INTRODUÇÃO
As Comunidades Terapêuticas (CTs) para o tratamento de pessoas com problemas no uso de álcool e outras drogas existem no Brasil desde a década de 1960, mas tiveram marcante expansão nos últimos 25 anos (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada [IPEA], 2017, p. 17). Além da significativa abertura de novas CTs, os últimos anos também representaram um importante período de regulamentação e inclusão destes serviços na oferta assistencial prestada pelo Estado brasileiro à população, com o financiamento público das mesmas (Santos, 2018).
Por outro lado, inspeções interinstitucionais (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2011, 2018) vem apontando a presença de diferentes tipos de abusos, maus-tratos e mesmo situações de tortura em diversas CTs, caracterizando a violação de direitos “como uma regra” (CFP, 2011, p. 190). Os movimentos sociais ligados à luta antimanicomial afirmam que as CTs representam um retrocesso da Reforma Psiquiátrica Brasileira (RPB) (Rede Nacional Internúcleos Da Luta Antimanicomial [RENILA], 2014). Apontam ainda que o modelo assistencial das CTs está em desacordo com a Lei n° 10.216, que “dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental” (Lei n° 10.216/2001).
Diante desta contradição político-assistencial, com a participação em políticas públicas de um modelo assistencial associado à perda de direitos, nos questionamos como a pesquisa científica brasileira tem abordado o tema. O modelo assistencial das CTs no Brasil garante os direitos das pessoas que sofrem com o uso/abuso de substâncias psicoativas (SPAs)? Está próximo do proposto pela RPB? O que mais as pesquisas nos ofertam sobre o modelo de cuidado das CTs brasileiras? Para responder estas questões, decidimos realizar um estudo com o objetivo de mapear a produção científica sobre a assistência ofertada pelas Comunidades Terapêuticas no Brasil no contexto pós RPB.
METODOLOGIA
Desenvolvemos esta revisão a partir da metodologia das revisões de escopo, por ser mais adequada aos objetivos da pesquisa. Segundo o Manual do Revisor do Instituto Joanna Briggs (Aromataris & Munn, 2017), a revisão de escopo é uma revisão sistemática que utiliza questões de pesquisa mais abrangentes, indicada quando se deseja explorar conceitos chave na literatura, mapear evidências e lacunas na produção do conhecimento, examinar a condução das pesquisas em um determinado tema, ou como precursora de outras revisões sistemáticas. Como critérios de elegibilidade utilizamos o mnemônico PCC - Participantes, Conceito e Contexto (Aromataris & Munn, 2017), para seleção de pesquisas que tomam: como Participantes, as Comunidades Terapêuticas para tratamento de pessoas com problemas no uso de álcool e outras drogas; como Conceito de interesse, os elementos assistenciais destes serviços, incluindo as práticas utilizadas no cotidiano, modelo de cuidado, infraestrutura, relação com a rede assistencial, resultados ou consequências da atenção ofertada; e como Contexto, a atuação das CTs no Brasil após reforma psiquiátrica brasileira, tomando como referência o ano de publicação da Lei n°10.216/2001.
A busca dos textos foi realizada em maio de 2021, incluindo artigos científicos e literatura cinzenta - não publicada em periódicos -, nas bases: LILACS; INDEXPSI (artigos e teses); BDENF; SCIELO; DOAJ; PUBMED; SCOPUS; Catálogo de Teses da CAPES e Red de Repositorios Latinoamericanos, a partir de 2001 nas línguas português, espanhol ou inglês. Foram utilizados os mesmo termos de busca em todas as bases: (“comunidade terapeutica” OR “comunidades terapeuticas” OR “comunidad terapeutica” OR “therapeutic community” OR “therapeutic communities”) AND (“droga” OR “drogas” OR “drug” OR “drugs” OR “álcool” OR “Alcohol” OR “Alcoolismo” OR “Alcoholism” OR “Alcoholismo” OR “Substâncias” OR “Substance” OR “Sustancias” OR “Toxicomania” OR “Drogadição” OR “Addiction” OR “Drogadicción” OR “Dependencia quimica” OR “Drogodependencia”). Esta busca identificou 1.820 publicações. Na etapa de triagem, com leitura do título e resumo, bem como retirada de repetições, foram excluídas 1.681 que não atendiam os critérios de elegibilidade do mnemônico PCC. Após leitura integral do texto foram excluídas mais 87 publicações, dentre elas, 04 dissertações cujos achados foram publicados em outros textos selecionados. As etapas de seleção estão descritas na Figura 1.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Dentre as 51 publicações selecionadas, 42 são artigos publicados em periódicos científicos, 07 são teses ou dissertações e 02 são pesquisas publicadas por órgão técnico. Apenas 04 (8%) estudos foram publicados até 2010, 19 (37%) publicados entre 2011 e 2015, e 27 (55%) estudos de 2016 até os primeiros meses de 2021, demonstrando a atualidade e crescente interesse da pesquisa sobre o tema.
A Região Sudeste registrou 25 publicações (49%), a Região Sul 11 (21%), Centro-Oeste 08 (16%), Nordeste 06 (12%) e Norte 01 (2%), com proporções semelhantes para artigos e literatura cinzenta. A maioria das publicações encontrada é da área da Saúde, com 39 pesquisas (76%), enquanto 12 (24%) são das Ciências Sociais. No entanto, há um predomínio das Ciências Sociais na literatura cinzenta, com 07 (78%) das 09 pesquisas selecionadas. Quatro estudos foram publicados em língua inglesa, um em espanhol e os demais em português.
De acordo com a metodologia das pesquisas, 30 estudos (59%) utilizaram metodologia predominantemente qualitativa, 09 pesquisas (18%) com metodologia predominantemente quantitativa, 08 estudos (16%) realizaram pesquisas bibliográficas ou documentais e 04 trabalhos (8%) foram ensaios sobre o tema.
Os demais dados de interesse foram selecionados entre as informações disponíveis nos resultados/discussão e conclusão de cada estudo. Para seleção dos dados, mapeamos os principais elementos assistenciais apresentados, elegendo aqueles que representavam melhor as características do modelo das CTs e contemplassem as perguntas desta pesquisa. Agrupamos estas informações nas 06 categorias a seguir: (a) Características gerais das CTs; (b) Tratamento Moral; (c) Regime Disciplinar; (d) CTs e a Reforma Psiquiátrica Brasileira; (e) Fiscalização e Adequação; e (f) Resultados do Tratamento. Os estudos selecionados estão descritos nos quadros 1 e 2. Os estudos também foram descritos a partir das categorias onde tiveram mais informação.
