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Cógito
Print version ISSN 1519-9479
Cogito vol.14 Salvador Nov. 2013
Psicanálise e educação: considerações acerca do mestre e da mestria
Psychoanalysis and education: considerations about the master and mastery
Maria Thereza Ávila Dantas Coelho *; Jackeline Kruschewsky Duarte Raphael **
*Colégio de Psicanálise da Bahia
**Universidade Federal da Bahia
RESUMO
A interlocução entre a psicanálise e a educação possibilita o enriquecimento da seguinte questão: o que leva um professor à posição de mestre? O clássico do cinema Ao mestre, com carinho aborda a relação professor-aluno como um dos elementos principais da educação. No filme, a recusa inicial em aprender foi sendo gradativamente substituída pelo desejo de saber. Neste trabalho, tomamos esse deslocamento como motor de reflexão acerca da transferência no contexto da educação, concluindo pela importância de considerarmos o mestre em sua dimensão significante, e a mestria como uma função não redutível ao discurso do mestre.
Palavras-chave: psicanálise; cinema; educação; transferência; mestre.
ABSTRACT
The dialogue between psychoanalysis and education helps the enrichment of the following question: how a teacher becomes a master? The classic film To Sir, With Love addresses the relationship between teacher and student as a main factor of the education. In the film, the initial refusal to learn was gradually replaced by the desire to know. In this work, we take this displacement as a motor of reflection on the transfer in the context of education, concluding the importance of taking the master in its significant dimension, considering mastery as a function that is not reducible to master’s discourse.
Keywords: psychoanalysis; cinema; education; transference; master.
A educação pela câmera de James Clavell
Ao mestre, com carinho (CLAVELL, 1967) é um filme britânico, de 1967, um clássico do cinema, que aborda a questão da educação no contexto de sua época e lugar. Retrata questões sociais e raciais em uma escola localizada numa comunidade pobre de Londres, com base na semiautobiografia homônima de E. R. Braithwaite, que, no filme, recebe o nome de Mark Thackeray. Quando a história se inicia, Mark está assumindo o cargo de professor em uma escola secundária de Londres. Proveniente da Guiana Britânica, via Estados Unidos, ele tentava, ainda sem sucesso, conseguir um emprego como engenheiro eletrônico, quando aceitou esse cargo de professor. Ao chegar à escola, o corpo docente da instituição o alertou sobre a forma como esses jovens descarregavam nos professores seus problemas e o informou que eles haviam sido rejeitados por outras escolas, por apresentarem comportamentos agressivos e rebeldes. Uma batalha se iniciou, então, e Mark tentou exercer, com esses alunos, a sua autoridade, em vão. Os jovens tentavam intimidá-lo, mas Mark conseguiu manter o seu equilíbrio, até o dia em que ele perdeu o autocontrole e mudou o seu método de ensino. Em um momento de fúria, Mark questionou o comportamento dos estudantes e os responsabilizou pelo que lhes vinha acontecendo. Mostrou seu descontentamento a eles e decidiu que, daquele dia em diante, eles seriam tratados como adultos e não mais como jovens rebeldes. Jogou os livros fora, afirmando que estes seriam inúteis para eles, e disse-lhes: “Vocês sabem tão pouco e se divertem tão facilmente que nos daremos bem!”. A partir de então, Mark convidou seus alunos ao diálogo, mas com formalidade:
[...] vocês me chamam de mestre, chamarão as jovens por senhoritas e os jovens pelos sobrenomes. As jovens devem mostrar que merecem a cortesia que receberão. Homens, zelo é importante, como bravura, honestidade e ambição. Critiquem a mim se eu não agir corretamente. É um exemplo do que terão de aturar como adultos. [...]. Falaremos sobre várias coisas, sobre a vida, sobrevivência, amor, sexo, casamento, rebelião, o que quiserem (CLAVELL, 1967).
O professor e os estudantes passaram, então, a falar sobre cultura e artes, até que Mark os levou a um museu (CLAVELL, 1967). Para isso, fugiu às regras da escola, possibilitando a esses jovens conhecerem o mundo do conhecimento, para além dos muros dessa instituição. Ele perguntou aos alunos sobre o que eles queriam falar, falou de si, da sua trajetória de vida, das dificuldades que viveu para chegar até ali, do seu desejo de estudar e revelou: “Se der duro podem conseguir o que quiserem, podem conseguir qualquer trabalho, podem até mudar seu jeito de falar, se quiserem”. A forma como Mark falou da sua vida assustou seus alunos, porque os convidou a se depararem com as suas próprias verdades. Ao mesmo tempo em que a sua fala os amedrontou, encantou-os, o que contribuiu para o estabelecimento de uma relação transferencial. A partir de então, Mark foi colocado em uma posição de saber e de mestria.
