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Revista Psicologia Política

versão On-line ISSN 2175-1390

Rev. psicol. polít. vol.24  São Paulo  2024  Epub 20-Dez-2024

https://doi.org/10.5935/2175-1390.v24e25438 

Dossiê Consciência Política: 20 anos de pesquisa – Entrevista

20 ANOS DO MODELO DA CONSCIÊNCIA POLÍTICA – ENTREVISTA COM SALVADOR SANDOVAL

20 Años del Modelo de la Conciencia Política – Entrevista con Salvador Sandoval

20 Years of the Political Consciousness Model – Interview with Salvador Sandoval

ANDRÉ LUIS LEITE DE FIGUEIRÊDO SALES1 
http://orcid.org/0000-0001-8607-7532

IRAIDE ANCELMO BONFIM PITA2 
http://orcid.org/0000-0002-0910-4418

GUILHERME GIOVANNI3 
http://orcid.org/0009-0009-8651-6932

NICOLE SOARES RESENDE4 
http://orcid.org/0000-0002-3098-5993

SALVADOR ANTONIO MIRELES SANDOVAL5 
http://orcid.org/0000-0003-0954-3741

1Doutor em Psicologia (2019). Pesquisador Associado (Pós-Doutorando) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/SP, Brasil. Email: andrelfs@yorku.ca

2Mestra em Administração e Doutoranda em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/SP, Brasil. Email: iraidepita.ip@gmail.com

3Graduação em Engenharia e Graduando em Psicologia/FMU/SP. Email: giovannini.guilherme@gmail.com

4Mestra em Psicologia e Doutoranda em Psicologia Social na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/SP, Brasil. Email: nicole_resende12@hotmail.com

5Doutor pela University of Michigan. Professor titular do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/SP, Brasil. Email: sams1910@gmail.com


INTRODUÇÃO

Salvador Antonio Mireles Sandoval é professor titular do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). É professor assistente doutor aposentado da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Graduou-se em Latin American Studies pela University of Texas at El Paso em 1969, onde também concluiu o Mestrado em Ciência Política em 1970. Continuou sua formação na The University of Michigan em Ann Arbor, onde obteve um segundo Mestrado em Ciência Política em 1971 e, posteriormente, o Doutorado na mesma área em 1984. Com uma longa trajetória acadêmica, tem experiência nas áreas de Psicologia Política, Psicologia Social Comunitária, Teorias Sociológicas de Mudanças Sociais e Ciências Sociais da Educação, com ênfase em temas como participação política em movimentos sociais, processos de conscientização política, educação política, educação popular, comportamento político coletivo e conflitos sociais.

Realizou pós-doutorado no Center for the Study of Social Change na New School, em Nova York, em 1995. Em 2000, foi Pesquisador Convidado no David Rockefeller Center for Latin American Studies, na Harvard University, como J.P. Lemann Visiting Scholar. Ao longo de sua carreira, foi Presidente da Associação Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO), sócio-fundador e ex-Presidente da Associação Brasileira de Psicologia Política (ABPP), além de fundador e um dos primeiros co-editores da Revista Psicologia Política.

Foi professor visitante na Concordia University, em Montreal, Canadá, em 2008 e 2012, e é membro fundador da Associação Ibero-Latino-Americana de Psicologia Política, criada em 2011. Sua experiência internacional inclui o período como professor no Departamento de Sociologia da Universidad Autónoma Metropolitana, na Cidade do México, de 1974 a 1978.

Sua trajetória acadêmica e intelectual reflete seu compromisso com o desenvolvimento e a disseminação do conhecimento crítico na área de Psicologia Política, com contribuições marcantes como o modelo da consciência política, que articula de forma interdisciplinar as dimensões psicológica e social presentes nas investigações sobre diversas formas de participação política.

Nesta entrevista, Salvador Sandoval revisita o marco de janeiro de 2001, quando apresentou seu modelo de investigação da Consciência Política na primeira edição da Revista Brasileira de Psicologia Política. Em celebração aos 20 anos desse evento, em abril de 2023, integrantes do Núcleo de Pesquisas em Psicologia Política e Movimento Social da PUC/SP – fundado e coordenado por Salvador, organizaram dois eventos públicos virtuais. Durante essas sessões, jovens pesquisadores, antigos orientandos, colegas de trabalho e outros interessados em Psicologia Política, tiveram a oportunidade de questionar Sandoval sobre o modelo. Essas discussões levaram o professor a revisitar suas motivações, razões e ideias que fundamentaram sua proposição, além de avaliar o impacto produzido pelo modelo ao longo dos anos. Essas entrevistas foram gravadas e disponibilizadas para a comunidade acadêmica no YouTube.

Os nucleantes1, membros do núcleo de pesquisa da PUC/SP, dedicaram-se a analisar as quatro horas de gravação e a elaborar o texto a seguir. Houve uma tentativa de preservar o tom descontraído e a informalidade do encontro – o qual se reflete na forma como as perguntas estão articuladas e o estilo retórico próprio do entrevistado. Com isso, objetivamos apresentar o modelo da Consciência Política de forma clara e acessível a leitores não familiarizados com os debates da área. A entrevista que segue aborda ainda o contexto motivacional, teórico e político no qual o modelo foi concebido, e discute o seu uso ao longo do tempo. Após a conclusão do trabalho de edição pelos nucleantes, Salvador Sandoval revisou o texto, que foi então submetido à revisão ortográfica.

Convidamos todas e todos a conhecer mais sobre a trajetória intelectual, as reflexões e o pensamento de Salvador Sandoval, cuja obra representa um importante marco na análise da consciência política e contribui para a compreensão da interação entre subjetividade e estruturas sociais, oferecendo uma visão ampla para pesquisadores e profissionais interessados em abordagens psico-políticas.

POR QUE TOMAR A CONSCIÊNCIA POLÍTICA COMO OBJETO DE ESTUDO NA PSICOLOGIA?

