INTRODUÇÃO
Os Conselhos de Políticas Públicas são colegiados de participação popular na atual organização do Estado brasileiro. São órgãos institucionalmente criados nas três esferas governamentais, no âmbito do Poder Executivo, para permitir a inclusão da sociedade civil nos debates e decisões das diversas políticas públicas, particularmente as políticas sociais. São geralmente compostos por conselheiros governamentais e não governamentais (instituições, trabalhadores e usuários da política pública, entre outros), mas também podem ser formados por apenas um dos segmentos (Diegues, 2013).
Esses colegiados foram criados institucionalmente no Brasil há algumas décadas, mas ganharam notoriedade e amplo potencial de participação nas decisões políticas do Estado apenas após a Constituição Federal de 1988, no período de redemocratização do país. Seu desenho institucional foi estabelecido para descentralizar o poder dos governantes, em um movimento de construir e monitorar políticas públicas que atendessem os anseios da população. O modelo conselhista busca aprofundar a experiência democrática a partir de uma compreensão de que os sujeitos devem participar das decisões que digam respeito a eles próprios e às suas comunidades (Dagnino, 2004).
Também no contexto da redemocratização a assistência jurídica para as pessoas pobres torna-se uma garantia constitucional no Brasil. A Defensoria Pública é a instituição encarregada de prestar orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, isto é, aqueles que comprovarem insuficiência de recursos (Constituição da República Federativa do Brasil, 1988).
Considerando a insuficiência na implementação e execução das diversas políticas públicas, particularmente as sociais, nota-se um número expressivo de pessoas que procuram o atendimento das Defensorias Públicas para tentar concretizar seus direitos. Por exemplo, entre 2010 e 2019, foram identificados 21.054 processos judiciais tramitados no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo referentes às demandas de saúde em que a Defensoria Pública aparece como solicitante. Outro dado mostra que apenas em 2019 na cidade de São Paulo foram identificadas 2.800 crianças que demandaram acesso à creche por ação judicial (Defensoria Pública do Estado de São Paulo, 2020).
Dessa forma, apesar dos direitos sociais de cada cidadão brasileiro estarem previstos na legislação, nem sempre eles são efetivados. Uma possibilidade para essa efetivação é o acesso ao Poder Judiciário, cuja garantia à população mais vulnerável cabe à Defensoria Pública. Nesse sentido, a atuação da instituição é relevante na diminuição das desigualdades sociais e na promoção da democracia, ao passo que pode contribuir com a cidadania de pessoas historicamente excluídas, em um movimento de busca da potencialização de suas vozes junto ao Estado.
A Defensoria Pública apresenta potencial para contribuir com o fortalecimento da qualidade do controle social realizado pelos conselheiros municipais, através da atuação de profissionais de diversas áreas afetas às políticas públicas sociais. Este trabalho é um recorte dos resultados de pesquisa de Doutorado e, nele, elegemos como objetivo analisar as identidades coletivas de profissionais da Defensoria Pública que atuam junto a Conselhos Municipais de políticas públicas em comparação às daqueles que não atuam. Para isso, utilizamos como referencial teórico o Modelo de Consciência Política (Sandoval, 2001, 2015). Considerando a consciência como um conceito referente às significações que as pessoas atribuem às interações diárias e acontecimentos em suas vidas (Sandoval, 1994), o autor considera que é possível compreender a predisposição para uma ação política a partir do estudo da consciência política. Propõe fazê-lo através de sete dimensões coexistentes e conectadas entre si. Na configuração atualizada do Modelo de Consciência Política por Sandoval e Silva (2016) que adotamos em nosso trabalho, essas dimensões são: identidade coletiva; crenças, valores e expectativas societais; interesses coletivos e adversários antagônicos; eficácia política; sentimentos de justiça e injustiça; vontade de agir coletivamente; e metas e repertórios de ações.
A identidade de uma pessoa consiste na sua identificação, que passa por uma autodefinição e por uma imagem criada por outras pessoas, uma vez que os seres humanos convivem em sociedade. Tratase de uma relação continuamente dialética. Como uma pessoa se percebe, como se define, não se faz apenas individualmente pelos seus gostos e preferências. A identidade está ligada às relações sociais, pois as outras pessoas contribuem na definição da identidade individual a partir de como percebem o outro. Assim, a identidade individual refere-se a como “eu” me penso, reconheço, defino, enquanto a identidade social consiste em “como (eu quero que) as pessoas me definem”. São dimensões identitárias complementares e contrárias ao mesmo tempo. Complementares porque ambas são fundamentais para construir-se mutuamente, e contrárias porque envolvem a diferenciação necessária entre o indivíduo e a sociedade, o outro. Para discutir identidade é necessário considerá-la como um fenômeno subjetivo e intersubjetivo, refletindo esse movimento entre o indivíduo e os outros (Silva, 2001; Souza, 2011).
Asael Maldonado e Alejandrina Oliva (2010) resgatam a teoria da identidade social de Henry Tajfel, que a concebe como o vínculo psicológico entre a pessoa e seu grupo, caracterizado por: percepção de pertencimento ao grupo; ser consciente de que pertencer ao grupo resulta em assumir para si um valor positivo ou negativo; nutrir afeto decorrente do sentimento de pertencimento ao grupo. As autoras afirmam que, para Henry Tajfel, a identidade de uma pessoa é sempre social, pois é construída no pertencimento a um grupo, que coloca os limites ao indivíduo em relação aos outros grupos dos quais não pertence.
Uma identidade social pode tornar-se coletiva a partir do posicionamento consciente do indivíduo. Na identidade coletiva, não basta pertencer à determinada categoria identitária social, mas é necessário o reconhecimento desse pertencimento, que implica em posição, em diferenciação dos outros grupos com uma valoração positiva a seu grupo. Essa construção necessariamente tem que produzir sentidos subjetivos nos indivíduos, ou seja, não basta conhecer as características identitárias do grupo ao qual pertencem, é preciso que a identidade coletiva assumida tenha função na vida do indivíduo, contribuindo para explicar a realidade e direcionar suas ações cotidianas.
Especificamente em relação à atuação dos profissionais da Defensoria Pública junto a conselhos municipais de políticas públicas, qual a importância do pertencimento a determinadas identidades coletivas na consciência política que determinam essa forma de agir, isto é, o trabalho junto aos conselhos? Como é o processo de definição das identidades desses profissionais nesse contexto?
METODOLOGIA
Contribuiram para a pesquisa vinte e dois participantes, sendo onze profissionais da Defensoria Pública do Estado de São Paulo que afirmaram trabalhar junto a conselhos municipais de políticas públicas (1º grupo) e onze profissionais que não apresentaram essa atuação (2º grupo). Esses participantes foram obtidos através de envio de e-mail para todos os profissionais da instituição consultando sobre a atuação junto a conselhos municipais. Inicialmente, dezoito profissionais responderam que realizavam essa atuação e, destes, onze aceitaram participar da pesquisa, formando o 1º grupo. Para compor o 2º grupo, consultamos os profissionais do 1º grupo e solicitamos que indicassem outros profissionais, preferencialmente de suas unidades de trabalho, que não realizavam atuação junto a conselhos, totalizando a mesma quantidade (onze) de profissionais em cada grupo.