Quadro 1 Descrição dos artigos selecionados em periódicos
Referência | Objetivo | Metodologia | Categorias* |
---|---|---|---|
(Badagnan, Brito, & Ventura, 2013) | Refletir sobre as CTs no contexto da Reforma Psiquiátrica Brasileira. | Pesquisa documental |
RPB; RsT |
(Barbosa et al., 2016) | Analisar a reinserção social do ex-residente de CT. | Pesquisa transversal |
RsT |
(Barbosa, Gomes, Paes, Gomes, & Paula, 2020) | Refletir sobre o tratamento religioso e espiritual empregado nas CTs. | Pesquisa bibliográfica | CrG; RsT |
(Barcelos, Wandekoken, Dalbello-Araujo, & Quintanilha, 2021) | Discutir as consequências subjetivas da internação em CT. | Pesquisa transversal | TrM; RgD; RsT |
(Bastos & Alberti, 2021) | Analisar o aumento do protagonismo das CTs no contexto do paradigma psicossocial e da política de redução de danos. | Pesquisa bibliográfica e documental |
TrM; RPB |
(Bleicher & Viana, 2012) | Compreender as possíveis relações entre modelos psiquiátricos históricos e os atuais tratamentos oferecidos em CTs. |
Ensaio | TrM; RgD |
(Bolonheis-Ramos & Boarini, 2015) | Analisar possíveis aproximações do legado higienista com as propostas de intervenção das CTs atuais. | Pesquisa bibliográfica e documental | TrM; RPB |
(Carvalho & Dimenstein, 2017) | Conhecer concepções e práticas de Redução de Danos entre profissionais e usuários de um CAPSad III e uma CT. |
Pesquisa transversal | CrG; TrM; RgD |
(Cavalcante, Bombardelli, & Almeida, 2016) | Caracterizar as condições sanitárias das CTs. | Pesquisa transversal |
CrG; FeA |
(Cotta & Ferrari, 2015) | Refletir sobre modelo e método assistencial das CTs. | Ensaio | TrM; RsT |
(Duarte, Barros, & Cabral, 2020) |
Compreender como usuários avaliam a proposta terapêutica em um CAPSad III e em CTs. | Pesquisa cartográfica | TrM; RgD; RsT; RPB |
(Fossi & Guareschi, 2015) | Compreender a proposta de tratamento das CTs no contexto da política de drogas no Brasil. | Pesquisa documental | CrG; TrM; RgD |
(Galindo, Moura, & Pimentél-Méllo, 2017) | Analisar as estratégias terapêuticas das CTs no cuidado às pessoas que fazem uso de drogas. | Pesquisa documental | CrG; TrM; RgD; RPB |
(Gómez-Restrepo et al., 2017) | Identificar variáveis sociodemográficas, padrões de consumo, percepção de efetividade do usuário e cumprimento do plano de tratamento em CTs. | Pesquisa transversal | FeA; RsT |
(Gómez-Restrepo et al., 2018) | Descrever quantitativamente e qualitativamente CTs existentes em 5 países da América Latina. | Pesquisa transversal | CrG; FsA; RsT |
(Heckert et al., 2004) | Analisar a experiência da inclusão de equipe técnica interdisciplinar em uma CT | Relato de experiência | FeA |
(Lima & da Mata, 2013) | Analisar o papel do trabalho como elemento terapêutico em CT. |
Estudo de caso | RgD; RsT |
(Longo, 2015) | Compreender a perspectiva das CTs sobre a dependência de substâncias psicoativas. | Pesquisa bibliográfica | TrM; RgD |
(McBride, Lemos, Souza, & Goulão, 2018) | Descrever um programa estadual de melhora dos níveis assistenciais e profissionalismo em CTs. | Estudo de caso. | CrG; TrM; FeA |
(Melo & Corradi-Webster, 2016) | Conhecer e analisar o funcionamento cotidiano de uma CT. | Pesquisa transversal | CrG; TrM; RgD |
(Melo & Corradi-Webster, 2018) | Compreender os sentidos construídos por usuários a respeito da experiência de internação em CTs. | Pesquisa transversal | RgD; RsT |
(Oliveira, 2020) | Refletir sobre a produção de subjetividade no cotidiano de uma CT. |
Relato de experiência | TrM |
(Pacheco & Scisleski, 2013) | Discutir as práticas da CT, a abordagem da abstinência e a política de redução de danos. | Relato de experiência | CrG; TrM; RgD |
(Paula & Cruz, 2017) | Compreender a abordagem dos problemas de relacionamento interpessoal em CT | Pesquisa transversal | RgD |
(Perrone, 2014) | Analisar se o trabalho das CTs no Brasil se orienta em prol da Reforma Psiquiátrica de do Movimento de Luta Antimanicomial. |
Pesquisa bibliográfica e documental | RPB; FeA |
(Pinheiro & Torrenté, 2020) | Discutir como modalidades de tratamento em saúde mental contribuem, ou obstaculizam, o processo de desinstitucionalização. | Estudo observacional | RgD; RPB; RsT |
(Raupp & Milnitisky-Sapiro, 2008) | Descrever e analisar a atenção a adolescentes em uma CT. | Pesquisa etnográfica | CrG; RgD; RsT |
(Ribeiro & Minayo, 2015) | Analisar o papel de CTs religiosas na recuperação e reabilitação de usuários de drogas. | Estudo observacional | CrG; TrM; RPB |
(Rossi & Tucci, 2020) | Avaliar o acesso aos tratamentos para a dependência de drogas oferecidos aos usuários de crack em situação de rua. | Pesquisa transversal | TrM; RgD; RsT; RPB |
(Rui, 2010) | Descrever e analisar a relação de indivíduos e equipe com o cotidiano normativo do tratamento em CT. | Pesquisa etnográfica. | CrG; TrM; RgD |
(Scaduto, Barbieri, & Santos, 2014) | Avaliar possíveis mudanças ocorridas no funcionamento psicológico de pessoas submetidas a tratamento em uma CT. |
Estudo observacional | RsT |
(Scaduto, Barbieri, & Santos, 2015) | Investigar a vinculação aos princípios de uma CT e sua relação com o processo de mudança vivenciado pelos internos em tratamento. | Estudo observacional | RsT |
(Schlemper, 2017) | Discutir as relações institucionais e a necessidade de abordagem bioética no suporte às ações de inspeção da VISA nas CT. | Ensaio | FeA |
