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Stylus (Rio de Janeiro)
Print version ISSN 1676-157X
Stylus (Rio J.) no.30 Rio de Janeiro June 2015
DIREÇÃO DO TRATAMENTO
Quando o amor devasta
When love devastates
Vera Pollo*
Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, da Internacional dos Fóruns (IF-EPFCL)
Colegiado de Formações Clínicas do Campo Lacaniano-RJ
Programa de Pós-graduação stricto sensu em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida — Rio de Janeiro
Pontifícia Universidade Católica - RJ
Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente (NESA/HUPE/UERJ)
RESUMO
O presente texto discorre sobre o amor e os fenômenos de devastação, indagando a assertiva de Lacan de que "o amor faz suplência à relação sexual". Divide-se em três grandes partes e uma pequena conclusão. Na primeira, faz-se um recorrido nas obras de Freud e de Lacan, mostrando que o primeiro aborda o tema particularmente ao escrever sobre a relação mãe-filha e a sexualidade feminina, enquanto o segundo refere-se também à devastação que o homem pode causar a uma mulher. Na segunda parte, o texto aborda o caso Pedro, um sujeito que sofre de "enamoródio". Na terceira parte, a tragédia Fedra, de Racine, é tratada como um caso clínico. A parte final, além de mencionar os pontos em comum entre os dois casos, aponta mais algumas diferenças entre o amor e o ato sexual.
Palavras-chave: Suplência, Devastação, Relação sexual, Enamoródio.
ABSTRACT
This paper focuses on love and on the phenomena of devastation, questioning Lacan's assertion when he says that "love makes up for the lack of sexual relation". It is divided into three parts and a small conclusion. The first part resorts to works by Freud and Lacan, showing that the former deals with the theme concentrating particularly on the mother-daughter relationship and female sexuality, while the latter refers as well to the devastation a man cause a woman. In the second part, the paper addresses the case of Peter, a subject who suffers from hatredlove. In the third part, Racine's tragedy, Phaedra, is treated as a clinical case. The final part then, besides mentioning the common points between both cases, it points to a few more differences between love and the sexual act.
Keywords: Substitutive, Devastation, Sex, Hatredlove.
[...] o amor, se está aí uma paixão que pode ser ignorância do desejo [...] mais de perto, veem-se as devastações. (LACAN, 1972)
"O que vem em suplência à relação sexual, é precisamente o amor", profere Lacan em uma lição do Seminário Mais, ainda (1972-73/1985, p. 62). Mas, como a clínica e a literatura não se cansam de ensinar, o amor não vem sem o ódio, e dizer 'suplência' não é o mesmo que dizer 'paz'. Longe disso! Derivado do latim supplere, o verbo suprir significa completar, substituir ou remediar. Constatou-se, desde sempre, que o ato sexual não é suficiente para manter seus parceiros juntos. Freud (1913 [1912-13]/1976) percebeu que o tabu à genitália feminina estende-se frequentemente ao corpo inteiro da mulher, e Lacan (1970/2003, p. 410) insistiu que "na psicanálise (porque também no inconsciente), o homem nada sabe da mulher, nem a mulher do homem", isto porque "o sexual se torna paixão do significante". O falo se inscreve no inconsciente como significante único do gozo sexual, e os sujeitos se dividem entre dois modos de gozar com o falo: um modo dito "todo fálico", outro dito "não-todo fálico". Falta, portanto, ao ser falante aquele que seria dito um gozo cru e nu do corpo do parceiro. Em contrapartida, no amor, pode-se vestir o parceiro com a imagem de si.
No intuito de discorrermos sobre as ocasiões em que o amor devasta, começaremos por um recorrido sobre o surgimento do tema da devastação no seio da teoria psicanalítica. Traremos, em seguida, algumas passagens da análise de Pedro, um sujeito que sofre de hainamoration1, enamoródio. E, por último, pediremos auxílio a Racine, autor de Fedra, uma tragédia do ciúme.
Sob a pena de Freud e Lacan
O tema da devastação surge sob a pena de Freud e Lacan no momento em que eles se dispõem a elaborar a sexualidade feminina e a relação da menina com a mãe. Em Freud (1931/1969, p. 259), a devastação mãe-filha — ou a "catástrofe", conforme a tradução em português do termo por ele usado — surge associada ao assim chamado "período pré-edipiano da menina", descrito como a fase de uma ligação intensa, apaixonada e exclusiva com a mãe. Tal ligação pode se manifestar mais tarde como o vínculo igualmente intenso e apaixonado que une uma mulher a seu próprio pai. Segundo Freud, acontece nesses casos uma transferência, "no sentido analítico do termo", prossegue Lacan (1958/1998, p. 693).
