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versão impressa ISSN 1519-9479
Cogito vol.14 Salvador nov. 2013
Cama de gato: uma ficção do desejo para além do synthome?
Cama de gato: a fiction of desire beyond synthome?
Rui Maia Diamantino *
Universidade Salvador- UNIFACS
RESUMO
Neste texto, faz-se uma análise dos personagens do filme Cama de gato, utilizando-se o tema do sintoma e suas apresentações na contemporaneidade. A partir do conceito de sintoma em Freud e do Synthome em Lacan, desenvolvem-se duas questões: há sintoma psicanalítico no gozo da sociedade neoliberal? Sem a função paterna efetiva que intervenha como mediador entre o sujeito e o objeto do gozo, a castração tem sido efetiva nas relações humanas?
Palavras-chave: psicanálise; cinema; sintoma; synthome; gozo; castração.
ABSTRACT
This paper makes an analysis of the characters of the film "Cama de gato" using the theme of the symptom and its presentations in contemporary. From the concept of symptom in Freud and Lacan in Synthome concept, develop the following questions: there psychoanalytic symptom in the enjoyment of neoliberal society? Without the paternal function effectively to intervene as a mediator between the subject and object of enjoyment, castration has been effective in human relations?
Keywords: Psychoanalysis, cinema; symptoms; synthome; enjoyment; castration.
A partir do conceito lacaniano sobre o quarto nó borromeano, estabelecerei neste texto um cotejo entre a função do Synthome e as mostrações de subjetividade que aparecem iconograficamente no filme Cama de Gato, as quais vêm questionar a Psicanálise, onde ela situa o desejo como efeito de um impasse, articulando o sujeito à Lei Simbólica. Dessa forma, farei considerações sobre o Seminário O sintoma, em que Lacan (2007) pontua o quanto a função do Synthome pode ser articulada a um apelo ao Nome-do-Pai, através da confirmação de um Pai-do-Nome, advinda do reconhecimento do Outro, reiterando o sujeito no registro da neurose. Outro aporte relevante que pretendo também utilizar é o texto “Os caminhos da formação dos sintomas”, a vigésima terceira das “Conferências Introdutórias” de Freud (1996), na qual esse articula o sintoma a partir da noção de uma “realização do desejo”.
O filme Cama de gato1 tem uma proposição ficcional. Similar a filmes que mostram os paroxismos da adolescência ante o mal-estar da cultura, tais como Ken Parker, Teens e outros, a sua narrativa se dá em torno de três jovens da classe média que vivem o imperativo do mais gozar. No aspecto formal, o diretor Alexandre Stockler faz enquadramentos em planos fechados, luz natural e uma mixagem de som ambiental, tudo isso numa narrativa rápida, com quadros e falas entrecortadas, dando à película uma feição documental, tal como se um voyeur se intrometesse nas cenas, na condição de uma testemunha das atuações dos personagens.
Os personagens têm nível universitário, usufruem das possibilidades de acesso à Internet, carros, sexo imediato e drogas, sustentando um discurso social que ocupa parte considerável do início do filme. Há uma intenção do diretor em preparar a assistência para o contraste entre essa vinculação (aparente) ao campo simbólico e uma série de contravenções, que ocorrerão com o desenrolar da trama.
Os protagonistas tecem longas considerações sobre corrupção na política, questões sociais aflitivas e outros assuntos não menos substanciosos, enquanto fazem preliminares de consumo de drogas e brincadeiras carregadas de insinuações eróticas entre si, numa espécie de enleio homossexual pela via narcísica. As falas sobre a situação dos pais mostram que são advogados, pessoas ligadas à política, enfim, pais com posições sociais capazes de lhes proverem o mais gozar referido. Essa moldura estabelecida pelo filme realça um fato cultural universalizado, que se apresenta nos países cujas economias se vinculam ao neoliberalismo.
Na continuidade do mais gozar, a noite dos três rapazes é retratada como orgíaca: abordam travestis para sentirem a “adrenalina” e, após estes lhes proporem sexo e passarem a agredi-los, fogem com o carro em disparada, às gargalhadas, consumindo goles de bebida, chegando finalmente a um apartamento situado numa região elegante da cidade. Aí, a junção entre a droga e o sexo faz um rito depressivo, mostrado através de imagens onde predominam, à meia-luz, olhares esgazeados, corpos amontoados e risos sem sentido.