(Schlemper, 2018) | Contribuir com o debate ético sobre a vivência dos dependentes de drogas psicoativas nas CTs. | Ensaio | RPB |
(Schneider, 2011) | Compreender as experiências de usuários desencadeadoras de tratamento em instituições que defendem a proibição e repressão do consumo das drogas. | Pesquisa etnográfica | TrM; RsT |
(Silva, Frota, & Silva, 2017) | Analisar o funcionamento de CTs a partir das diretrizes da Política sobre drogas no Brasil. | Pesquisa transversal | CrG; RgD; RPB |
(Silva, Pinto, & Machineski, 2013) | Conhecer a percepção dos familiares em relação ao tratamento realizado em CT. | Pesquisa transversal | RPB; RsT |
(Silva, Souza, Batista, & Almeida, 2015) | Analisar o relacionamento entre as CTs e os serviços de saúde do SUS. | Pesquisa transversal | CrG |
(Silva, Tófoli, & Calheiros, 2018) | Identificar as práticas ofertadas como tratamento para o uso problemático de substâncias psicoativas em CTs. | Pesquisa transversal | CrG; RgD; FeA |
(Souza, Silva, Batista, & Almeida, 2016) | Caracterizar as ações e atividades voltadas para a reinserção social dos residentes em CT. | Pesquisa transversal | RgD; RsT |
(Teixeira, 2016) | Compreender os mecanismos sociológicos envolvidos na recuperação de indivíduos em tratamento em CT. | Pesquisa etnográfica | CrG; TrM; RgD |
(Vasconcelos, Paiva, & Vecchia, 2018) | Compreender as concepções de cuidado adotadas por profissionais que atuam em um Caps Ad e uma CT. | Pesquisa transversal | TrM; RgD; RsT |
*CrG - Características Gerais das CTs; TrM - Tratamento Moral; RgD - Regime Disciplinar; RPB - CTs e a Reforma Psiquiátrica Brasileira; FeA - Fiscalização e Adequação; RsT - Resultados do Tratamento.
Quadro 2 Descrição das pesquisas selecionadas na literatura cinzenta
Referência | Objetivo | Metodologia | Categoria* |
---|---|---|---|
(Aguiar, 2014) | Compreender os significados e as percepções do usuário de crack em relação às propostas das CT de caráter religioso. | Pesquisa etnográfica | CrG; RgD; RsT |
(Bardi, 2019) | Analisar os aspectos de alienação presentes nos discursos dos sujeitos egressos de CTs religiosas. | Pesquisa transversal | CrG; TrM; RgD; RPB |
(Fischer, 2004) | Analisar as condições de vida de ex-residentes de CTs verificando a superação do problema da dependência e a reintegração às suas comunidades. |
Pesquisa transversal | CrG; TrM; FeA; RsT; RPB |
(Gehring, 2014) | Traçar o perfil do residente/egresso e verificar a efetividade da CT enquanto política social de tratamento ao dependente químico. | Pesquisa transversal | CrG; TrM; RsT |
(IPEA, 2017) | Reunir informações sobre as CTs no Brasil, permitindo às Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad) o aperfeiçoamento dos processos de monitoramento e avaliação do financiamento das CTs. | Pesquisa transversal e Pesquisa etnográfica. | CrG; TrM; RgD; FeA; RsT |
(Ramos, 2018) | Analisar o processo de reinserção social dos egressos de uma CT no âmbito do mercado de trabalho. | Pesquisa transversal | CrG; TrM; RPB; RsT |
(Santos, 2018) | Reunir informações sobre as CTs no Brasil, permitindo a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad) o aperfeiçoamento dos processos de monitoramento e avaliação do financiamento das CTs. | Pesquisa transversal e Pesquisa etnográfica. | CrG; TrM; RgD; RPB; FeA; RsT |
(Silva, 2013) | Conhecer o funcionamento das CTs e analisar o significado atribuído as mesmas por residentes, egressos e funcionários. | Pesquisa etnográfica | CrG; TrM; RgD; RsT |
(Vicentini, 2011) | Analisar o modo como as CTs operam no campo do tratamento ao usuário de drogas através de suas práticas de internação. | Pesquisa cartográfica | CrG; TrM; RgD; FeA |
*CrG - Características Gerais das CTs; TrM - Tratamento Moral; RgD - Regime Disciplinar; RPB - CTs e a Reforma Psiquiátrica Brasileira; FeA - Fiscalização e Adequação; RsT - Resultados do Tratamento.
CARACTERÍSTICAS GERAIS DAS CTS
Muitos estudos descrevem as características gerais dos serviços investigados. O estudo mais abrangente abordando este tópico, realizado pelo IPEA (2017) com quase 2.000 CTs em todo território nacional, apresenta achados semelhantes a outros estudos de menor abrangência, demonstrando convergência dos achados. Muitas destas características também são apontadas nas inspeções anteriormente citadas.
Em geral, as CTs localizam-se em zonas rurais (Silva et al., 2017) e periferias de grandes cidades (IPEA, 2017), às vezes de difícil acesso (Melo & Corradi-Webster, 2016). Acolhe predominantemente público masculino (Fischer, 2004; Silva et al., 2017), havendo CTs mistas e uma minoria - em torno de 5% - que recebe exclusivamente mulheres (IPEA, 2017; Silva et al., 2018). Algumas são exclusivas para adolescentes (Raupp & Milnitisky-Sapiro, 2008), mas muitos serviços internam adolescentes junto com o público adulto (Aguiar, 2014; Lima & da Mata, 2013; McBride et al., 2018), inclusive crianças (Silva et al., 2018). Apresentam-se predominantemente como serviços filantrópicos (Melo & Corradi-Webster, 2016; Raupp & Milnitisky-Sapiro, 2008) mas também privados (Silva et al., 2017), com diferentes fontes de financiamentos. O financiamento público garante a oferta de vagas gratuitas (Raupp & Milnitisky-Sapiro, 2008; Silva et al., 2017) e viabiliza o funcionamento de muitos serviços (Melo & Corradi-Webster, 2016). Observou-se que até 50% das CTs recebiam financiamento de ao menos duas esferas públicas, municipal, estadual e federal (IPEA, 2017).
