e ainda conta essa História?
Gostaríamos de partilhar com vocês alguns dados que nos ajudam a pensar os actantes que engendram essa História. Consta que, nos períodos mais avançados da pré-história e com o gradativo domínio da natureza, eram confeccionados vasos e urnas de cerâmica que auxiliavam na manutenção de alimentos e no acúmulo de água. Vocês devem estar se perguntando por que trazemos essa informação... Na verdade, quem a traz é o escritor Otto Silva (1987), acrescentando a informação de que houve um período da História em que eram encontrados, dentro desses vasos, pessoas com sinais explícitos de variações corporais, como corcundas e pessoas com nanismo.
Na Antiguidade, o estilo de vida nômade era comum entre os povos. Estes não tinham uma habitação fixa, de modo que mudavam de lugar permanentemente. Como sobreviviam da caça, pesca e da coleta de alimentos, quando necessário, deslocavam-se para procurar melhores condições de vida. Até aí nenhum problema, não é mesmo? Mas e se eu acrescentar que as pessoas que não tinham condições de se cuidarem sozinhas, eram consideradas como pessoas que atrapalhavam a organização grupal, e consequentemente eram deixadas para trás?
Imaginamos que não deve ser fácil saber dessas informações. Mas as histórias não param por aí. Ainda na Antiguidade, era comum a prática do infanticídio. Quando um recém-nascido não apresentava sinais de vitalidade, ou quando suas características corporais eram classificadas como monstruosas – e, só para pontuar, a palavra monstruosa diz daquelas crianças que nasciam com algum tipo de variação morfológica ou sem algum membro – o direito à vida lhes era negado. O que autoriza um ser humano a decidir sobre a vida de outro ser humano?
De acordo a educadora com Maria Aranha, era comum, quando as crianças nasciam com alguma limitação corporal ou poucas chances de sobrevivência, serem abandonadas em “esgotos localizados, ironicamente, no lado externo do Templo da Piedade” (Aranha, 2001, p. 2). Assim, até os recém-nascidos tinham seus destinos traçados mediante uma sociedade incapaz de acolher a alteridade. É, parece que a diferença sempre foi uma questão para a humanidade. E eu que pensava ser a diferença aquilo que denuncia a nossa humanidade! Será que se tivesse sido diferente lá nos primórdios, hoje, as pessoas com deficiência ainda enfrentariam os desafios e preconceitos dirigidos a elas, a vocês? Será que a diferença hoje estampada nos corpos de pessoas com deficiência, seria só uma diferença ao invés de uma marca que precisa ser amenizada, reparada?
Também se acreditava que as pessoas com diversidades corporais eram alvo de alguma divindade, uma espécie de castigo divino devido a práticas pecaminosas. O doutor em saúde pública, Ray Pereira (2008) afirma que essa concepção influenciou fortemente o Ocidente e que, ainda hoje, a deficiência tem como possível explicação os elementos religiosos ou sobrenaturais.