A compreensão do conceito de consciência política é essencial, já que é inegável que todos nós participamos de algum tipo de sistema político. Como dizem nos Estados Unidos, duas coisas são inevitáveis na vida: os impostos e a morte. Assim, as pessoas adquirem consciência do sistema político em que estão inseridas e de seu papel nele. Consciência política também é importante, porque ela se torna um dos determinantes da participação no sistema político. Não será o único fator decisivo e, em diferentes contextos, pode nem ser o mais relevante para a participação, mas certamente ela é um dos elementos-chave.

Um terceiro motivo é que nós tínhamos nas ciências humanas, uma tradição que partia do pressuposto de que os aspectos estruturais da sociedade determinavam a participação das pessoas nas questões políticas. Isso foi assim, pelo menos, até a década de 30 do século XX. Naquele momento, surgem questões que contradizem essa forma de pensar e essas começam a se modificar. Por exemplo, a Alemanha, que tinha o maior partido operário socialista da Europa na época, foi o berço do movimento nazista, um movimento de massa que apareceu nesse período.

Na área da psicologia, principalmente na vertente da psicologia social, começam a aparecer diferentes ferramentas metodológicas para entrevistar pessoas, em escalas crescentes. A escola de Chicago, por exemplo, vai produzir, a partir da etnografia urbana, entrevistas temáticas e em profundidade. Depois vai vir todo esse pessoal seguindo a tradição do Rensis Likert e companhia que vai produzir todo o instrumental para fazer survey research. É interessante notar que na evolução das ciências no ocidente essas técnicas foram principalmente adotadas pelas ciências sociais e permaneceram em um segundo escalão na Psicologia.

Essa tendência irá se inverter a partir da Segunda Guerra Mundial, quando surge um interesse muito maior em compreender o porquê de as pessoas participarem na política. Nesse momento, cria-se um foco sobre os motivos da participação, os processos de escolha política e as atitudes. Sem dúvida, antes da guerra, essas questões eram essenciais para todos os pioneiros da psicologia. De uma forma ou de outra, eles se propuseram a pensar sobre a política. Seja em termos de Freud, em uma perspectiva psicanalítica, ou de B. F. Skinner, de uma perspectiva behaviorista, que embora não pudesse converter seus ratinhos ao nazismo, produziu um estudo de uma sociedade totalitária em Walden II (obra de ficção).

E, portanto, acontecimentos como o Nazismo e as guerras vão deixar bem claro que as questões políticas são também um tema de estudo para a Psicologia, que o interesse por isso não está restrito à sociologia ou a outras ciências sociais. Obviamente que a sociologia tem algo a contribuir.

Então por que estudar consciência política? Por que é importante? É importante porque, pelo menos na história do Brasil, quando eu cheguei aqui, nos anos finais da ditadura militar, existiam alguns projetos de Campos Avançados que cada faculdade deveria criar nas periferias, como fez a PUC/SP, por exemplo. A igreja católica colocou as casas paroquiais à disposição e com isso se desatou uma discussão, dentro da faculdade de Psicologia, de qual seria a função dos/as psicólogos(as) que atuam em comunidades.

Na minha época, a Silvia (Lane) trouxe a psicologia comunitária para o Brasil, mas dentro do próprio Brasil, havia uma discussão grande sobre o que esta abordagem faria aqui, pois o modelo da psicologia comunitária na vertente norte-americana era similar ao da saúde mental. Já para Martín Baró, o problema da sociedade não é o de saúde mental, mas sim o do sistema político e da necessidade das pessoas se engajarem em um sistema que é exploratório. Essa diferença estabelecerá o que uma área como a Psicologia faria na comunidade. Mas, o interessante é que na ausência de uma perspectiva teórica e metodológica própria da Psicologia, foi adotado o enfoque de Paulo Freire, da Pedagogia do Oprimido e, portanto, a primeira grande ação foi a alfabetização para conscientizar, que surtiu efeitos.

Foi nesse cenário que comecei a pensar sobre a obra do Paulo Freire e entendi que, em primeiro lugar, ela não tem uma conceituação explícita do que é consciência em termos psicossociais. Segundo, se a metodologia de Paulo pode ser eficaz para conscientização entre populações analfabetas, e eu gostava de perguntar à Sílvia (Lane): “como que a gente conscientiza os meninos que estão nos centros acadêmicos?” Não seria pela alfabetização, porque eles já eram letrados, já estavam ideologizados e, portanto, o que precisamos, na verdade, era ter uma noção de quais são os fatores que determinam a consciência. O que compõe a consciência política? Como a gente compreende isso e em que termos nós trabalhamos com isso?

O que comecei a fazer depois dessas reflexões foi questionar quais eram as abordagens psicossociais para estudar consciência e o que descobri é que existia uma enorme fragmentação. Alguns pesquisadores analisavam a questão da identidade, outros pesquisadores se concentravam nas crenças e valores ideológicos, outros investigavam as adesões às demandas, etc. Fazendo isso, eu também descobri que a própria questão da terminologia era um fator relevante, pois todas as ciências sociais têm problemas com os termos que se referem ao seu objeto principal. A Sociologia não sabe se é sociedade, sistema social ou sistema econômico; a Psicologia tem um desfile de conceitos para os mesmos fenômenos: subjetividade, consciência, sistemas atitudinais, representações sociais.

Mas basicamente estamos falando sobre o processo de pensar. Digo porque tenho certeza de que quando o Serge Moscovici discursa sobre representações sociais, o foco não são as descrições que as pessoas fazem quando falam sobre as coisas, ele se refere ao processo de pensar que leva a essas descrições. Portanto, eu comecei a pesquisa na literatura sobre as greves e movimentos sociais sobre os quais os pesquisadores tinham avaliado como relevantes para estudar a dimensão psicossocial dos participantes nestes eventos.

POR QUE DESENVOLVER UM MODELO PARA A ANÁLISE DA CONSCIÊNCIA POLÍTICA?

Comecei a pensar no modelo no final das décadas de 1960 e 1970, quando os psicólogos sociais estavam se deslocando para as periferias e realizando principalmente trabalhos de organização comunitária. Isso estava legal, mas surgiram outras inquietações decorrentes da minha participação em ajudar alunos e oferecer assessoria. O enfoque de Paulo Freire era fascinante, pois estava centrado na alfabetização, mas qual seria o enfoque adequado para populações que já estavam letradas? Como conscientizar pessoas que já concluíram o ensino médio e estão prestes a concluir as etapas finais do ensino superior?

