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Cógito
Print version ISSN 1519-9479
Cogito vol.10 Salvador Oct. 2009
Humor e literatura: uma hipótese apoiada na ficção de Graciliano Ramos
Humor and literature: an assumption supported by the fiction of Graciliano Ramos
Maria Lúcia Martins*
RESUMO
A autora defende a hipótese de existência do humor como uma das instâncias da própria linguagem a partir de dois pressupostos. Desenvolvendo-o em três elos que se enodam, a exemplo da literatura de ficção em Graciliano Ramos.Palavras-chave: Humor; linguagem; ficção; fantasia; poesia; música.
Abstract
The author defends the hypothesis of the existence of humor as one of the instances of the very language from two assumptions. Developing it in three knotted ties that are along the lines of literature of fiction Graciliano Ramos.
Key words: Humor; language; fiction; fantasy; poetry; music
PRIMEIRO ELO
O HUMOR E A ESCUTA PSICANALÍTICA
Antes dos pressupostos,— tomemos, de Freud, a leitura que me encorajou a pensar na hipótese de o humor existir como uma instância (conjunto de funções e valores de um domínio) inerente a própria linguagem. Linguagem do homem-entre-homens, sim, mas antes quero pensa-la como água do corpo, um estar e um ser, enquanto sinônimo de pensamento. Um estar que possui uma enorme variabilidade de modos (inspiração, ironia, fantasia, bom humor, mau-humor, humor negro, à piada, à tragédia e comedia), mas existirá sempre enquanto elemento do processo criativo (aqui, ficção, literatura).
Freud1
[...] Ademais, o que sugeri sobre o humor encontra analogia digna de nota no campo aparentado dos chistes. Quanto à origem destes, fui levado a supor que um pensamento pré-consciente é entregue por um momento à revisão inconsciente. Um chiste é, portanto, a contribuição feita ao cômico pelo inconsciente. Exatamente do mesmo modo, o humor seria a contribuição feita ao cômico pela intervenção do superego.
Além disso, a pilhéria feita por humor não é o essencial. [...] Significa: 'Olhem! Aqui está o mundo, que parece tão perigoso! Não passa de um jogo de crianças, digno apenas de que sobre ele se faça uma pilhéria!'; (FREUD, 1927, p. 166; 208).
(E, ainda, a carta de Dora2).
Estou sempre dizendo para que os Srs. me façam proposições, mas é para rechaçar e esbofetear. Parecia importante, mas Freud não me disse nada. Se ao menos tivesse rido. É um homem elegante fisicamente. Cheira a charuto e a água de colônia. Se houvesse se atrevido a lançar uma boa gargalhada, dizendo: você queria que eu fizesse proposições para dar-se ao gosto de esbofetear-me? Então haveria rido também, haveríamos rido, e isso quem sabe nos teria aproximado à compreensão da contradição (Mannoni, 1980, p. 16)
Ainda, em Freud, vimos que o seu conceito de economia (um "bem dizer" na ética de Lacan) tornava-se imprescindível para sustentar a nossa hipótese de que a linguagem que nos faz homens humanos é, também, "molhada" pelo humor, em diferentes intensidades.
Coloquemos os pressupostos: a) humanos, nos construímos com e pela linguagem: pensamos porque falamos e não ao contrário; b) a palavra que nos fala e com a qual tropeçamos, é uma prova (com Lacan) de que linguagem e inconsciente "exsistem"; ou seja de que o inconsciente exista, na medida mesma em que somos um "efeito" linguagem.
Daí, pensemos que, se o filhote de homem cresce e se sexualiza pela via da linguagem, tal constatação implica: o desejo inconsciente (errante), ao fazer circular a existência de um dizer, também torna possível, ao seu sujeito (desejoso aprendiz), escutá-lo e reconhece-lo como palavra de seu pensamento (não necessariamente); entretanto, a nosso ver, tal processo há de portar certa "fluidez" cuja natureza, atribuímos à inerência do humor à linguagem..
Conseqüentemente, se o homem (socius), desde cedo sofre e frui (apercebe) do poder de retirar peso às palavras (como quis Ítalo Calvino em sua literatura), certamente, será por um efeito da existência do humor; aqui, sinônimo de leveza da linguagem.