A partir de roteiro previamente construído, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com profissionais de ambos os grupos, com perguntas que abordaram a trajetória profissional dos participantes, suas definições identitárias e as relações com seu trabalho, e eventuais participações em movimentos sociais, partidos políticos ou outras organizações. Todas as entrevistas realizadas compuseram o material de análise, pois entendemos que todas as experiências vivenciadas e interpretadas subjetivamente pelos participantes são importantes para a compreensão do fenômeno estudado neste contexto específico.
As entrevistas foram realizadas nos locais de trabalho dos participantes entre outubro de 2018 e maio de 2019 com duração média de sessenta minutos cada uma. Os conteúdos foram gravados, transcritos e submetidos à Análise de Conteúdo (Bardin, 2011). Nesse processo, foram obtidas categorias a partir da codificação de unidades de análise (temas), conforme Quadro 1:
Quadro 1 Categorias e unidades de análise (temas) após codificação
Categorias | Unidades de análise (temas) |
---|---|
Perfil dos profissionais | Tempo de atuação; Formação acadêmica |
Autodefinição de identidade | Servidor público; Categoria profissional |
Participação em movimentos sociais, instituições e partidos políticos | Movimentos sociais/instituições formais; Movimentos sociais/instituições informais; Partidos políticos |
Trata-se de uma pesquisa qualitativa, pois seu foco de análise é a compreensão dos sentidos atribuídos pelos participantes às suas experiências com o objeto de estudo proposto (Minayo, 2012). Na transcrição de alguns trechos das entrevistas transcritas para ilustrar a codificação dos resultados, utilizamos códigos para referirmo-nos aos profissionais sem identificá-los pessoalmente. Esses códigos começam com o número 1 ou 2 (referentes ao pertencimento dos grupos), seguidos pela profissão/função exercida na instituição (PSI = psicólogo; AS = assistente social; DEF = defensor público) e a classificação pela quantidade de profissionais. Por exemplo, 1.PSI 1 significa psicólogo n.º 1 do 1º grupo e assim sucessivamente.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
PERFIL DOS PROFISSIONAIS PARA ATUAÇÃO EM CONSELHOS MUNICIPAIS
Os profissionais da Defensoria Pública entrevistados apresentam o perfil conforme Tabelas 1 e 2 abaixo:
Tabela 1 Perfil dos profissionais da Defensoria Pública que atuam junto a conselhos municipais (1º grupo)
Formação Acadêmica | Quantidade | Início da atuação na Defensoria Pública |
---|---|---|
Direito (Defensores Públicos) | 2 | 2013 e 2014 |
Psicologia | 3 | 2010 (2) e 2014 |
Serviço Social | 6 | 2014 (5) e 2010 |
Total | 11 |
Nota. Fonte: dados da pesquisa (2019)
Tabela 2 Perfil dos profissionais da Defensoria Pública que não atuam junto a conselhos municipais (2º grupo)
Formação Acadêmica | Quantidade | Início da atuação na Defensoria Pública |
---|---|---|
Direito (Defensores Públicos) | 7 | 1990, 2007 (2), 2009, 2011, 2012 e 2014 |
Psicologia | 3 | 2010 (3) |
Serviço Social | 1 | 2014 |
Total | 11 |
Nota. Fonte: dados da pesquisa (2019)
Durante a coleta de dados não foram obtidas as idades dos participantes por não se considerar informação relevante para a análise. Outras informações como o gênero e as unidades de trabalho não foram expostas para não comprometer o sigilo acerca das identidades individuais dos participantes.
Os profissionais da DPESP que atuam junto a conselhos municipais de políticas públicas eram, em sua maioria, os mais novos na instituição à época da pesquisa. Dos onze entrevistados, sete deles atuavam na instituição há cinco anos no momento das entrevistas. Desses profissionais, nota-se que a maioria é formada por assistentes sociais (cinco entre sete profissionais). Em 2014 havia sido a última vez em que houve a nomeação de vários profissionais assistentes sociais e psicólogos após aprovação em concurso público em curto espaço de tempo, majoritariamente os primeiros. Após isso, as nomeações ocorreram em menor número, sobretudo para preencher as vagas de profissionais que se desligaram da instituição.
Isto decorreu porque em 2010, na primeira vez em que houve concurso para estes cargos na DPESP, foram nomeados mais psicólogos que assistentes sociais, decorrentes de concurso iniciado em 2009 (Defensoria Pública do Estado de São Paulo, 2009). Em 2014, com a expansão dos cargos via lei estadual, houve uma tentativa de aproximar da equivalência a quantidade de servidores públicos dessas duas profissões (Psicologia e Serviço Social), razão pela qual houve um número superior de assistentes sociais nomeados nesse ano. Isso é um dos fatores que pode explicar por que, dos profissionais com cinco anos de atuação, a maioria é constituída por assistentes sociais, embora não explique por que eles estão em maior número que os demais nessa amostra de profissionais que atuam junto a conselhos municipais.
Entre os profissionais que não atuam junto a conselhos municipais nota-se uma distribuição mais homogênea em relação ao tempo de atuação na instituição, com ao menos um profissional tendo ingressado em cada época (28, 9, 7 e 6 anos). Desde um profissional que configura uma exceção por apresentar tempo de atuação muito maior que os demais entrevistados (28 anos), apenas há concentração de dois profissionais com 12 e 5 anos, e 3 profissionais com 8 anos de atuação. Os profissionais desse grupo são em maioria defensores públicos (sete entre onze entrevistados). Os concursos para ingresso de defensores públicos na instituição têm sido realizados mais frequentemente que os certames voltados para a seleção de psicólogos e assistentes sociais, o que ajuda a explicar as maiores chances de haver defensores públicos com maior diversidade de tempo de atuação do que os outros profissionais.
A maior incidência de assistentes sociais entre os profissionais com atuação junto a conselhos está relacionada à formação profissional. Assistentes sociais, em termos gerais, têm uma formação com ênfase em coletividades. Embora também atuem em atendimentos individuais, seu currículo acadêmico é fortemente voltado para apropriação de questões coletivas, inclusive quanto às políticas públicas sociais. A profissão está fundamentada na análise das expressões da “questão social” na vida das pessoas com as quais os assistentes sociais trabalham. O conceito de “questão social” refere-se às diversas expressões de desigualdades da sociedade capitalista, em que a riqueza é produzida socialmente pelos trabalhadores, mas apropriada privativamente pelos detentores dos meios de produção. Essa sociedade produz a luta de classes e o tensionamento dos trabalhadores com o Estado com vistas à busca da superação das desigualdades produzidas. Assim, a atuação dos profissionais do Serviço Social é focada na superação dessas desigualdades da sociedade atual, capitalista. Seu olhar, portanto, é originalmente social e coletivo (Iamamoto, 2014).