É importante lembrar que, para Freud ([1937]1980), a educação é uma das tarefas impossíveis, que não possibilita uma realização plena, sobretudo porque envolve imperativos que traduzem modelos ideais. A educação implica necessariamente um mal-estar, que permeia o campo das relações institucionais e interpessoais. Nesse contexto, um público jovem e adolescente revive aspectos de sua vida infantil, que reedita em suas relações sociais. Para tratar da complexa relação professor-aluno, que é alvo de uma reflexão central no filme Ao mestre, com carinho, lançaremos mão do conceito de transferência, tal como desenvolvido por Freud e Lacan, para finalizar com algumas reflexões acerca do mestre e da mestria.
A transferência na relação professor-aluno
Desde os primórdios da psicanálise, Freud abordou o tema da educação, da transferência e da relação com os mestres. Em 1913, em seu texto "O interesse científico da psicanálise”, defendeu a importância da psicanálise para a teoria da educação e para os educadores, apostando que estes, quando conhecessem as suas descobertas, teriam mais facilidade para lidar com questões inerentes ao universo infantil. Freud enfatizou o quanto a psicanálise poderia contribuir para que os educadores pudessem conviver mais facilmente com os impulsos infantis, ao invés de tentarem suprimi-los forçadamente. Salienta que “[...] somente alguém que possa sondar as mentes das crianças será capaz de educá-las e nós, pessoas adultas, não podemos entender as crianças porque não mais entendemos a nossa própria infância” (FREUD, [1913]1980, p.224). Essa afirmativa, ao mesmo tempo em que antecede a sua proposição da educação como uma tarefa impossível, abre possibilidades para a interlocução entre a psicanálise e a educação, sobretudo no que diz respeito à formação dos educadores.
No ano seguinte, em 1914, Freud escreveu “Algumas reflexões sobre a psicologia do escolar” e retomou o tema da educação, a partir de um encontro seu casual com um professor, pelas ruas de Viena. Esse encontro fê-lo lembrar seus primeiros contatos com a ciência, no período escolar, e refletir o quanto essa fase o influenciou na tarefa futura de contribuir para o conhecimento humano. Como psicanalista, ele se questionou sobre a influência dos mestres na formação escolar, pensando sobre até que ponto a personalidade deles seria mais significativa do que o próprio interesse pela ciência, já que o saber científico é transmitido, inicialmente, por meio dos professores.
Nesse momento, Freud ([1914]1980) se referiu à transferência na perspectiva de uma relação de ambivalência, de amor e ódio. Ele afirmou ser a transferência inerente a toda relação importante entre os indivíduos, como substituta das relações primordiais da vida da criança. Chamou de herança emocional essa base deixada pelos primeiros protótipos, afirmando que todas as escolhas futuras, marcadas pela ambivalência, deveriam seguir os efeitos deixados por essas relações. Para Freud, a relação com os professores se daria em uma fase da vida do jovem, quando este já teria se deparado com o desapontamento em relação à figura do pai, considerando, portanto, o professor como um pai substituto. Nessa perspectiva, Freud conclui que “[...] nosso comportamento para com os professores seria não apenas incompreensível, mas também indesculpável” (FREUD, [1914]1980, p.288), já que atualizaria nessa relação aspectos originários de outro contexto.
Lacan não se deteve especificamente na relação transferencial professor-aluno, mas realizou desenvolvimentos teóricos acerca da transferência, importantes para uma interlocução com o campo da educação. Num primeiro momento, referindo-se à análise, Lacan situou a transferência no registro do imaginário, destacando que o analisante coloca o analista numa posição que tem a ver com a sua forma de se relacionar, com as identificações formadoras de seu eu (LACAN, [1951]1998). Tal aspecto remete à perspectiva de Freud ([1914]1980), segundo a qual isso também se presentifica na relação que o aluno estabelece com o professor, quando o coloca imaginariamente em posições que reeditam a forma de ele se relacionar com o outro.