Diremos também que o humor é alimento essencial à imaginação e/ou fantasia (segundo elo). Sem esquecer que, tanto há fantasias gestoras de ficção criadora, como, por oposto, de obsessividade doentia.
Solidário a Freud, Pirandello3 afirma que
O humor consiste em sentimento do contrário, provocado pela especial atividade de reflexão que não se esconde, como geralmente na arte, uma forma de sentimento, mas seu contrário, mesmo seguindo passo a passo o sentimento como a sombra segue o corpo. [...] Para o humorista as causas na vida não são nunca tão lógicas, tão ordenadas como nas nossas obras de arte comuns. [...] O humor não reconhece heróis; diverte-se em desmantelar, em decompor mesmo quando não seja isto coisa agradável. (1996, p.169)
Assim, penso que o psicanalista — que a mais das vezes, parte do nonsense para buscar um sentido — deve, munindo-se de "bom" humor, permitir-se mudar a direcionalidade de sua interpretação: partir do que faz sentido (ou do que o analisando diz, intentando tal) para o nonsense.
Falamos, portanto, de um sujeito que se dá ante a aparição de um significante (furo ou rompimento de linguagem do tema em causa: arte), necessitando ir buscar para tal significante um significado, pela via do humor. Eis uma similitude, a nosso ver, entre o criar do artista e o criar do psicanalista.
Enfim, aqui, não esquecer da piada de Freud (retornaremos a ela no terceiro elo): o condenado, numa segunda feira, indo para o cadalfalso: Ah! começa bem a semana!
Como síntese do primeiro elo, diremos que a poesia que somos, ou esta que a vida costuma nos soprar, bem pode vir a ser palimpesto de linguagem em humor, ou do ato de criar: eis a arte, a exemplo da escrita de um poema,de conto (ficção em geral).
SEGUNDO ELO
HUMOR E FICÇÃO EM GRACILIANO RAMOS
Lázaro Liacho4, ao selecionar peças de literatura universal para os Titãs do Humorismo, diz que A faceta humorística que, com a erótica, forma e informa, atua e ativa toda a fecunda inquietação do viver quotidiano; e, ainda, os aforismos:
As molas do pranto sempre foram as mesmas; as do riso precisam renovarem-se constantemente.
Oriente e Ocidente diferenciam-se, acima de tudo, pelo riso: onde um oriental ri à bandeiras despregadas, um ocidental resmunga: tolice!
O inglês sorri, o francês ri, o espanhol gargalha, o alemão...grune!
A mais difícil arte: saber rir; o dom mais raro: fazer rir. (1956, p.VII)
Os Titãs do Humorismo, com 39 autores do mundo inteiro, fecha-se com Machado de Assis e Graciliano Ramos.
Sergio P. Rouanet num debate, (CCBB/Rio/2005) declarou que, convidado a orientar psicanalistas (interface da psicanálise com a literatura), pede que, em primeiro, leiam Graciliano Ramos (GR). Tal recomendação me deixou contente não só como psicanalista mas também como leitora. Hoje, sinto que meu amor pela linguagem e humor de Graciliano parece vir antes mesmo de eu saber ler, passa por águas da infância. Daí, a minha idéia de que o humor é, antes de mais nada, algo que corre livre e leve em nossa linguagem, em nosso pensamento, água do corpo, broto da árvore do imaginário no desbravar da ficção: esta, uma cadeia de tropeços criativos (um sujeito) que, afinal, nos traduz tão bem...
Ouçamos G. Ramos5: texto escrito com água...
Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício.
Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar.
Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer. (2008, contracapa)
E, vejamos, fragmentos de Histórias de Alexandre — em Titãs do Humorismo, já citado — onde Graciliano investe na fantasia e inventa uma ficção cheia de humor (negro, convenhamos)
Sem espaço, o jeito é resumir: Alexandre (Xandu) era um contador de histórias fabulosas e incríveis, mesmo para os maiores testemunhos de causos do sertão, onde vivia; mas, às vezes, aparecia um, na roda de escutantes meio descrente. O certo era que, o ouvido mor dessa escuta era sua mulher Cesária, que, não só concordava com tudo que Xandu contava, como reforçava o clima de crença com uma rodada de cachaça esperta.
