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versão impressa ISSN 1519-9479
Cogito v.9 n.9 Salvador 2008
PSICANÁLISE E CINEMA
Histeria e fantasias perversas em Matador (Almodovar): diálogos psicanalíticos no cinema*
Maria Virgínia Filomena Cremasco**
Universidade Federal do Paraná
RESUMO
O texto parte de um caso clínico sobre disfunção erétil e dos personagens do filme Matador, de Almodóvar que encontram convergências teóricas e clínicas nas considerações de Freud (1912) sobre a impotência psíquica e o desenvolvimento da libido para os homens, abordando elementos da histeria e da perversão.
Palavras-chave: Histeria; Perversão;Impotência; Masculinidade; Disfunção erétil.
Ao se referir à impotência (que denomina psíquica), Freud diz que há um obstáculo dentro do sujeito, segundo o autor, que dá origem à inibição de sua potência masculina. A sensação descrita é de uma vontade interior contrária que interfere vitoriosamente com sua intenção inconsciente. No entanto diz que os pacientes são incapazes de representar o que é o obstáculo interno que interfere em seu desempenho pois eles são removidos do conhecimento do indivíduo.
Benedito assim nos diz de si mesmo: "homem falhar é ruim. Fica até engraçado ter vontade e o pênis não levantar. O problema é que meu pênis não combina comigo, eu quero uma coisa mas ele não colabora comigo...". A sensação de Benedito é de que seu pênis não combina com ele. Temos aqui um problema de combinação que, enquanto um substantivo feminino do Dicionário Larousse (1999) pode também ser um "componente da indumentária feminina" ou "roupa íntima feminina" (CUNHA, 1986).
A origem da perturbação, para Freud, é determinada por uma inibição na história do desenvolvimento da libido e nesses casos o que denomina de corrente afetiva (que corresponde à escolha de objeto primária da criança, constitui-se nos primeiros anos da infância) e de corrente sensual (escolha de objetos sexuais a partir da puberdade) falharam em se combinar.
Freud assim descreve o que ocorre com o desenvolvimento da libibo: a corrente afetiva se forma com base no instinto de autopreservação da criança e se dirige aos que cuidam dela, geralmente seus pais, sendo que as primeiras satisfações sexuais são ligadas às funções de cuidado necessárias à preservação da vida dessa criança.
Essa corrente afetiva, que conduz o erotismo infantil, se desvia, contudo, de objetivos sexuais. Na puberdade, e com o amadurecimento psíquico, esse objetivo sexual, ou corrente sensual, une-se à corrente afetiva mas defronta-se com a barreira do incesto.
A libido se esforçará então para encontrar outros objetos para expressar a vida sexual, os pais serão então substituídos por estranhos aos quais o adolescente poderá se envolver sexualmente.
"Esses novos objetos ainda serão escolhidos ao modelo (imago) dos objetos infantis, mas com o correr do tempo, atrairão para si a afeição que se ligava aos mais primitivos" (FREUD, 1912, p. 187). A inibição do desenvolvimento libidinal que seria a origem da perturbação da impotência se deve às influências das fixações infantis e da subseqüente frustração trazida pela realidade da barreira contra o incesto.
Dois fatores decidiriam o curso dos acontecimentos: em primeiro lugar, "a quantidade de frustração da realidade que se opõe à nova escolha de objeto e reduz seu valor para a pessoa em questão" (FREUD, 1912, p. 187). O real, em seu caráter substitutivo, sempre se mostraria mais apático ou desfocalizado do que o idealizado pelo desejo.
Em segundo lugar, "há a quantidade de atração que são capazes de exercer os objetos infantis, que deverão ser abandonados, e que existem em proporção às catexias eróticas que se ligam a eles na infância" (FREUD, 1912, p. 187).
Esses dois fatores, sendo prepon-derantemente fortes, afastariam a libido da realidade fixando-a nos primeiros objetos sexuais e isso, dentro da economia suportável do aparelho psíquico, permaneceria inconsciente, deflagrando a neurose. A descarga libidinal abortada na realidade, aconteceria, então pela masturbação.
Esse texto de Freud sobre as duas correntes é muito anterior ao Esboço publicado em 1940 e onde o autor vai desenvolver de modo mais claro e amplo os efeitos da ameaça de castração afetando toda a posterior vida sexual do menino e, portanto, tendo um papel crucial na confluência ou divergência da afetividade e da sensualidade.