O dia seguinte é dedicado a um plano que é central para o argumento do filme: ligam para uma garota que se interessava por um deles e os três decidem que vão atraí-la para fazerem sexo grupal, mesmo sem o seu consentimento prévio. O plano prevê que a garota seja levada até o quarto do rapaz que a convidará. Nesse quarto, os dois outros estarão escondidos em um armário de roupas e, em determinado momento do ato sexual em curso, entrarão na partilha da “presa”, não deixando, nesse cenário de mènage à quatre, partilharem de um gozo homossexual. O plano parece funcionar.
Drogados, os quatro parceiros sexuais parecem gatos com pernas entrelaçadas numa cama, porém, em certo momento, como que despertando de um torpor, a garota se recusa a fazer sexo com os outros dois, reagindo. A cena mostrada, então, é a de uma tentativa de estupro e, em certo momento, a garota parece morta, como se tivesse sido acometida por um insulto cardíaco ou parada respiratória.
O desespero se estabelece entre os três rapazes e as acusações e culpabilizações mútuas espoucam. O que fazer com o cadáver?
Nesse ínterim, chega à casa a mãe do rapaz que convidara a garota. A mãe chama pelo filho no andar térreo. Este se encontra em seu quarto no andar acima. Temeroso em ser flagrado pela mãe, que começa a subir as escadas, o rapaz dirige-se a ela, tentando impedi-la e, quando a mãe faz um gesto abrupto para avançar nos degraus, estranhando a sua atitude e querendo saber o que estava ocorrendo, o filho empurra-a. A mulher rola degraus abaixo e morre com uma pancada na cabeça. O trio de rapazes tem agora dois cadáveres, um assassinato e um matricídio para responderem perante a lei.
O matricida tem uma crise de choro na qual relembra cenas da sua vida com a mãe. Por instantes, a culpa o toma, mas os amigos o chamam para uma realidade: estavam com dois cadáveres e não se achavam culpados pelos acontecimentos. Arguem entre si, numa fria racionalidade que, por não terem intenção de praticar aquelas mortes, não poderiam ter as suas vidas estragadas. A casualidade seria a responsável, não eles. Concluem que precisam dar sumiço aos cadáveres das duas mulheres. Os cadáveres, na sua dimensão do real, não suscitam qualquer mediação simbólica nos três. Não há luto, não existe afeto pelas perdas. Há a imediaticidade do objeto que não mais serve ao gozo e que precisa ser descartado. Aqui se percebe uma notória estrutura de denegação no discurso dos três rapazes.
Planejam a forma de como retirar os cadáveres da casa, como e para onde levá-los. Decidem deixá-los no depósito de lixo da cidade, local longínquo que, presumem, tornaria anônimas aquelas mortes. Colocam, então, os dois corpos no porta-malas do automóvel da mãe morta, dando início a uma longa peregrinação ao depósito de lixo. Nesse percurso, os diálogos são tecidos em torno da culpa e da concomitante desculpa.
A trama ganha, assim, um clima intimista, no qual cada personagem vai se defrontando com o tema da castração, denotando, por outro lado, através dos diálogos, o quanto o temor à castração nos personagens é desmentido pela via da racionalidade que visa garantir o gozo. O delineamento de uma montagem perversa na estrutura neurótica ou mesmo de uma clara estrutura perversa aparece em cena. Significativamente, na viagem até o monturo, uma preocupação se impõe nas conversas: será que eles estão deixando rastros para serem descobertos, já que pararam em alguns lugares durante o percurso?
Chegando ao destino, coleiam entre as montanhas de restos, procurando o lugar mais adequado para procederem ao descarte dos corpos. Um verdadeiro embate se estabelece: o matricida, num último rasgo de consciência, pergunta-se se deveria deixar o corpo da sua mãe ali no lixo. E o corpo da garota? E se os corpos viessem a ser descobertos? Decidem, depois de longas discussões, que deveriam incinerá-los, e as elucubrações do matricida, pequeno rasgo de teor simbólico, são superadas pelos impositivos dos seus comparsas.
Surge, entrementes, um vigilante do depósito de lixo que pergunta o que eles fazem ali e, ao vislumbrar a evidência dos corpos, ameaça-os com uma arma e com uma denúncia à polícia. Estabelece-se uma luta e o vigilante também é morto.