Fragmentos do campo
Chegamos... Vai ser aqui então que iremos passar todos esses meses juntos. Uma sala pequena, com umas vinte cadeiras. Alguns participantes chegaram... É a hora! É agora! O que eu faço? Ajudo ou não a se sentarem? Será que já conhecem a sala? Alexandra se apresenta e auxilia Carlos a se sentar, logo entram Jane, Fernando e Cristina. Na espera dos outros participantes percebo Fernando de braços e pernas cruzadas, olhando para um ponto fixo; Carlos mexendo os dedos como se tocasse um piano. Silêncio. Dúvida do que vai acontecer. Reconfiguração do campo: alguém sugere modificações para ficarmos longe da porta. Por quê? Não sei. Descobre-se que Carlos tem alguma deficiência auditiva, muda-o de lugar, para que fique no centro, onde talvez seja melhor para escutar a todos. Sentou-se então ao meu lado, me apresentei: “Oi! Eu sou a Elisa”. Respondeu, na verdade, me perguntando se eu iria perguntar sobre a vida dele, e daí começou, parecia que não ia parar... Falou da sua infância, que não teve família, pois sua mãe o abandonara, ela era muito nova, naquela época seria considerada uma prostituta, mas agora já seria normal. Foi criado num internato. Caiu no mundão e hoje é cego porque pecou muito, está passando por dificuldades, mas encontrou a salvação em Deus. PUTZ! Eu respondo alguma coisa? (Diário de Campo)
A relação entre deficiência e religião vai ganhando contornos mais potentes na Idade Média, principalmente com o advento do Cristianismo, que dissemina o legado da caridade, como destaca a pedagoga especialista em acessibilidade cultural Dilma Negreiros (2014), mas também alimenta o imaginário social de que as pessoas com alguma deficiência são vítimas do pecado ou da ira divina, tal como relata Carlos no diário acima. É incrível como se busca explicações para tudo aquilo que escapa aos padrões pré-estabelecidos pela sociedade. Eis aí os efeitos do capacitismo. Fionna Campbell (2001), acadêmica ativista interdisciplinar e professora de estudos sobre deficiências e habilidades, aponta para a compulsão de internalização do capacitismo pela dificuldade de se interrogar pela diferença, imaginar um ser humano diferente. O espanto ao diferente nos impede de reconhecer nossa própria singularidade e, por consequência, a singularidade que performa os diversos corpos. Nesse sentido, a pessoa com deficiência é a tradução da diferença, é a alteridade encarnada.
Há pouco tempo me deparei com algo que me fez pensar em como a crença da deficiência ligada à religião está muito bem acomodada em nós. Sua propagação é tão sutil, que às vezes nem somos capazes de perceber. Otto Silva nos convida a pensar nos desenhos animados, nas histórias em quadrinhos e programas de entretenimento que estão disponíveis para as crianças. Vocês já reparam que as/os vilãs/vilões por vezes são representadas/os por pessoas com alguma deficiência? Ele questiona: “Qual o motivo? Está ainda subjacente a crença de que um corpo defeituoso apenas pode abrigar um espírito malévolo? Ou será para ir condicionando nossas crianças e nossa sociedade ao repúdio do mal, ligando-o às ideias de deformidade?” (Silva, 1987, p.154).
Fragmentos do Campo
Júlio emenda contando da sua experiência dos apenas 5% de chance de sobreviver aos quatro tumores (três do tamanho de um limão e um do tamanho de uma laranja). E Marli pergunta: “Por que você não fez um suco? Com todos esses limões e laranja...” Todos riem. Júlio diz que até brincou com o médico: “se eu soubesse doutor teria colocado um canudinho e sugado todos os tumores”, e reproduz o barulho de sucção ao mesmo tempo em que finge estar segurando um canudo... Marli volta a falar que gostaria de participar da promoção da rádio “Um sonho de Natal da Tupi”, mas não dá mais tempo de enviar a carta. O sonho de Natal dela é ganhar uma ceia. Bruna pede para que Marli descreva como seria essa ceia, ela diz: “arroz e pode ser até frango mesmo” ... Marli relata que queria uma ceia diferente de um miojo, lembrando que no ano retrasado nem o miojo comeu porque a tristeza era muita. Hélio comenta de sua pesquisa que trouxe o resultado de que 70% das pessoas no IBC passam as datas comemorativas sozinhas. (Diário de Campo)
Que dia difícil este! Recordar esse episódio gera muitas sensações em mim. As lágrimas chegam novamente. Posso (re)sentir o clima da sala: era tenso. Dizia de uma dor que não sabíamos como lidar. Tinha um silêncio entalado, sabem? A equipe de atendimento se entreolhava na expectativa de que alguém dissesse algo capaz de nos livrar daquela dor. A dor nos unia naquele encontro, a dor compartilhada encontrou no acolhimento do grupo a possibilidade de se dizer, de se mostrar, de se fazer ouvir. Era preciso. Nós fizemos o possível: permanecemos lá. A dor permaneceu em nós e a levamos para casa junto com aquele silêncio entalado. Com o tempo, as palavras foram pedindo passagem ao silêncio e foi possível falar sobre a dor que compartilhamos com Marli. Como Camila Alves afirma: “Sim, o outro que interpelamos nos interpela de volta, cobra que testemunhemos, por vezes, uma dor quase indizível” (Alves, 2016, p. 24).
