INTRODUÇÃO
A segurança pública no Brasil historicamente atualiza heranças violentas nas quais o sistema de justiça no geral e as polícias em particular desempenham a função de segregar, excluir e exterminar corpos considerados dissidentes do Estado. Carregamos memórias mal elaboradas de um passado colonial que apaga a violência e a tortura genocida da escravização indígena e negra, assim como falsifica a história da ditadura militar que saqueou direitos e vidas, e que ainda hoje é aplaudida por uma parcela da sociedade. A nebulosidade envolta em nossa história ampliou seu adensamento com a cumplicidade e o apoio político e institucional na gestão de Jair Messias Bolsonaro, entre 2019 e 2023, que utilizou de linguagem similar de um senhor de engenho, homenageando torturadores, ameaçando a democracia e comemorando, junto às Forças Armadas, o golpe militar de 1964, sustentando, assim, o negacionismo histórico, de modo a perenizar as raízes da violência racial/colonial.
O saqueamento da memória é o pressuposto primordial do genocídio e o que fundamenta sua perpetuidade (Flauzina, 2017a). A negação das violências políticas, estruturais e institucionais, a insistência de (re)escrever a história desresponsabilizando agentes que tiveram papel em diversas violações e violências e o apagamento racial daquele(a)s que tiveram e continuam tendo seus corpos compreendidos como abjetos e desprovidos de humanidade, constituem obstáculos na desconstrução da ideia do Brasil enquanto um país racialmente harmônico e socialmente cordial. A partir de memórias incolores (Pires, 2018) constrói-se um país que não reconhece as violências raciais que o sustentam, permitindo que ainda hoje tenhamos contextos onde a exceção vira regra e a morte vira política, com direito a promessas de campanhas eleitorais pautadas no extermínio.
Compreendemos a segurança pública como um campo de análise frutífero para refletir as dinâmicas de violência e de desigualdades sociorraciais no Brasil, e, portanto, tema fundamental para a Psicologia, não como algo novo, mas como reafirmação do compromisso ético da profissão (Cunha & Moreira, 2023). A Psicologia tem sido historicamente demandada pelas políticas de segurança pública, como um convite a compor “esse exército de ‘guardiões de ordem’” (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2020). Assim, propomos através do debate do genocídio negro e da antinegritude fomentar as ferramentas de enfrentamento a essa demanda.
Há algumas décadas, as escolhas políticas do Estado pelo proibicionismo e pela criminalização de determinadas drogas, a forma de lidar com a ascensão do comércio ilegal de drogas enquanto um campo de guerra, a ineficiência no combate ao crime organizado e a explosão das milícias, principalmente no Rio de Janeiro, tem resultado em manchetes diárias de atuações da polícia que recorrentemente culminam em mortes, vitimizando sobremaneira as comunidades negras.
Seguindo os trilhos de apagamento da história, há uma atuante infraestrutura genocida, entre elas a midiática, que deturpa memórias tanto dos genocidas quanto das suas vítimas, transformando aqueles em defensores da nação e esses em seus inimigos. Criam-se imagens fixas de vítimas, de acusados e de fatos, que frequentemente constituem o roteiro de “auto de resistência” (D’elia, 2015), enredados em tom de espetacularização e desrespeito às vidas perdidas. Além disso, é recorrente argumentos de legitimação das mortes quando são de supostos traficantes, não as caracterizando, portanto, como homicídios, mas, como neutralização de criminosos. Jogam-se fora ferramentas constitucionais e processuais que garantem o contraditório e a ampla defesa - sem deixar de considerar as desigualdades raciais e de poder que as permeiam - e institucionaliza-se a pena de morte pela atuação policial.
Diante desse cenário, utilizamos como fonte de análise fragmentos de três casos que ganharam os noticiários, ocorridos entre 2019 e 2021, em que operações policiais resultaram em mortes. A do jovem negro Willian Augusto da Silva, de 20 anos, morto por um sniper em 2019, a chacina d o bairro Jacarezinho em 2021, que resultou na morte de 27 jovens/homens majoritariamente negros, entre 16 e 49 anos, ambos no Rio de Janeiro e o assassinato do jovem negro de 18 anos, Ryan Pablo da Silva Martins Ribeiro, na favela Aglomerado da Serra, em Belo Horizonte, em 2021. A partir da escolha dos casos, compomos o corpus de pesquisa com informações coletadas em noticiários sobre essas mortes - reportagens, vídeos e imagens veiculadas em diversas mídias - temos como objetivo refletir sobre aspectos comuns que atravessam esses casos, assim como algumas de suas particularidades, dialogando com os conceitos de genocídio negro e antinegritude. Esse é o caminho teórico-metodológico que optamos para analisar o avanço da barbárie genocida contra as comunidades negras que tem resultado no aumento da letalidade de jovens/homens negros, tendo como principal perpetrador o Estado.
FRAGMENTOS DE UMA HISTÓRIA GENOCIDA
Com efeito, nem tudo o que os negros viveram como história necessariamente deixou vestígios; e, nos lugares onde foram produzidos, nem todos esses vestígios foram preservados. Assim, como é que, na ausência de vestígios de fontes de fatos historiográficos, se escreve a história? Rapidamente se tem a impressão de que a escrita da história dos negros só pode ser feita com base em fragmentos, mobilizados para dar conta de uma experiência em si mesma fragmentada, a de um povo em pontilhado, lutando para se definir não como um compósito disparatado, mas como uma comunidade cujas manchas de sangue são visíveis por toda a superfície da modernidade. (Mbembe, 2018, p. 63)
FRAGMENTO 1: “A POLÍCIA VAI MIRAR NA CABECINHA E. . . FOGO! PARA NÃO TER ERRO”
Essa frase poderia estar na abertura de um jogo de videogame em que a pontuação cresce proporcionalmente ao número de corpos caídos. No entanto, quem disse essa frase foi Wilson Witzel (Pennafort, 2018), ex-governador do Rio de Janeiro (atuou entre janeiro/2019 à abril/20211) prometendo matar e disposto a cumprir essa promessa com a certeza que teria o apoio do governo federal e de boa parte da sociedade, da polícia e do judiciário.
No Brasil, onde a morte é a regra na política de segurança pública, foi fundamental para que Witzel abandonasse a posição central dos tribunais como juiz federal para ocupar outra, tão poderosa quanto. Ao invés dos ritos processuais e jurídicos presentes nos tribunais, com possibilidade de defesa do acusado, a escolha do ex-governador foi pela intensificação dos julgamentos nas ruas, nos becos e nas esquinas, com a pena de morte como o principal veredito. No secular jogo genocida brasileiro, inventado e regulado pela branquitude, Narciso não apenas acha feio o que não é espelho, Narciso não vê vida em quem não é espelho. E em cada fase da lógica perversa e racista que colocou o Rio de Janeiro e o Brasil comandados por homens brancos que herdaram o tabuleiro e se colocam como donos do jogo e do controle de corpos historicamente precarizados e desumanizados, a morte se multiplica e a cada fase os jogadores comemoram o cumprimento da promessa.