Dentre os vários espaços possíveis para trabalhar, os assistentes sociais brasileiros apresentam atuação predominante nas políticas públicas sociais, contexto de trabalho utilizado por esses profissionais no enfrentamento das desigualdades sociais (Mioto & Nogueira, 2013). A proximidade e conhecimento dos assistentes sociais sobre as políticas sociais costumam ser maiores se comparados a outros profissionais, inclusive psicólogos e operadores do Direito, também entrevistados nesta pesquisa. É parte constituinte do significado social da profissão de assistente social a associação desses profissionais às políticas públicas sociais, e essa orientação ético-política está presente nos cursos superiores de Serviço Social ao menos desde a década de 1980.
Por sua vez, os psicólogos brasileiros não apresentam formação acadêmica fortemente focada em políticas públicas sociais ou atuações coletivas. No Brasil, a profissão de psicólogo foi reconhecida e oficializada em 1962, e após essa data foram criados cursos superiores específicos em Psicologia. Até então, conteúdos relacionados à ciência psicológica eram estudados em cursos como Filosofia, Medicina, Teologia e Direito, além da área de Educação. Desde o século XIX, com a criação dos primeiros cursos superiores nessas áreas no Brasil, até o final da década de 1970 e início de 1980, já nas graduações em Psicologia, muito pouco era discutido sobre atuação desses profissionais no âmbito de políticas públicas sociais. A formação era quase exclusivamente voltada para questões individuais, com forte ênfase em avaliações psicológicas e técnicas de psicoterapia. Os psicólogos, em sua quase totalidade, terminavam sua formação e passavam a trabalhar em clínicas psicológicas, sobretudo particulares, como profissionais liberais (Pereira & Pereira, 2003).
Apenas a partir da década de 80 do século XX, ganha certa relevância no contexto acadêmico da Psicologia, críticas ao modelo constituído, focado em questões individuais. Na América Latina, autores como Ignácio Martín-Baró (2011, 2017), em El Salvador, começam a questionar as práticas profissionais da Psicologia, consideradas elitistas e que não contribuíam com a maioria da população que continuava oprimida pelas condições objetivas que se apresentavam. Para ele, era preciso repensar toda a ciência psicológica e construir um conhecimento em diálogo com as maiorias oprimidas, em geral vivendo situações de pobreza e violências, inclusive praticadas pelo Estado. Nesse entendimento, até aquele momento o conhecimento psicológico não respondia às necessidades de quem deveria destinar-se.
Esse debate também teve desdobramentos no Brasil e autores brasileiros também ofereceram importante contribuição nesse questionamento. A partir dos anos 1980, tendo Silvia Lane e seu grupo de pesquisadores na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) como pioneiros, os aspectos sociais como base para a compreensão da subjetividade humana ganham destaque. Esses autores foram responsáveis por iniciar a reformulação da Psicologia Social no país, sobretudo com a introdução e desenvolvimento da Psicologia Social-Comunitária. Através desta área de conhecimento e atuação dos psicólogos, novos métodos de trabalho vão sendo construídos em uma perspectiva de compromisso com a transformação da realidade brasileira, marcada fortemente pelas desigualdades sociais (Bock, Rosa, Amaral, Ferreira, & Gonçalves, 2022).
Nesta perspectiva, há uma provocação para que os psicólogos procurem atuar em diversos contextos, não restritos ao consultório psicológico particular. Se poucas pessoas podiam pagar pelos serviços psicológicos, era preciso que a Psicologia oferecesse alternativas de atuação para atender mais amplamente a população brasileira, ou seja, repensar as contribuições que a ciência psicológica teria condições de oferecer (Senra & Guzzo, 2012).
Desde este período conhecimentos científicos vêm sendo produzidos considerando este clamor de reformulação da Psicologia brasileira, e o número de profissionais que trabalham nas políticas públicas sociais vem aumentando. Quando psicólogos e pesquisadores vão identificando outros contextos de atuação, alguns vão buscar inserir-se em diversos espaços das cidades, inclusive nas periferias e bairros empobrecidos. Nesse movimento, as políticas públicas sociais são assumidas como importante contexto de trabalho dos psicólogos em uma perspectiva de compromisso social com a maioria da população brasileira, que historicamente teve pouco acesso a serviços psicológicos.
Já havia alguns profissionais que atuavam no contexto da saúde pública, particularmente em instituições de saúde mental, mas os psicólogos vão pouco a pouco aumentando sua inserção nas demais políticas sociais, com destaque para a Política de Assistência Social, sobretudo depois da criação do SUAS (Sistema Único de Assistência Social) em meados dos anos 2000. O SUAS, espelhado no SUS (Sistema Único de Saúde), é operacionalizado através de serviços públicos, dentre eles CRAS (Centro de Referência de Assistência Social) e CREAS (Centro de Referência Especializado de Assistência Social), que foram normatizados com a obrigatoriedade de contar com assistentes sociais e psicólogos em suas equipes técnicas. Somados aos órgãos de saúde pública, os serviços de assistência social são atualmente os que mais empregam psicólogos no âmbito das políticas públicas (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2022).
Neste movimento histórico, políticas públicas sociais passaram a ser consideradas como possibilidade de exercício profissional de psicólogos, com consequente impacto na formação acadêmica. Antes praticamente inexistentes, conteúdos acerca de políticas públicas sociais, grupos e coletividades ganharam espaço nos cursos superiores de Psicologia (Oliveira, Soligo, Oliveira, & Angelucci, 2017).
Mais recentemente, o Sistema Conselhos de Psicologia, formado pelo Conselho Federal e pelos Conselhos Regionais de Psicologia, vem editando uma série de cartilhas de referências técnicas discutindo a atuação dos psicólogos em diversas políticas públicas sociais através do CREPOP (Centro de Referências Técnicas em Psicologia e Política Públicas), criado em 2006 (CFP, s/d). Dentre essas cartilhas encontra-se, por exemplo, as Referências Técnicas para a Atuação de Psicólogas(os) na Atenção Básica à Saúde (CFP, 2019) e as Referências Técnicas para Atuação de psicólogas(os) no CRAS/SUAS (CFP, 2021).
