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Stylus (Rio de Janeiro)
versão impressa ISSN 1676-157X
Stylus (Rio J.) no.30 Rio de Janeiro jun. 2015
ENSAIOS
Notas sobre o Fantástico e a sexuação a partir do conto As Academias de Sião, de Machado de Assis
Notes about the Fantastic and sexuation based on the short story As Academias de Sião by Machado de Assis
Fabiano Chagas Rabêlo*
Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano — EPFCL
Curso de Psicologia da Universidade Federal do Piauí — Campus Parnaíba
RESUMO
Neste artigo estabelecemos o comentário do conto As Academias de Sião, de Machado de Assis. De início, situaremos algumas coordenadas mais gerais relativas ao gênero do fantástico que nos permitem localizar um efeito de dessubjetivição mediado pelo conto capaz de suscitar no leitor de um estado de indeterminação produtiva. A partir do abalo de nossas identificações somos convocados a nos perguntar o que, em essência, torna alguém homem ou mulher. Daí, a partir do fio condutor da história, tomando como referência o enigma da alma sexual, avançamos na discussão sobre a constituição das identidades sexuais da perspectiva da psicanálise, discriminando as categorias de sexo, gênero, escolha objetal e sexuação. A respeito dessa última, tecemos alguns apontamentos acerca da lógica modal e da função do falo.
Palavras-chave: Sexuação, Estranho, Fantástico, Lógica modal.
ABSTRACT
In this article we discuss a comment of the short story As academias de Sião by Machado de Assis. At first, we will work on some general ideas related to the genre of the fantastic that will allow us to locate an effect of 'desubjectivization' mediated by the short story which is able of arousing in the reader a state of productive indeterminacy. Departing from the shock of our identifications, we are called upon to ask ourselves what, in essence, makes someone male or female. Hence, following the thread of the story, taking as reference the enigma of the sexual soul, we move on in the discussion about the creation of sexual identities from the perspective of psychoanalysis, describing the categories of sex, gender, object-choice and sexuation. Regarding the latter, we weave some notes about the modal logic and the phallic function.
Keywords: Sexuation, Fantastic, Strange, Modal logic.
Introdução
Comentaremos neste artigo o conto de Machado de Assis As Academias de Sião. Nele, encontramos uma questão em destaque: o gozo como correlato de uma tomada de posição subjetiva diante da diferença sexual.
Esse texto relata a experiência de personagens que transitam entrem os sexos. O fio condutor da história são as tentativas da protagonista de solucionar o dilema da alma neutra ou sexual, de onde deriva uma questão que é bastante atual: é possível a existência de homens no corpo de mulheres e mulheres no corpo de homens? Com apoio de alguns recursos da literatura fantástica, o conto constrói uma abordagem bastante instigante do problema da identidade sexual, valorizando o enigma e, de modo irônico, desconstruindo o ideal de complementaridade entre os sexos.
Instigado pelas provocações produzidas pelo texto, resgataremos algumas contribuições de Freud, Lacan e outros psicanalistas sobre a constituição das identidades sexuais. Em seguida, partindo de artigos que fazem menção ao conto machadiano, teceremos alguns comentários acerca do fantástico, do estranho, do transexualismo e das teorias de gênero. Esperamos com isso, no contexto das temáticas levantadas, traçar alguns delineamentos sobre o lugar da psicanálise no âmbito dessa discussão.
O enigma: entre o fantástico e o estranho
Em As Academias de Sião, conto de Machado de Assis publicado originalmente em 1884 no livro Histórias sem Data, constatamos uma abordagem diferenciada do tema da constituição das identidades sexuais. Nele, a questão do feminino é apresentada na condição de uma desproporcionalidade, de um enigma. As tentativas da personagem principal de instituir equivalências entre o masculino e o feminino se mostram fugidias e fracassadas, o que a força a uma tomada de posição em função da premência de um momento de concluir. A história nos leva a transitar nos meandros da complexa relação entre sexo e gozo e a problematizar as escolhas — sempre únicas e singulares — que cada um faz diante da diferença sexual.
O conto se inicia na primeira pessoa. A voz de um narrador nos alerta sobre o caráter ficcional da história que será contada: "Bem sabemos que em Sião nunca houve academias" (ASSIS, 2006, p. 595). Ainda assim, ele pede crédito e atenção, convidando-nos que o acompanhe. A produção desse cenário conjectural é essencial para a entronização do leitor em um estado de fusão entre credulidade e incredulidade, ficção e realidade, o que será determinante para a produção de uma ambiência fantástica.