No texto sobre "Sexualidade feminina", Freud (1931) se refere ao dano que as tendências sexuais da menina podem sofrer ao longo do processo de transferência para o objeto paterno: a cessação de toda a vida sexual da futura mulher ou a ênfase desafiadora em sua fantasia de masculinidade. Além disso, ele declara que a relação mãe-filha pode vir a ser o germe de muitos delírios paranoicos, em especial, dos delírios de morte por envenenamento.
Na conferência O aturdito, Lacan (1972) parece distanciar-se da observação de Freud segundo a qual as mulheres sentem-se prematuramente castradas e aceitam tal fato prontamente. Isto porque a menina, diferentemente do menino, não hesita ante a visão da diferença sexual, isto é, não a desmente, o que "faz da mulher peixe na água pela castração ser nela ponto de partida" (1972/2003, p. 465). Por outro lado, Lacan também reitera e desdobra o comentário freudiano sobre a quase inevitável hostilidade mãe-filha, por ter observado "a realidade de devastação que constitui, na mulher, em sua maioria, a relação com a mãe, de quem, como mulher, ela realmente parece esperar mais substância que do pai..." (Idem, ibid.).
Debruçamo-nos com frequência sobre este parágrafo da conferência de Lacan, primeiramente pelo fato de que, na clínica psicanalítica com mulheres, é comum nos depararmos com o fenômeno da devastação atravessando gerações. O que se poderia escrever da seguinte maneira: devastação mãe-filha-mãe... ou devastação mãe-filha-neta, a primeira grafia acentuando o caráter de reciprocidade da devastação, a segunda, sua transmissão geracional.
Acrescenta-se a isso o fato de tratar-se de uma questão que tangencia a sexualidade feminina, com tudo que ela ainda pode ter de enigmático, malgrado toda a contribuição de Lacan e de seus seguidores. Outro ponto instigante diz respeito às palavras com que Lacan encerra o referido parágrafo. Diz-nos ele: "[...] o que não combina com o pai, como segundo".
Como entender as palavras de Lacan? Conhecemos sua concordância com o que Freud denominou de uma transferência do objeto materno para o objeto paterno. Parece-nos, portanto, que sua ressalva a respeito do pai, nessa situação específica, pode ser lida como uma indicação de que a intensidade da devastação — a maior ou menor gravidade de suas consequências — está na dependência da presença ou ausência da função paterna de mediação, a qual estabelece uma distância entre o ideal do eu e o papel assumido pelo desejo da mãe (LACAN, 1969/2003, p. 369).
Como quer que seja, conduzido por sua experiência clínica, ele chegou a dizer, em 17 de fevereiro de 1976, que "se uma mulher é um sinthoma para todo homem [...] posto que o sinthoma se caracteriza justamente pela não equivalência. Pode-se dizer que o homem é para uma mulher tudo o que quiserem, a saber, uma aflição pior que um sinthoma [...] Trata-se mesmo de uma devastação" (LACAN, 1976/2007, p. 98). Vê-se, então, que Lacan não reservou o termo para falar exclusivamente da relação mãe-filha. Aliás, um de seus primeiros empregos foi para comentar os efeitos devastadores do pai que, em vez de funcionar como representante da lei, "realmente tem a função de legislador ou dela se prevalece" (LACAN, 1958/1998, p. 586).
Gostaríamos nesse ponto de nos remeter a Freud (1921/2006, p. 143), em seu lembrete de que "o apaixonado é humilde", o que não impede que, "na cegueira do amor, a falta de piedade possa ser levada ao diapasão do crime". Fantástica lucidez! Certamente a mesma que o guiou, ao afirmar que a fantasia de abuso em que o agente é a mãe, diferentemente da fantasia com o pai, não se reduz a devaneio. Ela toca no real. Aquela que é o primeiro objeto de amor de qualquer criança, é também quem a introduz no masoquismo erógeno2 e no trauma de lalíngua3.
