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Cógito

Print version ISSN 1519-9479

Cogito vol.14  Salvador Nov. 2013

 

Amor? Filme de João Jardim. Algumas reflexões

 

Amor? João Jardim film. Some reflections

 

 

Guilherme Massara Rocha*

Universidade Federal de Minas Gerais

 

 


RESUMO

Comentário sobre o filme Amor? do diretor brasileiro João Jardim de 2011.

Palavras-chave: cinema; psicanálise; arte; amor.


ABSTRACT

Review of the movie Amor? by brazilian director João Jardim, 2011.

Keywords: cinema; psychoanalysis; art; love.


 

 

Lançado em 2011 pelo diretor brasileiro João Jardim, Amor ? consiste numa obra cinematográfica de cunho algo inclassificável. Um misto de documentário e ficção e dotado de roteiro construído a partir de cerca de sessenta entrevistas com casais cujas histórias de amor coexistiram, nalgum momento, com atos e circunstâncias de violência. Atores foram convidados por Jardim para encenaram os dramas reais narrados por alguns de seus entrevistados. Julia Lemmertz, Ângelo Antônio, Eduardo Moscovis, Lilia Cabral, Cláudio Jaborandy, Mariana Lima, entre outros, representaram, com profundo talento e doação, toda a complexidade pulsional da relação amorosa. E isso, com especial atenção para a mescla de paixões – na maior parte dos relatos, profundamente paradoxais – com as quais se temperam suas iguarias agridoces. As observações que se seguem têm por objetivo tão somente cingir o filme com um ou outro apontamento de cunho psicanalítico que não visam elucidação, interpretação ou enxertos de sentido. Pretende-se apenas colher e brevemente discutir alguns temas e cenários das intrigantes, tensas e belas histórias ali apresentadas. Narrativas que, para aqueles que tiveram o prazer de assistir ao filme, não seriam absolutamente distantes daquelas que os psicanalistas costumam testemunhar no exercício de seu ofício.

A primeira história é narrada por Lilia Cabral, e se refere ao drama de um casal que perde tragicamente sua filha de 7 anos. Episódio a partir do qual o marido começa a beber muito e sua esposa se torna, em suas próprias palavras, uma “canalha”. A sequência da narrativa desemboca numa cena de agressão, após a qual advém a separação. Algum tempo depois, o casal decide entabular um novo namoro (“... a gente começa a conversar”); restaura-se certa dimensão do discurso que abre caminho para um reencontro amoroso.

Uma relação amorosa não se define nem se esgota numa oferta de dons exclusivos e intersubjetivos; nem numa equação que resulta numa unidade imaginária de anseios, preferências e objetos. Existe, explícita ou silenciosamente, um terceiro elemento que justifica e anima o amor que subsiste: um horizonte de realização de desejo que talvez coloque os parceiros em relação de “extimidade” (dentro e fora ao mesmo tempo), para tomar de empréstimo a conhecida expressão de Jacques Lacan. Algo que pode eventualmente se realizar na ausência de um deles, mas cujo sentido é substancialmente nutrido por sua presença. Neste caso, esse horizonte, profundamente representado pela filha que morre, se esvanece. A esposa termina por ceder da posição beligerante de afirmar-se a partir de uma destituição histérica do marido e, concomitantemente, demanda ser vista, ser elogiada por ele. Reconhece estar marcada por uma falta, mas que pode ser tratada pelos mimos dele.

Nesse momento em que o laço discursivo é reatado, as posições tornam-se mais explícitas. Explicita-se o que pode e o que não pode mudar. Num certo momento, ela confessa ter-se colocado diante da seguinte pergunta: “Você precisou levar uma porrada para assumir sua condição de mulher”? “Sim”, e ele precisou bater pra assumir o lugar de homem... “trazer dinheiro pra casa, trabalhar”. A agressão flerta com a morte e opera como signo do fim. E essa palavra talvez, nesse instante, ecoa como significante: o fim, como termo último, como desencontro, morte e destruição; mas o fim como finalidade, como uma pergunta sobre o sentido desse encontro e seus extravios. O golpe produz retificações, talvez por ter incidido sobre essa pergunta – qual é o fim de nosso encontro, uma vez que perdemos coisas que outrora substancialmente o sustentavam? O que pode advir no lugar desses objetos perdidos? Como se livrar da sombra mórbida deles, que asfixia o laço e rebaixa a relação a uma disputa imaginária pela soberania da lei, dos bens, e da verdade? – opera-se uma retificação a partir disso.

