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versão impressa ISSN 1519-9479

Cogito v.7  Salvador  2006

 

PSICANÁLISE E CINEMA

 

O serial killer com herói da pós-modernidade

 

 

Miriam Gorender *

Círculo Psicanalítico da Bahia

 

 


RESUMO

O personagem Hannibal Lecter, assim como a figura do serial killer, vem chamando a atenção da mídia, com grande popularidade e tomando proporções verdadeiramente mitológicas. Neste texto procuro deslindar as raízes míticas do serial killer no cinema e literatura, assim como a relação entre os personagens e a tendência a desumanização e despersonalização da cultura atual. Faço também referência, como termo de comparação, ao filme "Little Murders"

Palavras-chave: Serial killer; Mito; Cinema


ABSTRACT

The character of Hannibal Lecter, as well as that of the serial killer, has been drawing the media attention, with great popularity and so taking veritable mythical aspects. In this paper I endeavor to unravel the mythical roots of the serial killer in the movies and literature, as well as the relationship between these characters and today’s culture tendency to de-humanization and depersonalization. I also refer to the film "Little Murders", as a term of comparison

Keywords: Serial killer; Mythos; Movies


 

 

Esclareço que o texto que se segue foi apresentado como comentário para debate durante a Semana de Cinema e Psicanálise: O Homem e seus Mitos, realizada no ano de 2005 pelo Núcleo de Cinema do Círculo Psicanalítico da Bahia, após a projeção do filme "O Silêncio dos Inocentes"

Durante esta semana pudemos assistir e debater vários filmes sob a égide de um mesmo tema: o mito. A palavra mito tem múltiplos significados possíveis.

Como e porque decidi chamar o comentário de filme que escolhi de "o mito do herói da pós-modernidade"? E o herói pós-moderno de que estou falando não é certamente Clarice Starling ou seu chefe, mas nosso conhecido Hannibal Lecter.

Vamos então falar um pouco de mitos e heróis.

Uma primeira definição de mito que poderíamos usar seria: Uma história ou personagem largamente reconhecida que adquire uma crença quase histórica e que encarna ou simboliza alguns dos valores básicos de uma sociedade. Dito de outra forma, mito é uma história que todo mundo já conhece (Tournier).Os personagens, embora não sejam vistos como deuses ou semideuses, tem a qualidade sutil de permanecer em nossa memória, e num certo sentido passam a fazer parte de nós, tornam-se maiores que a vida.

Para a Psicanálise, o mito é uma forma narrativa de dizer, ou semidizer, algo que não poderia ser dito de outra forma. Ele tem a função de organizar conteúdos inconscientes. Podemos inclusive reconhecer determinadas características de uma narrativa que exerce função de mito.

Um mito possui determinados elementos, que Lévi-Strauss chama mitemas, que sempre se repetem, e aos quais poderia ser reduzido. Seriam justamente os mitemas que revelariam a estrutura básica, invariável, de determinado mito. Esses mitemas, no entanto, poderiam ser permutados, dando origem a inumeráveis combinações de variantes. O mito não será, portanto, correspondente a qualquer destas variantes isolada, nem haverá uma variante que corresponda de forma mais autêntica ao mito, ou à sua forma original. Por exemplo, quando dizemos que determinada história recria o mito do Édipo, isto quer dizer que a recriação atua sobre nossa psique de uma forma semelhante à do Édipo. Mas a forma desta recriação não apenas pode variar infinitamente, como, da forma assumida pelo mito em cada momento e comunidade, podemos tirar uma série de informações. Como já disse, o mito também transmite valores básicos da comunidade onde foi criado.

Antigamente, se tinha o conceito de mito como tendo a ver com uma produção de uma cultura, e servindo a esta cultura, como nos mitos gregos, ou indígenas, por exemplo. Mas hoje pensamos que um mito pode estar restrito a uma família, e também que cada um de nós tem mitos referentes a sua própria história, dos quais geralmente não nos damos conta. Ora, a partir do momento em que se pode falar de "mito individual", ou de "mito familiar", algo certamente se modifica no conceito de mito.

