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Cógito
Print version ISSN 1519-9479
Cogito vol.14 Salvador Nov. 2013
Bem-me-quer, malmequer - A erotomania
He loves me, he loves me not - The erotomania
Cibele Prado Barbieri*
Círculo Psicanalítico da Bahia
RESUMO
Neste comentário do filme Bem me quer, mal me quer (À la folie... pas du tout), a autora pretende, aproveitando-se da trama, explorar e articular as teorias sobre a erotomania, que envolve não apenas questões a respeito do amor, mas principalmente, a paranóia com todo seu conteúdo de erotismo. A história revela o desenvolvimento do delírio apontando para suas bases subjetivas, de modo que demonstra o percurso paranóico de forma exemplar, permitindo a articulação das teses psiquiátricas e psicanalíticas.
Palavras-chave: cinema; psicanálise; paranóia; delírio; erotomania; crime paranóico; psiquiatria.
ABSTRACT
In this review of the film He loves me, he loves me not, the author, taking advantage of the web, intends to explore and put together theories about erotomania, which involves not only questions about love, but mostly, the paranoia with all its erotical contents. The story reveals the development of delirium pointing to their subjective bases, so that shows the route paranoid in an exemplary manner, allowing the coordination of psychiatric and psychoanalytic theories.
Keywords: cinema; psychoanalysis; paranoia; delirium; erotomania; paranoid crime; psychiatry.
Embora o meu amor seja insano, a minha razão alivia a dor intensa do meu coração, dizendo-lhe para ser paciente e nunca perder a esperança. (Uma erotomaníaca internada há mais de 50 anos).
O filme de 2002 mostra a evolução de um processo de erotomania, que consiste na convicção delirante de um sujeito de que outra pessoa está secretamente apaixonada por ele.
A erotomania, que a psiquiatria denomina “Paranóia Erótica”, ou “Síndrome de Clérambault” foi primeiramente descrita pelo psiquiatra francês Gaëtan Gatian De Clérambault (1872-1934) e se desenvolve, segundo ele, em três fases clássicas: A esperança, o despeito e, finalmente, o rancor.
Sem descartar essa descrição psiquiátrica do fenômeno, tentaremos, neste comentário, articular as fases de Clérambault com a contribuição que a Psicanálise faz ao entendimento desse mecanismo usando a trama do filme.
Em seu artigo de 1914, “Sobre o Narcisismo: uma introdução”, Freud (1980, p.105) diz que há uma dissimetria entre a posição feminina e a posição masculina em relação à forma de amar e explica que “[...] grande parte da insatisfação do homem que ama, [...] de suas queixas quanto à natureza enigmática da mulher, tem suas raízes nessa incongruência entre os tipos de escolha de objeto”. A necessidade das mulheres, diz ele, “[...] não se acha na direção de amar, mas de serem amadas”. Quanto a isso, Miller (1998), inclusive, sublinha que, nas mulheres, a demanda de amor é central. Segundo ele, essa demanda tem um caráter absoluto e uma visada que incide sobre o ser do parceiro.
No outro lado, o masculino, temos a forma fetichista de amar, que implica a busca de um modelo, de um pequeno detalhe, que opera como causa do desejo masculino. Isso justifica a afirmação de Lacan de que não há relação entre os sexos e de que o amor é a tentativa de fazê-la existir.
No Seminário 20, Lacan toma como paradigma do discurso amoroso o amor cortês, o ritual romântico, que consiste em fazer a corte à mulher, elevando-a à posição de dama inacessível, fazendo com que o amante se torne dominado pela incerteza de ser amado. Ele descreve o amor como uma forma refinada de fazer suplência à ausência da relação sexual, fingindo que somos nós que a obstaculizamos.
A modalidade erotomaníaca, na psicose, revela-se também como uma solução à não existência da relação sexual, mas aí ela se configura como uma forma oposta de lidar com a impossibilidade da relação.Na Psicose a posição do sujeito é oposta à do amor cortês, pois o sujeito está numa total submissão aos desígnios do Outro. Lacan relaciona esse tipo de relação ao Outro com a relação extática, como é nomeada pelos teólogos a relação onde há realização de um amor perfeito, só que aqui há uma certeza, ao contrário do amor cortês.
O Outro me ama é o postulado que fundamenta e desnuda a forma erotomaníaca do amor: fazer com que o Outro me ame. É a fase da esperança de Clérambault.