Contudo, a ênfase nas questões individuais, especificamente relacionadas às psicoterapias, continua como marco dos cursos de Psicologia. Este é um dos fatores que refletem no exercício profissional do psicólogo. A psicologia clínica é a área de atuação com maior número de psicólogos no Brasil. Em 1988, o Conselho Federal de Psicologia (1988) publicou uma pesquisa denominada “Quem é o psicólogo brasileiro?” no período em que a Psicologia completava 25 anos de profissão regulamentada no país. Os dados dessa pesquisa apontaram que 43,4% dos psicólogos atuavam na Clínica e 4,6% trabalhavam na área Comunitária.
Em pesquisa mais recente conduzida pelo Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (IBOPE) (2004), encontramos 55% dos psicólogos atuando em Clínica e 11% com trabalho em políticas públicas de saúde, segurança e educação. Não é possível fazer uma comparação direta, pois no período da primeira pesquisa não havia ainda políticas públicas sociais com as características atuais, após a Constituição Federal de 1988. Naquela época, a atuação na área Comunitária geralmente era realizada em instituições não governamentais, muitas vezes em trabalho voluntário. Essa área não está presente na pesquisa mais recente, mas é possível perceber a presença significativa de psicólogos atuando em políticas públicas sociais, algo inexistente há algumas décadas. Na atualidade provavelmente esse percentual deva ser ainda maior, considerando a expansão de postos de trabalho em serviços públicos.
Ainda assim, a atuação em Psicologia Clínica continua nitidamente como a principal área de atuação dos psicólogos brasileiros. Trata-se de área extremamente importante em que os profissionais da Psicologia contribuem para a promoção da saúde mental das pessoas, e provavelmente continuará sendo protagonista. No entanto, a atuação em políticas públicas sociais ganhou bastante força, conduzindo vários profissionais a refletir mais intensamente sobre questões coletivas e comunitárias.
Diferentemente dos assistentes sociais, cuja formação e intervenção profissionais são focadas em coletividades, os psicólogos voltam-se prioritariamente para demandas individuais, embora esse perfil venha sendo relativamente modificado nas últimas décadas, especialmente com a inserção nas políticas sociais. Os assistentes sociais, pela formação acadêmica e experiência profissional, em geral apresentam maior conhecimento acerca de políticas públicas e conselhos municipais do que psicólogos.
Por estas razões, embora não seja uma regra, em uma instituição como a Defensoria Pública, diante da multiplicidade de demandas, os assistentes sociais apresentam maior chance de trabalhar junto a conselhos de políticas públicas do que psicólogos, que provavelmente estariam voltados prioritariamente ao atendimento individual dos usuários da instituição. Como pudemos ver durante as entrevistas realizadas, não se trata de atividades excludentes, podendo ser acumuladas por ambos os profissionais. Porém, as características de cada profissão resultam em maior proximidade dos assistentes sociais com conselhos municipais de políticas públicas, contribuindo para que constituam maioria entre os profissionais do 1º grupo.
Dentre os profissionais do 2º grupo, sem atuação junto a conselhos municipais, nota-se a maior incidência de defensores públicos. Os profissionais do Direito costumam ter uma formação eminentemente técnica, isto é, seu currículo acadêmico é bastante voltado para que os graduandos aprendam a interpretar leis e demais normativas, bem como conduzir processos judiciais. As políticas públicas, inclusive sociais, são quase sempre discutidas no âmbito do Direito unicamente a partir das possibilidades de aplicação legal. Assim, sob o prisma da Constituição Federal, analisa-se o que o gestor público teria ou não responsabilidade de executar em termos de políticas públicas, e os meios necessários para obrigá-lo judicialmente em caso de omissão (Faria & Coutinho, 2013). Na maioria das vezes, essas tentativas de obter uma decisão judicial para forçar o Poder Público a cumprir determinar ação são realizadas individualmente, isto é, podem impactar positivamente a vida da pessoa a quem se destina, mas dificilmente beneficiam a população coletivamente.
Assim, entende-se por que vários gestores públicos, inclusive ocupantes de cargos eletivos, tenham formação acadêmica em Direito, ainda que nestes cursos superiores haja pouco debate sobre a formulação e condução de políticas sociais. Embora todo o arcabouço jurídico brasileiro esteja fundamentado no regime democrático, é comum aos profissionais do Direito restringirem o conhecimento político à aplicação formal das leis. Participação democrática e instrumentos para fomentá-la, visando potencializar a participação da população na construção de políticas públicas, não têm sido assunto prioritário na formação em Direito.
Certamente as políticas públicas sociais apresentam em seu funcionamento a fundamentação legal como um aspecto imprescindível, assunto de especialidade dos profissionais do Direito. Nesse sentido, é comum aos profissionais dessa área, incluindo os defensores públicos, debruçar-se sobre tal aspecto. A atuação judicial tem sido a principal estratégia utilizada pelos defensores públicos diante de demandas relativas às políticas sociais que chegam a sua instituição. A atuação em outros âmbitos em que a identificação da aplicação das leis não é tão direta ou imediata, como é o caso da participação democrática em conselhos municipais, não representa uma estratégia facilmente pensada e utilizada no contexto do trabalho cotidiano pelos defensores públicos.
Diante destas características de formação acadêmica dos diversos profissionais da DPESP, notou-se nesta pesquisa uma maior tendência dos assistentes sociais em buscar a atuação junto a conselhos municipais de políticas públicas. Os psicólogos não apresentam esta atividade como uma das primeiras possibilidades de atuação, e os defensores públicos raramente empreendem atividades relacionadas a conselhos municipais.
AUTODEFINIÇÃO DE IDENTIDADES
Quando solicitados a falar sobre suas identidades, e a relação dessas identidades com o trabalho na Defensoria Pública, os profissionais de ambos os grupos buscaram definir-se de diversas formas, as quais categorizamos em dois temas. O primeiro deles é a identificação como servidor público, que compreende o sentimento de servir ao público, de ser responsável por prestar um bom atendimento à população, uma vez que seu trabalho é vinculado ao Estado e não à iniciativa privada. Os seguintes trechos das entrevistas do 1º grupo ilustram esse tema:
1.PSI 3 - Eu acho que depois de um tempo a gente vai incorporando um pouco essa questão, assim, por exemplo, quando eu ligo pro pessoal da rede e é um pessoal que eu já conheço, eu falo “É o [profissional] da Defensoria”, isso passa a ser uma referência pelo menos da minha identidade aqui. Como servidor público, eu penso muito no compromisso que a gente tem com a população, depois de um tempo aqui na Defensoria, por conta de uma série de coisas que a instituição fez e faz, instituição, eu digo assim, quem está a frente da instituição, com as quais eu discordo, eu acho que eu passei a redefinir um pouco esse meu papel de servidor público e hoje eu digo que meu papel é servir, atender as pessoas que procuram a Defensoria, acho que eu desvinculei um pouco da instituição porque eu tenho uma série de críticas, então eu acho que eu deixei de colocar em primeiro plano: “olha, eu sou um servidor da Defensoria”, embora eu seja, é meu emprego, é meu cargo, e passei a focar muito assim na população que eu atendo.