Se o mito pode, além do coletivo, surgir de um indivíduo ou de uma família, e se o mito coletivo, individual e familiar são de fato homólogos, se podem ser entendidos como emanando de um mesmo fulcro, o mito deixa de ser apenas uma história de uma cultura. O mito passa a ser aquilo que, seja qual for o seu âmbito, cumpre uma determinada função. Lacan define o mito como "…o que confere uma fórmula discursiva a qualquer coisa que não pode ser transmitida na definição da verdade, porque a definição da verdade não se pode apoiar senão em si mesma, e é enquanto a palavra progride que ela a constitui" (Lacan, 1987, p. 47).

O mito não é alegórico ou alusivo, ele não quer dizer "outra coisa, mas esta coisa mesma que não pode em caso algum ser dita de outro modo"

Outra aproximação que Lévi-Strauss faz entre o mito e a Psicanálise diz respeito ao que chama a eficácia simbólica do mito, e a sua função terapêutica. Assim, um xaman de uma tribo usa o relato de um mito para, por exemplo, auxiliar um parto complicado. O relato mitológico, correspondendo a uma narrativa que repete e explica a situação que provoca o sofrimento da paciente, conduziria a uma ab-reação. A aceitação, pela paciente, do mito coletivo é o que neste caso lhe confere sua eficácia.

Seria tolice, no entanto, pensar que as sociedades contemporâneas continuam a fazer uso dos mesmos mitos da Antigüidade, e ainda, nas mesmas formas nas quais tais narrativas atravessaram o tempo até nossa época. Cada cultura, cada sociedade deve construir suas próprias formas de mito. Ou seja, deve haver formas de mito que correspondam à civilização ocidental contemporânea.

No entanto, talvez haja uma (ou mais) espécie de indicador que ajude a definir quando uma certa obra tem efeito mítico, seja num indivíduo ou em uma coletividade, por certo tipo de efeito que causa.

Os personagens do mito parecem existir em uma realidade que lhes é própria, que tira sua força da realidade psíquica, e do desejo que os alimenta e os faz permanecer. E um fenômeno que vêm se repetindo na modernidade é a criação de histórias e personagens, não por comunidades mas por indivíduos ou por pequenas equipes de pessoas, personagens criados com intenção artística ou de entretenimento, e que acabam por atingir dimensões míticas. Adquirem uma realidade tão palpável que recebem correspondência e podem ser noticiados na imprensa como pessoas reais. Exemplos antigos seriam Dom Quixote ou Robinson Crusoé, e mais recentemente Sherlock Holmes, Super-Homem ou Tarzan.

E porque indicar um assassino como herói de um mito moderno?

Freud fala do surgimento da figura de herói como conseqüência do assassinato do pai. Segundo um dos mitos fundadores da teoria psicanalítica, nos primórdios da humanidade os agrupamentos humanos eram dominados por um pai que detinha o poder de vida e de morte, excluindo seus filhos das possibilidades de gozo da tribo, como mulheres e alimento. Assim, os filhos se uniram para mata-lo, e o comeram. Mas o pai, uma vez morto, e através da culpa, tomou uma envergadura na lembrança dos filhos que o tornou mais poderoso do que poderia ter sido quando vivo.

Foi então que talvez algum indivíduo, na urgência de seu anseio, tenha sido levado a libertar-se do grupo e a assumir o papel do pai. Quem conseguiu isso foi o primeiro poeta épico e o progresso foi obtido em sua imaginação. Esse poeta disfarçou a verdade com mentiras consoantes com seu anseio: inventou o mito heróico. O herói era um homem que, sozinho, havia matado o pai - o pai que ainda aparecia no mito como um monstro totêmico. (Freud, 1980g(1921). p. 171).

O herói é portanto, desde sua origem, um assassino. Mas é importante notar que um assassino pode ser colocado no papel do herói ou da ameaça enfrentada. Como e porque Lecter é um herói? E que ele seja um herói mítico não pode ser negado. Não há como não vibrar quando, no final do filme, o personagem, já liberto, parte no encalço de um jantar com um velho amigo. Os dois filmes subseqüentes, Dragão Vermelho e Hannibal, são construídos em volta dele, o último filme tem inclusive seu nome. Na internet há cerca de 300.000 páginas relacionadas ao personagem, criado por Thomas Harris como coadjuvante em Dragão Vermelho. Como costuma acontecer aos melhores produtos de nosso inconsciente, nosso bom doutor logo ganhou vida própria.