Muitas CTs funcionam sem profissionais de saúde, somente com monitores (ex-internos) e coordenadores do serviço (Gómez-Restrepo et al., 2018; McBride et al., 2018). A categoria profissional observada com mais frequência nas CTs é a psicologia, seguida do serviço social (IPEA, 2017; McBride et al., 2018). Em comparação com outros países da América Latina, observou-se que CTs brasileiras possuem menor presença de profissionais da medicina, psicologia e enfermagem (Gómez-Restrepo et al., 2017), bem como maior déficit de formação específica para os monitores destes serviços (Gómez Restrepo et al., 2018).
O tempo de internação varia de 06 a 12 meses, podendo ser estendido se necessário (Carvalho & Dimenstein, 2017; Pacheco & Scisleski, 2013; Teixeira, 2016). Há registros de internações involuntárias (Silva et al., 2017), e com mais frequência internações por motivações judiciais (Gehring, 2014; Rui, 2010; Vicentini, 2011), especialmente de adolescentes (Fischer, 2004; Raupp & Milnitisky-Sapiro, 2008; Silva et al., 2018). Algumas internações ocorrem como alternativa ao sistema prisional (McBride et al., 2018). Um dirigente de CT entrevistado afirmou que os estabelecimentos que aceitam internamento involuntário tem mais demanda de internação (Melo & Corradi-Webster, 2016). Também há internações não relacionadas ao abuso de álcool e outras drogas: por outras causas de sofrimento mental, por necessidade de abrigo ou proteção contra ameaças (Bardi, 2019; Rui, 2010; Silva et al., 2015).
O cotidiano é descrito como um ambiente livre de drogas, sexo e violência (Fossi & Guareschi, 2015; Perrone, 2014), mas também referido como um cotidiano marcado “pela obrigatoriedade do trabalho e modo de vida cristã” (Galindo et al., 2017, p. 234) ou de engajamento na vida evangélica (Teixeira, 2016). Há uma importante presença da religião no cotidiano das CTs (Barbosa et al., 2020; Pacheco & Scisleski, 2013; Scaduto et al., 2014, 2015). Registra-se que mais de 85% das CTs são ligadas a uma determinada religião, sendo a grande maioria de religiões cristãs (IPEA, 2017; McBride et al., 2018), estando diretamente vinculadas ou mantidas por organizações religiosas (Bastos & Alberti, 2021; Fischer, 2004). Práticas religiosas obrigatórias são registradas como parte do tratamento em diversos serviços (Duarte et al., 2020; Pinheiro & de Torrenté, 2020; Rossi & Tucci, 2020). Mas também registram-se ofertas de atividades religiosas não obrigatórias (Fossi & Guareschi, 2015; Silva et al., 2018). O discurso religioso é apontado como central (Vasconcelos et al., 2018) e organizador das práticas destes serviços (Ribeiro & Minayo, 2015). Um artigo afirma que a propagação da religião é um dos objetivos do tratamento (Barbosa et al., 2020). O modelo assistencial é fundamentado no tripé: espiritualidade, disciplina e trabalho (Fossi & Guareschi, 2015; IPEA, 2017; Ramos, 2018). No entanto, pesquisas destacam a prática da espiritualidade baseada em princípios cristãos (Fischer, 2004; Galindo et al., 2017) ou em religiões específicas (Silva et al., 2017), sugerindo que nomeia-se religião como espiritualidade para adequar-se à legislação (Bardi, 2019).
TRATAMENTO MORAL
O modelo assistencial das CTs é descrito, por muitas pesquisas, como um tratamento de base moral (Bolonheis-Ramos & Boarini, 2015; Raupp & Milnitisky-Sapiro, 2008; Santos, 2018) ou religioso-moral (Ribeiro & Minayo, 2015). O uso ou abuso de drogas é compreendido como parte de um problema maior, relacionado a um modo de vida disfuncional, delinquente ou imoral (Santos, 2018). O problema é frequentemente relacionado a pessoas moralmente fracas (Barcelos et al., 2021), em decadência moral (Teixeira, 2016), falha ou fraqueza moral (Bardi, 2019), bem como um desvio de caráter do indivíduo (Oliveira, 2020), percebido através de “sintomas morais” (Schneider, 2011, p. 317). A pessoa com problemas com drogas é compreendida como antissocial, manipuladora, pouco confiável ou propensa ao crime (Ramos, 2018; Vasconcelos et al., 2018). As drogas também são vistas como demônios e o seu uso relacionado ao pecado (Ribeiro & Minayo, 2015) ou traição à Deus (Teixeira, 2016).
Além da abstinência o tratamento busca uma mudança da identidade da pessoa, adotando novos valores e comportamentos descritos como honestidade, atenção responsável, ética no trabalho, autoconfiança e responsabilidade com a comunidade (Longo, 2015; Schlemper, 2017), construindo um novo modelo de vida (Ramos, 2018) ou uma nova personalidade (Silva, 2013), permitindo “viver corretamente” (Fischer, 2004, p. 118). O novo modo de vida é um parâmetro a ser seguido por todos os indivíduos em tratamento (Rui, 2010; Santos, 2018). O objetivo é promover a reconstrução dos valores morais das pessoas (Gehring, 2014; Teixeira, 2016). Para tanto, é necessário uma ruptura completa com a vida anterior, matando o velho indivíduo para que o novo surja (Barcelos et al., 2021), processo descrito também como “’renascimento’ do sujeito em outra ordem moral” (Raupp & Milnitisky-Sapiro, 2008, p. 366). Algumas CTs consideram os 09 meses de internamento como uma metáfora da gestação e nascimento de outro indivíduo (Silva, 2013). Esta transformação ou metamorfose (Schneider, 2011) é também descrita como um processo de conversão (Ribeiro & Minayo, 2015; Vicentini, 2011), geralmente convertendo à religião professada pela CT (Barbosa et al., 2020; Barcelos et al., 2021), mas também descrita como uma conversão “moral-subjetiva” (Santos, 2018, p. 96) e não necessariamente religiosa/espiritual.