O método de Paulo Freire, que usa palavras geradoras como “povo”, “casa”, não seria adequado, pois não se tratava de alfabetização. Portanto, para discutirmos essa problemática, precisaríamos analisar o que entendemos por consciência. Quais elementos compõem o processo de reflexão política! Porque era exatamente isso que Paulo Freire estava buscando em seu trabalho de alfabetização. Ele usava palavras geradoras para provocar essas reflexões. No entanto, ao considerar as pessoas letradas, precisaríamos adotar uma abordagem mais sofisticada. E foi a partir daí que comecei a procurar ideias para entender como isso poderia acontecer.

Quando eu comecei a investigar a identidade, a ideologia, a consciência, a crença, etc., imaginei que o norteador teria que ser os autores que estudam participação política. Meu fenômeno empírico era a participação, ok? Busquei ideias na literatura científica produzida principalmente no Atlântico Norte e descobri que as pesquisas sobre participação política eram fragmentadas. Elas estavam divididas em diversas dimensões, e ninguém parecia integrar essas diferentes perspectivas. Essas pesquisas não davam uma visão mais global de qual era o processo acontecendo na cabeça das pessoas, seja para nos orientar em relação ao que fazer com isso, ou para compreender através de outros enfoques. O modelo visava não criar uma nova dimensão, mas relacionar conceitos importantes da literatura de maneira abrangente. Isso nos permitiu entender a consciência política de forma dinâmica, dialética e multidimensional.

Por conta disso, o modelo foi construído agregando diferentes linhas de pesquisa de diferentes áreas, sendo que algumas dessas linhas têm divergências teóricas e pontos de partida diferentes. Ele está organizado para nos ajudar a entender como as pessoas pensam sobre sua participação política na sociedade em que vivem. Esse é o problema que une as peças tiradas de diferentes correntes teóricas. Eu o construí tirando de cada enfoque aquilo que mais contribuía para compreender o pensamento das pessoas a respeito da participação política. Claramente cada peça, em suas origens distintas, terá abordagens relevantes para esta proposta. As diferenças ganham coesão em torno do problema da participação.

Em suma, o modelo está focado em amarrar aspectos psicossociais relevantes para compreender a participação política, mas não de forma abstrata. Cada dimensão é relevante, pois vem sendo estudada por distintas disciplinas e de diferentes maneiras ao longo do tempo. O modelo surge para suprir a necessidade de um framework (quadro) conceitual. Ele se baseia nas abordagens usadas para estudar o processo de pensar na participação. É importante entender que nenhuma participação humana é explicada de forma unidimensional. E nisso chegamos à questão da origem das ideias teóricas, e da necessidade de pureza epistemológica.

Nós esquecemos que Marx veio do idealismo hegeliano, do materialismo fisiocrata francês e do materialismo dos economistas políticos ingleses. Isso é importante, pois a vida do intelectual consiste em misturar ideias para solucionar problemas. Não é a ortodoxia teórica. Eu não posso me propor a negar uma realidade empírica só porque ela não condiz com a minha linha epistemológica. Essa atitude é uma cegueira intelectual. É se recusar a enfrentar aquilo que já sabemos empiricamente. Portanto, o modelo integra diferentes ideias desenvolvidas a partir de estudos empíricos sobre a participação política.

Organizar o modelo ao redor do tema da participação foi importante, porque fez com que certas dimensões conceituais fossem necessariamente incluídas neste mapa da consciência. Isso induz tanto quem adota o modelo a explorar o que diferentes enfoques da psicologia social têm a dizer sobre o assunto, quanto incentiva a procura por enfoques compartilhados entre a psicologia social e a cognitivista. Assim, o modelo teve esse primeiro objetivo: traçar um quadro de referência conceitual de como a literatura abordava essa questão e quais eram as dimensões relevantes para pensar a participação política e o processo de reflexão sobre ela.

Por exemplo, eu chego à identidade coletiva, porque já havia uma literatura sobre ela entre grupos e, portanto, já se sabia que a questão não se reduzia a reconhecer-se como negro no movimento social. A literatura vai dizer que as pessoas vão desenvolvendo uma afinidade por serem desta categoria. Meu objetivo não foi, a priori, operacionalizar o conteúdo destas dimensões, ok? Eu as defini conceitualmente, mas os conteúdos precisam ser pertinentes às dimensões do fenômeno que você está pesquisando.

A formação da consciência é um processo psicossocial complexo, que envolve vários aspectos que o modelo tenta mapear ao pensar na participação. Ele foi confeccionado em termos de um conjunto de dimensões conceituais que deveriam ser preenchidas por conteúdos empíricos históricos. E eu digo históricos, porque são do momento em que se estuda. Insisto, o uso do modelo demanda atenção para duas coisas. O primeiro ponto é reconhecer que ele envolve dimensões complexas e inter-relacionadas. O segundo é a necessidade de captar diferentes dimensões, como identidade coletiva e consciência, mantendo continuidade com outros estudos.

Aí temos um defeito brasileiro: nunca fazemos um levantamento das outras pesquisas, nos lançamos ao campo inventando nossos próprios roteiros, sem dar uma continuidade. Há dois problemas aí. O primeiro é que eu faço pesquisas sem comparar com pesquisas anteriores. O segundo é que eu abro mão do valor histórico do conhecimento, pois você tem só improvisação no campo. Portanto, como eu vou saber que a juventude dessa época está mais identificada com determinadas crenças e valores? Nós temos que prestar atenção a isso, pois também temos uma dívida com a história. Enfoques esvaziados de formalização e muito amplos como a subjetividade, etc., que não identificam quais dimensões deveriam ser trabalhadas nas pesquisas, produzem uma perda de historicidade do dado para futuros pesquisadores.