Em situações menos graves na quais a corrente sensual não se oculte totalmente atrás da corrente afetiva e pode se expressar parcialmente na realidade, Freud diz que a atividade sexual apresenta indícios de não possuir "a força impulsiva psíquica total do instinto por trás dela" (FREUD, 1912, p. 188).
A atividade sexual então se perturba com facilidade, não é muito satisfatória, necessita de condições favoráveis, objetos específicos, é adiada, apática, enfim, poderíamos citar toda uma burocracia que usualmente ouvimos de nossos pacientes para que tenham e considerem uma atividade sexual prazerosa.
Acima de tudo, para essas pessoas a atividade sexual (corrente sensual ) evita a corrente afetiva para que não rememorem, segundo Freud (1912 ), as imagens incestuosas proibidas (acrescenta-se aqui o temor da castração ). Para garantir isso, procuram sexualmente pessoas nas quais não irão se ligar afetivamente. "Toda a esfera do amor, nessas pessoas, permanece dividida em duas direções personificadas na arte do amar tanto sagrada como profana (ou animal ). Quando amam, não desejam, e quando desejam, não podem amar." (FREUD, 1912, p. 188).
A depreciação do objeto sexual é a saída que os homens recorrem para expressar a sensualidade de forma mais livre e assim atingirem prazer. Além disso, naqueles onde as correntes afetiva e sensual não puderam confluir apropriadamente, a sexualidade mantém características e/ou finalidades perversas (justamente por se descolarem do afetivo) que só parecem possíveis de se realizar com um objeto sexual depreciado. A imagem da prostituta fecha bem o quadro que acabamos de descrever.
Visto esses fatores serem encontrados em quase todos os indivíduos e admitindo-se que em apenas algumas pessoas as duas correntes, de afeição e de sensualidade, se fundiram adequadamente, Freud coloca a perspectiva da impotência psíquica como "uma condição universal da civilização e não uma perturbação circunscrita a alguns indivíduos" (FREUD, 1912, p. 190).
A partir daí coloca que o homem traz o "selo da impotência psíquica" em seu comportamento amoroso sendo que o respeito pela mulher atua como restrição à sua atividade sexual e a depreciação do objeto sexual desenvolve sua potência, pela entrada de componentes perversos em seu objetivo sexual.
Almodóvar (1986), em seu filme, Matador, expressa genialmente isso, por meio de Angel, a figura encenada por Antonio Banderas., segundo Luiz Carlos Oliveira Júnior, em sua crítica ao filme:
No filme Matador Antonio Banderas é Angel, rapaz cujo nome antecipa a função de anjo da guarda que tentará desempenhar no filme, um paranormal que carrega enorme culpa devido às visões que têm, nas quais seus medos e pulsões se confundem com tragédias alheias. Ele é o ponto de interseção entre os demais personagens. Aluno de Diego — famoso ex-toureiro que abandonou as arenas após um acidente de trabalho e agora mora numa mansão onde ensina a arte e a técnica que tanto domina —, Angel se entrega à polícia para confessar o estupro da jovem Eva, que ele antes observara de luneta pela janela de seu apartamento (na verdade uma tentativa de estupro, pois, conforme o depoimento de Eva, o totalmente inexperiente Angel não percebeu que estava longe de penetrá-la e apenas ejaculava entre suas pernas). O personagem de Banderas assume também a autoria sobre uma matança em série, dando a justificativa de que as vítimas haviam tentado abusar dele, e acaba confinado numa instituição psiquiátrica.
O indivíduo apenas tardiamente poderá juntar com sucesso as duas correntes, após ter renunciado aos objetos originais e "aceitado" substituí-los com perda de prazer. Ter que abrir mão dos objetos originais de desejo sexual possibilita aos indivíduos voltarem-se a objetos externos substitutivos, inaugurando a exogamia psíquica como possibilidade de satisfação sexual e emocional ao custo da satisfação não plena ou não-satisfação.
A psicanálise revelou-nos que quando o objeto original de um impulso desejoso se perde em conseqüência da repressão, ele se representa, freqüentemente, por uma sucessão infindável de objetos substitutos, nenhum dos quais, no entanto, proporciona satisfação completa. Isso pode explicar a inconstância na escolha de objetos, o 'anseio pela estimulação' que tão amiúde caracterizam o amor dos adultos (FREUD,1912. p. 194).