1.AS 1 – Porque o que eu gosto, profissionalmente falando, é de estar tête-à-tête com o ser humano e o tête-à-tête com o ser humano é conversando, dialogando, é tendo uma escuta atenta, descontruir e construir ao mesmo tempo, junto com o usuário.
1.AS 4 - Eu me identifico como uma profissional comprometida com os usuários, com o público e não com a instituição, apesar de estar e me adequar à instituição, meu foco sempre é atender aos usuários, às necessidades dos usuários.
Nesse tema é possível perceber que a identificação como servidor público também é construída pelo reconhecimento dessa identidade pelos profissionais da rede de serviços e pelos usuários com quem esses profissionais da Defensoria Pública se relacionam no seu cotidiano. É uma identidade que aponta para um sentido de primordialmente trabalhar e servir à população.
Apenas um dos profissionais do 2º grupo destacou a identidade de servidor público na entrevista, conforme o seguinte trecho.
2.DEF 5 - Eu prefiro me definir como servidor público. Independente do cargo ou não. Mesmo que seja até um estagiário, um segurança, um oficial, um assistente de Defensoria, nós somos servidores públicos.
O segundo tema de identificação está relacionado à categoria profissional a que o profissional pertence. Os profissionais afirmam se identificar como defensores públicos, assistentes sociais ou psicólogos, não apenas em termos gerais de cada área de conhecimento, mas especificamente em relação ao exercício dessas profissões no contexto da Defensoria Pública. Há um destaque para afirmar-se como profissional, descartando ou minimizando a identificação como militante junto a movimentos sociais ou partidos políticos. Vejamos os trechos significativos do 1º grupo:
1. DEF 1 – Nossa, amplo isso, né? Eu acho que um pouco de tudo. A minha profissão mesmo é defensor, eu não me considero militante. Talvez fora daqui, em algum outro trabalho menor, talvez lá na minha cidade de origem, que é uma pequena cidade. Talvez lá eu tenha sido mais militante, mas eu acho que assim militante hoje não. Eu acho que o trabalho na Defensoria te toma tanto tempo que você não consegue fazer esse trabalho junto aos movimentos sociais a ponto de efetivamente militar em prol de direitos.
1.DEF 2 – ... que eu acho que tem um papel político do defensor importante, e aí acho que em algumas áreas isso é mais sensível, como na infância, na fazenda pública, em violência doméstica e que tenha a ver talvez com essa participação em conselhos, essa articulação em rede, com posicionamento político, tudo… é… e que eu acho que é preciso talvez uma distinção aí de uma luta por direitos, distinguir isso de uma identificação político-partidária, que eu acho que talvez ter essa confusão é um problema pra função...
1.AS 2 - Na Defensoria eu busco também esse atendimento de qualidade, de respeito ao outro independente de quem seja o outro, busco bastante essa igualdade. Acho que seriam essas minhas identidades: igualdade, feminista, de luta pelos direitos, minha identidade até mesmo como assistente social, que acaba a gente chama o Serviço Social de uma profissão por identidade, porque a gente está na profissão porque se identifica com o outro e quer minimizar os sofrimentos do outro.
1.PSI 2 - As minhas questões ideológicas, como eu já havia falado, elas vão ao encontro às premissas institucionais da Defensoria. E calhou de eu encontrar um espaço aqui para atuar dentro do campo da psicologia. Então eu me reconheço de forma muito positiva aqui na instituição, por conta disso, eu sinto que ela me permite, dentro do possível, dentro dos limites institucionais, atuar de forma que eu considero ética.
Entre os profissionais do 2º grupo também foi encontrado o tema de identidade relacionada à categoria profissional, mais enfatizado entre esses profissionais do que a identidade de servidor público, conforme trechos seguintes.
2.PSI 6 – As pessoas da psicologia não costumam ser tão engajadas em política, movimento social etc. então assim, eu tento trazer aqui para a Defensoria o meu trabalho de psicólogo, em que eu realmente traga a psicologia para atuar. ... Eu penso nisso, costumo atender as pessoas com esse olhar: como posso favorecer essa pessoa na situação em que ela está usando meus conhecimentos de psicologia?
2.DEF 4 – ... quando as pessoas me perguntam o que eu faço eu me defino como defensora pública, porque eu acho que caracteriza melhor as funções que eu exerço, identifica como membro da instituição, identifica melhor as funções que eu exerço, que tipo de atividade, embora eu sinta que as pessoas fora do mundo jurídico conheçam muito pouco a respeito do que a Defensoria Pública faz.
2.AS 7 - Eu me identifico muito, desde o começo, com a profissão mesmo, de assistente social, eu nunca pensei em fazer outra coisa. Eu fiz orientação vocacional e foi essa carreira mesmo. Eu não me vejo fazendo outra coisa, então eu me identifico mesmo, sou assistente social.
Em termos de identidade, não costuma ser fácil reconhecer rapidamente os grupos de pertencimento. A maioria das pessoas tem dificuldade de expressar-se quando solicitadas a autodefinir-se, seja porque todos nós temos várias identidades, seja porque sintetizar o que entendemos que somos em poucas palavras é um grande desafio. Essa dificuldade também foi demonstrada pelos entrevistados desta pesquisa quando perguntados sobre suas identidades relacionadas ao trabalho na DPESP. Eles responderam às indagações do pesquisador apenas após alguns esforços de reflexão, ainda que breves.
Entre os profissionais que atuam junto a conselhos municipais, uma das identidades presentes mais intensamente presentes no discurso é a de servidor público em sentido amplo. Eles se reconhecem como quem deve trabalhar para a população, atendê-la bem e buscar respostas para seus problemas. No mesmo sentido, Puccini (2018) discorreu sobre a identidade coletiva de obstetrizes que se definiram como profissionais que tinham como prioridade acompanhar mulheres em seus desejos e planos, ampliando seu poder decisório sobre sua vida sexual e reprodutiva.
E dessa forma buscam ser reconhecidos em suas comunidades, com sucesso em suas percepções, já que notam que os profissionais da rede de serviços públicos assim os reconhecem. Esse reconhecimento fortalece sua identidade, em um processo de contínua reafirmação de como se percebem socialmente (Silva 2001; Souza, 2011).
Os profissionais do 1º grupo apresentam sentimentos positivos em relação à identificação como servidores públicos. Eles experimentam satisfação em poder atuar cotidianamente em benefício da população atendida, sentem orgulho por fazê-lo (Maldonado & Oliva, 2010). Embora não tenham sido identificados sentimentos negativos acerca da identificação como servidores públicos entre os profissionais do 2º grupo, a expressão de sentimentos positivos dessa identidade foi notada mais intensamente entre os profissionais do 1º grupo.