O modelo da Consciência Política, como outras teorias, cumpre a função de propor dimensões a serem mobilizadas pelos pesquisadores. Marx dá categorias para a gente analisar diferenças (estruturais) entre sociedades ou entre períodos históricos. O modelo dá categorias para analisar as diferenças entre um momento e outro da consciência. A proposta, é que um pesquisador poderia, em princípio, perguntar: como mudou a identidade coletiva no movimento feminista de dez anos atrás para agora? Como mudaram crenças ideológicas e valores? Isso é importante para que se possa fazer uma análise integral de como se altera o processo político de um momento a outro. Esta historicidade está presente nas teorias e não no ad-hocismo da metodologia.

EM RELAÇÃO À COMBINAÇÃO DE TEORIAS E EPISTEMOLOGIAS, ALGUMAS PODEM PARECER CONTRADITÓRIAS, COMO O MARXISMO E O ESTRUTURALISMO. NO SEU MODELO, EXISTE ALGUMA APROPRIAÇÃO TEÓRICA QUE POSSA SER CONSIDERADA INADEQUADA?

Existe um debate de que o marxismo não poderia ser contraposto ao estruturalismo, porque eles não seriam do mesmo nível de conhecimento, já que o marxismo seria teoria e o estruturalismo uma epi-teoria. Na verdade, Marx é estruturalista também, ok? Quando você vê, por exemplo, o modelo de Marx da superestrutura, é puro estruturalismo. A grande questão é: ele é só isso? Não, ele não é só isso, mas é estruturalista nesse aspecto. Freud é um estruturalista, porque ele faz uma estrutura. O modelo de consciência tem um elemento estruturalista porque ele estrutura o fenômeno. Mas esses estruturalismos não são do mesmo nível e esse é um problema, porque criamos um “bicho-papão” do estruturalismo. Quem conhece Marx sabe que ele também tem elementos estruturalistas.

Agora, o que é verdade é o seguinte: o modelo tem uma qualidade — não sei se é uma qualidade, um defeito — que o próprio marxismo tem. O que aconteceu com o modelo e aconteceu com Marx? Marx pegou a dialética de Hegel, mas ele pegou o conceito da dialética de Hegel e a repensou, porque Marx não é idealista. E como ele a repensou? A dialética hegeliana é progressiva. Hegel pensava que o homem se desenvolvia dialeticamente de forma contínua e progressiva. A dialética de Marx não é progressiva. Marx vai afirmar que, às vezes, você pode retroceder, outras vezes pode progredir.

Por isso, quando ele escreveu o capital e analisou o capitalismo, ele disse: capitalismo ou barbárie. Ele não disse que viveremos no capitalismo e inevitavelmente chegaremos ao melhor. Para Marx, não há nenhuma inevitabilidade, o que existe é uma dialética. Ele se apropriou da dialética de Hegel e a reinterpretou em sua conveniência. Depois, não gostaram dele na Alemanha e ele fugiu para Paris, onde encontrou os materialistas. Quando Marx saiu da Alemanha, era idealista e em Paris virou materialista com os fisiocratas e Pierre-Joseph Proudhon. A ideia deles é de que não há vida humana que não vem da Terra, portanto, Max pegou um pouco disso. Também se comportou mal na França e foi exilado para a Inglaterra, onde se aprofundou na economia política, incorporando conceitos de Adam Smith e David Ricardo. Ele expandiu sua teoria.

Agora, em nossos dias, eu não ouvi a Márcia andar pelas ruas dizendo que Marx é ricardista. Assim como eu não ouvi o Guilherme andando pela rua, dizendo que Marx é idealista, porque ele tem a dialética2. Esse é um infantilismo brasileiro, em termos de não compreendermos como as teorias se desenvolveram. Marx não nasceu marxista, Marx se fez marxista intelectualmente, né? Pessoas como ele sabem pegar o que lhes interessa em todos os espaços onde transitam ao longo do tempo para confeccionar seu pensamento sobre a realidade. E essa abordagem talvez seja mais eficaz porque, provavelmente, essa maneira de refletir sobre o mundo será muito mais precisa do que aquelas dos que estão restritos apenas às suas próprias teorias.

VOCÊ DESTACOU A IMPORTÂNCIA DAS AÇÕES DE PSICÓLOGOS SOCIAIS E COMUNITÁRIOS PARA O DESENVOLVIMENTO DO MODELO. VOCÊ PODERIA EXPLICAR COMO O MODELO ORIENTA INTERVENÇÕES PRÁTICAS?

Eu entendi que uma questão importante na tradição brasileira de intervenção política e comunitária era a ausência de um diagnóstico sobre a consciência política dos membros das comunidades. Uma atuação seria mais eficiente se estruturada a partir de um diagnóstico. Eu concebi o modelo com um referencial conceitual que nos permitisse pensar em intervenções com a finalidade de conscientização.

A questão era que cada um que ia para a comunidade já tinha o diagnóstico em mente dado pelo livrinho vermelho3 em sua cabeça. Os psicólogos tinham a crença de que as pessoas viviam na miséria e, portanto, cabia a eles trazerem as boas novas da universidade. Eu falava com o meu pessoal da pós-graduação da psicologia na PUC: “vamos levar boas novas para esse povo? Não! Vamos primeiro fazer um diagnóstico sobre a consciência das pessoas.” E, nesse sentido, o modelo pode servir não só para pesquisar a consciência de certos segmentos, mas também para diagnosticar por onde nós deveríamos começar os processos de conscientização. Por quê? Porque eu acredito que se é para fortalecer a identidade coletiva de um povo, as ações que nós temos que fazer serão diferentes daquelas que devemos fazer para mudar crenças e valores. Nós já sabemos isso de muitas outras práticas, inclusive algumas terapêuticas. Não existe uma ação única para atender a vários aspectos da subjetividade. Isso seria negar a Psicologia e negar nossa própria experiência. Portanto, se é para fortalecer a identidade em uma comunidade, então vamos pensar em práticas para isso. Vamos pensar, por exemplo, nas belas quermesses dos padres das paróquias.