Autores destacam a importância da prática do testemunho dado pelos internos nos grupos terapêuticos, em especial daqueles que já passaram pelo processo de conversão, pois “reforça a condição de liberto e incentiva com o exemplo” (Ribeiro & Minayo, 2015, p. 519). Compreende-se como uma técnica de recuperação, permitindo o reconhecimento da decadência e o resgate do valor moral perdido (Teixeira, 2016). Pesquisas relatam que não é permitido falar das experiências anteriores fora dos grupos e pouco se fala sobre as drogas em si (Pacheco & Scisleski, 2013; Rui, 2010), estabelecendo a proibição da droga sem discutir o significado da mesma na vida do indivíduo (Cotta & Ferrari, 2015). Observa-se que o testemunho nos grupos terapêuticos deve dar destaque ao sofrimento, medo e vergonha da vida anterior (Bardi, 2019; Bleicher & Viana, 2012), pois só “com a dor é possível aceitar que o controle da vida foi perdido e que há a necessidade de ajuda” (Rui, 2010, p. 60). Neste processo, o indivíduo é responsabilizado pelo seu sofrimento, devendo assumir a culpa por sua condição (Oliveira, 2020; Vasconcelos et al., 2018) e ao mesmo tempo, sua impotência diante do problema, que só pode ser enfrentado rendendo-se a um poder superior (Galindo et al., 2017; McBride et al., 2018).
A homossexualidade é considerada um comportamento moralmente desviante, com relatos de rejeição e desrespeito a este público (Bardi, 2019; Rossi & Tucci, 2020; Silva, 2013), registrando-se que a maioria das CTs não aceita pessoas transexuais ou transgênero (IPEA, 2017). As mulheres também sofrem julgamento moral mais rigoroso, voltado para expectativas da maternidade, recato e obediência feminina (Santos, 2018; Silva, 2013), sendo questionadas pelo uso/abuso da substância e por romper com seu papel social de mulher (Duarte et al., 2020). Dirigentes de CT afirmam que tratar do público feminino é mais desafiador (Silva, 2013), sugerindo que as mulheres são “mais propensas ao descontrole emocional, mais sujeitas a desequilíbrios hormonais e necessitariam de cuidados complexos” (Santos, 2018, p. 105).
REGIME DISCIPLINAR
As técnicas disciplinares nas CTs também são descritas como características do modelo assistencial. Os estudos destacam diversos elementos do cotidiano disciplinar, com diferentes graus de restrições ao contato com a vida exterior (IPEA, 2017; Rui, 2010). O contato com a família se dá mensalmente, de forma presencial ou por telefone (Pacheco & Scisleski, 2013; Souza et al., 2016), havendo serviços onde as visitas familiares só são autorizadas após os primeiros 3 meses de internação (Barcelos et al., 2021; Carvalho & Dimenstein, 2017). Outras CTs condicionam o contato com a família ao bom comportamento do usuário no serviço (Melo & Corradi-Webster, 2016; Souza et al., 2016). Por outro lado, uma pesquisa descreveu CT que autoriza contato diário com os familiares (Silva et al., 2017).
As atividades cotidianas costumam ser obrigatórias para todos (Bleicher & Viana, 2012; Galindo et al., 2017; Rui, 2010), exigindo-se adesão às mesmas sem questionamentos (Barcelos et al., 2021). Muitas não permitem corte de cabelo ou roupas da preferência dos usuários, com a função de “desidentificar e homogeneizar os acolhidos” (Santos, 2018, p. 50). A maioria dos serviços exige abstinência sexual, não permitindo relacionamentos afetivos durante a internação (Aguiar, 2014; IPEA, 2017), bem como restringindo relacionamentos mesmo após a saída do serviço (Bleicher & Viana, 2012; Rui, 2010). Há CTs que permitem relações sexuais entre pessoas casadas, com autorização prévia do estabelecimento (Pacheco & Scisleski, 2013). Uma pesquisa relata que a proibição sexual é muitas vezes subvertida clandestinamente pelos internos, expondo-os ao risco de infecções, pois o ingresso de preservativos é proibido no local (Silva, 2013).
Estudos descrevem práticas coercitivas e autoritárias (Rossi & Tucci, 2020; Vasconcelos et al., 2018; Vicentini, 2011) registrando a presença constante da vigilância e controle sobre os internos. Usuários de CT entrevistados referem sentirem-se presos e sem liberdade (Duarte et al., 2020; Melo & Corradi-Webster, 2018) associando o cotidiano ao de uma instituição militar (Rossi & Tucci, 2020). O ambiente é descrito como espaço de privação de liberdade (Bardi, 2019; Bastos & Alberti, 2021). Por outro lado, há usuários que identificam a rotina disciplinar como organizadora do indivíduo (Lima & da Mata, 2013). O cotidiano de disciplina e vigilância é citado como importante para a manutenção da segurança e proteção dos internos (Longo, 2015; Silva, 2013). Uma pesquisa considera que CTs que permitem a livre saída de usuários do serviço não são seguras (McBride et al., 2018).
Para garantir a adesão e cumprimento das regras e rotinas do serviço, o modelo de cuidado das CTs trabalha com um sistema de sanções e privilégios (Longo, 2015; Paula & Cruz, 2017). As sanções são apresentadas como práticas regulares diante do descumprimento de regras, sendo frequente: advertências verbais, aumento do trabalho, perda das atividades de lazer, restrição de contato com familiares, retirada de alimentação, aumento no tempo de tratamento ou desligamento do serviço (Melo & Corradi-Webster, 2018; Pacheco & Scisleski, 2013; Paula & Cruz, 2017; Santos, 2018; Teixeira, 2016; Vicentini, 2011). Há sanções consideradas humilhantes para os internos (Aguiar, 2014; Bardi, 2019; Pinheiro & de Torrenté, 2020). Por outro lado, a obediência às regras é recompensada com mais liberdade e privilégios no serviço, funcionando como estímulo à adesão à nova identidade. Estas práticas são descritas como formas de produção de sujeitos obedientes e disciplinados para a sociedade (Fossi & Guareschi, 2015; Galindo et al., 2017). A obediência é meta do tratamento (Aguiar, 2014) e um indicador da recuperação, permitindo ao usuário reconhecer “no acatamento da autoridade exercida pelo outro, parte fundamental da possibilidade de sua reconstrução” (Teixeira, 2016, p. 124).