A relação entre Lecter e Starling foi baseada nas "consultas" entre o profiler (agente especializado em compreender e ajudar a capturar criminosos) do FBI Robert Keppel e o serial killer Ted Bundy, onde Bundy se ofereceu para ajudar o FBI a capturar o serial killer Green River.

O retrato que Harris pinta de Dr. Lecter é vívido e terrificante. Seus olhos são castanhos, e sua voz tem um som com algo de metálico. Seus dentes são pequenos e brancos. Um homem maduro bem entrado na meia-idade, Lecter é pequeno e compacto e se move com graça e silêncio incomuns. Ele tem seis dedos em uma mão, o dedo do meio "perfeitamente replicado... a forma mais rara de polidactilia". Seu sentido de olfato é altamente desenvolvido.

Porque dotar Lecter de características tão incomuns? Sabemos que o herói mitológico não é em geral um homem comum, ele tem seu destino marcado por características que o põem em relevo, sendo estas de origem divina, demoníaca ou animal. No caso de Lecter, saltam aos olhos características animais (como o olfato, a graça e o silêncio do predador, sua rapidez) aliadas a uma extrema sofisticação cultural e inteligência sobre-humanas. É de se notar também a sua afirmação, no início do filme, quando Clarice lhe pergunta se não quer encarar o que quer que tenha lhe acontecido para transforma-lo em um monstro: "Nada me aconteceu, agente Starling. EU aconteci".

O cinema moderno tem utilizado de forma livre as histórias dos mitos gregos. Uma lenda que se assenta firmemente na tradição cinematográfica americana é a de Theseus percorrendo o labirinto de Creta para matar o monstruoso Minotauro, homem com cabeça de touro, que anualmente devorava jovens virgens de Atenas. Há uma freqüente combinação deste mito, também, com o de Orfeu, onde um herói deve arriscar sua vida para resgatar uma donzela em perigo viajando ao escuro submundo (o inferno ou Hades), onde um monstro mortal o aguarda. Nos filmes do final do século 20 o submundo do desconhecido tem sido substituído pelo Hades da paisagem urbana, e o serial killer tornou-se o novo Minotauro: uma besta odiosa que caça os jovens, tem poderes super-humanos e apenas pode ser localizada e morta por um herói excepcional. O minotauro é um monstro assassino que representa um mundo onde reinam o caos e a escuridão.

Cada filme também apresenta um labirinto, uma zona de perigo física onde o herói deve entrar sozinho sem qualquer garantia de retorno.

Enquanto Clarice é a que deve entrar só no labirinto tenebroso da casa de Buffalo Bill, Lecter torna-se ao mesmo tempo a imagem do Minotauro e de seu destruidor. É dele a mão que guia Clarice, sem a qual ela nada faria.

Mas é muito importante notar que no filme figuram dois serial killers, completamente distintos entre si, Lecter e Jame Gumb.

Thomas Harris claramente usou modelos da vida real para o outro serial killer do Silêncio dos Inocentes. Jame Gumb (ou Buffalo Bill) lembra o serial killer Ed Gein, que também serviu de modelo para Norman Bates em Psicose de Hitchcock. Gein, que vivia no interior de Wiscosin na década de 50, foi um homem quieto e introvertido que foi criado por uma mãe dominadora. Ele havia considerado uma operação de mudança de sexo para aliviar sua miséria, mas considerando as limitações de sua vida em uma cidade pequena, acabou por decidir não faze-la. O que ele fez, em lugar disto, foi se vestir com a pele de mulheres. Gein, como Gumb, matava mulheres, tirava sua pele, curtia-a e vestia os resultados. Gein também confeccionou abajures e braceletes das sobras, e até fez uma vasilha de um crânio de mulher. Harris também usou um pouco de Ted Bundy na criação de Jame Gumb. Bundy também usava um gesso falso no braço para atrair e atacar suas vítimas.