Quermesse é um momento em que se criam sentimentos de solidariedade e de identidade, cria-se o sentimento de que podemos juntar dinheiro e fazer as coisas juntos. Portanto, a gente tem que pensar que tipo de intervenção é necessária, neste ou naquele momento, para melhorar a conscientização, indo para além de se pensar apenas na alfabetização como meio nos termos de Paulo Freire. E nesse sentido, o modelo tinha também como objetivo tentar mobilizar nosso instrumental de prática aplicada para focá-lo em processos de conscientização em cada contexto, reconhecendo as complexidades de intervenções.

O exemplo da quermesse pode ser realizado em um bairro dividido entre evangélicos e católicos. Nesse caso, poderíamos usar a quermesse como meio de abordar possíveis problemas decorrentes de identidades coletivas conflitantes. O livrinho vermelho que eu tenho na cabeça não vai resolver esse problema. Por isso, a proposta deveria ser diferente. Era ir contra uma proposta que era dominante no período da ditadura e continua sendo um pouco prevalente hoje, de que o livro vermelho é a forma de resolver o problema de organização popular. Quando isso é um pouco diferente. Tanto que o próprio Paulo Freire não trabalhou com o livro vermelho. Ele, na verdade, vai fazer com que as pessoas se conscientizem. O modelo tinha esse sentido também. Ele também tinha como objetivo ajudar a refletir sobre o que nós estamos fazendo com o que aprendemos em nossas pesquisas.

COMO VOCÊ CONCEBE A RELAÇÃO ENTRE O SEU MODELO E AS TRADIÇÕES TEÓRICAS LATINO-AMERICANAS?

Existe uma tradição na América Latina em geral, mas especificamente no Brasil, de pensar uma ciência social — e nisso eu estou incluindo também a Psicologia Social — principalmente como uma empreitada filosófica, com menos ênfase na análise de dados empíricos. Interessantemente, essa proposta é totalmente contrária à de Martin Baró, à de Paulo Freire e aos estudos da FLACSO4 na Argentina. Todas essas linhas de trabalho eram muito empíricas. No entanto, ao contrário do empirismo norte-americano, cujo objetivo principal era descrever a realidade social, a proposta dos pesquisadores latino-americanos, como Martin Baró, é que a pesquisa servisse à transformação social, já que a transformação não poderia ocorrer sem uma atenção cuidadosa ao mundo empírico. Eu situei o modelo dentro dessa tradição.

Ele não se propõe a ser um modelo epistemologicamente puro e limpo; ele tem outro foco. As raízes intelectuais dele encontram-se próximas à Escola de Sociologia da CLACSO5, que produziu a Teoria da Dependência; nas propostas pedagógicas de Paulo Freire e segue a mesma tradição de trabalho de Martín Baró, escolhendo abordagens teóricas de pesquisa como potenciais para promover a transformação social. O trabalho de Paulo Freire não se concentrava na teorização filosófica sobre os processos pedagógicos, mas sim em métodos de educação capazes de fomentar a transformação social.

Dentro da trajetória desses pesquisadores, algo se destaca: a heterodoxia teórica. Seu objetivo final não é a consistência epistemológica. Eles buscam contribuir para a reflexão sobre a transformação e desenvolvimento de nossas sociedades. Nesse sentido, o apego à consistência e ao purismo epistemológico é uma evasão, uma fuga acadêmica que permite criar cátedras e manter as discussões nas camadas intelectuais, sem realmente produzir uma aplicabilidade clara disso. Digo por que a aplicabilidade é suja e o desenvolvimento teórico é limpo. A pesquisa em economia, quando se trata da aplicação do problema econômico, é suja; fazê-lo teoricamente é limpo.

Um pesquisador com foco teórico desenvolvendo modelos pode dizer ‘se fosse assim e se fosse assado’. O estudioso empírico não pode dizer ‘se fosse assim’, ele diz ‘é assim’. O desenvolvimento de uma abordagem teórica voltada para a transformação, em vez de buscar a pureza epistemológica, será a grande ruptura desta intelectualidade latino-americana. Isso é a diferença na produção científica da América do Norte.

Essa é a grande proposta da tradição latino-americana. Assim, Paulo Freire vai se destacar no exterior. Na área da educação, ele será um dos poucos intelectuais que efetivamente começa a abordar a problemática do letramento da população de forma prática. Ele vai propor não apenas ensinar o alfabeto às pessoas, mas, por meio disso, auxiliá-las a refletir sobre suas condições pessoais. Este será um importante marco. Hoje, pode parecer meio óbvio, mas naquele momento da história, entre 1950 e 1960, foi de extrema importância.

Da mesma forma, em 1950, a Teoria da Dependência foi relevante. Ela afirmava que não devíamos seguir cegamente o que os países ricos queriam para o nosso desenvolvimento. Precisávamos desenvolver nossos próprios interesses e estes não estariam necessariamente vinculados às economias do Atlântico Norte. Inclusive, essa discussão que surgiu na América Latina como a Teoria da Dependência estava conectada com debates em outras partes da Ásia e da África, e resultou no modelo de desenvolvimento da China e do Japão. Esses países seguirão essa fórmula: os objetivos de desenvolvimento econômico são os nossos, não se destinam a beneficiar as potências hegemônicas mundiais.

Essa ideia faz parte do argumento de Aníbal Quijano na Teoria da Dependência e também aparece na sociologia de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto. A ideia permeia várias gerações de pensadores. Quijano, ao analisar o caso do Chile, propõe a Teoria da Marginalidade e argumenta que as pessoas pobres que vivem em favelas não são excluídas do sistema; elas são parte integral do sistema. Um pesquisador não poderia ter uma faxineira 24 horas por dia se não existissem essas favelas, pois elas desempenham um papel essencial na manutenção da ordem social atual.

Portanto, as pessoas nas favelas estão integradas; elas não são excluídas, são tão incluídas quanto as classes altas. Isso representa um contraponto ao argumento feito pelos pesquisadores do Atlântico Norte, que sugerem que as pessoas são deixadas para trás. Na verdade, as pessoas não são deixadas para trás; elas são intencionalmente mantidas nas favelas, pois desempenham um papel crucial na manutenção da ordem social atual. Por exemplo, se você tiver uma população muito pobre encarregada da coleta de lixo, não é necessário investir em maquinário caro, como ocorre no Atlântico Norte. Isto é mais barato.