Fragmentos do Campo
Terça-feira foi um dia muito agitado pra mim. Cheguei ao IBC 13h50min, estava cansada e irritada pela longa viagem de três horas que fiz para chegar ao atendimento. Neste dia, o trânsito estava um caos... Antes de entrar na sala, tentei me acalmar e me concentrar, mas não deu certo. Sentia-me ansiosa porque estava atrasada. Enfim, entrei assim mesmo. Disse boa tarde a todos e logo me sentei para não bagunçar o encontro. Estavam no grupo Marli, Jorge, Zélia, Hélio, Fábio e Ivan. Fábio diz que, como já está no final do ano, não dá mais tempo de fazer nada. Ele continua dizendo que a terapia o ajuda: “aqui boto pra fora, converso, já dá uma aliviada, uma injeção de ânimo, relaxamento”. Em seguida, comenta que queria, ou vai, não tenho certeza, ir como voluntário para Cuba: “a gente tem que se arriscar, ver o que acontece, a medicina lá é ótima”. Marli diz que tem medo de se oferecer como voluntária e voltar com o olho torto. “Ele é bonitinho assim, perfeitinho... ! Não quero enxergar não, quero ficar cega mesmo”, afirma ela. Essa frase me impacta. “Como assim não quer voltar a enxergar?”, penso um tanto indignada. Todos começam a falar ao mesmo tempo. Bruna diz: “Eiiii tá todo mundo falando ao mesmo tempo!” Gosto da maneira como ela faz isso, ela se faz ouvir. Perguntam pra Marli porque ela não quer voltar a enxergar, e ela responde: “Quando a pessoa enxerga tem que ir pra fila do banco.” Ivan fala pra ela: “Imagina quanta coisa boa você ia fazer... ajudar suas netas, sua filha”. Ela responde: “Pode ser... Acho que não.” Ela continua afirmando que se um dia voltar a enxergar vai fingir que é cega. Zélia diz: “O médico já me desesperançou de vez”. Fábio questiona se é da vontade de Deus ele ficar cego. Marli anuncia: “Se eu voltar a enxergar não fico um ano viva... Se eu voltar a enxergar, acho que minha filha me mata”. Alguém pergunta por que, Marli diz: “porque ela é muito porca, suja”. Zélia e Ivan perguntam: “se você enxergar isso vai mudar?” Ela responde: “Aí eu vou embora porque não vou aguentar ver isso”. Lembrei-me daquele ditado: “o que os olhos não veem o coração não sente.” Alguns participantes dizem pra ela: “está acontecendo, você vendo ou não”. Bruna diz para Marli: “Você num vê com o coração?” Hélio interrompe e pergunta: “Se cada um de vocês voltasse a enxergar o que vocês fariam?” Ivan: “Eu sairia pela rua correndo... gritando”. Fábio: “Eu não sairia daqui. Iria me oferecer como voluntário para alguma coisa”. Zélia: “Voltaria a estudar”. Hélio: “Eu ia me dedicar mais, ajudar mais as pessoas. Quando eu era bom, não ajudava tanto”. Marli: “Faço minhas as palavras do Hélio”. Ivan: “Será? Você disse que voltar a enxergar ia te matar”. Gosto da resposta do Ivan. (Diário de Campo)
A afirmação que Marli fizera sobre não querer voltar a enxergar, e que tanto me impactou, vai se tornando menos absurda à medida que a conhecemos melhor. Fui percebendo que sua fala não era rebeldia, ela não estava tentando chamar a atenção. A minha escuta conversou com sua fala no momento em que eu pude perceber o meu capacitismo atuando, indignada com o fato de uma pessoa cega não desejar enxergar. Noto que a minha atitude concretizava ali o peso que a sociedade atribui à ausência da visão. Por um tempo não fui capaz de compreender que a vida de uma pessoa cega é muito mais do que o fato de não ver.