A laborterapia é apontada como forma de disciplinamento dos indivíduos em tratamento (Barcelos et al., 2021; Silva et al., 2017), sendo também utilizada como punição através do aumento da carga de trabalho ou de serviços indesejáveis (Aguiar, 2014; Rui, 2010; Silva et al., 2018). A terapia pelo trabalho nas CT é descrita como uma prática normalizadora, ocupando o indivíduo e evitando tensões cotidianas na “criação de um corpo dócil” (Galindo et al., 2017, p. 236) e produtivo para a sociedade (Bleicher & Viana, 2012; Bolonheis-Ramos & Boarini, 2015). O trabalho também tem a função de sustentação do serviço, cuidando do ambiente e gerando renda para o estabelecimento (Silva et al., 2018; Teixeira, 2016). Há usuários que referem sentimento de exploração pelo trabalho e ausência de sentido no mesmo (Aguiar, 2014; Bardi, 2019), enquanto outros avaliam a formação profissionalizante durante o internamento como positiva (Silva, 2013; Vicentini, 2011) contribuindo para o desenvolvimento de habilidades e educação pessoal (Longo, 2015). Uma pesquisa destaca resultados positivos da laborterapia relacionados à possibilidade de escolha da atividade a ser desenvolvida, e não imposição da mesma (Lima & da Mata, 2013).
Pesquisas afirmam que as CTs possuem características de Instituições Totais, conforme conceito de Erving Goffman (Barcelos et al., 2021; Ribeiro & Minayo, 2015; Rossi & Tucci, 2020; Vasconcelos et al., 2018), compatível com instituições asilares. Estas características são descritas como: um modo de funcionamento que articula a perda da identidade individual; em um contexto de isolamento social; administrado através de regime disciplinar rigoroso; com internações realizadas de forma coercitiva - mesmo que não sejam involuntárias -; e que condicionam o destino do egresso vinculado à instituição (Santos, 2018, p. 44).
CTS E A REFORMA PSIQUIÁTRICA BRASILEIRA
As pesquisas apresentam visões contraditórias sobre a relação entre o modelo de cuidado das CTs e os princípios da RPB. Diversos estudos afirmam que as CTs tem origem em movimentos de reforma da assistência psiquiátrica na Europa e nos EUA, contrapondo-se ao modelo dos tradicionais hospitais psiquiátricos (Fischer, 2004; Perrone, 2014; Ramos, 2018; Schlemper, 2018; Silva et al., 2013). Um estudo discute que existe grande aproximação entre as bases conceituais da RPB e das CTs, como: cuidado em “rede de serviços”; “superação do paradigma da clínica”; “ampliação do conceito de saúde”; o “modelo psicossocial”, dentre outros, contribuindo para a desinstitucionalização através da ressocialização dos indivíduos (Perrone, 2014, pp. 575-576). Horizontalização das decisões, participação ativa do usuário e sua família, autonomia dos usuários, atenção psicossocial, alteridade nas relações são citados como elementos do modelo assistencial das CTs (Schlemper, 2018; Silva, 2013), o que aproximam as mesmas do modelo proposto na RPB. As CTs ainda são citadas como serviços substitutivos ao tratamento manicomial, assim como a “unidade básica de saúde, o hospital dia, os leitos psiquiátricos em hospitais gerais, os centros de atenção psicossocial” (Silva et al., 2013, p. 476).
Outras pesquisas se contrapõem a esta visão, afirmando que o modelo adotado atualmente pelas CTs brasileiras está muito distante daquele proposto na Inglaterra na década de 1940 (IPEA, 2017; Santos, 2018). As CTs são associadas a um modelo de tratamento asilar e de privação de liberdade (Bastos & Alberti, 2021; Bolonheis-Ramos & Boarini, 2015), com características institucionalizantes (Pinheiro & Torrenté, 2020), em parte assemelhando-se aos tradicionais manicômios (Bardi, 2019; Duarte et al., 2020). Afirma-se que o isolamento social e o distanciamento das relações, dentre outras características das CTs “não estão de acordo com as leis que consolidam os direitos dos portadores de transtornos mentais no Brasil” (Badagnan et al., 2013, p. 37). A inclusão das CTs na atual política de saúde é compreendida como um retrocesso das práticas antimanicomias e antiproibicionistas (Galindo et al., 2017; Rossi & Tucci, 2020), em “desacordo com as políticas de saúde mental já consolidadas” (Ribeiro & Minayo, 2015, p. 522) e “na contramão dos ideais do Movimento de Reforma Psiquiátrica brasileiro” (Silva et al., 2017, p. 14). Registra-se que, apesar de haver “algo de psicossocial do modelo das CTs” (Santos, 2018, p. 27), há marcantes diferenças entre as técnicas utilizadas nas CTs e aquelas previstas nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). O tratamento de base moral, que orienta o modelo de cuidado das CTs, é relacionado àquele adotado por Phillip Pinel e outros psiquiatras no século XIX (Barcelos et al., 2021; Bleicher & Viana, 2012; Santos, 2018).
Diante destes achados antagônicos, analisamos informações relativas à origem dos estudos, buscando semelhanças entre aqueles de posicionamento semelhante. Observamos que todas as pesquisas estão vinculadas a Institutos de Pesquisa ou Instituições de Ensino Superior, públicas ou privadas. Dentre os estudos que admitem compatibilidades entre as CTs e a RPB (Fischer, 2004; Perrone, 2014; Ramos, 2018; Schlemper, 2018; Silva, 2013; Silva et al., 2013): 05 (83%) foram realizados em instituições públicas e 01 (17%) em instituição privada; 02 (33%) desenvolvidos na região Sudeste e 04 (66%) na Região Sul; e 04 (66%) utilizando metodologias que proporcionaram contato direto com CTs, enquanto 02 (33%) utilizaram pesquisa documental, sem acesso direto a estas instituições. Por outro lado, dentre os estudos que afirmam incompatibilidade das CTs com os princípios da RPB (Badagnan et al., 2013; Bardi, 2019; Bastos & Alberti, 2021; Bolonheis-Ramos & Boarini, 2015; Duarte et al., 2020; Galindo et al., 2017; Pinheiro & Torrenté, 2020; Ribeiro & Minayo, 2015; Rossi & Tucci, 2020; Santos, 2018; Silva et al., 2017), observamos que: 11 (100%) estudos estão vinculados a instituições públicas; 06 (55%) foram realizados na região Sudeste, 03 (27%) na região Nordeste, 01 (9%) na região Sul e 01 (9%) no Centro-Oeste; finalmente, 04 (36%) foram realizados diretamente com CTs, enquanto 07 (64%) foram realizados através de pesquisa documental ou entrevistas com egressos destes serviços, mas sem contato direto com as instituições. Consideramos estes achados inconclusivos para realizar associações entre a origem dos estudos e o posicionamento dos mesmos, como citamos nas considerações finais deste trabalho.