Clareza inebriante! A mesma ainda que o levou a ressaltar, quase no fim de sua obra, que a relação mãe-filha, de longa duração, é prenhe de catástrofes, estas, como já dissemos, que se estendem da fuga diante do gozo sexual e do ódio aos homens aos delírios de ciúmes, de perseguição e de envenenamento.
Retornemos primeiramente à devastação mãe-filha. Talvez não seja mesmo novidade lembrar quão devastador pode vir a ser o assim chamado "amor materno", posto não haver instinto que o freie. Como bem assinala Badinter (2005, pp. 73-75), não só não existe instinto maternal, como, do lado feminino, o assunto violência é tabu "[...] porque põe em perigo a imagem que as mulheres têm delas mesmas".
Badinter também chama a atenção para o fato de que, somente em 1997, por meio da publicação de um livro coletivo, se tomou conhecimento da participação das mulheres no genocídio. Transformadas que foram, na cultura ocidental, em símbolos de ternura, amor e paz, no que se escreveu e ainda se escreve sobre a prática nazista durante a Segunda Grande Guerra, omite-se sistematicamente, com raras exceções, a existência de mulheres que "serviram diretamente a um sistema de opressão e morte [...] e trabalharam no funcionamento infalível do sistema de extermínio" (p. 79).
Ora, a psicanálise, sobretudo a partir do ensino de Lacan, não se furtou a nos lembrar a existência de Madeleines e Medeias, cujos gestos assassinos são indício de um gozo desprovido da barreira fálica e inteiramente êxtimo à sublimação do amor. Madeleine Gide assassinou letras, se assim pudermos nos expressar, queimando as cartas de amor, o que ela mesma possuía "de mais precioso". Sentira-se intoleravelmente traída por aquele que as escrevera, para quem, da mesma forma, "talvez nunca tenha havido correspondência mais bela" (GIDE apud LACAN, 1998, p. 773).
Medeia, personagem da tragédia homônima de Eurípedes, representa a esposa repudiada que assassina os próprios filhos para atingir o âmago do ser do homem amado. "Pobre Jasão", diz Lacan (1958/1998, p. 773), "que, tendo partido para a conquista do tosão dourado da felicidade, não reconhece Medeia!". Não a reconhece, isto é, não sabe de que é capaz, ao se sentir traída, "uma verdadeira mulher em sua inteireza de mulher" (Idem, p. 772). E Freud, vale a pena lembrar, tampouco se esqueceu de Medusa — uma das três górgonas — cujos filhos não a podem ver e nem podem ser vistos por ela. Visão do terror!
Lacan (1972) chegou a dizer que o que existe de mais sério no amor são as cartas de almor4, as "ridículas cartas de amor", conforme as palavras do poeta Fernando Pessoa. Isso porque, há uma incomensurável distância entre a poesia e o ato. Feita de letras, a poesia faz jorrar um sentido até então inexistente, ela é imaginariamente simbólica, ou seja, o simbólico incluído no imaginário. Em contrapartida, "o ato de amor, é a perversão polimorfa do macho, isto entre os seres falantes. Não há nada de mais seguro, de mais coerente, de mais estrito quanto ao discurso freudiano" (LACAN, 1972-73/1985, p. 98). Em outros termos, se um homem e uma mulher chegam, como se diz, "às vias de fato" — ou seja, a ocuparem uma cama de casal de pleno uso — é porque ela se prestou a encarnar o objeto a da fantasia dele, e é com este objeto — seios, fezes, voz, olhar, pedaço qualquer de carne... — e não com ela, afinal, que ele faz amor.
Em seu retorno a Sainte Anne, final de 1971 e início de 1972, Lacan (2011, p. 32) referiu-se explicitamente ao progresso da chamada ciência biológica no que tange à reprodução sexuada. Progresso, diz ele, que está "levando muito longe uma porção de coisinhas que se situam no nível do gameta, no nível do gene [...] e que parecem elucidar algo que tem a ver com o fato de que a reprodução, pelo menos numa certa zona da vida, é sexuada. Só que isso não tem nada a ver com o que é a relação sexual, na medida em que está claríssimo que existe no ser falante, em torno dessa relação como fundamentada no gozo, um leque absolutamente admirável em sua extensão". Vejamos, então, o que acontece a Pedro.