04 de maio de 2019: “Vamos botar fim na bandidagem de Angra dos Reis. Acabou!”, brandou Witzel (Nascimento, 2019). Poucos meses após esse anúncio, a promessa política passou a ser cumprida. Em um vídeo publicado no Twitter, Witzel, tal como um menino orgulhoso de seu novo jogo de videogame, aparece com a expressão de realização de seu delírio masculino dentro de um helicóptero sobrevoando uma área residencial de Angra dos Reis, com policiais fortemente equipados apontando metralhadoras para as casas. Na distância de um voo, o objetivo de acertar as cabecinhas parece se concretizar ao mirar armas para áreas com construções simples rodeadas por Mata Atlântica. Não há que se falar de perigo iminente, tampouco em legítima defesa, quando quem atira de cima está blindado por helicóptero, colete a prova de bala, poder, brancura da pele e desejo de matar.
20 de agosto de 2019. “Parabéns aos policiais do Rio de Janeiro pela ação bem-sucedida que pôs fim ao sequestro do ônibus na ponte Rio-Niterói nesta manhã. Criminoso neutralizado e nenhum refém ferido. Hoje não chora a família de um inocente.” Essa foi a manifestação de Bolsonaro em suas redes sociais, parabenizando a ação policial que terminou com a morte do jovem negro William Augusto da Silva, de apenas 20 anos. A morte compreendida como vitória, mais pontos ganhos, votos angariados, sangue nas mãos. À família de William Augusto não foi respeitado sequer o direito ao luto e ao sofrimento, assim como não o são para as centenas de famílias que são obrigadas a lutar contra a desmoralização de seus mortos vindas sempre de “cidadãos de bem”2, que do alto de seus gabinetes ou helicópteros se recusam a enxergar que no jogo de extermínio que insistem em transformar em política não existem personagens abstratos, mas, vidas, sonhos, amores e futuros concretos que são destruídos sistematicamente.
21 de agosto de 2019: “Eu celebrei a vida. Em nenhum momento vou manifestar alegria pela morte de quem quer que seja” (Barreira, 2019), afirmou Witzel após ter saído saltitante do helicóptero comemorando mais um corpo negro estendido no chão. Segue o jogo narcísico em que nem todas as vidas são vidas e no qual o corpo do jovem negro William Augusto, executado por um sniper da polícia, levou a comemoração de Witzel; de braços erguidos e de sorriso estampado no rosto, o ex-governador vibrou como se estivesse ganhado uma final de campeonato. No jogo do extermínio algumas narrativas naturalizam mortes. William Augusto estava envolvido no sequestro de um ônibus e, nos poucos segundos que saiu do veículo, caiu abatido. Portava uma arma de brinquedo, não havia machucado ninguém e estava em um ônibus cercado por policiais militares e atiradores de elite. “Ação bem-sucedida”, concluíram as principais autoridades.
FRAGMENTO 2: “24 CRIMINOSOS MORTOS DIGA-SE DE PASSAGEM PORQUE NÃO TEM NENHUM SUSPEITO AQUI”3
Retomamos as reportagens sobre a chacina do Jacarezinho dois meses depois do dia que acompanhamos pela televisão e pelas redes sociais a operação policial na favela do Rio de Janeiro. Notícias que vão se tornando antigas não pelo passar do tempo, mas pelo acúmulo de novos casos. Na escala de comoção, com o passar do tempo, a imagem de vinte e sete mortos talvez tenha se perdido. Como descrever essa chacina?
Das descrições mais ou menos consensuadas, sabe-se que havia uma operação policial sendo armada, antes das seis da manhã. Alterando a “ordem natural das coisas”, como na música de Emicida (2019) onde Dona Maria merendeira sai antes do sol, no dia seis de maio de 2021, a polícia chegou cedo. Num dos primeiros atos do dia, um dos policiais é atingido e morto ao tentar retirar uma barricada. Seria essa a questão para a proporção de violência colocada em ação naquele dia? Difícil saber. O que se seguiu foram muitas horas de ataque contra a comunidade, com a justificativa de cumprir mandados de prisão, mas com a realidade de uma caçada.
Há sangue nas ruas, vielas e casas do Jacarezinho. Há sangue em cadeiras de plástico. Há corpos jogados na comunidade. Outros corpos são carregados de forma displicente pelos policiais em lençóis com marcas vermelhas, desfazendo as cenas das mortes e impossibilitando as chances de perícia e de produção de provas. Todos chegam mortos no hospital. Ao longo da operação as denúncias de abuso foram sendo feitas nas redes sociais. A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, estabelecida pelo Supremo Tribunal Federal (2020), impede a realização de operações policiais em favelas durante a pandemia de Covid-19, salvo em hipóteses absolutamente excepcionais. A desconsideração dessa normativa faz com que a ação no Jacarezinho se configure uma afronta. Até mesmo em cenários de guerra é possível estabelecer protocolos de respeito ao inimigo. Talvez isso não tenha sido estabelecido na tal guerra às drogas. Houve divulgação de imagens dos corpos espalhados. As imagens como exposição da morte, como troféu para a polícia, como triunfo.
Ainda no dia 06 de maio de 2021 se escutou: “Se alguém fala de execução nessa operação, foi no momento em que o policial foi morto com um tiro na cabeça”, afirmou o delegado Rodrigo Oliveira, subsecretário de Planejamento e Integração Operacional da Polícia Civil do Rio de Janeiro (Entrevista Coletiva, 2021). De acordo com os noticiários, essa foi a operação policial mais letal da história do Rio de Janeiro. A fala oficial do Estado, expressa na afirmação do subsecretário, somente lamenta a morte do policial André Farias, as demais vidas são abjetas. São coisas, não são vidas. Dos vinte e um mandados de apreensão, somente três foram cumpridos. Ao todo foram mortas vinte e oito pessoas, no dia 06 de maio, no Jacarezinho. Um policial e vinte e sete homens, quase todos negros, que estavam na comunidade. Entre investigados e suspeitos, a condenação foi antecipada, inscritas no corpo a bala ou, até mesmo, a facadas.
08 de maio de 2021: “Aqui dorme uma princesa”. Há sangue no quarto de uma menina de 9 anos. “Aqui dorme uma princesa” está escrito num dos objetos do cotidiano retratado na fotografia, assim como a parede rosa, algumas coisas jogadas no chão e o sangue. Diante de um cenário de tamanha violência, qual imagem ainda pode causar comoção? Pensar nessa cena como comoção, no quarto onde dorme uma princesa, nos faz pensar na menina que teve seu universo invadido pela violência, ou no jovem que foi brutalmente morto naquele quarto?