Mais uma vez voltamos ao capacitismo, a nossa postura impulsionando os discursos e as práticas discriminatórias dirigidas às pessoas com deficiência e fazendo-nos acreditar que a capacidade de uma pessoa está pautada única e exclusivamente naquilo que seu corpo é capaz de fazer, o que Anahí Mello e Adriano Nuenberg (2012) nomeiam de corponormatividade. Adriana Dias acrescenta que, o capacitismo “é um neologismo que sugere um afastamento da capacidade, da aptidão, pela deficiência” (Dias, 2013, p. 5).
Fragmentos do campo
Alguém diz: “não podemos deixar de ser feliz!” Hélio: “Eu falei uma vez: nós só perdemos a visão. Somos cegos, não perdemos a noção. Na minha casa eu faço tudo”. Ele continua e afirma que no dia da consciência negra foi para Paquetá sozinho, sem que ninguém soubesse. Fala para a família que tem noção das coisas. Marli se pronuncia: “Eu não vejo, mas sei onde tô”. Hélio: “A gente tem que se fazer respeitar”. Hélio acrescenta: “Você não pode se fazer de coitado. Temos que mostrar que somos capazes, quando não sei, pergunto”. Marli encerra: “Ele é deficiente e não demente.” (Diário de Campo)
O diálogo acima traz à memória uma mobilização disseminada nas redes sociais pelas pessoas com deficiência no dia três de dezembro de 2017 data que marca o ‘Dia Internacional das Pessoas com Deficiência’. Estamos nos referindo a hashtag #écapacitismo quando que movimentou as redes sociais com o intuito de denunciar práticas capacitistas. Apresenta-se como uma ferramenta política, um manifesto diante do preconceito e invisibilidade vivenciados pelas pessoas com deficiência. Sobre a hashtag (#), esta é uma expressão bastante comum entre as pessoas que utilizam as redes sociais, sendo empregada para categorizar os conteúdos publicados, favorecendo uma interação dinâmica entre o assunto e as pessoas que se interessam por ele.
A primeira hashtag que compartilhamos aqui é #écapacitismoquando você chama uma pessoa com deficiência de “especial”, negando-lhe o direito a uma vida ordinária, pronunciada pela Anahí Mello (2016). Aqui questionamos sobre esse lugar encantado, essa ‘bolha alienígena’ em que confiamos viver as pessoas com deficiência. Uma vida ordinária... Por que etiquetamos as pessoas com deficiência de especiais? Porque somos capacitistas. Coitadas? Porque somos capacitistas. Caro capacitismo, aprendemos com você a nomear para dominar, para garantir nossa normalidade, defendendo a necessidade de seguir com nossa vida ordinária.
Seguimos com a #écapacitismoquando alguém quer saber algo sobre a pessoa com deficiência, mas pergunta a quem o acompanha e não ao próprio, como ressalta Cintia Florit (2016). O discurso capacitista está tão disseminado em nós e por nós, que não há problema algum em poupar uma pessoa com deficiência da odiosa tarefa de escolher a própria roupa ou a sua comida num restaurante. Nós escolhemos por elas! Silenciamos. Calamos. Apagamos. Esvaziamos de humanidade!
Anahí Mello faz uma importante consideração nesse sentido. Ela ressalta que uma pessoa com deficiência, com tetraplegia severa, por exemplo, por restrição da autonomia, provavelmente não terá condições de se vestir sozinha, o que não dá ao capacitismo o direito de privá-la da possibilidade de escolher a roupa que deseja vestir, roubando sua independência. Assim, “autonomia (controle sobre o próprio corpo e sobre o ambiente mais próximo) e a independência (faculdade de decidir por si mesma) são os dois lados da mesma moeda, fundamentalmente importantes na vida das pessoas com deficiência” (Mello, 2010, p. 176).