O que está em questão nessa tradição latino-americana é uma inversão da perspectiva: estamos olhando para o empírico e considerando como ele poderia ser diferente, em vez de impor abordagens teóricas e epistemológicas que nos fazem interpretar erroneamente o nosso mundo empírico. Muitas dessas abordagens foram importadas dos países centrais, frequentemente de forma literal. Portanto, precisamos olhá-las através da lente das nossas próprias nações, das nossas condições e atentas ao que essas condições exigem para promovermos sua transformação. O modelo tem essas raízes.

DIVERSOS CONCEITOS SOBRE PARTICIPAÇÃO POLÍTICA SEGUEM SURGINDO EM DIFERENTES PAÍSES, INDICANDO UM AVANÇO CIENTÍFICO SOBRE O TEMA, E TAMBÉM UMA PROLIFERAÇÃO DE FORMAS DE ABORDÁ-LO. COMO O MODELO SE RELACIONA COM ESSES AVANÇOS?

O modelo procurou explorar as dimensões e categorias psicossociais que eram focadas no estudo da participação política em movimentos sociais, não na esfera eleitoral, mas especificamente, nos movimentos sociais. Se analisarmos essas categorias, veremos que elas abrangem uma diversidade de elementos que mudaram ao longo do tempo. Por exemplo, em certo momento, todos estavam discutindo a questão da identidade. Os sociólogos falavam sobre identidade, antropólogos falavam sobre identidade e isso se tornou uma moda. Enquanto isso, outros conceitos que costumávamos abordar no passado, como atitudes, valores e crenças, foram deixados de lado.

Da mesma forma, na psicologia social, em um determinado momento, a representação social se tornou popular e todo o resto que tínhamos estudado desapareceu, não é mesmo? Pouca atenção foi dada à reflexão sobre o que já sabíamos e como a importação desse modelo de representação social estava contribuindo. Quando todo mundo começa a falar: agora o que está vigente é outra coisa. Isso é uma importação acrítica das teorias.

A tendência mais recente na Psicologia Social é a subjetividade. Mas o pessoal da subjetividade nunca nos explicou o que a psicologia social estudava antes de chegar no porto de Santos com o navio da subjetividade. Como se chamava o que a Psicologia Social estudava antes? Até não importa tanto como se chamava, mas como você afere isso empiricamente? O pessoal da subjetividade não nos dá nenhuma indicação de como estudamos isso empiricamente.

Eles se satisfazem com a ideia de que a teoria é sólida, portanto, por intervenção divina, você pode estudá-la empiricamente. Mas o que acontece na prática? É realizada uma análise empírica ad hoc, tão específica que torna difícil a comparação entre diferentes pesquisas, porque cada pesquisador está desenvolvendo ad hocmente seu próprio enfoque. Como poderemos medir se houve uma evolução na subjetividade, na conscientização, no sistema de atitudes e valores, ou chame como preferir, entre diferentes gerações, se a cada geração, cada pesquisador cria seu próprio conjunto ad hoc de aspectos a serem estudados? Isso não indica uma falta de foco e direção na pesquisa?

Há ainda outra consequência desagradável decorrente disso. Vejam o caso da identidade. A identidade começou a ser pensada como um sentimento de pertencimento a um grupo, influenciado por vários aspectos, incluindo dimensões psicossociais. No entanto, com o tempo, esse conceito caiu nas mãos de sociólogos ou de psicólogos sociais que aspiravam ser sociólogos. Agora, isso se transformou em uma crença ideológica. Tornou-se um sentimento político nacional. Em última análise, tornou-se tudo, exceto o próprio ato de pertencer. Portanto, o conceito se desvirtuou.

A questão é que existem movimentos sociais que se baseiam principalmente na identidade em vez da ideologia. Um exemplo é a luta dos Quilombolas, uma batalha pela identificação como Quilombola, um esforço para fortalecer o sentimento de pertencimento. Esta não é uma luta fundamentada na ideologia, embora recentemente tenha adquirido conotações raciais, após muitas gerações de existência como uma luta por identificação como Quilombola. Portanto, a identidade, entendida como o sentimento de pertencimento, tem um significado crucial, assim como as crenças e valores ideológicos, entende?

Todos nós temos múltiplas identidades coletivas. Temos identidades coletivas de gênero, e isso não tem relação com ser professor universitário. São identidades coletivas diferentes. Entende? No processo político, há momentos em que alguém ofende uma das minhas identidades coletivas. Essas ofensas podem ocorrer porque se deseja reprimi-la, prejudicá-la ou simplesmente por maldade. Aí nós a politizamos. Nós politizamos essa identidade coletiva ao decidirmos resistir a essas ofensas. Portanto, a identidade coletiva torna-se um elemento importante no processo de conscientização política, no qual uma dimensão, no caso a identidade coletiva, se torna uma dimensão politizada. Assim como nossas crenças e valores políticos sobre a sociedade se galvanizam em uma direção que suporta essa identidade coletiva politizada. Digamos que algumas pessoas experimentem processos de conscientização baseados fortemente em ideologia. Essas pessoas vão definindo e redefinindo as identidades coletivas em função dessas ideologias.

QUER DIZER QUE AO LONGO DO PROCESSO, A IMPORTÂNCIA DE DETERMINADA DIMENSÃO PODE MUDAR?

Movimentos sociais e indivíduos com processos de conscientização fortemente baseados em uma dimensão vão redefinindo as outras dimensões em relação a essa. No caso da identidade e ideologia, se ideologia for o ponto da conscientização do movimento, os membros tenderão a desvalorizar a dimensão identidade coletiva em função das outras como crenças e valores ideológicos. Pessoas que têm processos de conscientização ancorados em identidade coletiva fortemente politizadas vão redefinindo as outras dimensões em função de suas identidades coletivas. Por exemplo, ainda há algumas pessoas que argumentam que o operariado é a classe revolucionária. Isso é fruto de uma consciência fundamentada em crenças ideológicas que menosprezam outros profissionais que também estão fazendo mudanças importantes à luz dessa ideia de que a classe operária precisa fazer a revolução.