24 de maio de 2021: “Reservado”. Essa foi a resposta dada pela Polícia Civil do Rio de Janeiro à requisição, embasada na Lei de Acesso à Informação, de documentos da operação no Jacarezinho. A Polícia Civil estabeleceu um sigilo de cinco anos referente às operações policiais realizadas desde junho de 2020, sendo que a ADPF 635 (Supremo Tribunal Federal, [STF], 2020) foi deferida em agosto do mesmo ano. Uma cortina de fumaça cobre várias operações policiais, entre elas a do Jacarezinho, dificultando a compreensão sobre sua legalidade e seus desdobramentos investigativos. Sendo assim, onde fica a transparência dessa investigação e como saber se os vestígios desse genocídio serão preservados?
FRAGMENTO 3: “ATO LEGÍTIMO DE DEFESA”4
Acordar com a notícia que mais um jovem negro foi assassinado por policiais em alguma favela ou periferia no Brasil, se tornou tão corriqueiro que já integra a mesa do café da manhã de inúmeras famílias brasileiras, sem provocar indigestão tampouco comoção. Entretanto, para as mães negras nas quais as noites não adormecem, pois “em vigília atenta vigia” (Evaristo, 2017) o medo dos seus não voltarem para casa com vida, o amanhecer pode significar o sepultamento da esperança e o início de um luto que se eterniza. Para essas famílias, a dor e a revolta se atualizam diante de um Estado que despreza as vidas negras e preceitua que mulheres negras sigam a sair de casa antes do sol nascer para servir o café da manhã a famílias brancas que comumente consomem como entretenimento os noticiários que escorrem sangue de jovens negros. E o sol, quando vem para as mulheres negras, “o sol só vem depois”, como canta Emicida (2019) sobre Dona Maria merendeira.
A foto de Ryan Pablo da Silva Martins Ribeiro estampado nos noticiários, mostra um jovem negro franzino, de 18 anos, que começava a ganhar os contornos da juventude em seu corpo, mas que ainda carregava um olhar que remetia a infância. Ryan Pablo foi assassinado no dia 28 de junho de 2021 em um beco próximo à sua casa, no Aglomerado da Serra, em Belo Horizonte. Mais um futuro que não dobra a esquina, mais um presente que não se concretiza, mais uma mãe que perde parte da sua vida. “Minha mãe só grita o nome do Ryan, ela chama por ele a todo momento, está sem forças”, relatou Ana Lívia, irmã de Ryan Pablo (Caetano, 2021). Dessa vez, o sol não veio para essa mãe.
Quem atirou foi um policial militar. De acordo com os noticiários, no Boletim de Ocorrência da Polícia Militar (PM) consta que os policiais estavam no Aglomerado da Serra realizando uma operação com foco na prevenção de homicídios e na repressão ao tráfico de drogas. Prevenção ou promoção? Um tiro nas costas e outro na nuca mataram Ryan Pablo. Repressão ou extermínio? As palavras se embaralham, perdem significado, propositalmente, e buscam atenuar a implacabilidade do ato. Eufemismo. Mas, a histórica imposição de uma gramática da violência pelo Estado nas periferias e favelas, provoca dor e revolta nas comunidades que nenhuma figura de linguagem é capaz de capturar, sequer abrandar.
29 de junho de 2021: “Me contaram que o Ryan estava em casa, tomou banho e saiu para o beco onde a gente mora. Quando ele se deparou com os policiais, levantou a mão, gritou ‘perdi’ e virou de costas, e o policial atirou nele. Se o menino estava errado, por que não levaram ele preso? Por que tinham que matar meu irmão?”, questionou Ana Lívia (Mansur & Mello, 2021). Ato de legítima defesa, alegaram os policiais. Nos noticiários, a versão da polícia é que cinco homens correram na direção deles em um beco, com sacolas e rádios comunicadores nas mãos. Como a ordem de parar não foi acatada, após luta corporal, ocorreram os disparos dos policiais.
30 de junho de 2021: “Estamos indignados com a forma covarde que mataram meu irmão. Como eles me falam que um menino de 18 anos, que não pesava nem 50 kg, entrou em luta com um policial? Não é força, é treinamento”, sublinhou Ana Lívia (Caetano, 2021). De acordo com o Boletim de Ocorrência, na sacola dos jovens foram apreendidas 180 buchas de maconha, dinheiro e celular. Na foto da apreensão, divulgada pela polícia, não consta nenhuma arma. Ato de legítima defesa? Ainda não se sabe. . . mas a morte legítima, ou legitimada - social e institucionalmente - vem com o veredito final: ele era um traficante. Leia-se, negro e favelado. Indefensável ser negro e pobre neste país.
FRAGMENTOS DE HISTÓRIA E FRAGMENTAÇÃO DA VIDA
Como escrever a história dos povos negros em diáspora a partir de narrativas em fragmentos e de existências que são sistematicamente cindidas? E que, além disso, tem constantemente vestígios de suas histórias apagadas? Perguntas complexas que Achille Mbembe (2018) nos convida a pensar. Assim, provocadas pelas reflexões desse intelectual camaronês, esta escrita dialoga com posições, questões e críticas dissidentes e defrontantes com o Estado genocida. Dito de outro modo, tensionamos percepções que constantemente buscam colocar um ponto final arbitrário, unilateral e silenciador que intenta encerrar o debate teórico e político do genocídio negro, negando suas profundas raízes no solo brasileiro.
Partimos dessa posicionalidade, dado que a fragmentação da memória histórica não habita somente o passado, mas, também, é tecida agora, neste exato momento. Ela se ramifica em diferentes narrativas, estando presente em diversas mídias, discursos oficiais e/ou políticos, currículos escolares, doutrinamentos religiosos etc. Do mesmo modo, invisibilizações e silenciamentos enviesam e distorcem a história, fragmentando a nossa memória. Sendo que essas também são formativas e informativas, haja vista que invisibilidade não significa inexistência, bem como o silêncio não representa a ausência de voz, mas, sim, expressões da imposição da violência (Cunha, 2019). Tal como destaca Jurema Werneck (2017), “as narrativas, as imagens veiculadas, nos obrigam a chamar atenção também para o que não está sendo mostrado, o que se omite: a história e o contexto por trás desta e de outras tragédias e suas vítimas” (p. 122).
Sendo assim, apresentamos os casos através de fragmentos, buscando provocar reflexões e aproximações com os cenários das ações, condizentes com o caminho metodológico adotado e as problematizações teóricas e políticas que envolvem o debate conceitual do genocídio negro, que de outra forma talvez ficassem distantes. Tomamos os materiais midiáticos como fragmentos, pois acessamos informações que passaram por um determinado crivo, bem como falas públicas de representantes do Estado que comumente são atravessadas por uma cuidadosa eleição do que pode ou não ser dito e carregam intencionalidades políticas específicas. Portanto, não temos a pretensão de produzir análises descritivas das peças jornalísticas, tampouco investigar a totalidade de tais falas oficiais, que, não raras vezes, ganham maior visibilidade e legitimidade em relação às falas das famílias vitimadas e das comunidades atingidas pela violência policial.