No entanto, não há e não pode haver qualquer modelo da vida real para Lecter. E minhas conclusões têm a ver justamente com a diferença entre os dois. Lecter é não apenas refinado, sofisticado e inteligente. Ele se coloca contra toda espécie de rudeza e mediocridade.

Outra correlação, esta mais próxima da arte, é com um filme mais antigo, "Pequenos Assassinatos". Filmado em 1971 e baseado em uma peça bem-sucedida escrita por Jules Feiffer (talvez o mais famoso dos cartunistas americanos) e dirigida por Alan Arkin, com Elliot Gould no papel principal. Trata-se de Alfred Chamberlain, fotógrafo que cai em desgraça por começar a eliminar pessoas de suas fotografias. Ele também sofre de uma incapacidade de sentir ou interessar-se por qualquer coisa. A única saída possível parece ser através de um romance com Patsy Newqvist, mas esta é assassinada como várias outras pessoas ao longo do filme, anonimamente, os "pequenos assassinatos". O filme termina com Alfred e a família de sua falecida namorada alegremente atirando pela janela, como em um jogo qualquer de videogame, pequenos homens e pequenos assassinos em um mundo que parece estar para acabar.

Creio que o personagem de Lecter é uma tentativa, bastante bem sucedida, de conferir um rosto e uma individualidade, nem que seja como arquiinimigo, a um fenômeno angustiante e despersonalizante: o serial killer. Ao contrário de Lecter, e como vemos em Buffalo Bill, o assassino em série é justamente isso: a morte em uma esteira de produção em série industrial. Não há um desejo por ou de um sujeito envolvido no massacre, há uma desumanização tanto do assassino como de suas vítimas. Vemos que o serial killer escolhe suas vítimas de acordo com características pré-definidas, como alguém poderia escolher um produto nas prateleiras de um supermercado. Jame Gumb não chama a filha da senadora de ela, e sim de "isso"! Muitas vezes o que o profiler faz é tentar determinar traços do assassino pelas características comuns de suas vítimas. Como alguém pode cobiçar um carro, roupas ou qualquer coisa na sociedade de consumo, Jame Gumb cobiça não as mulheres que mata, mas sua pele transformada em objeto de desejo.

Na vida real, a fantasia de um serial killer nunca é preenchida. Ela evolui, torna-se mais elaborada, consome mais do ser do assassino. Ele continua matando porque não há nunca um fechamento, uma finalidade. Da mesma forma, um personagem de uma série de ficção continua enquanto o público deseje mais aventuras protagonizadas por ele. Os serial killers são um lado sombrio de nossa imagem, e o perfil que o profiler procura também está em nós. Podemos nos perguntar até quando Lecter vai continuar nos esperando no centro de um labirinto que nós mesmos ajudamos a construir?

 

BIBLIOGRAFIA

FREUD, S. Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago [1980(1921)]. "Psicologia de Grupo e a Análise do Ego".         [ Links ]Obras Completas, op.cit.

LACAN, Jacques [1987 (1962)] O mito individual do neurótico. Lisboa: Assírio e Alvim..        [ Links ]

HARRIS, Thomas. 1983. Dragão Vermelho. Rio de Janeiro: Ed. Record        [ Links ]

_______________[1989(2000)]. O silêncio dos inocentes. Rio de Janeiro: Ed. Record        [ Links ]

LÈVI-STRAUSS, Claude. 1975. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.        [ Links ]

WATT, Ian. 1997. Mitos do individualismo moderno. Rio de Janeiro: Zahar.        [ Links ]

Sites consultados:

Little Murders:
http://movies2.nytimes.com/gst/movies/movie.html?v id=29575
www.albany.edu/writers-inst/fnf98n7.html

Hannibal Lecter e Mitologia
www.ahcca.unimelb.edu.au/Superheroes/abstracts-full-S.html

Hannibal Lecter e Serial Killers da vida real
http://www.crimelibrary.com/serial_killers/weird/lecter/1.html

 

 

* Psicanalista. Sócia Efetiva do Círculo Psicanalítico da Bahia.

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