Uma possibilidade de metáfora é possível neste ponto: o lugar do terceiro que legisla, que vigia em nome da lei é abatido. Aqui se subsumem o ritual referente ao pai da horda freudiano e a temática da anulação do pai simbólico. Diferentemente, porém, do que se dá no mito freudiano em que a culpabilidade sustenta a lei estabelecida, tudo se dá para que não advenha a resultante do ato, numa organização discursiva em que o desmentido da castração se impõe.
Ao começar a incineração do corpo da garota e da mãe, uma surpresa: ouvem gemidos e gritos. A garota não houvera morrido! Desesperados, perguntam-se mais uma vez: o que fazer? A incineração continua e a sua morte agora se consuma. Ao tentarem sair do lugar, o carro enguiça, e eles ficam presos na armadilha que fizeram para si próprios. Começam a telefonar para os pais pedindo aconselhamento: recebem respostas triviais, uma delas do pai do matricida, separado da mulher. A tônica das respostas paternas foram no sentido de que eles procurassem sair da cena. O reforço ao tangenciamento da lei é claro. O apelo ao pai não funciona como apelo à lei simbólica, mas como apelo à lei gozante.
Não há pai, não há mãe, não há mulher. Há objeto indiferenciado e descartável. Eles, também, são objetos indiferenciados e descartáveis, na medida em que se fecha a trama com os três personagens perdidos num amanhecer desolado em meio ao lixo.
É por esse término da trama do filme que a leitura de uma modalidade de subjetivação, que se generaliza na contemporaneidade, aparece como uma interrogação para a Psicanálise. A temática da falência da função paterna parece não ter mais a importância que outrora teve ao ocupar o centro das discussões psicanalíticas, na medida em que se consuma, como fato da cultura, que a lei não gravita mais em torno do pai.
O problema se constitui, então, em torno do que uma possível lei estruturante do sujeito está gravitando, pois se verifica, através de registros iconográficos como o filme aqui comentado, um vazio na função simbólica, embora não absolutamente elidida, posto que, ainda produzimos cultura. Essa função, no entanto, é mostrada numa condição de avesso, numa borda revirada, em relação àquela na qual a Psicanálise institui o seu discurso.
Em função disso, surgem alguns posicionamentos em textos psicanalíticos atuais que buscam um “encaixe” para essa fenomenologia, a qual parece apontar para uma modalidade específica de subjetivação. Defrontados com uma contemporaneidade em que o sujeito tem o imperativo de gozar, alguns psicanalistas partem do princípio de que se está vivendo uma modalidade de psicose, na qual, a adicção e a depressividade2 marcam esses tempos da mundialização.
Quero aqui colocar outra posição, dando continuidade à problematização do que se dá em torno dessa modalização subjetiva, em torno do objeto no mundo neoliberal, ocasionando um empuxo a uma relação perversa entre o sujeito e o Outro, com este decaído à mera condição de objeto, elidindo a relação sujeito-Outro. Parto, então, para uma formulação em torno de um operador teórico que é precondição para a existência da Psicanálise enquanto prática e saber: o sintoma.
Há ainda o sintoma freudiano? Os registros em que ele se inscreve ainda são os mesmos que os de Anna O. e Dora?
Eis algumas questões que confrontam o saber analítico a partir dos personagens do filme. Há algum sintoma nos três rapazes? Há neles algum sofrimento pelo confronto com a castração? Onde situar a angústia de cada qual? Qual o suporte para o desejo macabro que os arremeteu à condição de restos humanos identificados aos restos da cidade?
No seu texto “Os caminhos da formação dos sintomas”, conferência XXIII, Freud (FREUD, [1912]1996) faz um percurso conceitual no qual os sintomas são considerados como um efeito de dispêndio mental ocasionado pelo conflito entre a libido insatisfeita e a realidade. O enfoque de Freud é trabalhado sobre o sentido, não só dinâmico como econômico, da vida mental do sujeito na sua relação com o desejo.