Por fim, identificamos estudos que abordaram a relação entre as CTs e a rede de serviços, identificando que as mesmas fazem uso constante da rede SUS, especialmente unidades básicas de saúde e serviços de urgência, mas com menor relação com os CAPS ou a RAPS (Cavalcante et al., 2016; Silva et al., 2015; Silva et al., 2018). Profissionais de uma CT identificam a redução de danos, ofertada pelos CAPSad, como um tratamento de baixa qualidade, mantendo a situação de dependência das drogas (Carvalho & Dimenstein, 2017). Observa-se situações onde os encaminhamentos para a Rede de Saúde se dão principalmente para prescrição medicamentosa, sugerindo um “reforço à cultura de medicalização” (Silva et al., 2017, p. 18), enquanto outras CTs evitam fazer encaminhamentos para os CAPS por receio da introdução de tratamento medicamentoso, substituindo “uma droga por outra” (Silva et al., 2018, p. 330).
FISCALIZAÇÃO E ADEQUAÇÃO
Diversas pesquisa apontam a necessidade de adequação das CT, buscando superar diferentes problemas assistências, principalmente através de investimentos em fiscalização, pesquisas ou formação profissional nestes serviços (Paula & Cruz, 2017; Santos, 2018; Scaduto et al., 2014, 2015). Alguns estudos afirmam que há serviços que sequer deveriam ser chamadas de CTs, pois não cumprem um padrão mínimo de funcionamento (Fischer, 2004; Perrone, 2014).
O principal mecanismo de fiscalização destacado pelas pesquisas são aqueles definidos pelas normas da Vigilância Sanitária (VISA). A presença de alvará sanitário é muito variável, com estudos registrando a maioria das CTs com alvará ou em processo de emissão (Cavalcante et al., 2016; Silva, 2013). Uma pesquisa constata que as CTs em situação de regularidade com as normas da VISA apresentam equipes com maior número de trabalhadores, presença de equipe multiprofissional, menor quantidade de leitos e um menor índice de desistência entre os internos (Silva et al., 2018). A ausência de fiscalização regular é apontada como uma das causas de condições precárias nas CTs (Bardi, 2019).
No entanto, também se registra a insuficiência das normas da VISA para as fiscalizações (Santos, 2018; Vicentini, 2011). Uma pesquisa destaca que as adequações realizadas a partir das normativas atuais são predominantemente na estrutura física e contratação de profissionais, não abordando o modelo assistencial (Melo & Corradi-Webster, 2016). Propõe-se incorporar princípios da bioética social à formação de profissionais e processos de inspeção da VISA (Schlemper, 2017), bem como ampliar instrumentos de inspeção para verificação de fluxos e processos assistências de forma regular (Cavalcante et al., 2016). Critérios propostos por Georges De Leon, referente ao modelo e métodos dos CTs (De Leon G., 2008), são utilizados como indicadores de qualidade em diferentes pesquisas (Fischer, 2004; Gómez-Restrepo et al., 2017, 2018; McBride et al., 2018). A incorporação de profissionais técnicos da área da saúde é associada à melhora da assistência e funcionamento geral do serviço. Uma pesquisa descreve melhores resultados com o envolvimento de profissionais cristãos (Heckert et al., 2004).
Pesquisa do IPEA destaca cinco características do processo de adequação das CTs: capacitações; participação em entidades coorporativas; aumento de profissionais técnicos contratados; medicalização, com incorporação de medicamentos e saberes do campo médico/psicológico; e produção e acumulo de dados internos (IPEA, 2017, p. 35). O protagonismo de entidades coorporativas na definição de parâmetros mínimos de funcionamento, padronização e capacitação de profissionais e gestores destes serviços é destacado por diversas pesquisas, sendo a Federação Brasileira das Comunidades Terapêuticas (FEBRACT) a mais citada (Fossi & Guareschi, 2015; IPEA, 2017; Melo & Corradi-Webster, 2018; Perrone, 2014). As pesquisas também apontam que a adequação às normas da VISA - ou outros parâmetros definidos localmente - é uma condição necessária para acesso ao financiamento público (McBride et al., 2018; Silva et al., 2018). Outros estudos destacam que as CTs de maior vinculação religiosa apresentam mais dificuldade de adequação (Vicentini, 2011), apontando o proselitismo como um dos maiores desafios ao aprimoramento destes serviços (McBride et al., 2018).
RESULTADOS DO TRATAMENTO
Achados contraditórios também foram observados quando analisamos os resultados percebidos com o tratamento ofertado. Diferentes estudos constatam resultados terapêuticos positivos, considerando que o mesmo “colabora para a recuperação do usuário de drogas psicoativas de maneira geral” (Barbosa et al., 2020, p. 460). Usuários relatam satisfação com a nova vida e sua modificação interior (Ramos, 2018), bem como satisfação com o tratamento (Fischer, 2004). Observa-se que a terapia de mudança de identidade promove melhora do funcionamento psicológico com “desenvolvimento de recursos adaptativos mais maduros e socializados”, mas com benefícios variáveis a depender da severidade do sofrimento psíquico do indivíduo (Scaduto et al., 2014, p. 167). A reaproximação com a família e reinserção no mercado de trabalho são resultados relacionados a garantia de renda e ganhos de autonomia (Barbosa et al., 2020; Barbosa et al., 2016; Lima & da Mata, 2013; Ramos, 2018; Silva, 2013). Mas também há registro de CTs que não preparam os internos para o mercado de trabalho (Souza et al., 2016). Uma inserção profissional frequentemente citada é a atuação na própria CT como Monitor, mantendo-se vinculado à instituição (Barbosa et al., 2016; Ramos, 2018; Scaduto et al., 2014, 2015).
Os familiares de pessoas internadas em CTs referem satisfação com o tratamento, destacando como qualidades a ausência do uso de medicações e os longos períodos de internamento (Silva et al., 2013), referindo preferir o internamento nas CTs que em hospitais psiquiátricos (Barbosa et al., 2020). Importante ressaltar que 88% das internações em CTs se dá por intermediação dos familiares (IPEA, 2017). Finalmente, os estudos também trazem outras avaliações positivas pelos próprios usuários, registradas como sentimento de acolhimento (Carvalho & Dimenstein, 2017; Raupp & Milnitisky-Sapiro, 2008), segurança e proteção (Paula & Cruz, 2017; Rui, 2010) ou mesmo um descanso do uso das drogas (Pinheiro & de Torrenté, 2020) e relacionado aos cuidados ofertados pela CTs em momento de grandes rupturas (Schneider, 2011). O tratamento também é associado a “oferta de um objeto que alivia a angústia” do indivíduo (Scaduto et al., 2014, p. 168). Muitos resultados positivos são associados ao papel da religião e da fé (Barbosa et al., 2020; Barbosa et al., 2016; Duarte et al., 2020).