A impossibilidade de satisfação completa para o homem civilizado parece ser, para Freud, da própria natureza do instinto sexual. Não só por termos que substituir, principalmente na puberdade e com a erupção sensual, os objetos originais de desejo. Mas também por termos que suprimir ou adequar os componentes animais de nossos instintos do amor que constituem parte importante de nossa vida erótica. Exemplo dessa supressão são os instintos coprófilos e sádicos, cujos "processos fundamentais que produzem excitação erótica permanecem inalterados" a despeito das exigências da civilização.
Na carta 75 de Freud a Fliess, ainda em novembro 1897, ele relata que desde alguns meses anteriores àquele verão estava por encontrar a fonte do recalcamento sexual normal, o que ele denomina como moralidade, vergonha, etc. (FREUD, 1950).
Inicialmente ele associava a idéia de recalque das sensações de olfato e outras relacionadas à terra, à adoção da postura ereta, o nariz levantado do chão (já esboçava isso na carta 55). Nos animais, zonas sexuais como boca, nariz, ânus e garganta promoveriam a sexualidade e continuariam em vigor, já nos homens elas não proporcionariam qualquer contribuição à libido do mesmo modo como fazem os órgãos sexuais propriamente ditos. Quando a primazia daquelas zonas persiste nos humanos, o resultado é a perversão.
Em Histoire de Juliette, Sade, considerado um exemplar da perversão, conclui de forma radical pela inegável superioridade da lascívia em relação à moral, afirmando ser a primeira constitutiva do humano e, portanto, impossível de ser abandonada: "um bom jantar pode causar uma volúpia física, enquanto que salvar três milhões de vítimas, mesmo para uma alma honesta, causaria apenas uma volúpia moral".
Ou seja, escancarando nossa realidade instintiva, para Sade, a volúpia física somente nos prazeres do corpo teriam expressão e gozo. Possibilidades sublimatórias como depois apontadas por Freud parecem na obra do marquês apenas dissimulações que reprimem sua verdadeira realização como indivíduo, que se daria somente ao entregar-se a todos os vícios.
Voltemos pois ao filme:
Maria Cardenal aparece numa das primeiras cenas do filme quando Diego Montes, dando aula sobre como matar o touro:
A narração é simultânea às imagens de uma mulher (Assumpta Serna) atraindo um homem (como um toureiro desperta a atenção do touro com sua capa vermelha), levando-o para casa (o touro é atraído para o centro da arena), mantendo relações sexuais com ele (o embate) e, finalmente, o matando com um alfinete na nuca (equivalente ao lugar em que os toureiros atingem o touro). Ela, então, goza. (Jover, Richter e Sousa, 1998)
A conduta aqui apresentada aproxima-se do que Lacan (1985, p. 117) nos diz sobre sobre a perversão:
Os perversos, a gente começou então a encontrá-los, são aqueles que Aristóteles não queria ver a nenhum preço. Há neles uma subversão da conduta apoiada num saber-fazer, o qual está ligado a uma saber, ao saber sobre a natureza das coisas, há uma embreagem direta da conduta sexual sobre o que é sua verdade, isto,é, sua amoralidade. [...]
Possibilidades perversas de satisfação, aproximariam idealmente, se isso fosse possível, a atividade sexual de um gozo absoluto, subvertendo a não-satisfação própria da cultura civilizatória que desconsidera e reprime os componentes animais de nossos instintos.
Para citar novamente Sade, o marquês da perversão que aponta para o imoralismo e a libertinagem como constituintes das relações humanas e, portanto, o que naturalmente proporcionariam prazer através da depreciação do outro, ou seja, o sadismo, termo cunhado a partir das práticas a que se referia em suas obras ou mesmo vivenciava:
É a ação que nos torna senhores da vida e da fortuna alheia, e que, com isso, acrescente à porção de felicidade que gozamos aquela que pertencia ao ser sacrificado. E nos dizem que à custa dos outros esta felicidade não poderia ser perfeita... imbecis!... é precisamente por ser usurpada que é assim, pois não teria mais encantos se nos fosse dada.
É necessário então arrebatá-la, arrancá-la; há de custar lágrimas àquele que privamos dela, e é da certeza dessa dor ocasionada aos outros que nascem os mais fortes prazeres. (SADE, 1968)
Ainda sobre o filme na sinopse apresentada por Eduardo Valente e Ruy Gardnier:
Diego Montes é um toureiro aposentado que tem uma escola de tauromaquia, mas tem que sente a necessidade de continuar matando. E as mulheres substituem os touros. Fazer amor com uma mulher e matá-la no último instante é o que mais se aproxima, para ele, do prazer de tourear.