De uma certa feita o pai de Xandu lhe pediu que fosse em busca de uma égua pampa, animal muito brabo, e que estava sumida há dias. Xandu, não só se foi, como, bem depois, relatou para a roda de seus ouvintes que tinha varado todas as cercanias, dia inteiro em cima de seu cavalo, e nada da égua pampa. Ao anoitecer, ao parar para um descanço, avistou, á beira de uma aguada, um animal escuro de malhas brancas (pampa, portanto). Logo se foi aproximando, escondendo-se, até laçar a égua; de perto não a viu mas não tinha dúvida: era ela. O resto foi a rapidez extrema de montar a arisca, que logo traçou uma corrida desesperada pelos matos a dentro. Segundo Alexandre, ele pulava tanto em cima do lombo da égua, que mal podia evitar se lanhar todo por dento do terrível espinheiro. E ai mesmo é que veio seu maior sofrimento e perda.
Ao chegar em casa, seu pai se espantou de tanto estropio, a roupa esfrangalhada e a cara estranha, um horror. Mas ainda assim perguntou pela égua pampa: "Tá presa no cercado, pai". E os dois foram ver. Presa, sim, estava, uma enorme onça pintada!
" – Valha-me Nossa Senhora, que foi que lhe aconteceu Xandu?" E foi ai que ele relembra da escuridão pela capoeira; e o pior que se deu é na correria em cima da onça louca, no espinheiro: ele perdera o olho esquerdo. Valia a pela consertá-lo? [...] Para que bulir no que está quieto? E Alexandre conta6:
Uma desgraça meus amigos. Eu enxergava as coisas incompletas, não havia curandeiro nem rezador que me endireitasse. Meu irmão tenente (que ainda não era) me trouxe um espelho. [...] notei que só distinguia metade das pessoas e das coisas. [...] eu não conseguia ver todo o corpo dela (sua mãe). Meu irmão me aparecia com um braço e uma perna, e o espelho inteiro que me entregara (inteiro) estava partido pelo meio.
[...] fui-me encostar num canto do curral. Saltei no lombo de um cavalo e ganhei o mato. À tardinha, cheguei no espinheiro. [...] apeei-me e andei uma hora caçando o diacho do olho. [...] e já estava desanimado quando o infeliz [...] murcho, seco, espetado na ponta de um garrancho todo coberto de moscas. [...] encaixei-o no buraco vazio e ensangüentado. [...] vi a cabeça por dentro, vi os miolos e os miolos das pessoas que eu pensava [...] baixando a vista percebi o coração, as tripas, o bofe, nem sei que mais.
Refletindo, consegui adivinhar a razão [...]: o olho tinha sido colocado pelo avesso. [...] só havia metade das nuvens, metade dos urubus que voavam nelas... (1956, p.465/474)
TERCEIRO ELO
LINGUAGEM E HUMOR: DA FANTASIA À POESIA, À MÚSICA
Antes de traçar o terceiro elo, enodemos os dois primeiros, grifando a fantasia de Xandu ao afirmar que seu olho torto que lê melhor do que o olho certo!... E, vejam como Anton Tchekov trata tais coisas7: Existem apenas duas janelas diferentes — o trágico e o cômico — que se abrem para a mesma paisagem atormentada [a mente humana] (2001, p. 73). E tal afirmação também nos leva de volta à piada de Freud (já citada), como um belo exemplo de humor negro.
Mas, tal retorno, também vai explicar porque, optamos por um poema nosso8 (onde o humor, é, sem dúvida, negro...), para com ele, não só defendermos a idéia geral de nossa hipótese, mas colocar, ainda, que a música (arte que se guarda em especialíssima memória), bebe na mesma fonte poética da linguagem naturalmente humorizada, esta que, ao fim e ao cabo, também somos...
Não sei falar alemão
Descansa amigo,a noite é só estrelas! Eu te acendo o cigarro,
não movas a cabeça. Miséria de combate!
Há quanto não parávamos?
Já não sentes dor
e o médico rogou-me não te deixar
dormir, por próxima longa hora.
Aproveitemos, amigo:
há quanto tempo quero te perguntar
sobre tua paixão, a Música:
existe forma que se aproxime, algo comum,
entre uma e outra arte?