O que os noticiários apresentam são fragmentos de cenas genocidas, que compõem um quebra-cabeça maior e estrategicamente incompleto. Nesse cenário, o que nos interessa, então, é traçar caminhos analíticos entre elementos visíveis e invisíveis que enredam as produções de mortes negras, atentando aos jogos de poder racializados acuradamente planejados desde o Brasil colônia para que ainda hoje tenhamos a violência racial policial como um dos principais modos de gestar a vida em sociedade. Nesse jogo enviesado de forças, relacionamos 3 fragmentos de histórias recentes que ganharam os noticiários do país e, em alguns casos, do mundo, para tecer análises sobre o avanço do genocídio negro nos últimos anos no Brasil. Tal tessitura é feita não como um “compósito disparatado” (Mbembe, 2018), uma vez que se ancora em um continuum histórico de produção de desprezo e desumanização às vidas negras.
Mesmo diante de peças comumente retiradas de narrativas que se propõem a contar uma história única e universal sob a perspectiva do colonizador e/ou de seus descendentes, fortalecendo históricos laços de patrimonialismo e de corporativismo político (Schwarcz, 2019), buscamos (re)escrevê-la por outras linhas, a partir de fragmentos genocidas de um contínuo extermínio que não dá sinais de esgotamento. Fragmentos que se encaixam perfeitamente pela face racista do estado, do judiciário e da polícia. Nesse quebra cabeça de milhares de peças, muitas ainda faltantes pela ausência de cobertura e informação, há histórias e vidas que sequer se tornam conhecidas nem são nomeadas por não carregarem a marca de casos emblemáticos ou por serem atropeladas por novos casos, fazendo com que os anteriores caiam no esquecimento a partir de novos absurdos.
MENINOS MIMADOS NÃO PODEM REGER A NAÇÃO5
Aprendi/ naquele dia/a morte é relativa/aos olhos/prada/de quem vê (Arraes, 2018, p. 49)
Diante dos fragmentos apresentados, o que vemos é uma autorização para o extermínio de pessoas negras sem que isso cause a paralisação do país, uma reformulação completa nas formas de pensar a legislação penal, a segurança pública e a atuação policial. Os estudos da criminologia crítica no espaço acadêmico e da militância denunciam as formulações positivistas que construiu historicamente a imagem do sujeito negro como criminoso nato (Goés, 2017). No entanto, os mecanismos penais “não abriram mão da objetificação negra sob o risco de desabamento de sua arquitetônica racista, conferindo ares modernos aos velhos instrumentos de controle raciais/sociais, mantendo, além da segurança pública, para os brancos, sua supremacia e domínio absoluto” (Goés, 2017, p. 102).
Uma das ferramentas para a manutenção das hierarquias é a construção do outro enquanto perigoso, colocando-o na posição de inimigo, integrando uma cadeia associativa (Kilomba, 2020) que sustenta a paranóia branca e legitima o aniquilamento daqueles considerados como ameaças. Judith Butler (2020), ao teorizar sobre o caso George Floyd6, responsável por mobilizar diversas manifestações e debates nos Estados Unidos e no mundo, afirma que o perigo inscrito pela branquitude no corpo negro precede qualquer conduta, bastando a proximidade para que ele se materialize em ações, na troca de calçada, no esconder de objetos de valor material, no chamamento da polícia por uma suposta “atitude suspeita”, na proibição explícita ou implícita de circulação em determinados espaços.
Assim, há o acionamento de violências contra sujeitos negros para garantir a proteção de pessoas brancas sem que o caráter violento seja colocado em questão ou problematizado, uma vez que “sua própria violência não pode ser lida enquanto tal; porque o corpo negro masculino, antes de qualquer vídeo, é o lugar e fonte de perigo, uma ameaça; o esforço policial para subjugar este corpo, mesmo que por antecipação, está justificado a despeito das circunstâncias” (Butler, 2020, p. 05). Logo, tal como afirma Sueli Carneiro (2005), “a matéria punível é a própria racialidade negra” (p. 129), isso significa que “negros vivenciam violência não por causa do que fazem, mas por causa de quem são, ou melhor, de quem não são” (Vargas, 2017, p. 96).
O sistema de justiça em geral e as polícias em particular desempenham o papel de manter estruturas de proteção da branquitude que encontra diversas formas de justificativas e comemora mortes negras. Considerando que grande parte das posições de tomada de decisões nos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário são ocupados por homens brancos, é possível vislumbrar a concretização do pacto narcísico da branquitude, já que partem de uma visão de mundo e de posicionamentos embranquecidos e tendem a, intencionalmente ou não, agir no sentido da manutenção de privilégios e vantagens de seus iguais (Bento, 2020). Em vista disso, é possível compreender a Constituição brasileira, e toda a legislação que daí ramifica, como produto de conversas entre brancos (Cardoso, 1985). Por mais que se tente vender a ideia de uma assepsia do racial (Flauzina, 2017b) nas estruturas políticas e governamentais brasileiras, tudo aquilo que não faz parte do que engloba as identidades brancas é valorado negativamente, desqualificado de noções básicas de humanidade.
No primeiro fragmento apresentado, tanto Witzel quanto Bolsonaro expressaram sua cumplicidade em favor da morte de William Augusto, ancorando-se, mais uma vez, na narrativa de que se tratava do envolvimento com a criminalidade que, pelas circunstâncias apresentadas, era passível de seguir os ritos processuais assegurando a vida e os direitos do jovem. Nesse ponto, é importante salientar que tanto Witzel quanto Bolsonaro têm seus nomes ligados a crimes e a grupos de milicianos, sendo o primeiro destituído do cargo de governador do Rio de Janeiro por esse motivo. No entanto, é o enquadramento de William Augusto como outro descartável, como diferente, como alheio ao mundo que ambos os políticos compreendem como ideal, que os permitem comemorar e parabenizar a polícia carioca pela morte do jovem.
A cena do ex-governador saindo aos pulos do helicóptero, logo após William Augusto ser morto por um sniper da polícia, e a declaração oficial do presidente considerando exitosa a operação, gerou, na época, algumas manifestações de repúdio nas redes sociais. Contudo, assim como tantas outras, perderam força, atropeladas por outras declarações, outras mortes, outros absurdos promovidos pela política bolsonarista e de seus apoiadores. O que permite que cenas e falas como essas aconteçam sem consequências jurídicas ou políticas para seus atores? Sustentamos que a rede de proteção entre os brancos no poder é um fator crucial para essa permissividade e continuidade.
Fazendo um exercício proposto por Grada Kilomba (2020) de mudar as identidades de sujeitos envolvidos em cenas de racismo, é difícil imaginar que a morte de um jovem branco de classe média envolvido em alguma ocorrência criminal que resultasse em sua morte seria motivo de comemoração de chefes do Poder Executivo. Talvez não veríamos nem a morte do jovem, tendo em vista a possibilidade de uso da força não letal para desarmar e neutralizar o risco. Mas, caso um jovem branco de classe média fosse morto nessas circunstâncias, provavelmente seria considerada uma vida perdida, haveria respeito pela família em luto e investigações para apurar as circunstâncias da morte, pois a brancura da pele insere o sujeito em uma rede de direitos e comoção e impede que a morte branca seja considerada como “ação bem-sucedida”.