Trata-se aqui de uma narrativa heterodiegética, onde a figura do narrador não participa dos acontecimentos que expõe. Este, contudo, não adota uma atitude distante e neutra. Sua voz comparece muitas vezes durante o texto, reverberando as tensões e ambiguidades da história e potencializando os efeitos de enigma.
Essas intervenções têm por função engajar o leitor numa vivência afetiva menos distanciada do relato. Salientamos que há quatro intervenções desse tipo distribuídas ao longo do texto. Cada uma delas com características e funções específicas. Elas constituem uma espécie de moldura que mantém a experiência de leitura numa zona de báscula entre uma possibilidade de interpretação alegórica/racional e a irrupção da experiência do estranho.
Todorov (2012) salienta que essa mediação é recorrente na literatura fantástica. Sua função é agenciar uma atitude de hesitação do leitor diante do texto. Assim, o leitor, em função dos efeitos formais e estéticos que a obra proporciona, não só repercute as oscilações afetivas e de julgamento do narrador, como também as lacunas, dubiedades e sobredeterminações do texto. Com isso, somos instados a oscilar entre diferentes possibilidades de interpretação e, em certa medida, a encarnar a errância das personagens da história.
Além da mediação do narrador, Todorov defende que a presença do tempo verbal no imperfeito e expressões modalizantes corroboram para produzir esse efeito no leitor. No conto, tais recursos são menos frequentes, mas nem por isso de menor importância. Os verbos no imperfeito, por exemplo, podem ser situados na segunda e terceira intervenções do narrador, que logo comentaremos.
No que tange às expressões modalizantes, apesar de rarefeitas, elas desempenham um papel de destaque na estrutura do texto. Uma expressão desse tipo está presente na primeira intervenção do narrador supracitada. Nela, como já mencionamos, o narrador adverte o leitor que a história é ficcional. No entanto, essa abordagem é contradita incessantemente no decorrer da história, o que serve para produzir no leitor um estado crescente de tensão. O texto, portanto, inicia-se com uma conjectura, uma suposição. O tratamento dado à narrativa, por outro lado, aproxima-se da factualidade, malgrado a menção a elementos mágicos.
Para Todorov, a hesitação do leitor é a principal característica do gênero fantástico. O texto fantástico é aquele capaz de transformar, ainda que provisoriamente, o sentimento de apreensão da realidade, possibilitando que fenômenos até então percebidos como absurdos ou irracionais sejam tratados como experiências concretas, portadoras de uma verdade. No fantástico, o cotidiano e o insólito se sobrepõem.
Para o autor, uma vez dissipado esse momento de hesitação — a partir do instante em que o leitor faz a opção por uma explicação racional, alegórica ou mágica — os efeitos do fantástico se dissipam. Decorre daí que a essência do gênero do fantástico não está encerrada no texto em si, mas nos efeitos circunstanciais e efêmeros que o leitor vivencia.
Em função dessa definição, Todorov limita o gênero do fantástico entre as fronteiras do mágico e do estranho. Uma vez ultrapassados esses limites, finda-se a experiência do fantástico. No caso do estranho, quando se admite uma explicação racional para um acontecimento insólito; no outro oposto, no limite com o mágico/maravilhoso, quando é aceita a referência ao sobrenatural, ao transcendente. Todorov, contudo, reconhece que tais limites são fluidos e postula a existência de zonas de transição que mesclam características do fantástico com outros gêneros. Daí a menção ao fantástico-mágico e ao fantástico-estranho como modalidades atenuadas do fantástico puro.
A história é contada no pretérito, o que dá a impressão de referir-se a eventos transcorridos no passado, em tempos remotos. Porém, ao final, o narrador mais uma vez abala esse porto seguro, convocando o leitor a se manifestar por escrito sobre a solução do enigma por meio de uma carta sobrescrita ao cônsul na China e dirigida à "mais graciosa dama do Oriente" (As Academias de Sião, op. cit., p. 602), supostamente a protagonista da história. Esse desfecho induz o leitor não só a considerar o relato como verídico, mas também a considerar a sua atualidade.