– Não. Não há. Já os deuses afirmavam.
À música, nenhum suporte (fosse tela
de pintura, personagem de uma trama, poesia
de um poema), nada! A música, desde
o prenúncio, é tempo, pulso. Movimento,
sonora-idade, onda, ritmo, melodia.
Se apuras a escuta,
a harmonia (qual fluxo de um arroio?).
Idioma impar, a música — cada qual — na gesta
do silêncio (amante fixo e mudo),
somente a alma, talvez, por guardá-la ...
Escuta: música, já não fosse sentimento
intraduzível, peço: não leves a sério
as coisas que eu te diga. Tudo é tão frágil
na emoção da derradeira noite...
Não, não chora, amigo!
Não agora, qu';a guerra parou para escutar
a Dietrich cantando Lili Marlene!
A esta canção, em minha vida inteira
indaguei: por que me comoves tanto?
(Lágrimas correm nas faces do amigo.
A música se finda. Mas, mesmo de longe,
escutam–se fortes aplausos dos soldados.
O ferido segue falando, voz tão sumida...)
– Tu bem sabes, não falo alemão, nem
é preciso: Lili Marlene canta a língua
– universal – da ternura.
Amigo, tenho frio, dá-me o último trago...
Lembras? "É fácil morrer de madrugada":
Garcia Lorca disse, condenado, a caminho
da morte. Vês, amigo? tenho mais sorte
que o grande poeta de Espanha!
E depois, este céu, estas estrelas...
Referências
FREUD, S. O Humor (1927). Vol. XXI. Edição Standard Brasileira das Obras psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda,1987. [ Links ]
LIACHO, Lázaro. Titãs do Humorismo. Vol. 8. Trad. Engel Herrera Bienes. Rio de Janeiro: Livraria El Ateneo , 1956. p. VII [ Links ]
PIRANDELLO, Luigi. O Humorismo. Trad. David Macedo. São Paulo: Experimento,1966. [ Links ]
SLAVUTZKY, Abrão. A invenção da vida: arte e psicanálise. Porto Alegre: Artes e ofício, 2001. p. 73. [ Links ]
_______________. A piada e sua relação com o inconsciente ou a psicanálise é muito séria. Porto Alegre: Artes e ofício, 2001. [ Links ]
* Psicanalista, formação em Filosofia, é escritora e poeta
1 FREUD, S. O Humor (1927). Vol. XXI. Edição Standard Brasileira das Obras psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda,1987.("Publicado pela primeira vez no outono do ano 1950 no 'Almanaque'; psicanalítico referente a 1928. O artigo retorna, depois de um intervalo de mais de vinte anos, ao tema examinado na última seção do livro sobre os Chistes (1905c). Freud considera-o agora à luz de sua nova representação estrutural da mente humana. Alguns pontos metapsicológicos interessantes surgem nas últimas páginas do artigo e, pela primeira vez, encontramos o superego apresentado num estado de espírito afável"; O editor).
2 MANNONI, Octave, Ficciones freudianas, Madrid Fundamentos 1980. p.16
3 PIRANDELLO, Luigi, O Humorismo, trad. David Macedo. São Paulo: Experimento, 1966, P. 12.
4 LIACHO, Lázaro. Titãs do Humorismo. Vol. 8. Trad. Engel Herrera Bienes. Livraria El Ateneo Rio de Janeiro São Paulo, 1956. p. VII (prefacio)
5 RAMOS, Graciliano, Record, Rio de Janeiro, 2009. Texto da contracapa.
6 __________________ LIACHO, Lázaro. Titãs do Humorismo. Vol. 8. Trad. Engel Herrera Bienes. Livraria El Ateneo Rio de Janeiro São Paulo, 1956. p.465/ 474
7 SLAVUTZKY, Abrão. A invenção da vida: arte e psicanálise. Porto Alegre: Artes e ofício, 2001. p. 73. A piada e sua relação com o inconsciente ou a psicanálise é muito séria. Disponível em http://www.oocities.org/hotsprings/Villa/3170/Slavutzky.htm.
8 Martins, Maria Lúcia, poema inédito, julho de 2007