“Foi um encontro com a minha delicadeza”, relata a protagonista, ao se referir ao curioso efeito feminizante que adveio a partir dos sofrimentos da agressão/separação/ reaproximação. Outrora irascível, insolente e beligerante, essa mulher se descobre também meiga, carinhosa, receptiva. Eis uma questão contemporânea: a delicadeza como elemento constitutivo do feminino é pressionada pela forma do laço social, que exige da mulher os mesmos bastiões fálicos que os homens têm de brandir para aceder a seu reconhecimento social. Ou, noutro extremo, a delicadeza é corroída pelo estereótipo frívolo da mulher que se aloja na condição de puro objeto para o Outro a quem serve, e que se escreve, frequentemente, com a frase: “ser sustentada”. Em ambas as posições, é possível reconhecer um traço de certo masoquismo, que ora decorre da solidão do gozo fálico ou, de outro lado, do gosto amargo de sentir-se um dejeto maquiado. A delicadeza é um “não-lugar”, uma virtude dialética de deslocar-se, desdobrar-se. É uma virtude feminina, mas vale para homens e mulheres.

Noutra história, uma jovem mulher, identificada como Carol, narra momentos tensos relativos ao ciúme de um namorado, outrora profundamente apaixonado e atencioso. “Eu achava que eu era um anjo na vida dele”. As primeiras cenas de ciúme são deflagradas durante bailes de forró, a partir dos quais ela passa a sofrer ameaças de agressão. Obstinadamente, seu parceiro procura sinais de traição ou de interesse que porventura ela possa nutrir por outros homens. A frequência e intensidade dessas circunstâncias começam a corroer o laço amoroso e dar lugar ao medo e às sensações de ter sido tornada refém de um sentimento explosivo e insidioso. O sexo se torna, para ela, uma modalidade de defesa. Transa sem vontade, na tentativa de apaziguar a ira e as fantasias de traição do parceiro. Ele a interroga: “Você fez por obrigação”? Frase curiosa, que talvez deixe entrever, por uma fresta, algo do tormento fantasmático desse sujeito diante do outro sexo.

Certo dia, tomado pela angústia de traição, o namorado insiste em afirmar que a marca do sutiã da parceira seria, na verdade, o signo corporal de um episódio sexual ocorrido fora do espaço daquela relação. Imediatamente, ele trancafia a parceira em seu apartamento, despe-a, e a inspeciona detidamente por horas a fio, num cenário torturante de violência psicológica. “Me sentia” – relata ela – “um pedaço de carne, um frango de padaria”. Expressões que marcam o horror com o qual a posição de objeto sexual deriva na direção de uma abordagem perversa, instrumental, des-subjetivante. “Ele não queria me ver dar risada; não queria me ver feliz”.

O sintoma desse homem assume contornos quase delirantes, consumando-se como uma intolerância hostil e atroz contra todo e qualquer sinal de prazer que surja no semblante da parceira e que é apreendido como indicador de um gozo insuportável. A narrativa expõe contundentemente algo que Freud sagazmente nomeara como a depreciação do objeto na esfera do amor. Eis a corrente erótica, típica da neurose obsessiva, em que o objeto é expropriado de sua existência desejante. Pois é exatamente o fato de o outro desejar aquilo que transtorna o obsessivo, sujeito marcado por uma paixão trágica de perder seu lugar no desejo do Outro. Ou que fantasia ser banido do universo da satisfação pulsional por uma alteridade plena e idealizada, um Pai Totêmico, que deteria a posse de todas as mulheres. No caso da parceira, há o medo certamente. Mas há talvez um certo gozo em surpreender, no semblante atormentado do parceiro, seu valor de objeto (no qual, em grande medida e com grande frequência, a mulher aliena suas expectativas de realização subjetiva).