O "saber-fazer" do perverso necessariamente passa por uma ação que em nada se esquiva de uma lei, talvez burocrática como para o neurótico, mas que aqui prioriza o gozo compulsório, ao qual podemos sem erro de enunciação denominar moralidade, perversa, mas moral em sua conduta normativa.
Podemos apontar para a moral normativa sadeana, bem como para o script perverso enquanto aquele destinado a anular as diferenças impostas pelas leis, pelos corpos, pelos limites. Anular a diferença para opor-se à castração da qual a todo momento o perverso esquiva-se embora provocando-a.
A dificuldade do recalcamento dessa sexualidade potencial pela perda de prazer aí suscitada e a impossibilidade de estarem juntas as correntes afetiva e sensual pela proibição do incesto, realisticamente possibilitou ao indivíduo, sua entrada na "civilização".
A impotência seria a adequação ideal à exigência repressiva social se a sexualidade não se fizesse gritar desde sempre em nossas vísceras e nos alienasse sem retorno à existência do outro. É o "ponto essencial" colocado por (Lacan 1946) e que faz parte de toda a especulação de Hegel e do qual não nos esquivamos. Para Lacan, a dialética do trabalho apresentada por Hegel é a do próprio ser do homem:
O próprio desejo do homem constitui-se, diz-nos ele, sob o signo da mediação: ele é desejo de fazer seu próprio desejo reconhecido. Ele tem por objeto um desejo, o do outro, no sentido de que o homem não tem objeto que se constitua para seu desejo sem alguma mediação, o que transparece em suas necessidades mais primitivas — como, por exemplo, no fato de que seu próprio alimento tem que ser preparado , e que encontramos em todo o desenvolvimento de sua satisfação, a partir do conflito mestre-senhor e do escravo, através de toda a dialética do trabalho (LACAN, 1946, p. 183). Podemos sentir, ver, ouvir isso na ordinariedade cotidiana de nossas vidas ao estarmos atentos não somente para o que a prática clínica nos revela ou o que de nós mesmos insistentemente é convocado em nossos mais diversos contatos, mas na dialética do dia-a-dia onde as palavras e suas metáforas não cessam, como na música de Caetano Veloso, Menino do Rio: "pois quando eu te vejo, eu desejo teu desejo...". É exatamente na dialética da demanda de amor e da experiência de desejo que se ordena o desenvolvimento. O significante do desejo da mãe (S1) é objeto do recalque originário e se torna inconsciente. Esse recalque se dá dentro da triangulação edípica graças à substituição desse desejo da mãe, esse enigma imaginário que denominamos como falo e supostamente o que preenche a falta materna.
Essa substituição se dá baseada em experiências reais da criança que observa a relação dos pais, pela nomeação da metáfora do pai, o Nome-do-Pai, instaurando uma cadeia substitutiva ao desejo fundamental (desejo do desejo...) sob os auspícios da castração que perfura todas as etapas do desenvolvimento, e com o reconhecimento pela criança do pai como portador do falo.
O desejo de ser, recalcado em prol do desejo de ter, impõe à criança que engaje a partir de então seu desejo no terreno dos objetos substitutivos do objeto perdido.
Em Freud há uma possibilidade teórica de satisfação para o macho. A depreciação do objeto de amor com a abertura para atuações perversas, possibilitaria um gozo sensual mais completo. Se não se tivesse que pagar um alto custo emocional por isso. É o que podemos observar no atendimento de homens com disfunção erétil que, muito freqüentemente procuram se relacionar com prostitutas, a imagem da prostituta que aqui retomamos, por temerem falhar com uma mulher do mesmo nível sócio-cultural que eles. Se o pênis funciona ou não, isso não parece alterar a sensação de não-satisfação que carregam após a relação sexual.
Esses homens relatam uma estranheza consigo mesmos enquanto estão na situação sexual com a prostituta como se uma parte deles permanecesse fora da relação, essa parte que lhes garante o não-envolvimento com o objeto depreciado que eles sabem, mentem-lhe o desejo e o prazer e por isso mesmo, só entram no jogo como brincadeira, atores de performance sexual que, na maioria das vezes, não se realiza. Aqui deveria haver a tal da combinação entre pênis e desejo e, por que não, a tal da indumentária íntima feminina já que vão ornamentados como o feminino para o sexo. Eles escondem algo...