A referência a uma temporalidade que enoda presente, passado e futuro é a temática comum às histórias que compõem o livro no qual está inserido o conto As Academias de Sião. Numa advertência que serve também de introdução ao livro, o autor, tendo em vista possíveis objeções ao título pelo fato de algumas histórias estarem datadas, antecipa-se às críticas e justifica sua escolha pelo título Histórias sem Data: "o meu fim é definir estas páginas como tratando, em substância, de cousas que não são especialmente do dia, ou de um certo dia" (ASSIS, 1884, p. VII).
Feitas estas considerações, retomamos aqui a discussão sobre os estilos literários para nos apropriarmos de seus elementos estruturais com o fim de apreendermos os efeitos subjetivos que o conto engendra no leitor. Alguns textos machadianos (em específico, o conto objeto de nosso comentário) suscitam polêmicas entre os comentadores quanto à possibilidade de inseri-los no âmbito de determinado estilo literário, em especial o fantástico.
Para alguns, As Academias de Sião deve ser tomado por uma alegoria, tal como propõem Fiori (2006) e Tettamanzy (2001). Esta última, muito embora admita a presença de componentes característicos do estranho e do fantástico, sustenta que no conto predomina o uso de analogias e metáforas. Diferente dessas autoras, Manna (2014), referindo-se a outro conto de Machado de Assis presente no mesmo livro, sustenta que muitas histórias de Machado de Assis podem ser interpretadas como pertencentes ao campo do Fantástico. Para isso, defende uma relativização das premissas de Todorov, deslocando a condição principal do fantástico para a manutenção do caráter ambíguo, aberto e polissêmico das metáforas machadianas.
Da perspectiva da psicanálise, a mudança de posição do leitor — de um momento de hesitação para um instante em que ele se decide por uma interpretação alegórica — não constitui uma dificuldade no sentido de anular os efeitos do fantástico, como pensa Todorov. Tal mudança, no nosso entendimento, é efeito da divisão psíquica. Os processos inconscientes conjurados pelo texto, portanto, não desaparecem.
Sobre esse ponto, acreditamos ser possível fazer uma aproximação entre a leitura que propomos do conto com o movimento de báscula que Lacan (2008) afirma orientar o seu ensino. Trata-se aqui de um deslizamento constante entre a posição de analista e analisante, na medida que em sua práxis o analista intervém a partir do seu inconsciente. Ele não julga, não reflete, nem teoriza. Em função disso, o analista é ultrapassado pela intervenção que produz, que não raro pode lhe causar surpresa, espanto, incômodo ou até mesmo horror. O ato do analista traz, portanto, a marca da divisão subjetiva.
O esforço de teorizar a partir dos efeitos de uma práxis exige a adoção de uma outra posição. Trata-se de agregar um tratamento formal às coordenadas remanescentes dos processos inconscientes, cuidando para que a organização do pensamento consciente não corrobore as consequências do recalque. Essa é a razão pela qual Lacan faz uso dos matemas, dos grafos, da topologia e da lógica modal.
O desafio está em aproximar os produtos do Inconsciente (ou Isso/Id) da sintaxe da Consciência e do Eu, tornando mais porosa a fronteira desses territórios, tal como Freud (1932/1997) enuncia no final do texto A dissecação da personalidade psíquica. Nesse sentido, Freud propõe uma analogia com o sistema de diques holandeses que se tornam intermitentemente vazados para possibilitar a entrada do mar. Tal engenharia possibilita a emergência de vastos trechos de terras até então submersas, o que não aconteceria caso as paredes dos diques fossem maciças.
Diante do exposto, sustentamos que, mesmo com a adoção em alguns momentos de uma interpretação alegórica ou metafórica, nosso intuito é nos manter próximos às reverberações dos efeitos subjetivos incitados pelo fantástico do conto, cujo núcleo encontra-se no caráter sobredeterminado, lacunar e ambíguo do enigma.
O dilema da alma sexual
O local onde se passa a história possui um caráter simbólico. Sião, segundo o dicionário Aurélio (2010), é a denominação em desuso de um dos estados da Indochina, atual Tailândia. Dele, deriva o gentílico siamês. Na medicina e no senso comum, quando falamos de gêmeos siameses nos referimos a duas pessoas que habitam o mesmo corpo.