No Seminário A transferência, Lacan ([1960-1961]1992) ressaltou que a intersubjetividade deve ser evitada para que apareça outra modalidade de transferência, ainda que isso seja entremeado pelo sentimento de amor. Na relação professor-aluno, o encantamento é algo que também pode acontecer e precisa ser manejado para que a transferência simbólica, ligada ao desejo de saber, possa operar. Lacan utilizou O Banquete, de Platão, para falar do amor de transferência, a partir do diálogo de Sócrates e de Alcebíades. Destacou que Sócrates queria saber sobre o que é o amor, apontando a falta como inerente à relação amorosa. No lugar de desejante e de amante, Sócrates salientou querer algo do amado (Alcebíades), algo que lhe falta, mas que ele não sabe o que é, funcionando o amado como objeto, como aquele que supostamente tem alguma coisa, mas também não sabe o que é e que não o tem. A partir dessa relação, Lacan apontou que a relação amorosa é uma relação de incompletude, já que o que falta ao amante, o amado não tem para dar. Ele concluiu que a transferência está situada entre o amor e o desejo, de modo que o sujeito procura o que lhe falta no outro, sem o encontrar (LACAN, [1960-1961]1992). Essa busca está localizada, portanto, no cerne de todas as relações, tanto no contexto da análise, quanto em outros contextos.
Na educação, a presença da falta na relação professor-aluno dá lugar ao desejo de saber. Ao professor, é possível ocupar o lugar de causa de desejo, quando há transferência. Tal aspecto vai ao encontro da afirmativa de Freud (1937) segundo a qual a educação é uma tarefa impossível, já que o desejo de saber do aluno implica direções a que não se tem acesso e que há sempre um resto que não se pode educar. Através da transferência, esse desejo pode, entretanto, ser causado.
Repensando o mestre e a mestria
Voltemos ao mestre, com carinho. No filme dirigido por James Clavell, o lugar que Mark, o professor, passou a ocupar na relação com seus jovens alunos possibilitou a estes mudarem a sua posição diante do saber. A inicial recusa de aprender desses estudantes cedeu espaço a um fértil relacionamento dialógico com o mestre, permeado pelo sentimento de admiração e pelo desejo de saber. O que possibilitou essa mudança? Estaria ela ligada à mestria? Mas, afinal, o que é um mestre? Será mestre aquele que sempre opera a partir do discurso do mestre?
A clínica psicanalítica nos revela que o mestre enquanto significante é passível de se associar a múltiplos outros significantes, podendo adquirir diversos e diferentes sentidos. Considerando as infinitas possibilidades de associação que a língua nos oferece, não há como se chegar a um conjunto cabal ou predefinido de respostas definidoras do mestre e da mestria. Cada pessoa terá, então, de construí-las a partir de sua própria experiência, tendo em vista o horizonte da parcialidade e da transitoriedade que permeia toda elaboração. O clássico Ao mestre, com carinho parece nos mostrar que o mestre se tornou mestre a partir do momento em que modulou seu discurso, deixando de estar preso a uma forma preestabelecida de operar. Lacan ([1970]2003) fez esse deslocamento em sua obra, quando, em seu texto “Alocução sobre o ensino”, utilizou a teoria dos quatro discursos para mostrar que, se de um lado o discurso do mestre é o discurso do professor, por outro, o professor, aí localizado no lugar da verdade, como sujeito barrado, não se reduz a esse discurso, podendo circular por todos os demais. O professor se torna um mestre, então, quando ele se descola de um modelo ou discurso e se movimenta no exercício de suas funções, despertando o desejo de saber, a admiração e a ambivalência, possibilitando, assim, que a ele se possa dirigir com carinho.
Referências
CLAVELL, J. Ao mestre, com carinho. Inglaterra: Sony Pictures, 1967. [ Links ]
FREUD, S. O interesse científico da psicanálise [1913]. In: ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980. v. 13, p. 199-226. [ Links ]
FREUD, S. Algumas reflexões sobre a psicologia do escolar [1914]. In: ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980. v. 13. p. 281-288. [ Links ]
FREUD, S. Análise terminável e interminável [1937]. In: ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980. v. 23. p.239-287. [ Links ]
LACAN, J. Intervenção sobre a transferência [1951]. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 214-225. [ Links ]
LACAN, J. O Seminário, Livro 8: a transferência [1960-1961]. Rio de Janeiro: Zahar, 1992. [ Links ]
LACAN, J. Alocução sobre o ensino [1970]. In: ______. Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p.302-310. [ Links ]
Recebido em 31/08/2013
Aceito em 02/09/2013
* Psicanalista membro do Colégio de Psicanálise da Bahia, Professora Adjunto da UFBA. E-mail: therezacoelho@gmail.com.
** Psicanalista, professora universitária, especialista em teoria da clínica psicanalítica e mestranda em Estudos Interdisciplinares sobre a Universidade – UFBA. E-mail: jackrusch@hotmail.com.