Freud já adivinhara a fórmula dessa potente e, até certo ponto perversa, fantasia: ele me bate, logo me ama (com Lacan): ele me marca violentamente como o objeto que representa a dignidade da Coisa). Há um paradoxo, somente compreensível por via do discurso analítico, entre degradação e idealização.

Outra história: Paulo era um sujeito que se ressentia de um sofrimento de desprezo, de abandono, no curso de um tumultuado relacionamento. Certa feita, passa o dia à espera de uma manifestação da companheira. “Custava ela naquele dia ter ligado pra mim”? Essa frase prenuncia uma grave passagem ao ato, que se produz no curso de uma discussão. Paulo havia bebido muito e se exaltara durante a briga com a namorada. Num certo momento, ela faz menção de chamar a polícia. Ele se sente “indignado”. Esfaqueia a parceira e, ao cabo do ato homicida, se depara com uma declaração surpreendente por parte dela. Mortalmente ferida, ela dispara: “Por que você fez isso? Comigo que te amo tanto”? Em sua entrevista Paulo declara, desolado: “Nesse momento, eu... perdi”.

Chama a atenção, no contexto dessa passagem ao ato, o significante “indignado”. A honra e a dignidade, virtudes morais profundamente arraigadas no bojo dos valores burgueses da tradição moderna, estão frequentemente presentes no curso de narrativas de violência no contexto amoroso. Expressões tais como “lavar a honra com sangue” assim o atestam. No plano da filosofia moral, a dignidade, por seu turno, é a virtude do sublime. Digna é a ação que, mais que bela, é “desinteressada”, não vinculada a interesses particulares e alçada à dimensão dos fundamentos da vida social. A virtude do herói trágico, capaz de sacrificar seu desejo por um valor compreendido como superior. Paulo fica “indignado” quando sente que o Outro desconfia de sua capacidade de se autocontrolar moralmente. Eis aí o sentimento desesperado do apagamento do sujeito. Mas seu ato, ao invés de restaurar sua dignidade, legitima exatamente aquilo que era o objeto da desconfiança do Outro. Sua resposta tem um quê de sadismo. A frase não foi pronunciada, mas ressoa nas entrelinhas de sua ação brutal: “Então, vou te dar um motivo pra chamar a polícia”.

A outra frase, com a qual ele descreve o sentimento de extravio, de perplexidade diante da ação cometida, poderia talvez ser sutilmente alterada: “Nesse momento eu me perdi”. Tentar eliminar o objeto parece representar, naquele momento, a única saída que esse sujeito entrevê para livrar-se do descentramento nele provocado pelos efeitos avassaladores da paixão e das tormentosas fantasias que ela carreia. Perdido no Outro, des-localizado em relação ao horizonte normativo de sua experiência libidinal, o sujeito passa ao ato. Mas o que ele obtém, ao fim e ao cabo dessa operação, é um efeito de mortificação que lhe advém na esteira dos danos provocados.

Uma das histórias mais emblemáticas do filme é narrada a partir dos depoimentos de duas jovens moças que se apaixonam e que vivem, no curso de uma incandescente relação erótica, episódios variados de violência. A narrativa é distribuída pelas duas protagonistas, sem distinção dos eus. Nesse aspecto, a ênfase narrativa recai sobre o caráter marcadamente especular da relação; “Era inconcebível viver separadas”, relata uma delas. Tudo começou como um “deslumbramento”. As descobertas eróticas que se sucediam faziam-nas esquecer a necessidade de fazer um semblant, dissimulando, em situações específicas, o caráter erótico da relação; esse mesmo que, uma vez explicitado, fatalmente acarretaria sanções, mal-estares e retaliações por parte das famílias das jovens. Ao contrário disso, trancavam-se no quarto por dias a fio como a desafiar, numa certa atmosfera de atuação histérica, o horror moral do Outro familiar.

Com o passar do tempo, o namoro fica tumultuado. Abusos de drogas, apelos de experiências sexuais fora da relação e ciúmes porventura virulentos tingem o cenário com suas tonalidades sombrias. Nesse contexto é que advém o significante “incompreensão”. Eis o que nomeia o momento do desencontro. Pois parece mesmo desesperadora a falta de um significante que escreva, como sugere Lacan, a relação sexual. No caso dessas duas moças, isso era ainda mais contundente, pois o ato sexual propriamente dito restara quase incólume às sucessivas e alternadas devastações sofridas pelas protagonistas. A despeito disso, todavia, resta ainda algo que não se escreve.