O enamoródio de Pedro
Um homem de aproximadamente trinta anos vem buscar análise. Profissional bem qualificado em um ramo das ciências exatas, ele está casado há alguns anos e vem analisar-se logo após um ato de autoagressão em que cortou o seu próprio braço com uma faca de cozinha. Pedro perdeu muito sangue, levou vários pontos e ficou com uma grande cicatriz. Segundo ele, não havia escolha: ou fazia o que fez ou teria que bater em sua mulher. Em análise, retorna algumas vezes a seu ato de autoagressão, dizendo que ficou surpreso com a reação dela, que, naquele momento, chorou muito, disse que o amava e pediu que não morresse.
Em seu percurso de dois anos e meio de análise, Pedro fala quase exclusivamente da mulher. Quando se conheceram, ela ainda estava casada com outro homem, de quem se separou para vir viver com ele. No início, viveram um autêntico idílio sexual: transavam praticamente todos os dias e várias vezes por dia. No atual momento, ele oscila entre a ejaculação precoce e a impotência e busca descobrir a razão do seu sintoma. Ela o agride verbalmente denegrindo-o de forma cruel: "você não é homem! Não enfrenta seu pai! Não me faz gozar!". Compara-o com o ex-marido, lamentando-se da troca. Ocasionalmente, ela o manda sair de casa e Pedro obedece, passando a noite em um hostel. Porém, tampouco aceita que ele viaje a trabalho, ameaçando-o de "ter que dar para um outro".
Pedro é oriundo de uma pequena cidade do interior onde ainda reside a maior parte dos seus familiares, que trabalham no comércio. Isto significa que, em termos de estudo, ele foi bem mais longe do que o pai, a mãe e os irmãos. Ele teve um longo relacionamento anterior com uma moça da sua cidade, com quem tinha uma vida sexual satisfatória, mas não chegaram a morar juntos. No início do seu relacionamento com a atual mulher, ele interrompeu um pós-doutorado. Este é um dos motivos que surgem eventualmente nas falas depreciativas de sua mulher.
Na reconstrução de sua história de vida, Pedro refere à presença de um pai violento que sai de casa quando seus três filhos estão entrando na adolescência. Sua irmã, um ano mais velha, tinha então quinze anos, ele, catorze, e o irmão mais novo, apenas dez. Sua mãe abre um surto psicótico, recebe o diagnóstico de esquizofrênica, e inicia uma sequência de períodos em hospital psiquiátrico. Entre as inúmeras acusações que Pedro se faz está a de não ter obrigado seu pai a dar uma pensão decente para sua mãe.
Ocasionalmente ele indaga qual seria o seu próprio diagnóstico. Recorda o período da adolescência em que teve dúvidas sobre sua opção sexual, porque deixava que um primo mais velho o masturbasse. Recorda também o episódio de paralisia facial em que recebeu o diagnóstico de histeria. Não há dúvida de que a questão que ele formula a si próprio é: "Sou ou não suficientemente homem para sair desse casamento?".
Em sua busca por respostas, Pedro imagina que jamais conseguiria viver com outra mulher e tampouco suportaria viver sozinho. Por vezes diz: "É que eu ainda a amo!". Em certo momento, enunciou: "Há um resto de brilho no olhar dela. Talvez eu queira ficar como forma de me vingar, talvez minha impotência sexual seja uma vingança... talvez eu fique até que desapareça nela este resto de brilho no olhar". Mais recentemente, formulou: "Ela tem umas rupturas de vez em quando; para subitamente de me agredir e me pede para não morrer, como naquele dia em que 'cravei' (sic) a faca no meu braço. Será que ela ainda está comigo porque isso significa que, nesses momentos, apesar de tudo, ela percebe que me ama? Ou será que ela ainda está comigo somente porque ainda não arranjou outro homem? Acho que é a segunda hipótese".
Mas não se pode esquecer que Pedro, devastado, sobretudo pelos ciúmes que o invadem e o assolam, em algumas ocasiões, descreve com frequência uma mulher igualmente devastada. Acusa-o de estar sempre despertando nela o que há de pior, agressividade e depressão. Recorre a medicamentos para dormir e apresenta crises de choro convulsivo. Tudo parece indicar que a devastação é, de fato, um fenômeno de mão dupla. E não apenas no caso da devastação mãe-filha. Sigamos, agora, os passos do poeta e da literatura.