Se nos discursos de campanha ambos os políticos se colocaram a favor da vida e da família, analisando os casos aqui colocados, fica ainda mais evidente se tratar de vidas e famílias que refletem suas próprias: brancas, ricas, conservadoras, heterossexuais, encasteladas em condomínios fechados e carros blindados que não permitem uma visão realista e crítica do país que os elegeu. Caetano Veloso e Gilberto Gil (1978) utilizaram o mito de Narciso para afirmar que naqueles que não vêem um espelho de nós mesmos não há beleza. Acrescentando as elaborações sobre modernidade e identidade racial chegamos à equação que permite que a branquitude desumanize William Augusto e sua família, onde a morte negra leva à pontuação do jogo de extermínio em que homens de meia idade comemoram a cada corpo jovem abatido sob a insígnia de envolvido com o crime.
Nesse processo, a impossibilidade de atribuição de humanidade impede também o reconhecimento da violência do assassinato, como é possível perceber na entrevista coletiva da polícia após a chacina do Jacarezinho. De acordo com Felipe Curi, diretor do Departamento-Geral de Polícia Especializada (DGPE) da Polícia Civil do Rio de Janeiro,
A única exceção que houve na operação foi a do policial infelizmente. Esse foi realmente executado friamente pelos traficantes. As outras mortes que aconteceram infelizmente foram de traficantes que atentaram contra a vida dos policiais e houve a resposta acabaram sendo neutralizados, é simples (Entrevista Coletiva, 2021)
Àqueles que não alcançam o estatuto de humanidade restam a perspectiva de coisa, a objetificação de mal a ser neutralizado. Se William Augusto foi considerado “criminoso neutralizado”, em Jacarezinho os vinte e sete homens mortos pela polícia também receberam o mesmo destino. Embora na entrevista coletiva os policiais afirmem que não há qualquer tom de comemoração, como ficou explícito no caso de William Augusto, afirmar que a morte do policial durante a operação foi a única exceção leva à conclusão lógica de que as demais mortes representam o esperado, o rotineiro em incursões como essa.
A possibilidade de envolvimento com o tráfico de drogas foi, em muitos momentos da entrevista coletiva, o pano de fundo para justificar e, se não comemorar explicitamente, afirmar que as vidas perdidas mereceram esse destino, retirando o status de vítima. Tal como expressa a fala do subsecretário Rodrigo Oliveira: “É preciso dar um basta nisso tudo, a sociedade precisa entender que a gente tem que acabar com esse discurso é quase que de pobre coitado e de vitimização do criminoso” (Entrevista Coletiva, 2021). Ignoram-se princípios básicos do devido processo legal, dos ‘direitos humanos’ e do ‘estado de direito’. Nas palavras do diretor da DGPE, Felipe Curi
24 criminosos mortos diga-se de passagem porque não tem nenhum suspeito aqui, a gente tem é criminoso, bandido, traficante e homicida porque eles tentaram matar os policiais e não havia alternativa senão repelir injusta agressão e pros policiais salvarem suas vidas e as vidas de seus companheiros. (Entrevista Coletiva, 2021)
A suspeição, como afirmado pelo diretor, não precisou passar por investigação, pelo contraditório e pela ampla defesa para que as vítimas fossem prontamente colocadas no lugar de culpados. E mesmo que essas etapas fossem cumpridas, o fim não poderia ser esse, já que nenhum crime no Brasil é punido com a execução. Além disso, o discurso da entrevista coletiva é divergente dos relatos dos moradores de Jacarezinho, que denunciaram que, ao contrário de legítima defesa ou injusta agressão, algumas das mortes foram execuções, nos quais os sujeitos não tinham qualquer possibilidade de reação. Há, portanto, uma inversão na ideia de que se é inocente até que se prove ao contrário. Inversão presente, sobretudo, quando falamos da população negra, alvo preferencial das políticas de morte e, para a qual a culpa chega antes de qualquer processo legal ou democrático (Marques, 2020). Esse cenário é ilustrado pelo relato de uma moradora de Jacarezinho que teve a casa invadida por um homem que tentava se esconder da polícia em busca de sobrevivência.
Queria se entregar aos direitos humanos, mas os policiais disseram: “Aqui ninguém se entrega, vai sair morto! E o mataram a facadas no quarto, não me deixaram socorrê-lo”, relatou na segunda-feira, ainda angustiada. “Era ele ou minha filha”, murmura. “Não vêm prender, vêm matar”, sentencia. Por isso, diz, não usavam no colete a identificação com seu nome e grupo sanguíneo. (Gortázar, 2021)
A partir desse e de outros depoimentos, é importante dizer não apenas das vidas que foram efetivamente perdidas, mas daquelas que correram riscos e tiveram suas vidas, casas e espaços de convivência invadidos, foram obrigadas a limpar chãos encharcados de sangue e com restos de projéteis. A população das favelas onde a polícia exerce seu poder de matar, para além daqueles que já estão marcados por um suposto envolvimento no tráfico de drogas, entra no cálculo do planejamento das operações e, caso entrem nas estatísticas de mortos, não é raro que sejam tratados como erro profissional ou como dano colateral (Marques, 2020) no combate ao crime, um desvio de percurso das balas que acertam sempre alvos da mesma cor.
Ademais, as mortes negras decorrentes de violências policiais fazem com que as famílias que deveriam ter seu luto respeitado, sejam colocadas em situações nas quais são obrigadas a reconstituir a memória de seus parentes para desnaturalizar a retirada dessas vidas, tal como enunciou a irmã de Ryan Pablo.
Meu irmão realmente vendia drogas, mas ele não era uma pessoa má, não fazia mal a ninguém. Ele era preto, favelado, logo acham que é bandido, mas no aglomerado tem muita gente boa. Eu vou fazer de tudo para que isso não fique impune. Hoje minha família que chora, amanhã pode ser outra. (Mansur & Mello, 2021)
No caso de Ryan Pablo, a irmã Ana Lívia clama pela prerrogativa de um correto processo penal. “Se o menino estava errado, por que não levaram ele preso?” (Mansur & Mello, 2021). Ana Lívia, além de irmã de Ryan Pablo, é também prima de Jefferson Coelho da Silva, que foi assassinado por policiais em 2011, no Aglomerado da Serra, aos 17 anos, juntamente com seu tio, Renilson Veriano da Silva, de 39 anos. Os executores dessa política, segundo Ana Lívia, “tem sede de sangue, ‘joga’ o menino na parte de trás do carro e faz hora para dar tempo dele morrer. É só covardia por ser povo preto, favelado, de periferia” (Caetano, 2021). Nesse movimento, estamos de acordo com Ana Flauzina e Felipe Freitas (2017) quando afirmam que, por mais paradoxal que pareça ser, o direito de ser vítima é mais uma das vantagens e privilégios simbólicos da branquitude, tendo em vista que a vitimização mobiliza sentimentos de comoção, empatia, respeito, além de procedimentos jurídicos em busca de reparação e responsabilização.