Por outro lado, pesquisas também afirmam que uma frequente consequência do tratamento é a produção de dependência institucional (McBride et al., 2018; Pinheiro & Torrenté, 2020; Raupp & Milnitisky-Sapiro, 2008), com afastamento dos indivíduos de suas redes de relacionamentos (Cotta & Ferrari, 2015), ruptura de trajetórias de vida (Schneider, 2011) e dificuldade de adaptação no retorno à vida cotidiana (Melo & Corradi-Webster, 2018; Rossi & Tucci, 2020), compreendendo como um tratamento que gera dependência e negação da pessoa como “sujeito autônomo” (Vasconcelos et al., 2018, p. 373). Registra-se que as características assistências das CTs condicionam “fortemente o destino social do egresso, gerando, por vezes, reincidência ou construção de uma ‘carreira institucional’”(Santos, 2018, p. 53). O isolamento provocado pelo longo período de internação é apontado como causa de ruptura de laços sociais e afastamento da família (Barcelos et al., 2021; Gehring, 2014; Silva et al., 2013), bem como associado ao aumento da depressão entre os internos (Barbosa et al., 2020). Outra consequência apontada é a produção de estigma e preconceito para os usuários destes serviços, ao difundirem uma visão moral e criminalizante sobre os mesmos, dificultando ainda mais sua relação na sociedade (Badagnan et al., 2013; Vasconcelos et al., 2018).
A alta é referida como um momento de angustia e insegurança, tanto para o usuário como para a família (Silva et al., 2013). Ex-internos relatam sentimentos de “vazio existencial” e “profunda solidão de ideais” fora das CTs (Ramos, 2018, p. 61). Os reinternamentos são frequentes (Gehring, 2014; IPEA, 2017), apontando-se como “fenômeno da ‘porta giratória’” (Pinheiro & Torrenté, 2020, p. 12). Manter o vínculo com grupos religiosos ou de autoajuda, voltados para os princípios das CTs, é apontado como fator de proteção contra o retorno do consumo após alta (Barbosa et al., 2016; Gehring, 2014; Silva, 2013).
O abandono das internações apresenta-se como uma importante consequência a ser registrada, que revela “o rigor do tratamento e sua inadequação em relação à parcela significativa dos que ingressam nas CTs” (Santos, 2018, p. 57). A alta evasão é apontada em diversas pesquisas (Aguiar, 2014; Carvalho & Dimenstein, 2017; Ribeiro & Minayo, 2015; Rossi & Tucci, 2020), chegando até a 80% de desistência de usuários em alguns serviços pesquisados (Silva et al., 2018). Estudos associam o abandono do tratamento ao rigor excessivo, insatisfação com as regras institucionais ou à incompatibilidade da pessoa com o tratamento de abstinência e conversão (Carvalho & Dimenstein, 2017; Duarte et al., 2020; Gómez-Restrepo et al., 2017; Gómez-Restrepo et al., 2018; Rossi & Tucci, 2020). Uma pesquisa propõe a conclusão do tempo mínimo de internação como indicador de eficácia do tratamento, considerando a desistência como insucesso terapêutico (Gehring, 2014).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Entre os estudos selecionados, não identificamos outra pesquisa bibliográfica com a mesma abrangência de bases e período pesquisados, apontando para a originalidade e abrangência desta revisão. Como fragilidade, destacamos a busca de dados feita por somente um revisor.
As pesquisas reafirmam a grande heterogeneidade presente entre as CTs brasileiras. No entanto, também apresentam achados que permitem traçar o perfil assistencial comum a estes serviços. O ambiente físico é fundamental para este modelo, viabilizando o isolamento social e o controle da rotina dos internos. A abordagem moral dos problemas psicossociais também é uma característica comum, com o estabelecimento de critérios diagnósticos, condutas e metas terapêuticas baseadas na moral institucional, conformando a prática clínica das CTs, apontando para a presença de uma clínica moral que contrapõe-se à clínica psicossocial. Esta clínica moral tem importante base religiosa, mesmo quando associada somente à espiritualidade, vinculada principalmente à moral cristã. O uso de sanções é inerente ao modelo assistencial, indicando naturalização das punições diante de comportamentos considerados inadequados, o que em nosso entendimento significa um estímulo aos diferentes abusos registrados.
A compatibilidade das CTs com o modelo de cuidado em saúde mental, instituído a partir de 2001, é tema divergente entre as pesquisas analisadas. No entanto, as características assistenciais identificadas, como o tratamento moral e o regime disciplinar, apontam para um antagonismo do modelo das CTs com a RPB. Isso nos sugere uma disputa de narrativa dentro do campo da pesquisa científica a respeito do lugar destes serviços na assistência em saúde mental, refletindo disputas presentes nas políticas públicas brasileiras. Os dados disponíveis nos estudos selecionados não nos permitem analisar o grau de alinhamento ou distanciamento ético-político de seus autores, e as consequentes implicações destes estudos com um cuidado em saúde centrado nos usuários, suas necessidades e modos de vida (Merhy et al., 2016), sendo uma limitação do presente trabalho, que precisará ser aprofundada em pesquisas futuras. Apesar de identificarmos resultados positivos com a assistência ofertada pelas CTs, especialmente relacionados ao alívio e proteção, entendemos que a imposição terapêutica do método, a prescrição de sanções e o objetivo de produzir uma conversão moral-subjetiva, dentre outras características identificadas, indicam o desrespeito aos direitos e individualidade das pessoas atendidas nestes locais. A alta evasão e rotatividade nos apontam para a insatisfação de muitos usuários com este modelo.
A necessidade de adequação das CTs é um tema muito presente nas pesquisas, mas também é apresentada como um processo voltado para o acesso a financiamento público, não intervindo nos elementos centrais do modelo. A ampliação de financiamento púbico para serviços não compatíveis com a RPB indica uma política de contra reforma. As disputas conceituais - ou de narrativa -, identificadas entre as pesquisas, podem estas relacionadas aos movimentos de adequação e legitimação destes serviços junto ao Estado brasileiro. Faz necessário ampliar os estudos sobre este tema, reafirmando que um modelo de cuidado em saúde mental que respeita os direitos dos usuários, deve se basear em relações de cuidado sem domínio sobre o outro, centradas na singularidade de cada vida.