Fedra e Hipólito: quando o amor devasta
"Amamos Fedra por seus momentos de humildade. Ela não se protege;" — escreve François Mauriac5 — "ela conhece seu opróbio e o expõe aos próprios pés de Hipólito. O excesso da sua miséria nos aparece, sobretudo, no momento em que, ao descrever seu triste corpo que enlanguesceu e secou, nas lágrimas e nas lavas, ela não pode se impedir de gritar ao ser que é a sua vida (nada mais dilacerante jamais saiu de uma boca humana)":
Seria, p'ra provar-t'o, um teu olhar bastante
Se me pudessem ver teus olhos um instante.6
À primeira vista, Fedra é uma tragédia de amor como tantas outras. Teseu ama Fedra que ama Hipólito que ama Arícia... quem não conhece esse refrão? Além disso, de acordo com os historiadores, o ciúme já era inclusive um tema gasto, quando Racine abordou-o no século XVII, inspirando-se em Eurípedes e Sêneca. Fedra, todavia, é mais que uma tragédia do ciúme. "Os Deuses e os Monstros se misturam ao jogo dos humanos [...] a luta que se trava em seu coração não é somente a luta entre o Bem e o Mal, entre não sei que nostalgia da pureza e o pecado original, é a luta de duas heranças, dos deuses da luz e dos animais mitológicos..." (BASTIDE, 1949, p. IX).
Não-toda culpada e não-toda inocente, diremos nós, Fedra é uma mulher. A ideia do crime é vista por ela inicialmente com tanto horror quanto o próprio crime. É uma mulher madura, cujo esposo, Teseu, filho de Egeu, rei de Atenas, está há longo tempo afastado do lar. Para alguns, já estaria morto; para outros, estaria bem vivo, porém entregue ao gozo de uma nova amante. Fedra, então, está só. Mas não está sozinha. Com ela habitam, entre outros, Hipólito, seu jovem enteado, filho de Teseu e da rainha das Amazonas, Oenone, sua própria ama e confidente, e Arícia, princesa do sangue real de Atenas. Fedra esconde enquanto pode o seu amor por Hipólito e só pensa em morrer.
Hipólito, em contrapartida, vivia um momento de autoacusações e sofria, tanto quanto Fedra, de um amor não declarado. Ele amava a jovem Arícia com um amor igualmente proibido, pois amá-la era trair o próprio pai, para quem ela era de uma família inimiga. Esta, como os demais, o considerava indiferente às mulheres e ao amor. Contudo, ao ser interrogado por seu aio de forma direta e explícita: "Amais, senhor?", Hipólito lhe responde: "... Tu que na alma me lês desde que ao mundo vim [...] poderás exigir-me o indigno desmentido?" ( p. 6).
Quando se divulga a notícia da morte de Teseu, Hipólito crê na possibilidade de unir-se a Arícia e, inclusive, de devolver o cetro à sua família, pois isto já não representaria uma traição filial. Então, ele se declara:
[...] Ei-lo, enfim, dependente, este peito arrogante,
Há meses que, abatido, em desespero ando
Trazendo um dardo em mim que me está lacerando
[...] Talvez a narração de uma paixão tão rude
Faça, enquanto escutais, corar vossa virtude;
Que tosco coração se oferece a vós!
Que escravo singular para tão belos nós! (pp. 28-29).
Assim como fez o jovem enteado, convencida de que Teseu não voltará e instigada pela ama, a quem já havia confessado estar sofrendo dos "fatais furores" do amor, Fedra decide declarar-se a Hipólito. Este se mostra surpreso e indignado e dela ouve ainda:
Ah, cruel! de certo que me ouviste!
[...] Amo! não julgues, não, que no instante em que te amo;
Por inocente me haja e ignore que me infamo; (p. 35).
Mas a trama trágica, que em nada cede, traz Teseu de volta. Temendo que Hipólito fosse queixar-se ao pai, Oenone encarrega-se de incriminá-lo junto a este, sugerindo que o amor incestuoso partira dele e não de Fedra, que inicialmente se mantém calada.
Ora, do ato que a difama mais do que a infama, a sequência confirma tratar-se realmente de um amor que é, segundo as palavras do texto, um "ardor funesto". Duas mortes se sucederão de imediato: morrem a velha ama e o jovem Hipólito, vitimado pelo pai que não deu crédito às suas palavras. Somente então Fedra "rompe a reticência" — é novamente o texto que o diz — e declara em viva voz:
Cada instante é precioso; ouvi-me, pois, Teseu:
Fui eu que ousei poluir este filho exemplar,
Tão casto quão leal, com incestuoso olhar.