Em toda parceria, heterossexual ou homoafetiva, fica em jogo um arranjo entre as posições masculina e feminina, não necessariamente ancoradas no sexo anatômico. Ali, a própria estética da narrativa parece sugerir uma superposição dessas posições, numa lógica meio especular e que se torna, por isso mesmo, profundamente mortífera. Quando o parceiro passa a existir como uma espécie de espelho invertido da própria subjetividade, sua presença vai anulando a função do elemento ternário, um marco simbólico que possa assinalar e, ao mesmo tempo, regular o gozo e a diferença. Começam os sintomas e atuações. Uma delas engorda 40 quilos; a outra se exalta numa briga domiciliar até quebrar a casa; Certa feita, durante uma festa no apartamento onde moravam, um delas transa com outra mulher na frente da parceira. Até que, finalmente, acontece uma passagem ao ato mais grave: Uma das parceiras se automutila gravemente. Ao cortar-se, pensava alto: “Olha o que você fez comigo”; “uma coisa é a palavra, a outra é o sangue”; a carne exposta está revestida, morbidamente, por uma expectativa de, finalmente, fazer-se compreender...

Já ao final do filme, tomamos conhecimento da história de Lineu (Ângelo Antônio), um poeta niilista, para quem “a relação afetiva é um ato de pirataria”: busca-se o que não se tem. “Eu dou pra você tudo que eu tenho”; a violência como “pavor de perder o que te faz feliz/infeliz”[...] “pavor de perder o que te faz gozar, o que te faz ver o céu mudar de cor”. A mulher fala sempre, lembra Lineu; o homem fala quando bebe (e bate também quando bebe). A mulher, de certo modo, existe na linguagem. O homem, quando bebe, falta. Falta e, portanto, fala “fora de si”. Para o homem, diversas vezes, a fala da mulher é violentíssima. Não raramente, ele a agride para que ela se cale. Calando e revelando, nesse mesmo gesto, a verdade de seu sintoma, do qual a parceira seria em parte a fiadora. Noutra frase lapidar, Lineu admoesta: “Perdoa-me por me traíres – você se odeia por ser a causa do que destruiu, sem saber se queria ou não destruir”. Faz lembrar a metáfora freudiana do cristal. Quando ele se quebra, se tornam visíveis suas linhas de fratura, os caminhos que levaram à sua destruição. Mas talvez isso que frequentemente se destrói, revela o fracasso do amor, no sentido lacaniano da expressão. No amor se faz necessária a passagem do buscar-se o que não se tem, para o doar-se o que não se tem. Talvez ele funcione no momento em que consintamos que o parceiro sirva-se de algo que é meu, mas do qual eu mesmo sou incapaz de servir-me. Talvez a pirataria do amor não funcione quando nos sentimos espoliados, expropriados de todos os dons e sequestrados de todos os demais votos e anseios. Nelson Rodrigues diria que o dinheiro compra tudo, até amor verdadeiro. Ironias à parte, a pirataria do amor verdadeiro talvez contenha algo de paradoxal. Trata-se da violência de um assalto em que, aquele que nos subtrai do que nem sabíamos que éramos portadores, deixa, como contrapartida, uma outra coisa... que talvez também não soubéssemos que desejávamos.

O filme de João Jardim deve ser celebrado como uma excelente ocasião de encontros entre os litorais da arte e da psicanálise.

 

Referências

AMOR ? Direção : João Jardim. Intérpretes: Julia Lemmertz, Ângelo Antônio, Eduardo Moscovis, Lilia Cabral, Cláudio Jaborandy, Mariana Lima e outros. Brasil, 2011.         [ Links ]

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Recebido em 18/11/2013
Aceito em 23/11/2013

 

 

* Psicanalista, Doutor em Filosofia (Universidade de São Paulo), Professor-adjunto do Departamento de Psicologia da FAFICH/UFMG.