Outra identidade coletiva identificada está relacionada à categoria profissional. Os profissionais entrevistados sentem-se pertencentes ao seu grupo profissional, especificamente quanto a sua atuação na DPESP. Não se trata apenas de identificar-se com a Psicologia, Serviço Social ou Direito, mas com a maneira como essas profissões são exercidas na instituição. Há muitos contextos diferentes em que profissionais destas áreas podem atuar, mas esses profissionais apreciam especialmente a atuação que exercem na DPESP. Para eles, ser psicólogo ou assistente social no contexto de assistência jurídica integral e gratuita às pessoas pobres tem suas características peculiares, assim como a identidade como defensor público se diferencia de outras funções exercidas por profissionais do Direito, como juiz, promotor de justiça, advogado, dentre outros. Semelhante valor positivo atribuído à profissão enquanto identidade coletiva foi constatado na pesquisa de Farias (2018) com estudantes de Administração, que já se sentiam administradores mesmo antes de concluir a graduação e apresentavam orgulho pela profissão.
Enquanto entre os profissionais do 1º grupo a identidade de servidor público é predominante à categoria profissional, ocorre uma inversão entre os profissionais do 2º grupo. O discurso destes últimos é mais marcado por sua identidade como categoria profissional, tendo apenas um dos entrevistados enfatizado que se identifica como servidor público. Ao descreverem suas identidades relacionadas à categoria profissional, ambos os grupos de profissionais destacam aspectos semelhantes, sobretudo em relação ao modo como exercem sua profissão no contexto institucional da DPESP, e como se definem a partir dessa atuação. Essa predominância da identidade de servidor público no 1º grupo, embora não indique necessariamente uma predisposição para atuação junto a conselhos municipais, mostra afinidade por ações coletivas não restritas ao escopo de suas profissões, característica comum aos atuantes nesses colegiados.
Nota-se que ambos os grupos de profissionais intensamente expressam a identificação como profissionais formais, isto é, como aqueles que exercem uma profissão legalmente regulamentada. Embora imersos em relações com outros atores sociais, inclusive da sociedade civil, esforçam-se por diferenciar-se deles, tal como os servidores públicos pesquisados por Costa (2012) que, em um processo de construção de Plano de Manejo de área de proteção ambiental, procuravam destacar que eram profissionais formais, atribuindo valor positivo a esta identidade.
PARTICIPAÇÃO EM MOVIMENTOS SOCIAIS, INSTITUIÇÕES E PARTIDOS POLÍTICOS
Muitos dos profissionais entrevistados não participam em movimentos sociais, instituições ou partidos políticos. Contudo, alguns desses profissionais apontaram essa participação que ocorre formal ou informalmente, antes e depois do ingresso na Defensoria Pública. Vejamos alguns trechos que apontam a participação em movimentos sociais/instituições formais dos profissionais do 1º grupo:
1.PSI 3 - Tem esse grupo que eu te falei, que é o GTH que é vinculado à educação permanente. Sou a única pessoa que não é da saúde que faz parte do grupo, todos os outros profissionais são da saúde, seja da atenção básica, seja da Secretaria Municipal de Saúde… Não faço parte de partido político, nem de movimentos sociais. A gente durante um tempo teve uma proximidade grande da Assessoria LGBT, então a gente sempre participava dos eventos, sempre era chamado pra discutir caso, a gente tinha uma proximidade bem grande, hoje a gente está um pouquinho mais distante, mas mantém esse contato.
1.AS 1 - Politicamente, como a gente tem as nossas preferências ideológicas, mas nunca fui efetivo partidariamente, nunca formalizei, nunca fui militante partidário. ... Eu participo junto à UNESP de uma entidade de extensão universitária que se chama NATRA – Núcleo Agrário Terra e Raiz, que trabalha questão agrária.
1.DEF 2 - Eu já fiz algumas coisas, eu já participei do movimento por moradia, já advoguei pro MTST um tempo, de uma advocacia mais próxima mesmo, militante mesmo de acompanhar ocupação, acompanhar alguns atos políticos do MTST, do MTST antes da nacionalização do movimento, quando ele atuava mais no Estado de São Paulo… E tenho uma proximidade com o movimento da luta antimanicomial [aqui]. Antes da Defensoria, eu me identificaria como do movimento de direitos humanos, sempre estive próximo do MDH, do CONDEPE, sempre tive essa proximidade.
1.PSI 1 – Quando eu era criança participei de uma ONG de direitos ambientais, mas ia mais para dar um rolê e conhecer um pouco mais do que participar como militante. Pensando melhor, durante a graduação participei de diretório acadêmico, mas é um movimento bem fechadinho, bem pontual. ... Nunca participei de partido político, nunca participei de ONG ativamente como membro.
Também entre os entrevistados do 2º grupo foram codificadas participações em movimentos sociais/instituições formais, anterior ou posteriormente ao ingresso na DPESP. Entre os profissionais que apresentaram essa participação, ela é mais frequente junto a movimentos sociais ou instituições consolidadas e com atuação continuada.
2.DEF 9 – Tenho bastante contato com os movimentos feministas, tem o curso de Promotoras Legais Populares, eu participei um pouco mais intensamente quando fiz parte da Coordenação Regional da EDEPE, né?
2.PSI 4 - Participo do movimento da luta antimanicomial, militante do campo da luta antimanicomial, faço parte do núcleo de saúde do Conselho Regional de Psicologia ... . E estou pretendendo, ainda não fiz, me filiar ao PSOL. São essas as vertentes que eu estou no momento.
2.PSI 5 - Tem uma pessoa que indiretamente é da família, ... que representa uma organização estadual da pessoa com deficiência. Então como tem as conferências de dois em dois anos, na Defensoria, ela vem para cá e a gente discute, vê possibilidades de algo ser feito melhor. ... Eu participei já de reuniões como o Rotary, fui rotariana, esse tipo de atividade social e de discutir possibilidades.
2.AS 7 – Eu me vejo, atualmente, no grupo mais voltado à violência contra a mulher, hoje em dia eu estou mais atuante nessa questão geral, e específico na violência contra a gestante. Mas quando a gente pensa em violência contra a gestante, a gente pensa em violência contra a mulher. ... Esse é o nome do grupo: violência obstétrica não.
Há também a participação em movimentos sociais/instituições informais, ou seja, não necessariamente em coletivos organizados, mas de maneira mais pontual e fluida. Assim relatam os profissionais do 1º grupo:
1.AS 1 - Meu engajamento, antes da profissão, era mais voluntário. Na questão da igreja, questão de Comunidade Eclesial de Base, na minha cidade que tinha uma época, quando eu era adolescente, jovem, então a gente fazia um trabalho junto à população em situação de rua no local no município.
1.AS 4 - Não tenho atuação partidária, em partidos políticos, penso mais nessa linha do pessoal, das minhas relações profissionais, pessoais. E na minha atuação profissional sempre embasada nesse código de ética, nessa militância. … Participei em Mogi das Cruzes … nos movimentos de mulheres que tinha lá e de pessoas com deficiência.