Observa-se que há certo tom de espetáculo nos grandes debates e casos emblemáticos de violência na segurança pública, sobretudo, os que ocorrem no Rio de Janeiro e em São Paulo. Exemplo disso são dois dos fragmentos analisados, o de Jacarezinho, que contou com cobertura ao vivo nas maiores emissoras de televisão durante e após a operação e o caso de William Augusto, em que vimos também várias repetições do vídeo do momento em que o sniper atinge o jovem, bem como da cena do ex-governador saindo do helicóptero comemorando a morte. Compreendemos essa forma de cobertura problemática, mas, consideramos que a divulgação desses casos possui o importante ponto de dar visibilidade aos absurdos cometidos, fomentando a crítica, o debate especializado e movimentações contrárias à forma de se fazer segurança pública no Brasil.
No entanto, os casos que ocorrem fora desse eixo não contam com ampla divulgação, ficando desconhecidos em grande parte do território nacional. Em junho de 2021, tivemos o conhecimento do assassinato de Ryan Pablo, no Aglomerado da Serra em Belo Horizonte/MG. Um fragmento à margem. Se a periferia é vista como margem, ou quarto de despejo da sociedade, as periferias fora do eixo Rio-São Paulo ficam ainda mais marginalizadas. Essa lógica invisibiliza esses casos porque não recebem cober tura em âmbito nacional e, em âmbito regional, as coberturas são tímidas, com poucas informações e se concentram em um curto período de tempo, se perdendo entre outras notícias.
O genocídio se estrutura nessa desumanização da vida negra, que não é legitimada como vida, mas como objeto a ser eliminado, como se não fosse assassinato, fazendo parte de um jogo. Um jogo, como nomeamos metaforicamente ao narrar as falas e atos do ex-governador Witzel no primeiro fragmento, mas, também, um jogo institucionalmente organizado, como encontramos nas olimpíadas do batalhão da Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG) que realizou a operação que resultou na morte de Ryan Pablo.
Apesar da escassez de informações sobre o caso do Aglomerado da Serra, buscando pelo número do batalhão da polícia militar envolvido, uma das notícias encontradas no site oficial da PMMG (2021) dizia respeito à premiação - nomeada de Olimpíadas - das ocorrências de destaque do mês. Pela descrição, a escolha dos destaques tem relação com a quantidade de apreensões (drogas, armas, munições, dinheiro, equipamentos) realizadas em cada operação, além dos nomes dos policiais responsáveis pelas operações. O site, além da imagem dos certificados e fotografias dos policiais premiados, apresenta elementos que remetem a certa ludicidade, com emojis de medalhas, troféus, alvos, caveiras e personagens policiais. Um deslocamento do caráter violento e genocida presente nas ações policiais, legitimadas pela quantificação das apreensões e que produzem o silenciamento das mortes delas decorrentes.
Assim como no Rio de Janeiro, o cenário do governo do estado de Minas Gerais, responsável pela atual política de segurança pública, possui aproximações com o governo federal e conseguiu grande visibilidade na campanha eleitoral ao anunciar apoio à Bolsonaro, confirmando a vitória no segundo turno de Romeu Zema7. Em seu plano de governo, Zema prometeu ir além da dicotomia entre “bandido bom é bandido morto” e “bandido é vítima da sociedade”. Porém, as discussões sobre (in)segurança pública e criminalidade do governo Zema são bastante rasas, pautadas em uma concepção neoliberal de que o crime é uma escolha individual. Essa compreensão desconsidera que as principais condenações são de crimes contra o patrimônio e por tráfico de drogas, marcados pelas desigualdades, pela seletividade social e racial do sistema de justiça e prisional, que resulta no encarceramento em massa de jovens negros pobres e não de donos de helicóptéros que transportam drogas e são protegidos por uma rede de influências institucionais e políticas.
Individualizar a problemática em torno da criminalidade fortalece a defesa do punitivismo. Por conseguinte, a política criminal torna-se a principal política pública assegurada pelo Estado, a despeito de não conseguir responder às demandas da população. Enquanto a política de segurança pública ganha tal centralidade para os governantes, as demais políticas vão sendo esvaziadas da sua função pública. Quando Zema se refere às juventudes periféricas em seu plano de governo, ele visa o controle desse segmento e das regiões que considera vulneráveis através da ação policial. Ou seja, a oferta do Estado é do seu braço armado. Por outro lado, políticas fundamentais para incidir em cenários de desigualdades, como a educação pública, Zema se propõe a transferir parte significativa dessa responsabilidade para a iniciativa privada, tal como apresentado no Projeto Somar8.
Zema também prometeu o uso de aplicativos que permitem que celulares com câmeras sejam acopladas aos coletes de policiais para que suas ações sejam gravadas. Em seu plano de governo consta que essa medida é uma forma de assegurar garantias de direitos da sociedade perante os órgãos de segurança pública, além de aumentar a transparência e a fiscalização do trabalho da polícia. Entretanto, talvez a aproximação com Bolsonaro tenha provocado um certo distanciamento desse argumento, tendo em vista que os agentes de segurança pública constituem uma forte base eleitoral bolsonarista. Assim, Zema passou a afirmar que a instalação de câmeras é uma demanda dos próprios policiais, porque assim estarão protegidos de possíveis processos quando alguém alegar que foi vítima de humilhação ou ferimento indevido por parte da polícia, e que o uso da câmera não será obrigatório (O Tempo, 2018). De qualquer forma, essa promessa ainda não foi cumprida.
Nem mesmo o cenário da pandemia de Covid-19 colocou um freio no avanço do genocídio negro brasileiro. Diante do caos sanitário, houve em 2020 o reconhecimento jurídico de que as medidas de controle da pandemia exigiam também a interrupção de ações violentas nas favelas (STF, 2020). A ADPF das Favelas, Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 635 (STF, 2020), buscou “o fim das ações policiais violentas e violadoras de direitos, bem como o estabelecimento de mecanismos de controle, a médio e longo prazo, da atividade policial nas favelas do Rio de Janeiro” (Silva, Gomes & Brito, 2021, p. 588). A ação foi protocolada no final de 2018 pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), portanto, anterior ao cenário pandêmico, resultado das lutas de movimentos sociais (movimento negro, movimentos de mães e os movimentos de moradores de favelas do Rio de Janeiro) com parcerias institucionais (Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro e o Partido Socialista Brasileiro). Entretanto, ADPF das Favelas teve a sua decisão articulada com as medidas de controle da Covid-19, tendo como estopim para seu deferimento a morte, em maio de 2020, do adolescente João Pedro Mattos Pinto, de 14 anos, por um tiro de fuzil da polícia civil durante uma operação em São Gonçalo/RJ (Osmo & Fanti, 2021).