Por sua vez, ainda segundo o dicionário Aurélio, Sião em hebraico significa alto, elevado. É o nome de um monte próximo a Jerusalém que, em razão das referências bíblicas, passa também a designar a terra prometida dos hebreus, como bem lembra Tettamanzy (2001). De Sião deriva a denominação do movimento sionista, cujo objetivo é restituir aos judeus as terras que pertenceram a seus ancestrais e que, conforme os textos sagrados, lhes foram predestinadas.
É relevante também destacar uma outra acepção registrada pelo dicionário Michaelis (2015) para essa palavra. Sião pode ser também um antigo instrumento musical chinês, uma espécie de flauta de Pã, composta de uma série de tubos de bambu de diversos comprimentos.
A partir dessa sobredeterminação de significados — corpos compartilhados, terra prometida, o estrangeiro distante e exótico — somos levados a situar como tema central do conto o estranhamento de si com o próprio corpo ou, por assim dizer, o estranho que está presente no âmago de qualquer identidade (FREUD, 1919/1997). Dito de outro modo, trata-se da errância e da busca insólita por uma identidade sexual consistente e estável.
Retomemos o fio da história. Após a primeira intervenção do narrador, nos são apresentadas a controvérsia e a causa da discórdia entre os sábios das academias de Sião: o dilema da alma sexual. A questão que move os sábios é a seguinte: o sexo é determinado pela alma ou pelo corpo? A alma seria neutra (e o corpo determinaria o sexo) ou haveria um atributo nela capaz de definir a identidade sexual, independentemente do sexo anatômico?
Essa pergunta é levantada pelos sábios em decorrência da "esquisita feminilidade" do rei de Sião, que "virtualmente era uma dama" (As Academias de Sião, op. cit., p. 595), apesar de suas 300 concubinas. Para avaliar a índole do rei, os sábios de Sião são levados a se associar em academias, conforme a concordância com suas doutrinas. Dentre as quatro academias constituídas, três defendiam a tese da alma neutra e uma, da alma sexual. As quatro academias juntas, por sua vez, reuniriam "toda a sabedoria do universo".
A totalidade dessa sabedoria é, então, descompletada em função do desacordo entre as academias. Transcrevemos os argumentos dos acadêmicos adeptos da doutrina da alma sexual e a réplica de seus contestadores:
"— Umas almas são masculinas, outras femininas. A anomalia que se observa é uma questão de corpos errados. — Nego, bradaram as outras três; a alma é neutra; nada tem com o contraste exterior" (Ibidem, p. 596).
Na impossibilidade de estabelecer um consenso pela via da argumentação, o debate entre as academias divergentes descamba para a força bruta. "Veio primeiro a controvérsia, depois a descompostura e finalmente a pancada" (Ibidem, p. 596). Então, numa disputa de vida ou morte, os sábios se dizimam, o que resulta em 38 cadáveres e no estabelecimento de uma academia hegemônica (com sua respectiva doutrina).
Aqui, encontramos a segunda intervenção do narrador: "Ventos que passais, se quisésseis levar convosco estas folhas de papel, para que eu não contasse a tragédia de Sião! Custa-me (ai de mim!), custa-me escrever a singular desforra" (Ibidem, p. 596). Essa intervenção exerce uma função análoga à do coro na tragédia grega. Com ela, somos interpelados a nos compadecer das desventuras dos sábios, que se assassinam em razão de uma polêmica que aparentemente poderia ser facilmente contornada.
Para além de sua dimensão trágica, a violência dos acadêmicos acrescenta à história um tom de ironia. Ela denuncia o caráter arbitrário e a insuficiência simbólica da doutrina que prevaleceu. Daí o efeito cômico que se destaca do louvor de saudação ao presidente da academia vencedora, o "sublime" U-Tong: "Glória a nós, que somos o arroz da ciência e a luminária do universo" (Ibidem, p. 596). Ora, a vitória.
Fiori (2006) interpreta essa passagem como uma crítica à ciência do século XIX e a suas pretensões de normatizar as paixões humanas, produzindo daí relações de poder e autoridade. Seguindo a mesma linha interpretativa, gostaríamos de acrescentar que, para além do campo da ciência, a pretensão encarnada pelos acadêmicos é a de esgotar o enigma da sexualidade por meio de um saber doutrinário e unívoco.