A suplência do amor
Nesse ponto nos parece importante acrescentar mais algumas palavras à questão de que partimos. De que recursos dispõe o amor para substituir a relação sexual? O sofrimento de Pedro nos remeteu à tragédia de Racine, assinalando, a nosso ver, o caráter atemporal do amor e, portanto, sua procedência do inconsciente.
Pedro, se quisesse, poderia enunciar uma frase bem em voga em nossos dias. "Eu sou Hipólito", diria ele, no sentido de alguém que "se envergonha de sua inatividade" e que acredita "dever certa piedade" ao pranto da mulher que "em tudo fomentou seu ódio e inimizade". De forma semelhante à do personagem trágico, o jovem sujeito teme "avistar-se a si próprio" e pensa em fugir. Denegrido e devastado, desprovido de importante parcela do gozo fálico — gozo que, no ser falante, substitui o gozo sexual — um amigo lhe poderia dizer as palavras que Hipólito escutou do aio: "Senhor, de onde vos vêm essas marcas de dor? Vejo-vos sem espada, atônito, sem cor" (2005, p. 37).
Se os determinantes do amor parecem resistir ao tempo, mantendo as cores trágicas da traição e do ciúme, todavia não se pode dizer o mesmo do que tem a ver com as escolhas sexuadas. Como observou Lacan (1972-73/1985, p. 98), já está bem próximo o dia em que a reprodução nada mais terá de sexuada e dispensará por completo "o ato de amor [que] é a perversão polimorfa do macho". E o amor sublimação, ato poético? Permanecerá tão tragicômico quanto antes?
Referências
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Racine. Fedra, Ester, Atália. Tradução de Jenny Klabin Segall. São Paulo: Martins Fontes, 4ª edição, 2005. [ Links ]
Endereço para correspondência
E-mail: verapollo8@gmail.com
Recebido: 21/02/2015
Aprovado: 21/04/2015
* Psicanalista. Doutora e Mestre em Psicologia pela PUC-RJ; D.E.A. pela Universidade de Paris VIII. Analista membro (AME) da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, da Internacional dos Fóruns (IF-EPFCL). Membro do Colegiado de Formações Clínicas do Campo Lacaniano-RJ. Professora Titular do Programa de Pós-graduação stricto sensu em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida — Rio de Janeiro e da Especialização em Psicologia Clínica da PUC-RJ. Exerce a clínica no Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente (NESA/HUPE/UERJ) e em consultório. É co-organizadora de Comunidade analítica de Escola: a opção de Lacan (Marca d'Água Livraria e Editora, 1999); autora de Mulheres histéricas (Contra Capa Livraria, 2003) e de O medo que temos do corpo (Editora 7Letras, 2012).
1 Termo forjado por Lacan mediante a condensação dos vocábulos haine, ódio, e enamoration, enamoração. Ele o emprega em duas ocasiões: a primeira, em 1973, na VIII lição de O Seminário, livro 20: Mais ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985, p. 122; e a segunda, na lição de 21/01/1975 de O Seminário, livro 22: R.S.I.
2 Tal como Freud o propõe em seu texto de 1924, "O problema econômico do masoquismo". Nele, Freud identifica três modalidades: o masoquismo erógeno, o masoquismo feminino, o masoquismo moral. O primeiro, diz ele, corresponde ao "prazer no sofrimento e jaz no fundo das outras duas formas".
3 Tradução de lalangue: outro termo forjado por Lacan mediante a junção do artigo definido 'la', a, com o substantivo 'langue', língua. Em 1974, Lacan define lalíngua como "o depósito, o aluvião, a petrificação que se marca a partir do manejo por um grupo de sua experiência do inconsciente. Lalíngua não é para ser dita viva porque está em uso. É, antes mesmo, a morte do signo que ela veicula." Cadernos Lacan, volume 2, p. 53.
4 No original em francês: Lettres d'âmour, condensando os vocábulos âme, alma, e amour, amor.
5 Prefácio à edição francesa da Presses Universitaires de France, PUF.
6 Racine (1639-1699) – Fedra, Ester, Atália. Tradução de Jenny Klabin Segall – 4ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2005. (Biblioteca Martins Fontes) – Cena V, p. 35.