“Todos os protocolos exigidos na decisão do STF foram cumpridos sem exceção”, afirmou o subsecretário Rodrigo Oliveira na entrevista coletiva de imprensa após a chacina do Jacarezinho. Há um enredo premeditado para garantir a legitimidade da suposta exceção, presente, inclusive, no nome dado à operação: Exceptis. Na narrativa da polícia, o debate trata de questões como excepcionalidade, ativismo judicial, o modo como o tráfico se constitui capturando adolescentes e limitando a liberdade das comunidades, mas sem demonstrações concretas dessas alegações. Enfim, alguns pontos certamente bem pensados para que a operação não fosse colocada em questão. Nessa mesma fala, o subsecretário questiona o que será entendido como excepcionalidade, reafirmando que cumpriram todas as normas impostas pelo STF, a despeito de irregularidades, a exemplo da não comunicação imediata da operação ao Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro.
O subsecretário Rodrigo Oliveira também critica a decisão da ADPF e aponta que “de um tempo para cá por força de algumas decisões, de algum ativismo judicial que se vê hoje muito latente na discussão social a gente foi de alguma forma impedido ou minimamente dificultada a atuação da polícia em algumas localidades”. Essas restrições são indicadas na entrevista coletiva como fortalecedoras das organizações criminosas. Argumentação que não encontra fundamento, pois, segundo Silva et al (2021), a interrupção das operações policiais não impactou no aumento de indicadores de criminalidade e, ainda, reduziu os índices de morte e lesão corporal logo após a aplicação da decisão do STF.
William, Ryan, Bruno, Caio, Carlos, Cleyton, Diogo, Evandro, Francisco, Guilherme, Isaac, John, Jonas, Jonathan, Luíz, Márcio, Marlon, Matheus, Maurício, Natan, Omar, Pablo, Pedro, Ray, Richard, Rodrigo, Rômulo, Toni, Wagner. Os fragmentos ilustram, dão nomes e memórias para os números de mortes decorrentes de operações policiais que, segundo o anuário de 2021 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, desde 2013 apresentou um aumento de 190%, atingindo o patamar de aproximadamente 17 mortes por dia em 2020, totalizando 6.416 vítimas. O perfil das vítimas não apresenta nenhuma novidade em relação aos últimos anos, demonstrando que os sujeitos mortos em operações policiais continuam sendo homens (98%), jovens entre 18 e 24 anos (44,8%) e negros (78,9%). Os dados chamam ainda mais atenção pelo maior número de mortes ter ocorrido justamente durante o primeiro ano da pandemia de Covid-19 no Brasil, no qual o isolamento social e a diminuição de pessoas em circulação foram medidas de prevenção ao contágio pelo vírus.
Resgatando a campanha do governo federal no início da pandemia em 2020, que trazia o slogan “O Brasil não pode parar”, a despeito do crescente números de brasileira(o)s morta(o)s devido complicações de Covid-19 - que naquele momento já apontava para desigualdades sociais e raciais de suas vítimas -somente reafirma que a atual gestão caminha, numa insustentável leveza sobre cemitérios incontáveis de corpos. Essas mortes não foram (e não são) apenas decorrentes da atual crise sanitária, mas, sobretudo, da crise política que se acirrou nos últimos anos no Brasil. Não obstante a esse contexto, em nenhum momento o Estado deixou de investir no fortalecimento do seu braço armado, ampliando o número de mortes em um cenário por si só devastador. O Brasil, seguindo as palavras e promessas de um governo que negligencia o cuidado e convoca a morte, realmente não parou, ao menos em sua função histórica de extermínio da população negra.
GENOCÍDIO NEGRO E ANTINEGRITUDE
Quanto às problematizações teóricas e políticas, desde a Convenção da Organização das Nações Unidas, em 1948, há uma intensa disputa em torno do conceito de genocídio, frequentemente atribuído às consequências da Segunda Guerra Mundial para mobilizar reparações e movimentos de reconhecimento da tragédia ocorrida naquele contexto, além de acionar mecanismos de comoção nos âmbitos social, jurídico, político e cultural (Flauzina, 2014). No entanto, a análise de Flauzina (2014) demonstra como os esforços de singularização do Holocausto impedem que os extermínios anteriormente cometidos contra outros povos sejam devidamente reconhecidos, argumentando que há uma barreira construída pela pretensão de igualdade formal que impede que a raça seja colocada em análise nas decisões judiciais, promovendo um “silêncio cheio de significados” (p. 134). Um silêncio que, em seu cerne, carrega os processos de desumanização da população negra e, por consequência, o impedimento de seus reconhecimentos enquanto vítimas.
Apesar dessas barreiras, algumas vozes, principalmente de militantes e acadêmica(o)s negra(o)s, tais como Abdias do Nascimento, Milton Barbosa, Hamilton Borges, Débora Silva, Ana Flauzina, Jurema Werneck, entre outra(o)s, ecoam e colocam a importância da utilização da categoria do genocídio para caracterizar os crimes cometidos contra os povos negros tanto em âmbito internacional, considerando o histórico de sequestro de povos africanos e as invasões coloniais e neocoloniais, quanto em âmbitos locais, como vemos ocorrer nos últimos anos no Brasil em relação às denúncias de abusos policial e judicial. Racializar, ou melhor, enegrecer essa disputa a partir dos marcadores civilizatórios da escravidão e do colonialismo - e os meios pelos quais esses ainda se perpetuam na atualidade - como bases de edificação da modernidade, sedimentada na exploração do capital e na imposição de um modelo de humanidade branco-patriarcal-critão-ocidental, tem sido um dos principais desafios.
O Estado moderno se edifica antagonicamente aos corpos negros, ou seja, sua estruturação se dá a partir da abjeção da pessoa negra (Vargas, 2017). Esse antagonismo é uma das bases de compreensão do conceito de antinegritude apresentado por João Vargas (2017), em que “ser humano é ser não negro” (p. 93). A partir da apreensão de corpos negros como desprovidos de humanidade no contexto da modernidade, Vargas (2020) propõe a análise para além da categoria racismo, já que essa nos leva à compreensão que a desigualdade racial é passível de ser combatida e reduzida. Para tanto, esse autor sugere a categoria analítica da antinegritude, capaz de questionar não apenas práticas discriminatórias, mas lançar luz sobre os parâmetros que retiram a humanidade de sujeitos negros, afastando, por consequência, noções de subjetividade e de cidadania. Dessa forma, compreende-se que “não há calibração entre o Negro e o Humano sem que o mundo, literal e figurativamente, chegue a um fim, ou seja, sem a destruição de tudo que faz relacionalidade possível dentro da modernidade” (Wilderson, 2017, p. 179).