Ao considerar que, tendo um caráter regressivo, a libido insiste em gozar dos objetos investidos da infância. Freud mostra que, sobrepujando o princípio de prazer, a libido em regressão traz ao sujeito a possibilidade de um gozo infantil. O princípio de realidade ocasiona um abandono dos antigos objetos, impondo, sob a forma da lei cultural, outras escolhas objetais, insatisfatórias, porém, mediadoras do desejo do sujeito. A resultante dessa insatisfação é o sintoma clínico, o sintoma do sofrimento neurótico, aquele que assinala um percurso do desejo entre as fontes pulsionais do id e a ação supressora do supereu. Nesse percurso de permissões e negações em torno dos objetos privilegiados pelas pulsões, os sintomas vêm representar a função da fantasia, ou seja, aquilo que, no imaginário do neurótico, é permitido dar consecução ao que é interditado na realidade.
Ora, os personagens fílmicos, tomados aqui como paradigmáticos de uma modalidade de subjetivação, colam a função imaginária à função do real. Entre eles, não há a mediação entre a significação, própria à função imaginária e o significante, situado na função simbólica, o que aponta para a clivagem do neurótico, onde a relação significante e significado vai dar vez à dialetização, à ponderação, ao recalque. Entre eles, tudo se passa, num primeiro tempo, no binômio significação-ato, ou seja, numa báscula que vai do imaginário ao real sem a mediação da clivagem, que funda o sujeito da Psicanálise.
A particularidade que aqui aponto parece-me teoricamente desafiadora, porque a conclusão por um viés da psicose facilitaria a compreensão do funcionamento desses sujeitos. Porém, a mediação simbólica neles surge num segundo tempo, após o ato, para dar cobertura ao que já aconteceu. O que, para mim, não os situa na psicose é essa emergência secundária de um discurso modalizador, pragmático, que os faz retornar para a realidade, para nela continuar.
As justificativas dos rapazes para se descartarem dos cadáveres são sempre dotadas de uma racionalidade que visa mantê-los no laço social: querem continuar seus estudos universitários, casar, ter famílias, filhos, ser pessoas respeitadas. Tudo isso é falado em meio ao lixo no qual se afundam cada vez mais.
A situação angustiante retratada pelo filme ocasionaria sintomas no neurótico, como efeito da eficácia simbólica. Nos personagens, essa eficácia subsiste, porém, para sustentar o gozo. O que de estruturas se tem no caso?
Falarei, neste momento, sobre o sintoma sob a feição do Synthome. Preferi conservar neste trabalho a grafia francesa, posto que ela produz um efeito significante que conserva a carga semântica presente no ensino de Lacan, no Seminário O sintoma (LACAN, [1975-1976]2007).
Diferenciado do sintoma que opera como um mal-estar, agente da demanda clínica, o Synthome vai emergir na análise como um irredutível do sujeito. Esse irredutível é o que costura o real, o simbólico e o imaginário, na medida em que esses três registros podem “borromeanamente” se afrouxar. O Synthome tem, assim, o estatuto de uma suplência à metáfora do Nome-do-Pai, naquilo em que a organização edípica do sujeito poderia não dar conta de sustentá-lo na borda neurótica.
Lacan (2007) afirma, no Seminário O sintoma, que o pai é um Synthome. Partindo do suposto de que Joyce é sobrecarregado de pai, enquanto o pai que lhe dá um nome, a concepção de Synthome fica apensa ao patronímico e ao seu reconhecimento pelo Outro, de sorte a sustentar o sujeito no laço do discurso, já que o Nome-do-Pai equivale ao Pai-do-Nome.
Lacan afirma ainda no seminário aqui citado que, em Joyce, a verwerfung relacionada ao seu pai falimentar o impulsionará a valorizar o seu nome próprio, levando-o a produzir a sua escrita a partir de um saber refinado sobre a sua língua materna, qual seja, o inglês. Joyce não psicotiza porque opera uma perversão no sentido específico que Lacan dá no Seminário O sintoma, ou seja, perversão enquanto “versão em direção ao pai”, o que pode ser pensado como uma busca de pai, de algo que consista aos nós borromeanos.
Voltando a enfocar o filme, os três protagonistas parecem não esperar nada dos seus pais, desde que, ao buscá-los pelos telefones celulares para que os ajudem a dar uma versão dos assassinatos, os pais sugerem o mero descarte dos corpos. Diferentes de Joyce, que tem um pai qualquer e com ele se sobrecarrega, eles estão sobrecarregados de não-pai. Se há uma verwerfung neles, não há suplência possível a partir do Synthome. A “versão em busca do pai” que empreendem pela tecnologia mostra-se vã.