1.AS 5 – ... sou afeta a movimentos populares, eu me identifico muito com as questões da população em situação de rua, violência contra a mulher e questões de saúde também. ... Participei de alguns, mais recentemente estive envolvida no movimento de pessoas em situação de rua, procurei estar bem presente.
Também houve comentários sobre a participação em movimentos sociais/instituições informais entre os profissionais do 2º grupo. Trata-se de participação mais esporádica, com atuações esparsas junto a alguns movimentos sociais ou instituições.
2.DEF 3 - Já participei de coisas ligadas à questão do meio ambiente, porque eu me interessava pela questão de animais e coisas assim, principalmente atrelada à questão de criança, que tenho uma proximidade um pouco maior, então vou lá e visito estabelecimentos, arrecadação de doação, projetos de organização, mais isso. Mas sempre em caráter esparso, não como um compromisso formalmente assumido de continuidade.
2.DEF 4 - Eu tenho pessoalmente, eu me identifico mais com determinado posicionamento político, mas nunca fui filiada a nenhum partido, embora eu goste de acompanhar a respeito de política em noticiário. Na faculdade eu tive alguma proximidade com movimentos sociais relacionados à moradia, a gente tinha um grupo que ia até as comunidades e prestava assistência jurídica, mas o meu contato maior acabou sendo após o ingresso na Defensoria Pública. A gente costuma receber alguns grupos aqui ou relacionados a familiares de pessoas portadoras de deficiência, já trabalhamos em questões envolvendo autismo, já fizemos encontros com movimentos sociais daqui da cidade também, ... maior contato que eu tive foi em virtude da atuação profissional e não algo pessoal que eu exerci fora daqui.
A identificação com partidos políticos é bastante incipiente entre os profissionais entrevistados. A maioria afirma não ter qualquer aproximação com agremiações partidárias. No 1º grupo, notamos apenas o trecho abaixo apontando por alguma forma de participação em partidos políticos.
1.PSI 2 - Participando como militante, não. Participo em alguns momentos. Em algumas palestras, encontros, já participei de encontro do PSOL, de encontro do PT, PCB, mais partidos identificados com a esquerda mesmo. Mas não como militante. Filiei-me ao PT quando era adolescente, e na verdade acho que nunca me desfiliei, mas não sou militante.
No 2º grupo apenas três profissionais comentaram alguma afinidade com partidos políticos. Destes, apenas um deles é formalmente filiado e dois se identificam com partidos ou ideologias partidárias, mas sem estarem filiados. Os profissionais esforçam-se por destacar que sua participação político-partidária não apresenta qualquer relação com seus trabalhos na DPESP.
2.PSI 6 – Então eu gosto muito de política e na política eu tenho mais afinidade com o Partido dos Trabalhadores. Eu não sou filiado, mas sempre leio a respeito, parti cipo de discussões na internet, de discussões com as pessoas, tenho conhecimento da atuação e acho que é um partido que reúne as forças mais engajadas em uma mudança social, política e econômica do Brasil que favoreça os menos favorecidos, mas a população de um modo geral, de uma maneira mais justa.
2.DEF 6 - Sim. Não é vedado aos membros da Defensoria participarem de partido político, então eu participo sim. Desnecessário [revelar de qual partido político participa] pelo campo institucional. Porque estamos no âmbito da instituição, em atividade externa, é conveniente só ter a anotação, o qual, inclusive nada tem a ver com a minha atividade dentro da Defensoria. São atividades distintas, disformes, que não se comunicam.
2.DEF 8 - Eu não tenho vinculação partidária, até por tentar preservar um pouco mais a instituição com relação a isso, não é? Mas toda minha participação com grupos é feita no sentido de não associar minha atuação com minha atuação profissional. ... Mas tenho uma natural identidade maior com uma linha de centro-esquerda, mas não tenho vinculação partidária formal alguma.
A atuação dos profissionais da DPESP, portanto, não é predominantemente de militante junto a movimentos sociais ou partidos políticos, identidade com as quais eles não se filiam ou que colocam em menor relevância. Eles buscam, assim, afastar qualquer suposta associação entre o exercício de suas profissões na DPESP e a militância política.
As pesquisas sobre consciência política, segundo Sandoval e Silva (2016), costumam ser focadas na compreensão da participação de pessoas engajadas em movimentos sociais ou outras organizações facilmente identificadas por suas ações políticas. No entanto, há outros atores sociais que também podem realizar ações políticas, embora não tradicionalmente identificados como tal, como é o caso de profissionais servidores públicos e, no caso de nossa pesquisa, os profissionais da DPESP.
Embora não se reconheçam como militantes, alguns desses profissionais, de ambos os grupos, apresentam alguma aproximação com movimentos sociais em suas histórias de vida, sejam eles informais ou organizados e formais. Experiência parecida foi encontrada na pesquisa de Lugon e Palassi (2012) com voluntários de Núcleos de Defesa Civil (NUDECs) no Estado do Espírito Santo. Esses voluntários participavam de projetos sociais, o que lhes conferiu um sentimento de pertencimento à comunidade que configurava um motivador para ações coletivas.
Entretanto, quando se trata de partidos políticos há desinteresse e algumas vezes até esquiva de participar dessas agremiações por quase todos os profissionais. Embora reconheçam suas preferências ideológicas, não é parte predominante de suas identidades a vinculação à política partidária. Raros foram os profissionais que afirmaram alguma afinidade com partidos políticos, e mesmo entre esses profissionais notou-se um esforço por desvincular suas preferências políticas da atuação profissional na DPESP.
A falta de identificação com partidos políticos de vários segmentos populacionais tem sido constante no Brasil. Não é raro encontrar pessoas que dizem não gostar de partidos políticos, e muitas vezes expressam aversão a estas instituições (Azevedo, 2012). Esse sentimento está relacionado à descrença nos representantes democráticos eleitos, visto que seu desempenho tem permanecido distante de atender as expectativas da população (Paiva, Braga, & Pimentel, 2007). Embora a simpatia por alguns partidos políticos seja um importante componente da tomada de decisão do voto, são poucas as pessoas que demonstram confiança nessas agremiações. Pesquisa realizada em 2017 pela Fundação Getúlio Vargas apontou que 78% dos brasileiros não confiam em partidos políticos. O mesmo percentual de brasileiros não confia em políticos eleitos (Ruediger, 2017).