No Seminário 3, trabalhando sobre o caso Schereber, Lacan dá a esse fenômeno o nome de empuxo à Mulher, pois, quando há uma foraclusão do Nome do Pai, o sujeito não consegue dar uma significação fálica à falta no Outro. Por isso, Schereber se institui como “A Mulher que falta a Deus”. Mas se o Outro não o ama, como Angelique repentinamente descobre, o sujeito psicótico é tomado por um gozo devastador que invade seu corpo, permitindo que se afirme que o psicótico sofre do gozo do Outro.
Em O Seminário 3: as psicoses, diz Lacan (1985, p.289): “O psicótico não pode apreender o Outro, senão a relação com o significante, ele se demora apenas numa casca, num invólucro. Numa sombra, a forma da fala. Ali onde a fala está ausente, ali se situa o Eros do psicótico, é ali que ele encontra seu supremo amor”.
A inexistência da relação sexual tem como efeito a poesia, pois ela é o fomento do ato de criação. No silêncio, onde o neurótico demanda a palavra em busca da certeza, o psicótico lê a sua verdade. Em Angelique, a busca de um Outro que a ame, revela-se na demanda de um cachorrinho, perfeito em sua ausência de palavras; e, na impossibilidade de satisfazer essa demanda, ela fabrica o cachorro, perfeito em seu silêncio e, mais tarde, elege e constrói Loic, situando na ausência de suas palavras o seu Eros, para assim encontrar a certeza de seu supremo amor.
Os efeitos da perda da certeza revelam, então, além da destruição da esperança e a passagem para a fase do despeito de Clérambault, a devastação do mundo interno – muito bem retratada no filme pela destruição rancorosa que é desencadeada. A reação maníaca se instala numa busca desesperada de algo que possibilite retomar o Amor do Outro, o equilíbrio da certeza; e leva Angelique à exaustão e à falta total de recursos. Só lhe resta a mortificação para salvar-se desse gozo mortífero da alienação ao Outro, que não só não a ama mas, ainda dela goza.
O final do filme sutilmente faz alusão à fórmula, ao modo como Angelique encontra uma estabilização e o reordenamento do discurso, quando ela distingue seu modo de amar em relação ao amor cortês. Note-se que ela não abandona a posição erotomaníaca em relação ao amor, nem se pode dizer que a medicação proporcionou a ela um novo discurso. Na verdade, ela não usou a medicação, como fica esclarecido na última cena.
Ainda em “Sobre o Narcisismo: uma introdução”, Freud lembra um poema de Heine que trata da psicogênese da criação: “Deus diz: A doença foi sem dúvida a causa final de todo anseio de criação. Criando, pude recuperar-me; criando, tornei-me são”.
Como diz Heine, é criando que ela encontra uma possibilidade de tornar-se “sã”. É recriando um Loic que ela encontra um lugar para si, mesmo que não completamente livre de um amor insano. Já o Professor Sérgio Nogueira, no site Dicas de Português, a propósito do uso do hífen nas expressões Bem-me-quer e Malmequer, ensina que:“Por incrível que possa parecer, aqueles que se querem bem andam separados por hífen, e aqueles que não se querem bem andam juntinhos. O certo é bem-me-quer e malmequer. Acredite se quiser.” Certamente acreditamos. Enquanto analistas como podemos duvidar da língua?
Referências
BARTHES, R. Fragmentos de um discurso amoroso. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989. [ Links ]
BEM-ME-QUER, MALMEQUER. Direção: Laetitia Colombani. Intérpretes: Audrey Tautou e Samuel Le Bihan. França, 2002. 1h32min, color. [ Links ]
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LACAN, J. Diretrizes para um congresso sobre a sexualidade feminina. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. [ Links ]
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MILLAS, D. Inventar un nuevo amor. In: Documento de trabalho preparatório ao XII Encuentro Internacional del Campo Freudiano. Paris, 2002. p.83-89. [ Links ]
MILLER, J.-A. O osso de uma análise. Salvador: Biblioteca Agente, 1998. [ Links ]
NOGUEIRA, S. Dicas de Português. In: http://g1.globo.com/platb/portugues/2010/01/06/duvidas-dos-leitores-7/#comments Acesso em: 22/11/2013. [ Links ]
Recebido em 01/11/2013.
Aceito em 20/11/2013.
* Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico da Bahia. Psicóloga (UFRJ/UFBA).barbieri.cibele@gmail.com. Comentário apresentado em 2007 no Núcleo de Cinema do CPB.