É de interesse notar que a metáfora eduzida a partir do filme Cama de gato, aponta para uma espécie de abulia de ser, um des-sintoma, o que correlaciono a uma falta de sintoma no sentido estabelecido por Freud e a uma ausência de condições para a emergência do Synthome lacaniano. Estaremos aqui lidando com o que caracteriza a modalidade de subjetivação emergente na contemporaneidade? Seria a conjunção do des-sintoma e de um Synthome sem “um pai qualquer que seja” que estaria fundamentando a subjetividade contemporânea?
Surge, então, a questão da função do desejo, já que, ambos, sintoma e Synthome, como inscrições do e no inconsciente, respectivamente, se articulam com a função do desejo. Ora, a função do desejo, por sua vez, se articula na dialética do ser e do ter, no que essa dialética origina de impasse pela falta de completude no ser humano, já a partir da fala, determinando que sejamos todos falta-a-ser.
Os três rapazes parecem não ser afetados pela referida dialética. Todos os seus esforços são no sentido de continuarem a ter. Apelam para um pai para que isso seja continuado, para que se dê o que, na conjunção entre o Imaginário e o Real, se chama gozo do Outro barrado, correlato ao ter. Sem serem nada, tornam-se lixo. A imagem do amanhecer no monturo enfatiza isso de forma mais que significativa, senão verdadeiramente didática.
Se o Synthome opera uma sutura que retém – esse é o termo utilizado por Lacan (2007) no seu ensino – os três registros do RSI, o seu esgarçamento parece ocasionar algo no desejo, logo no inconsciente, algo que escapa à retenção, à continência, à castração.
Não se trata aqui de psicose, posto que a psicose tem a sua continência, qual seja, ela é suportada pelo delírio escritural como o de Schereber, que Freud e Lacan indicam como portador de um rigoroso sistema de ideias. Não se trata, também, de loucura, posto que ela pode ser concebida como uma fenomenologia temporária da própria histeria e que se dá em rompantes, em passagens ao ato. Não se trata nem mesmo da perversão, pois, embora o desmentido da lei, a perversão se articula de algum modo com a lei. Trata-se de outra coisa, relacionada ao desejo, que parece se situar para além do sintoma e do Synthome.
Para ilustrar o que estou expondo, trago algumas situações indicativas que têm sido costumeiras no Brasil e, creio, em nosso mundo globalizado. Na primeira delas, trata-se da incineração do índio Galdino, ocorrida alguns anos atrás. Ao serem capturados pela polícia, os rapazes, filhos da classe abastada da capital federal do Brasil, disseram não ter feito nada demais, pois pensaram que ele era “um mendigo”. Para esses moços, portanto, mendigo não tem estatuto humano, não tem reconhecimento, tratando-se de um resto que eles não categorizam.
Numa outra situação, rapazes de classe média alta da Cidade do Salvador, Bahia, mataram um policial sob a alegação, de um deles, de que queria ver o que se dá com uma pessoa ao morrer, olhar para essa pessoa em estado agonizante, gozar, assim, da agonia de morte do Outro. Não são fenômenos isolados, como se pode pensar.
Para mim, em ambas as situações citadas, as falas dos adolescentes da realidade brasileira refletem o que aqui denominei de abulia de ser, des-sintoma, Synthome sem um pai qualquer, apontando para a ausência de uma mediação simbólica na estrutura, sem que isso caracterize uma posição perversa ou psicótica, menos ainda neurótica.
O filme Cama de gato não se encerra na cena dos três rapazes em meio ao lixo. Continuando, há uma série de entrevistas de pessoas das mais diversas condições sociais que, ao serem interrogadas sobre a situação dos protagonistas, disseram que fariam o mesmo. Alguns entrevistados, entre risos, acharam que as mortes praticadas não eram, senão, a defesa do futuro de cada qual, justificando-se, portanto, as atuações da ficção.