Os profissionais da DPESP apresentam insatisfação semelhante com partidos políticos. Na maioria, eles preferem não se vincular a partidos políticos, nem gostam que sua imagem seja a elas relacionada. Esses profissionais ingressaram na instituição após serem aprovados em concurso público, ao contrário de profissionais em cargos de confiança, geralmente indicados por representantes de partidos políticos aliados aos governantes em determinado mandato. Há um esforço dos profissionais da DPESP para serem reconhecidos pela sociedade como profissionais que exercem suas atribuições previstas em lei, independentemente de suas preferências partidárias, quando existem. Esse esforço é semelhante ao encontrado por Rosa (2023) em sua pesquisa com professores universitários, que compreendiam ser reconhecidos pelo desempenho de seu papel social, incluindo a investigação com método científico.
Nas entrevistas realizadas percebemos uma aparente dicotomia presente no discurso dos profissionais da DPESP entre atuação técnica e política. Por vezes, esses profissionais posicionam técnica e política como dimensões opostas, isto é, não seria possível ser um profissional técnico e político concomitantemente. Assim, a maioria desses profissionais procura afastar o rótulo de “políticos” e prefere ser identificada como “técnicos”. Essa tentativa está relacionada à concepção de técnica e política desses profissionais, uma vez que essa diferenciação está baseada na expressão “política” como sinônimo de política partidária e, diante da desconfiança generalizada da população em partidos políticos, os profissionais da DPESP não querem ter sua identidade vinculada a eles.
Paolo Nosella (2005), discutindo o papel do educador no Brasil, aponta que havia um grande apelo para que a educação fosse considerada um ato político nos anos 1980. Pouco tempo antes, o governo militar brasileiro havia investido intensamente na construção de um discurso apontando que o professor deveria ser técnico e a prática do ensino deveria ser baseada em treinamento, coibindo qualquer identificação política. Com a redemocratização, o discurso de vários educadores caminhou no sentido oposto, conclamando que o imprescindível na educação era seu compromisso político com os valores democráticos. Esse é o conceito de político utilizado pelo autor, isto é, ser político significa ser um defensor incondicional da democracia contra toda forma autoritária e totalitária de poder.
Contudo, ser político não prescinde de ser técnico, uma vez que a técnica especializada, a ciência bem realizada, é fundamental para beneficiar a humanidade, função também da política. A técnica pode evoluir quando contestada, uma vez que se abrem novas perspectivas de produção do conhecimento, tanto quanto a política pode assim progredir. Desta maneira, é possível ser político sendo técnico, e a técnica pode contribuir com a política, na medida em que traz a característica do constante questionamento, da refutação e das divergências.
Porém, algumas vezes, ser político no sentido partidário pode comprometer a técnica, caso os simpatizantes de alguma ideologia partidária deixem de considerar o debate de ideias contraditórias, concordando cegamente com o proposto pela agremiação partidária e seus adeptos. Por outro lado, apenas a técnica por si, sem considerar os valores humanos que deve proteger, pode provocar prejuízos aos seres humanos.
Embora o autor situe sua discussão no contexto educacional, situação semelhante é encontrada entre os profissionais da DPESP. Se perguntássemos diretamente a esses profissionais se eles são políticos, eles provavelmente rechaçariam essa identificação, caso o conceito de política fosse tomado no sentido da política partidária. Eles preferem se autodefinir como profissionais, no sentido técnico do termo.
Contudo, entendemos que o trabalho dos profissionais da DPESP, além de técnico, também é político. Nesse sentido, consideramos o conceito de política não restrita aos partidos políticos. A literatura especializada vem considerando a participação política em sentido amplo, desde ações destinadas a influenciar governos até qualquer ação com o objetivo de propagar valores e mobilizar recursos para si. Contudo, neste trabalho consideramos política como aquilo que está relacionado à organização das coletividades nas sociedades modernas, particularmente referentes aos governos ou Estado. Toda ação das pessoas relacionadas ao Estado pode ser considerada política, desde votar até quaisquer outras atividades voltadas a um governo constituído (Borba, 2012).
Os profissionais da DPESP atuam no contexto das políticas sociais com o objetivo de garantir direitos sociais à população atendida. Buscam exigir que o Estado execute essas políticas sociais para que tais direitos sejam garantidos. Em termos gerais, trata-se de uma ação política. Porém, uma ação política pode ou não ser intencional, a depender da complexa gama de fatores determinantes da consciência de quem a promove. Mesmo algumas vezes sem pretender, os profissionais da DPESP sempre são políticos, considerando o significado mencionado, sem deixar de serem técnicos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A escolha de uma ação política é resultado da configuração da consciência dos atores políticos, que é dinâmica e mutável. Atuar como profissional da Defensoria Pública junto a conselhos municipais de políticas públicas é uma escolha técnica, uma vez que está relacionada às atividades de exercício da profissão dos entrevistados, mas também política, pois esses colegiados são órgãos de democracia participativa que se destinam ao exercício do controle social nas decisões do Estado.
Em termos de identidades coletivas, identificamos características na configuração das consciências políticas dos profissionais entrevistados que aumentam ou diminuem a disposição para a ação política de atuar junto a conselhos municipais. Os profissionais do 1º grupo (com atuação junto a conselhos municipais) enfatizaram sua identidade coletiva de servidores públicos, ainda que não deixem de se identificar com sua categoria profissional. Além disso, os assistentes sociais são mais numerosos nesse grupo, até porque a possibilidade de atuar junto a colegiados como os que estudamos é historicamente mais discutida na formação de Serviço Social do que nas formações de Psicologia e Direito. Essas identidades coletivas aumentam a disposição para atuar junto a conselhos municipais, uma vez que são órgãos de debates coletivos de políticas públicas cujo funcionamento pode impactar na qualidade de vida das mesmas pessoas quem são atendidas por esses profissionais no exercício de sua função pública.
Nesse sentido, ainda que os profissionais do 2º grupo (que não atuam junto a conselhos municipais) possam vir a escolher essa forma de atuação em outro momento por outras características de suas consciências políticas, entendemos que as diferenças apontadas quanto às identidades coletivas refletem na sua decisão de não atuar junto a esses colegiados. Essas diferenças, ao contrário dos profissionais do 1º grupo, contribuem para diminuir a disposição para essa ação política específica.
Em ambos os grupos os profissionais entrevistados, ainda que apresentem alguma aproximação de movimentos sociais, não apresentam identidades coletivas predominantes de militantes, e a quase totalidade não se identifica com partidos políticos. A atuação junto a conselhos municipais, bem como outras que podem ser realizadas por profissionais da Defensoria Pública, é política, mas não é partidária, sendo caracterizada como tal pela função pública que exercem e pela relação estabelecida com o Estado, responsável pela oferta de políticas públicas sociais. Há, portanto, outro significado de ação política para esses profissionais, não proveniente necessariamente da militância em movimentos sociais ou partidos políticos, e compreender essas atuações a partir da análise de suas identidades coletivas é relevante para o campo da Psicologia Política e de outras áreas relacionadas em interdisciplinaridade, finalidade para a qual oferecemos a contribuição deste trabalho.