Para esses homens cuja única possibilidade de satisfação interpessoal é nesse jogo frustrado de performance, fica a nostalgia da satisfação completa, uma saudade deles mesmos inteiros, em gozo. Sentem-se impotentes.
O mesmo não observamos naqueles que podem utilizar esse script como um acréscimo em suas relações de amor em busca de uma mais-satisfação encontrada apenas quando se debruçam sobre possibilidades perversas onde o objeto sexual possa ser depreciado.
Essa angústia nostálgica que permanece como queixa naqueles homens que, a despeito de seu funcionamento peniano, sentem-se impotentes em gozar com prostitutas (e todas outras mulheres), levou-nos a indagar sobre seu funcionamento psíquico. Benedito, assim se expressa: "Tive outra decepção. Eu tinha dito que nunca mais ia procurar garota de programa, mas fui. Eu quis ver se eu tava bom, sei lá. Foi uma decepção de novo, ficou uma angústia. Tive ereção, tudo, mas não gozei. Eu não conseguia gozar e fiquei me sentindo muito mal..."
Recapitulando o motivo de nosso presente questionamento, temos por um lado homens que, podendo relacionar-se afetiva e sexualmente com suas parceiras, procuram o contato com mulheres, ao qual irão pagar para obterem o mais de prazer que comumente não alcançam ao lado daquelas que junto deles repartem suas vidas, muitas vezes são as mães de seus filhos, trabalhadoras, cultas, educadas, enfim, mulheres que, amadas, respeitadas e admiradas por eles, não ousariam propor o sexo depreciativo que os levam a esse gozo diferente.
Vale a pena assinalar que esses homens têm prazer com suas parcerias, ou pelo menos tinham até que alguma queixa se instalasse e o que buscam é um "upgrade de prazer", citando palavras de um paciente que usualmente freqüentava prostitutas.
Esses homens concordariam com o colocado por Freud quanto à incrementação da potência e do prazer na depreciação do objeto de amor. Nessa brincadeira de transgredir o recalque nosso de todos os dias.
Por outro lado, temos esses homens com dificuldades eréteis que procuram prostitutas ou mulheres que denominam como "fáceis", "pervas", "sem valor", "usáveis", para citar alguns adjetivos utilizados por eles para denominarem que essas parceiras ocasionais que não são consideradas "sérias" e que eles jamais se envolveriam emocionalmente com alguma delas.
Não levam muito em consideração o que quer que elas venham a pensar deles, daí, caso falhem na hora do sexo, não lhes parece tão devastador do que com uma mulher que valorizam ou realmente se sentem ligados afetivamente. Essas últimas geralmente ocupam um lugar de julgadoras cujo veredicto lhes parece tão ameaçador que comumente não ousam se colocar como réus diante delas numa situação sexual ao qual já se sentem culpados pois sabem que poderão falhar.
Podemos concordar com Freud (1912) de que para todos esses homens, a confluência das duas correntes em algum nível falhou em se combinar. Para os potentes que se debruçam sobre possibilidades depreciativas e perversas de satisfação e nos quais a plena expressão da corrente sensual se dá somente no afastamento da afetiva. Também para os impotentes nos quais a sensualidade parece tê-los abandonado, restando-lhes amar platonicamente, ou como Platão melhor se expressaria, "no mundo das idéias".
Quanto à relação sexual, para uns a depreciação incrementa a potência e para outros ela não parece suficiente para assegurar a potência. Só resta a esses homens a potência do mundo das "idéias", o prazer solitário?
Fica a questão desse outro que talvez não possa ser depreciado ou ainda que, tendo um outro, depreciado ou não, isso seria suficiente para esse homem falhar, ou seja, ele falharia sempre, em qualquer situação, desde que à sua frente um (O)outro se faça presença.
Podemos dizer que o histérico não precisa depreciar seu objeto sexual, não mais do que ele já faz em sua fantasia: " matar a mulher, ter medo de matá-la, proibir-se por impotência ou ejaculação precoce de fazê-la gozar para dispensar-se de matá-la. Os histéricos não são os que batem nas mulheres. Algo neles é cruel demais para que precisem acrescentar algo mais." (WINTER, 2001, p. 65).
A fantasia do histérico, contudo, é perversa: por ser tudo o que ele não pode ser; em seu mundo imaginário, muitas cenas perversas tomam o cenário, talvez numa tentativa de equilibrar, na sua mente, a polaridade aversiva de tudo o que seja sexual.