Embora hegemônica, a academia sobrevivente não gozava de reconhecimento perante o povo de Sião. Em vez de confiança, seus feitos inspiravam terror e estupefação. Nesse ponto, nos é dado conhecer que dentre as 300 concubinas do rei, uma lhe era a preferida. Trata-se de Kinnara, "a flor das concubinas régias" (Ibidem, p. 596).
De acordo com Murthy (1985), Kinnara, na mitologia hindu e budista, são seres meio homens, meio animais, via de regra, pássaros ou cavalos. Os Kinnara demonstram grande aptidão e gosto pela música e pela arte. São considerados semideuses, e por isso, venerados em cultos, rituais e representações artísticas. Especialmente para os budistas, os Kinnara são descritos como possuindo uma índole terna. Via de regra, constituem casais estáveis, sendo extremamente apaixonados e dedicados aos seus parceiros. O termo Kinnara designa o espécime macho, enquanto Kinnari, a fêmea.
Temos então na escolha do nome da concubina mais uma menção à divisão psíquica (o humano e o animal), além de uma inversão quanto ao sexo. Além disso, Kinnara faz alusão ao encontro sexual. Também é digno de nota no simbolismo do nome Kinnara a referência à conjunção do sublime e do instintual. Lembramos que, para Freud, a sublimação é um processo pulsional que encontra no campo da sexualidade os seus fatores determinantes (1915/1997).
Somos informados que Kinnara possuía alma masculina, "era uma mulher máscula, um búfalo com penas de cisne" (Ibidem, p. 597). Ao contrário da opinião de todos sobre a carnificina, Kinnara aprovara os meios utilizados pela academia vencedora e empenhava-se junto ao rei para que ela fosse oficialmente reconhecida.
O rei Kalaphangko, no entanto, não acreditava no "absurdo" das doutrinas: "Não, não creio na alma neutra, nem na alma sexual" (Ibidem, p. 597). Por outro lado, estando completamente apaixonado por Kinnara e já persuadido por suas carícias, deixa-se influenciar. Reproduzimos aqui um trecho do diálogo entre Kinnara e Kalaphangko (Ibidem, p. 597):
— Mas então em que é que Vossa Majestade crê, se não crê em nehuma delas?
— Creio nos teus olhos, Kinnara, que são o sol e a luz do universo.
— Mas cumpre escolher: ou crer na alma neutra, e punir a academia viva, ou crer na alma sexual e absolvê-la.
— Que deliciosa que é tua boca, minha doce Kinnara! Creio na tua boca: é a fonte de sabedoria.
É assim que, "entre duas carícias", Kinnara obteve do rei o decreto que anunciava a academia sobrevivente como "legítima e ortodoxa, e a outra absurda e perversa" (Ibidem, p. 597).
Achamos interessante nesse ponto lembrar a discussão em torno das perversões alimentadas pela psiquiatria na virada do século XX, cuja dialetização orientou Freud (1905/1997) em direção ao aperfeiçoamento da etiologia sexual das neuroses e ao reconhecimento da sexualidade infantil. Esses avanços, por sua vez, resultaram em um entendimento das vivências sexuais — seja na criança como no adulto — como processos plásticos, passíveis de um amplo leque de variações.
Salientamos que o texto de Machado de Assis é contemporâneo a essa discussão. Daí ser relevante constatar mais uma inversão. No conto, a norma expressa para definir as perversões contrasta com aquela adotada pela psiquiatria do século XIX. Enquanto esta toma a anatomia e a natureza como referência (o sexo, portanto), aquela afirma que a orientação da sexualidade é definida pela alma. Encontramos, então, nos termos de nossa comparação as duas doutrinas da academia de Sião: a da alma neutra (a da psiquiatria do século XIX), que define a perversão como um desvio da natureza; e a da alma sexual, para a qual a perversão constitui o distanciamento da orientação anímica.
Mas o que vem a ser a alma? E qual a sua relação com o corpo? E o que acontece quando alma e corpo não se coincidem, como no caso da transexualidade?
Uma lógica não toda
As investidas de Kinnara prosseguem. Ela propõe então uma troca de corpos que duraria seis meses, a ser engendrada por uma invocação mágica hindu que lhe fora transmitida por por um bonzo. Não sem hesitar, o rei acata a proposta da concubina.