Logo, #écapacitismoquando o profissional de saúde trata a pessoa com deficiência com voz de criança, como contesta Gabriel Matheus (2016). Também #écapacitismoquando uma pessoa absolutamente ESTRANHA parou a mim e minha mãe na rua voltando de uma ótica para dar “parabéns” pra minha mãe por estar me levando pra sair de casa (que eu me lembre em momento algum ela me dirigiu a palavra), como relata Gregory Dias (2018). Posto isso, entendemos que o capacitismo denuncia a complexidade das questões relativas à deficiência e à distribuição de privilégios que garante. Expõe o preconceito e a discriminação na sua forma mais sutil, por vezes disfarçado de atitudes elogiosas. Agimos a partir da ideia de que é preciso poupar, agradar, prestar elogios para compensar a tragédia que é a vida de uma pessoa com deficiência.
Fragmentos do campo
Cristina mexe muito nas mãos enquanto olha para baixo. Ela me pareceu mais tímida. Contou-nos que o grupo é a atividade que ela mais gosta no IBC. A Diana comenta que o grupo a fortalece, que a escuta é o que a ajuda a perceber que existem pessoas com mais problemas do que ela. Me identifiquei com a fala da Diana porque era isso que o grupo representava nesse momento pra mim: fortalecimento. A Cristina tornou a demonstrar que gosta de estar ali: “O grupo é o que me faz feliz. Quando saio daqui, fico triste”. Ela é sozinha e a solidão é muito ruim. Melissa diz que a alegria deve ser levada da porta para fora. Que ela liga para as pessoas para sumir com o vazio que ela busca preencher. Cristina fala que seus parentes dizem que sua perda de visão é um castigo pelos erros que ela já cometeu na vida. O grupo reage e afirma que não é por aí. (Diário de Campo)
Rafaelle e Bruna começaram a dar um tom mais de fechamento à sessão, reafirmando que esse trabalho é para compartilharmos as nossas lutas e destacam que o que faz o grupo fluir e crescer cada vez mais é a nossa aposta nele. Helena diz: “às vezes a gente acha que o problema da gente é muito grande, mas a gente se depara com dramas maiores”. Zélia ressalta: “eu acredito nesse grupo, vocês me trouxeram a vida, continuo acreditando nesse grupo piamente.” (Diário de Campo)
Ah, o grupo! Quanta potência e possibilidades de vida o dispositivo clínico engendrou. Seus efeitos podem ser rastreados tanto nos fragmentos do campo, quanto nas afetações impressas pelas pesquisadoras nessa escrita, denunciando o capacitismo enquanto prática e discurso alimentados pelo ideal capitalista de que um corpo é aquilo que ele deveria ser e produzir. Assim como Zélia e Helena, nós apostamos no grupo porque entendemos o quão potente pode ser o ato de narrar histórias quando essas conectam outras vozes e performam outros modos de existir e (re-)existir.
Com isso, vamos finalizando essa carta... O diálogo jamais! Esperamos que essas situações, problemáticas e questões compartilhadas nela ressoem de alguma forma por aí. A forma não existe a priori, ela vai se performando a cada instante-encontro. Desejamos mais ainda: que as questões aqui apresentadas possam produzir outras! Que possam multiplicar-se dentro de vocês! Mas pode ser fora também, desde que seja COM. Caso contrário, talvez perca o sentido… Que possamos, não apenas vocês, mas nós aqui também, ter coragem de reconhecer e dialogar com o capacitismo que nos habita, de interrogá-lo. Que possamos ser anticapacitistas, assim como nos ensinou a ativista pelos direitos das mulheres Ângela Davis durante um discurso nos Estados Unidos, na década de 1970, que “numa sociedade racista não basta não ser racista, é preciso ser antirracista”.