Nesse mesmo sentido, Fátima Lima (2020), em diálogo com Frantz Fanon, expõe a necessidade de questionar a ideia de humano/humanidade que sustenta nossas organizações políticas, sociais e institucionais, compreendendo que os moldes coloniais de tornar-se sujeito não dão conta da diversidade de formas de ser e viver, sendo a raça categoria fundamental para a fixação do limite entre humanidade e coisificação. Assim sendo, pensar a colonialidade está longe de ser um anacronismo, uma vez que “atravessa relações sociais, funda e refunda arquiteturas, atua através da linguagem, enquanto violência, classifica, hierarquiza, subjuga, desumaniza e extermina” (Lima, 2020, p. 84). Ao longo do tempo a lógica colonial toma outras formas, ganha novos contornos, é silenciada pela falsa ideia de uma democracia racial, mas não perde seu núcleo de terror racial: “um passado-presente e uma dívida alta” (Lima, 2020, p. 83).
A antinegritude, enquanto fundamento da modernidade, passa a integrar nossa subjetividade e sociabilidade, naturalizando a exploração, a despossessão, a violência e a morte de pessoas negras (Vargas, 2017). Ademais, é a antinegritude que permite que consistentes pontes históricas sejam transplantadas para os tempos atuais, reatualizando modos de dominação e de aniquilação racial-colonial. O genocídio negro, ou genocídio racial/racial-colonial, como descrito por Dylan Rodríguez (2017), é uma totalidade de poder que estrutura e permeia todos os âmbitos da sociedade moderna, sem nenhuma exceção, sendo uma das mais contundentes formas de tradução da antinegritude. Com efeito, faz com que a morte de uma pessoa negra não se constitua um escândalo (Vargas, 2017) tampouco mobilize mecanismos de comoção individual e/ou coletiva (Butler, 2016).
Por mais que a morte física seja o ponto fulcral de entendimento do genocídio para muitas concepções acadêmicas e políticas convencionais, é necessário ampliá-lo para compreender outras formas de sua manifestação nas comunidades negras, tais como: o terror racial, a humilhação, o medo, o vigilantismo, a privação de direiros básicos, a negação da afirmação da identidade, a inferiorização racial, a segregação racial-espacial, a precarização em espaços de trabalho, etc. (Nascimento, 1978/2017; Flauzina, 2008, Rodríguez, 2017; Vargas, 2017). Porém, a antinegritude fragmenta a compreensão em torno dos modos de precarização da vida e de produção de mortes, impedindo o reconhecimento que diferentes infraestruturas genocidas são pertencentes a uma mesma plataforma política, além de individualizar questões que são políticas, coletivas e estruturais. Portanto, a antinegritude produz a fragmentação da vida por quebrar, estilhaçar e desmembrar as existências dos povos negros, visto que os desfiliam de suas comunidades e historicidade, imputando suas vidas precárias e suas mortes aos seus próprios infortúnuios.
Testemunhamos uma época de crescente banalização da vida. Estamos imersas em um momento histórico e político em que o genocídio negro ganha forças em discursos, ações e omissões do Estado de modo a fortalecer o desvalor das vidas negras e a multiplicar formas de produção de mortes. Ignorar essa realidade é tornar-se cúmplice de um Estado genocida. Como destaca Abdias Nascimento, “o silêncio equivaleria ao endosso e a aprovação desse criminoso genocídio perpetrado com iniquidade e patológico sadismo contra a população afro-brasileira” (2017, p. 170). Por isso, é premente o testemunho de vozes plurais, principalmente daquelas que são constantemente silenciadas, emergirem na cena pública, criando fraturas no negacionismo histórico que dissimula o genocídio negro em curso no país. Dessa forma, buscamos contribuir com essas fraturas ao tomar os fragmentos de atos genocidas enquanto potências possibilitadoras de uma reapropriação da história pregressa e também atual, pois acreditamos que “lutar contra o esquecimento e a denegação é também lutar contra a repetição do horror” (Gagnebin, 2006, p. 47).
CONSIDERAÇÕES
O cenário político brasileiro permanece utilizando a política como ferramenta de guerra e produção de mortes de corpos negros tomados como inimigos. Convivemos com atos diários de desprezo às vidas negras. A bala que perfura o corpo é apenas uma parte de uma complexa engenharia de morte, que, por vezes, salta aos olhos dos noticiários e dos pronunciamentos públicos para, em seguida, tornar mais um número frio nas estatísticas.
Como analisadores deste contexto, apresentamos fragmentos de três casos recentes que ganharam os noticiários. A morte do jovem negro William Augusto da Silva, envolvido no sequestro de um ônibus em 2019, a chacina de Jacarezinho em 2021, ambos no Rio de Janeiro/RJ, e o assassinato do jovem negro Ryan Pablo da Silva Martins Ribeiro, no Aglomerado da Serra, Belo Horizonte/MG, em 2021. Para tanto, dialogamos com os conceitos de genocídio negro e antinegritude para analisar o avanço da barbárie genocida contra as comunidades negras, aumentando a letalidade da população negra no país.
Embora a exacerbação da violência da segurança pública não seja uma novidade implementada por algumas gestões do governo federal, tendo sido promovida também por governos progressistas, julgamos importante fazer esse recorte temporal, quando os cargos do poder executivo estavam ocupados por homens que prometeram mudanças nos rumos políticos tendo como principais orientadores o recrudescimento das forças repressivas, a intensificação da militarização política e o aumento da violência institucional.
Chegando ao fechamento deste texto, concordamos que realmente “é preciso dar um basta nisso tudo”, mas, diferente da fala da entrevista coletiva da operação Jacarezinho, “isso tudo” que analisamos, não aponta como solução a manutenção do ataque à negritude disfarçado de combate à criminalidade, mas, sim, para o enfrentamento de questões estruturais que compõem o Estado antinegro e projetos políticos que intensificam o genocídio. Compartilhamos a sensação de esgotamento de um sistema, mas é preciso pensar nas alternativas a serem construídas, reconhecendo a responsabilização pelas mortes produzidas nas políticas de segurança pública. Há um cenário que precisa ser desmontado, com a enunciação e o reconhecimento das narrativas que são silenciadas nesses casos.
Provocadas por Mbembe (2018), entre outra(o)s intelectuais e militantes negra(o)s que disputaram e ainda disputam o lugar de agentes da própria história, procuramos percorrer por vestígios, marcas e murmúrios para analisar o avanço do genocídio negro no Brasil. Nos amparamos nesses fragmentos por acreditar que forjar contra-narrativas ao poder hegemônico é uma das formas possíveis de combater o genocídio negro. Essa incursão torna-se ainda mais relevante diante de governos, tal como de Bolsonaro, que com seus aliada(o)s políticos e demais apoiadora(e)s, investem incansavelmente na falsificação histórica do passado e na dissimulação do presente. Nesta reflexão, buscamos salientar a importância científica e política de ampliar, problematizar e desmontar narrativas normalizadas - social e institucionalmente - em torno da violência racial-policial. É pressuposto do genocídio negro e da antinegritude o apagamento das vozes daquelas/es violentadas/os e de outras vozes dissidentes do poder colonial-racial. Portanto, percorrer por vestígios, marcas e murmúrios para analisar o avanço do genocídio negro no Brasil é uma importante estratégia antirracista aplicada no campo da produção do conhecimento em psicologia, consoante com o compromisso ético da profissão.