Concluída a troca, ambos se olham com assombro. O narrador adverte: "Era a situação do Buoso e da Cobra" (Ibidem, p. 597). Por meio dessa referência ao canto XXV do inferno da Divina Comédia (ALIGHIERI, 2012), Machado de Assis realiza uma analogia entre a situação do casal real com a maldição imputada a Buoso, tal como é retratada pelo mestre florentino: a fusão de corpos com uma serpente. Trata-se, em ambos os casos, de uma união peculiar, pois fica impedido que de dois se faça um. Essa analogia traz à baila a desproporção que resulta do encontro dos seres sexuados falantes.
A partir daí, propomos um paralelo entre a analogia machadiana com as teses lacanianas formuladas no seminário, livro 20: "não há relação sexual" (LACAN, 1972-73/1985, p. 22) e "a relação sexual não para de não se escrever" (Ibidem, p. 127). A impossibilidade em questão não se refere ao encontro de corpos na cópula, mas à garantia de uma satisfação plena por meio do sexo. Como consequência da operação da castração simbólica, cada um dos lados da relação — o lado homem e o lado mulher — obtêm uma satisfação parcializada, mediada pela fantasia. A sexuação diz respeito, portanto, à posição que um determinado sujeito ocupa em referência à norma fálica, o que resulta na produção de um modo específico e parcializado de gozo.
Ao final da troca, "Um e outro estavam bem, como pessoas que acham finalmente uma casa adequada." [...] "Sião tinha, finalmente um rei" (As academias... op. cit., p. 597). O termo casa nos inspira alguns comentários. Lembramos que a expressão alemã que designa o fenômeno do estranho lhe faz alusão na medida que em seu radical encontramos o substantivo Heim (casa/pátria/lar), que é negado (Das Unheimliche, op. cit.). Além disso, chamamos a atenção para o dito freudiano que especifica a razão pela qual a psicanálise pode ser apontada como responsável pelo terceiro corte narcísico infligido à humanidade. Freud (1917/2001) adverte que ao defender em ato ou palavras que o Eu não é o senhor em sua própria casa, o psicanalista está sujeito a desencadear as mais fortes objeções de seus opositores. Lacan (1998), por sua vez, pontua que o Eu se origina de um processo de alienação à imagem do próprio corpo, que é investida libidinalmente. Por isso, as reações de ódio e fascinação mobilizadas pelo narcisismo.
Da conjunção desses três apontamentos, concluímos que o estranho é o que não é caseiro, o que não encontra abrigo no Eu. No conto, a emergência do real do sexo é o que ameaça o Eu e desencadeia a experiência do estranho.
A partir desse ponto da história, algo de mortífero vem à tona. Ao contrário de Kalaphangko, que se via às voltas com dificuldades de cobrar impostos, a crueldade de Kinnara na vigilância do cumprimento da lei é comparada pelo narrador à inquisição espanhola. Guerras fulminantes e campanhas heroicas foram encampadas. Motivada pelo acúmulo de conquistas, Kinnara passou a ser atraída pela ideia de perpetuar sua condição por meio do assassinato de Kalaphangko.
O obstáculo para a consecução desse plano estava na possibilidade de Kinnara no corpo de Kalaphangko também vir a morrer, haja vista que o corpo a ser sacrificado era o dela de origem. A pergunta implícita que motivou a hesitação de Kinnara talvez possa ser expressa da seguinte maneira: será que sua alma, ainda que habitando um corpo masculino, manteria algum vínculo com o corpo feminino no qual crescera?
Já completamente subjugado pelo dilema, o novo rei resolve consultar os sábios da academia; não diretamente, mas por alusão. A consulta acontece primeiro aos acadêmicos reunidos, com exceção de seu presidente. Depois, com o próprio U-Tong. Por fim, os acadêmicos são entrevistados individualmente. O resultado é o mesmo: cada um deles considera uns aos outros tolos — camelos —, cuja única qualidade é a de possuírem bom coração e caráter íntegro.
Constatado o fracasso da consulta indireta, o rei resolve decidir por si mesmo, mas é surpreendido pela notícia de que Kinnara, no corpo dele, está grávida de um filho seu. Daí o abandono do plano de assassinato e, posteriormente, o consentimento em levar a cabo a troca de corpos, que ambos executam a contragosto.
A imagem que prenuncia o final do conto é a de um barco com todos os membros da academia a cantar o hino: "Glória a nós...". O assombro de Kinnara diante dessa cena retrata a posição fundamental de todo sujeito diante do enigma da diferença sexual.