Embora possamos debater isso historicamente de maneira intelectual, muitas pessoas ainda mantêm essa concepção. Há indivíduos que acreditam nisso até hoje. Eles são muitos. Se pensarmos esse exemplo através do modelo da consciência política, as pessoas que acreditam nisso, continuam re-definindo suas identidades coletivas, demandas e outras dimensões da consciência com base na sua percepção ideológica da sociedade. Mas essa é a característica dos processos sociopolíticos. Tal como o processo da consciência, ele é dialético, por isso o modelo precisava ser dinâmico e considerar múltiplas dimensões.

Haverá pessoas no movimento negro, por exemplo, que vão afirmar que Marx não é relevante porque ele tinha visões negativas sobre os negros. Contudo, a questão não está no que Marx falou, mas em pensar que ele não tem contribuições para dar a este movimento, correto? Isso representa uma definição prévia que visa excluir certos pensadores devido às identidades coletivas politizadas. Nesse sentido, a identidade coletiva politizada desempenha um papel importante na mobilização, mas também pode representar um perigo para a continuidade da conscientização.

As pessoas podem não querer superar essa primeira identidade coletiva politizada. Se ela for dogmática, isso pode ser importante para a mobilização, mas pode também atrapalhar o processo de conscientização na próxima fase do movimento. Você vai precisar ficar metade do tempo na assembleia debatendo com uma pessoa cuja ideologia não progrediu.

O modelo tinha a preocupação de oferecer um instrumento conceitual para entender o que está acontecendo nesta parcela da população que deixa de participar de um determinado movimento. De onde vem as mudanças que fazem com que essas pessoas desistam? Em quais dimensões da consciência política delas houve mudanças? Pensando dessa forma, é possível compreender ainda que os indivíduos participem de um movimento político por diferentes razões e não possuem a mesma configuração de consciência. Análises desse tipo nos permitem explicar por que algumas pessoas se envolvem em movimentos políticos e depois os abandonam, ajudando a entender a flutuação na participação.

VOCÊ PODE EXPLICAR COMO ENTENDE A QUESTÃO DA CONSCIÊNCIA HUMANA?

Quando iniciei a concepção do modelo, a questão que se colocou era: o que seria a consciência política em termos daquilo que pensamos quando nós pensamos politicamente? Que coisas pensamos? O que eu penso do outro? A quais grupos eu pertenço? Enquanto estudava essas questões e via o que tinha na literatura, surgiu-me um dilema. Paulo Freire fala de conscientização, né? Claramente, em seu método, ele está conscientizando, já que as pessoas vão mudando suas consciências na medida em que vão sendo alfabetizadas, não é? Mas o que é isso conceitualmente?

Paulo Freire, ao discorrer sobre o sistema bancário, não está se referindo às palavras-chave para alfabetização, ele está discutindo uma capacidade intelectual que o indivíduo possui, ou que a sociedade o impede de possuir e o induz a memorizar as coisas e não refletir sobre isso. Paulo Freire nos informa que existe outra distinção, mas ele não nos expõe qual é. E essa diferença eu comecei a pensar ouvindo um pouco dos antropólogos e toda essa discussão das sociedades primitivas, além da relação entre sociedades não humanas e humanas.

Nós temos a capacidade de produzir símbolos que representam nossos significados e que podem ser ensinados. O que distinguiu o homem dos animais foi o alfabeto oral, a capacidade de designar pessoas dentro da tribo, cuja única função era lembrar e recontar sua história para futuras gerações. Neste sentido, você tem uma capacidade mais alta de raciocínio do que a da ressignificação e da reconstrução com significados anteriores. E aí você tem dois níveis: o indivíduo da tribo que narra a história assim como foi narrada para ele e outra que começa a inventá-la e a relatar o mito desse povo. No segundo caso, você tem um nível de raciocínio um pouco maior, porque essa pessoa vai transformando o significado original em um significado moderno e vai criando o mito, porque o povo vai enfrentando um novo problema e ela tem que encontrar na história do povo uma resposta para o problema. Portanto, chegou-se ao nível mais alto de raciocínio, ok?

Neste aspecto eu sou mais tradicional, pois acho que o nível de raciocínio mais alto é o do artista, porque ele vai além para criar. De alguma forma, ele libera a sua capacidade de raciocínio e a sua consciência para raciocinar criativamente. Essa é a razão pela qual regimes autoritários são antitéticos aos democráticos: regimes autoritários não toleram esta liberdade de raciocínio. Eu estava com essas questões em mente enquanto desenvolvia o modelo.

Conscientização, como proposto por Paulo Freire, não é decorar fatos, não é decorar proletariado, mais-valia, nada disso. É saber usar esses conceitos com o objetivo de ter bem-estar empírico. Paulo vai chamar a repetição de conceitos de sistema bancário, eles botam ideias na tua cabeça, como depósitos em poupança. Conscientização é como você usa essas ideias com o objetivo de ter o bem-estar empírico.

Então, o que seria a conscientização política? Seria ir lá e ensinar o livrinho vermelho, ipsis litteris, para as pessoas decorarem, ao contrário de Paulo Freire? Ou, na verdade, focar nesses níveis e capacidades de raciocínio com o objetivo de que as pessoas atinjam o nível mais alto de raciocínio? Esse é um sistema de Sócrates. Não é para te fazer decorar, é para te fazer debater. E eu acho uma pena que a universidade contemporânea não tenha como primeira disciplina de retórica para todos os alunos de graduação. Num curso de retórica você pegaria esse aluno marxista ferrenho e o mandaria neste semestre, na sala de aula, ser o defensor do capitalismo, para ele aprender como argumentar e criar uma empatia do outro lado, né?