Tomado na literalidade da sua composição como obra de arte, o filme Cama de gato passa da ficção para a realidade sem que se constate qualquer mediação simbólica, seja nos personagens fictícios ou nos entrevistados, personagens da vida real. Observa-se que o desejo de ter suplanta qualquer condição de ser, prescindindo de qualquer pai, de qualquer operador que avente uma continência, uma retenção, como o faz o Synthome. No caso dos assassinos do índio Galdino, todos os rapazes foram liberados de culpa, e um deles foi admitido em excelente cargo no serviço público federal brasileiro.
Para a Psicanálise e para nós analistas, proponho que sejamos afetados por essa espécie de incômodo, qual seja, a de buscarmos nos situar, na clínica e na teoria, num mundo globalizado no qual, à neurose, parece suceder uma modalidade subjetiva em que o pai não parece mais produzir sintoma e o gozar se impõe de tal maneira que o sofrimento do sujeito não se faz na clivagem entre o desejo e a realidade, mas pela prevalência do apenas desejar. Ora, se, conforme Lacan no Seminário A angústia ([1962-1963]2005), o desejo se situa entre o gozo e a angústia, e a angústia é fundamentada na imagem de ser para o Outro como lugar do desejo, o que pensar quando esse Outro se elide, tal como se deu na ficção-realidade de Cama de gato?
Referências
CAMA DE GATO. Direção: Alexandre Stockler. Intérpretes: Caio Blat, Cainan Baladez, Rodrigo Bolzan e Rennata Airoldi e outros. 2000. 1 DVD (92 minutos), colorido. [ Links ]
FREUD, S. Os caminhos da formação dos sintomas [1912]. In:______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v.XVI, p.361-378. [ Links ]
LACAN, J. O Seminário, Livro 10: a angústia [1962-1963]. Rio de Janeiro: Imago, 2005. [ Links ]
LACAN, J. O Seminário, Livro 23: o sinthoma [1975-1976]. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de Sérgio Laia. Revisão André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. [ Links ]
Recebido em 08/09/2013
Aceito em 03/11/2013
* Psicólogo formado pela UFBa. Mestre em Psicologia. Doutorando em Psicologia na UFBA. Professor Assistente da Universidade Salvador, UNIFACS. Psicanalista. . Mestre em Psicologia. Atualmente, é doutorando em Psicologia (2010.1) também pela Universidade Federal da Bahia. Exerce a clínica psicanalítica desde 2001. Atualmente mantém grupo de estudos em Salvador com outros psicanalistas. E-mail: rui.diamantino@gmail.com
1 Cama de gato é uma brincadeira existente entre diversos povos que se apoia em uma roda de barbante e pelo menos duas pessoas, uma delas posicionando o barbante entrelaçado nas duas mãos e a outra realizando diversas configurações, a partir da configuração inicial. Isso endereça ao tema “rodas de barbante” tão caro a Jacques Lacan, onde ele faz um jogo semelhante a partir da configuração borromeana, buscando variações e soluções teóricas para os desdobramentos possíveis da topologia dos nós. Isso, também, se coaduna com a proposta deste trabalho, na medida em que busco interrogar se, justamente, o que aqui considero uma mostração de subjetividade contemporânea, pode ser pensada numa outra configuração borromeana que não as até aqui articuladas.
2 Refiro-me a dois autores que sustentam o tema da adicção e da depressividade como os grandes indicadores da subjetivação contemporânea, embora caminhem por conclusões diferenciadas quanto aos aspectos estruturais que suportariam tal subjetivação: trata-se de Elisabete Roudinesco e de Charles Melman. Roudinesco na sua obra, que no Brasil teve o título Por que a Psicanálise?, parte do pressuposto do sujeito trágico da obra freudiana para articular o que pode ser considerado um seu sucedâneo moderno, o sujeito da sociedade depressiva. Já Melman, no seu livro publicado no Brasil com o titulo O homem sem gravidade, bascula entre uma concepção estrutural que ora corresponde a uma feição perversa, ora a uma feição psicótica, dessa “nova apresentação” de subjetividade. De qualquer sorte, as abordagens desses dois autores apontam a dificuldade de “enquadrar” o sujeito. É consabido que o conceito de “estrutura” em Lacan é muito mais uma referência ao modo de como se expressa o sujeito linguajeiro no ato analítico do que propriamente uma fixidez do seu ser. O sujeito está enodado nas conjunturas múltiplas do laço social, o que necessariamente implica modalizações do seu discurso e da sua forma de se relacionar com o objeto.