Entendemos que o Assombro de Kinnara resulta de uma impossibilidade lógica, na medida que as tentativas de resolução de seu dilema orientavam-se pela premissa de que tudo no sexual é passível de ser apreendido pelo simbólico. O apelo aos acadêmicos e as tentativas de sistematizar suas respostas denotam um esforço de fazer consistir as identidades sexuais, em especial a sua. Não é por acaso que justamente a referência ao feminino veio a entravar o seu plano de se perpetuar no corpo de Kalaphangko. Por não querer saber da falta e por elidi-la no seu cálculo, seus esforços mentais esbarram em um obstáculo intransponível.
Daí o caminho de Lacan que, por meio de uma lógica modal não consistente, levando em consideração a falta, desloca para a psicanálise a discussão em torno das identidades sexuais do campo do gênero e do sexo para o âmbito que denomina sexuação. A partir daí, como assinala Quinet (2013), não são os determinantes genéticos, anatômicos, os traços oriundos de processos identificatórios, as práticas sexuais adotadas ou as características do parceiro que caracterizam para a psicanálise o elemento determinante na constituição das identidades sexuais.
Para concluir: os estudos de gênero e as novas identidades sexuais
Temos então que Lacan perfila-se ao mesmo tempo com os defensores das doutrinas da alma neutra e sexual na medida que reconhece no gozo o móbil da sexuação. Isto é, ele não subscreve a tese enunciada por Freud (FREUD, 1925/1997) de que a anatomia é o destino, o que, no nosso entendimento, talvez seja a posição dos defensores da doutrina da alma neutra. Por outro lado, reconhece que há uma materialidade corporal nas modulações do gozo que torna a sexuação uma escolha subjetiva. Trata-se de um processo referido ao corpo, mas não redutível à anatomia, fisiologia ou genética.
Por isso, a psicanálise não está inserida no grupo dos denominados estudos de gênero, que tendem a privilegiar os processos identificatórios coletivos — simbólicos e imaginários — na constituição das identidades sexuais. Nesse campo, desenvolve-se uma crítica — muitas vezes pertinente — que denuncia na cultura a presença de uma normatividade heterossexual e de uma tendência falocêntrica/machista. Dentro do escopo desse projeto, cultiva-se o esforço de ultrapassar o que se chama binarismo sexual (dualismo homem/mulher) pela investigação e valorização de novas identidades de gênero (transgêneros, transexuais e travestis). É por essa via que Ribeiro (2008) empreende sua leitura do conto que comentamos.
Para a psicanálise, como assinala Pollo (2012), a referência ao falo não implica necessariamente a adoção de uma ideologia machista. O falo, para a psicanálise, não é sinônimo de pênis. Ele é um operador lógico que permite inscrever simbolicamente a diferença sexual no psiquismo. Depreendemos daí que tanto homens como mulheres estão referidos ao falo. Este, ao contrário do que se pensa no senso comum, não dá consistência ao masculino. É a sua ausência que interessa à constituição psíquica. Esse é o argumento de onde a expressão complexo de castração encontra sua justificação.
Diferentemente da conclusão de Freud no texto de 1925, mas em conformidade com suas premissas, Lacan propõe a fórmula da sexuação como um modelo lógico que visa matematizar dois diferentes modos de tomada de posição a partir da baliza da função fálica. Nessa fórmula, a posição masculina está integralmente contida no lado fálico; enquanto a feminina encontra-se parcialmente contida nessa função como não toda. Daí que algo do gozo feminino não é capturado pela referência fálica.
Como consequência dessas premissas, para o psicanalista torna-se mais importante dialetizar o binarismo sexual, decompondo-o em partes mais elementares para em seguida situar as múltiplas e singulares possibilidades de combinações existentes.
Referências
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Endereço para correspondência
Fabiano Chagas Rabêlo
Rua Marc Jacob, 484, Apt. 203
CEP 64202510 - Parnaíba — PI
Tel.: (86) 9809-1277 e (85) 8718-7005
E-mail: fabrabelo@hotmail.com
Recebido: 06/03/2015
Aprovado: 21/04/2015
* Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano — EPFCL, Professor Assistente do Curso de Psicologia da Universidade Federal do Piauí — Campus Parnaíba.