O catador da rua raciocina, porque decide se vai coletar papel, metais ou se vai fazer outras coisas. E, nesse raciocínio, sabe que há um mercado para isso. Ele não tenta vender sua carroça de metais onde sabe que só se compra papel. Portanto, já criou um porto de significação: significou e conceituou um mercado de papel e de metal descartados. Ele atribui significado, sabe quanto custa e vai poder dizer se este comprador o sacaneia e compra o material dele bem mais barato do que outros compradores em outros lugares. Ele está significando e criando também um símbolo: quanto vale essa carroça de papel ou de metal? Quanto é que ele esperava receber? E quando não recebe isso, ele cria também um significado para essa transação. Portanto, este senhor e as senhoras da rua, vendendo papel e metal, chegaram à etapa que a rua lhes permitiu chegar. Eles já estavam prontos para considerar questões mais sofisticadas, se a sociedade lhes desse a chance. Assim, a nossa função não é ensinar o livro vermelho. É, com o livro vermelho, azul, amarelo, ensinar raciocinar.

SERIA, ENTÃO, ADEQUADO FALAR EM NÍVEIS DE CONSCIÊNCIA E DE CONSCIENTIZAÇÃO?

Eu nunca quis falar sobre níveis de consciência. Segui o Paulo Freire e não entrei nessa cilada marxista de graus de consciência. O que você tem é uma distinta configuração da consciência política. Uma consciência informada por diferentes conteúdos. Agora há diferentes níveis e capacidades de raciocínio. Com isso, eu quero dizer que pessoas têm capacidades distintas de raciocinar sobre o que elas estão fazendo, no que elas estão envolvidas e qual é a consequência disso para o futuro.

O que eu chamo de baixo nível de raciocínio é depender de um código fixo para explicar a realidade. É uma ausência de capacidade mais aberta de compreender a realidade por ela mesma. Podemos prever que as sociedades estejam estratificadas em diferentes níveis de capacidade de reflexão, afinal, há estratificação em todas as sociedades. O que a estratificação não explica é porque camadas mais privilegiadas também têm problemas de qualidade de raciocínio.

Por exemplo, foi necessário que quase ocorresse uma catástrofe para que certos segmentos econômicos entendessem que não podem mais desmatar. Mudança no tipo de raciocínio de parte das elites brasileiras sobre isso não ocorreu por verem tantas árvores queimando, mas porque países europeus disseram que não iriam mais importar carnes cujos bois fossem alimentados com pasto plantado em áreas desmatadas. O nível de raciocínio aumentou quando houve uma ameaça de corte nas exportações. De repente, esses grupos desenvolveram outras capacidades de raciocínio ao descobrirem que precisariam deixar de desmatar para manter o nível de lucro. Foi assim que eles entenderam que há outras formas de fazer as coisas. Sinistro, né? Por que não descobriram isso antes? Falar de conscientização é muito complicado. Na verdade, conscientizar pessoas das classes populares sobre suas demandas e necessidades é mais fácil do que conscientizar as pessoas letradas.

Nós temos que ter claro certos pressupostos sobre o que é conscientização, raciocínio e mudança da consciência. A esse respeito, uma questão importante é: qual é o contexto em que indivíduos x ou y têm para melhorar seu raciocínio? Um exemplo é o trabalho em favelas, quando não há continuidade após o fim de nossas intervenções. Não podemos dizer que tudo o que fizemos foi em vão, porque talvez as pessoas não tivessem a oportunidade de continuar esse processo de conscientização. Mas nós temos condições de continuar nosso processo de conscientização na universidade. Isso por dois motivos, ou duas responsabilidades: por sermos indivíduos humanos e por sermos remunerados por aqueles que não têm oportunidade de realizar isto.

O QUE VOCÊ TERIA A DIZER PARA QUEM ESTÁ CONSIDERANDO USAR O SEU MODELO?

Acho que este projeto de 20 anos do modelo é importante porque vai permitir a gente ter um olhar sobre por onde ele caminhou e vai levantar algumas questões interessantes que acredito que devam ser (mais ou menos) esclarecidas. Duas questões me parecem relevantes a pesquisadores interessados no modelo. Tem um ponto que eu não tinha dado tanta importância quando criei o modelo porque na minha cabeça era o universo do Stephen Hawking6 girando, né? Mas, na prática, um pesquisador pode usar uma ou outra dimensão, uma só ou várias. Se é preciso pesquisar somente uma dimensão por motivos de tempo, recursos etc., ele/ela tem que saber escolher pensando na população que vai ser pesquisada.

Eu diria a quem adota o modelo para tentar, escolhendo essa dimensão, confeccionar perguntas que permitam tocar outras dimensões, porque nesse sentido, Moscovici tem razão. Não tem nenhuma representação social bem trabalhada e desenvolvida, que não se apresente na forma como uma pessoa pensa diversos aspectos da realidade, né? Por isso, pensando que outras dimensões poderão aparecer na resposta sobre a dimensão para a qual a pergunta foi feita, eu recomendaria aprofundar esses dados, caso isso aconteça.

A segunda ideia é que o modelo é um modelo de consciência e, portanto, a análise não tem que ser feita estritamente na ordem que as dimensões são apresentadas. A ideia é reconstituir a consciência dessa pessoa. Se possível ela deve ser feita considerando todas para reconstruir a configuração dessa consciência. Isto é algo complicado, mas esta é a parte do psicólogo. Se quisessem uma vida mais fácil, poderiam estudar sociologia (risos). Acho que esses dois pontos são importantes destacar: não ficar fixado nas dimensões, nas análises e focar no objetivo, ou seja, explicar a consciência destas pessoas.

1Os(as) nucleantes envolvidos nessa tarefa são listados como autores(as) da entrevista.

2Menção às pessoas que estavam na reunião no dia.

3Menção ao Manifesto Comunista de Karl Marx e ao Livro Vermelho de Hou Bo e Mao Tsé-Tung. Ambos muito populares entre sujeitos interessados em questões comunitárias nas décadas de 1970 e 90 no Brasil.

4Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais

5Conselho Latino-americano de Ciências Sociais

6Menção ao livro “Universo numa Casca de Noz” escrito por físico Stephen Hawking.

Recebido: 18 de Junho de 2024; Revisado: 24 de Setembro de 2024; Aceito: 01 de Outubro de 2024

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