Lançando mão ainda do que Benedito nos revelou sobre seu sofrimento, em determinado momento de sua trajetória existencial ele conhece uma mulher que, a despeito de não se sentir muito atraído sexualmente por ela, consegue manter uma ereção satisfatória para a relação sexual. Esse sucesso erétil ocorre após ele revelar a ela que tem um problema sexual e que poderia ser complicado eles manterem uma relação. Essa mulher lhe revela então que sabe exatamente o que lhe está acontecendo porque já tinha vivido a situação com outro homem e isso não era porque ele era o problema mas com certeza um espírito que o acompanhava e exercia influência sobre ele. Ela lhe promete levar em um lugar onde poderiam libertá-lo dessa "possessão" e após essa conversa "reveladora" Benedito se sente excitado e consegue manter uma ereção.
Podemos ainda pensar quem é esse outro que se apresenta nesse momento para Benedito? Essa mulher que lhe revela algo que ele não sabia de si mesmo e promete ajudá-lo? Um lugar de suposto saber... mas podemos também pensar nesse saber revelado que diz a Benedito que ele não é ele, que ele não é impotente, que ele não é assim... o outro, esse sempre projetado, é o culpado pelo seu fracasso, nomeado enquanto espírito maligno que deve ser afastado, o malvado responsável pela sua infelicidade e que ameaça sua masculinidade.
O mesmo assistimos em Angel, tipicamente histérico, esse personagem, filho de uma mãe carola Opus Dei, dessexualizada e castradora, faz uma conexão imaginária, por intermédio de visões extra-sensoriais, com Diego Montes (Nacho Martinez), seu professor de tauromaquia, o Matador, e Maria Cardenal (Assumpta Serna), ironicamente sua advogada de defesa, e assume por eles todos os crimes que seria absolutamente incapaz de praticar, mesmo porque desmaia a qualquer visão de sangue.
Numa tentativa de provar sua virilidade para o 'mestre', como Angel se refere a ele, tenta estuprar a namorada dele, Eva (Eva Cobo), mas, ao abordá-la, rapidamente ejacula entre as pernas, antes de conseguir penetrá-la. Após seu fracasso, assume com a pena da Lei os crimes daquele que imagina que sabe fazer, para com isso ser reconhecido como homem.
O preço da prisão lhe parece menor do que a prisão de não ser visto como homem. Imaginar-se numa situação de perversidade pode fomentar o prazer do histérico; muitas vezes ele tem que atuar como tal para descarregar a tensão de idéias de gozo que o dominam. Mas ele não é perverso. Ao contrário, a negativa disso é a sua lei e, por isso, mesmo, às vezes tem que quebrá-la, como no filme. Esse é o seu fantasma.
REFERÊNCIAS
CREMASCO GRASSI, M.V.F. Psicopatologia e Disfunção Erétil: a clínica psicanalítica do impotente. São Paulo: Escuta. 2004. [ Links ]
CUNHA, A. G. Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. [ Links ]
FREUD, S. [1912 ] Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor (Contribuições à psicologia do amor II). In: ___. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. v. XI. Rio de Janeiro: Imago. 1996. [ Links ]
FREUD, S. Extratos dos Documentos Dirigidos a Fliess (1950 [1892-1899]) In:___. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud.. v. XI, Rio de Janeiro: Imago, 1996. [ Links ]
Grande Dicionário Larousse Cultural da Língua Portuguesa. São Paulo: Nova Cultural. 1999 [ Links ]
JOVER, E.R., RICHTER, E.P. SOUSA, E.L.A. Repetição e Estilo em Almodóvar. In: Psicologia: Reflexão e Crítica. v. 11, nº 3, Porto Alegre, 1998. [ Links ]
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LACAN, Jacques. O Seminário: Livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1985, p. 117. [ Links ]
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SADE, M. Justine ou os infortúnios da virtude. Rio de Janeiro: RJ: Saga. 1968 [ Links ]
WINTER, J-P. Os Errantes da Carne. Estudos sobre a histeria masculina. Rio de Janeiro: Companhia de Freud. 2001. [ Links ]
*Parte deste trabalho foi publicado originalmente em Psicopatologia e Disfunção Erétil: a clínica psicanalítica do impotente. São Paulo, Escuta, 2004. Esta versão para a XIX Jornada do Círculo Psicanalítico da Bahia foi modificada e apresenta dados não contemplados na publicação original.
** Psicóloga, Doutora em Saúde Mental (Unicamp-2002), Professora Adjunta do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Paraná.