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Stylus (Rio de Janeiro)

Print version ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.30 Rio de Janeiro June 2015

 

ESPAÇO ESCOLA

 

A Escola de psicanálise e sua garantia

 

The Psychoanalysis School and its guarantee

 

 

Andréa Hortélio Fernandes*

Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano - Brasil
Fórum Salvador
Campo Psicanalítico de Salvador
Instituto de Psicologia da Universidade Federal da Bahia
Pesquisadora do CNPq

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo discute o tema da Escola e sua Garantia a partir da experiência da autora durante dois anos na Comissão Local Epistêmica de Acolhimento e Garantia (CLEAG) da EPFCL-Brasil. A experiência é balizada e discutida por meio da retomada de alguns textos fundadores de Jacques Lacan com vistas a atualizar e problematizar a questão da garantia na Escola.

Palavras-chave: Escola, Garantia, Passe, Cartel, Psicanálise.


ABSTRACT

The article discusses the issue of the School and its Guarantee from the experience of the author for two years in the Local Epistemic Committee for Hosting and Guarantee (CLEAG) of SPFLF-Brazil. The experience is mediated and discussed through the resumption of some basic texts by Jacques Lacan with the objective of updating and problematizing the issue of guarantee within the School.

Keywords: School, Guarantee, Pass, Cartel, Psychoanalysis.


 

 

O conceito de escola serve de abertura à minha exposição. Por escola entendemos ser o lugar onde, ainda crianças, somos encaminhados para aprender. Resumidamente, muitos de nós ouvimos que iríamos à escola para aprender a ler. Na escola acontece o ensino de alunos sob a direção de professores e, em grande parte dos países, a educação escolar é obrigatória e em alguns, gratuita. Por que Lacan escolhe manter o termo escola para a Escola de Psicanálise? Quantos de nós, ao longo da nossa formação, nos indagamos o porquê de algumas instituições de psicanálise se denominarem seja por Colégio ou Escola? A partir destes questionamentos iniciais, pretendo falar da Escola após os dois anos de experiência na CLEAG.

O filme "Uma lição de vida", de Justin Chadwick, veio à minha lembrança quando me vi impelida a falar da Escola. O filme conta a história de um homem de oitenta e quatro anos que vai a uma escola primária para ser alfabetizado, pois no seu país, Quênia, somente, em 2002, o governo institui o programa de educação gratuita para todos. As escolas primárias eram as únicas que funcionavam bem e ele precisava ler uma carta que o governo tinha lhe endereçado. Maruge, personagem principal, não cede do seu desejo de saber e enfrenta todos os impedimentos para ter o direito de frequentar a escola, mesmo sendo-lhe dito que não era mais criança. A atemporalidade do seu desejo torna-se decisiva na sua luta para que seus direitos fossem garantidos.

O que Lacan nos delegou sobre sua escola? Temos alguns textos fundadores, eles estão no Catálogo da EPFCL. O texto "Prefácio à Edição Inglesa do Seminário 11" (Lacan, 1976/2003) foi incorporado aos textos fundadores na Assembleia em Paris, em 2014. De acordo com os textos fundadores do catálogo da IF/EPFCL, os Fóruns do Campo Lacaniano não são Escolas, "mas campo". "Não outorgam nenhuma garantia analítica" (Carta da IF e seu Anexo, 2008, p. 252). No site da EPFCL está destacado ainda outro aspecto importante sobre a garantia na Escola:

Outorga uma garantia cujos títulos foram definidos por Lacan. O título de Analista membro da Escola (AME) é outorgado — a partir de propostas das Comissões Locais, no caso do Brasil pela CLEAG e por uma Comissão de Habilitação e Internacional de Garantia (GIG). O título de Analista da Escola (AE) é outorgado pelos Cartéis do Passe, compostos dentro do Colegiado Internacional da Garantia (CIG) <http://www.campolacaniano.com.br/escola.php>.

Entre as funções da CLEAG está o acolhimento das demandas de entrada na escola. Estas demandas vislumbram a diferença entre os Fóruns do Campo Lacaniano e a Escola. Os Fóruns "acolhem todos aqueles que de um modo ou outro se sentem concernidos pela psicanálise orientada pelo ensino de Lacan e estão interessados no estudo da psicanálise, suas conexões ou sua aplicação fora do dispositivo analítico" <http://www.campolacaniano.com.br/foruns.php>. A Escola "tem por objetivo transmitir a experiência original que constitui a psicanálise, elaborar um saber sobre isso, permitir a formação de analistas, fundamentar sua qualificação e garanti-la" <http://www.campolacaniano.com.br/escola.php>.

Logo, a demanda de entrada na Escola é balizada pela "participação efetiva nas atividades da Escola e na experiência de cartel" (Os princípios diretivos para uma Escola orientada pelo ensino de Sigmund Freud e Jacques Lacan, 2008, p. 264). A experiência de cartel demarca o distintivo da formação do analista que se dá desde que o próprio sujeito possa decantar algo daquilo que ele apreende a partir e sobre a psicanálise e é isso que a experiência do cartel possibilita. Neste sentido, a experiência do cartel revela que a transmissão da psicanálise não é tributária do discurso universitário, e isso é demarcado desde o acolhimento das demandas de entrada na Escola. Logo, a participação num cartel está para além de uma habilitação ou um crédito a ser cumprido para ser membro de Escola. A participação no cartel deve franquear ao cartelizante uma nova relação com o saber da psicanálise, e isso pode ser vislumbrado em algumas demandas de entrada na Escola.

Na "Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola" consta que "o psicanalista só se autoriza de si mesmo", o que "não impede que a Escola garanta que um analista depende de sua formação" (LACAN, 1967/2003, p. 248). Isto porque o real em jogo na formação do analista "provoca o seu próprio desconhecimento, ou até produz" a negação sistemática desse real (Ibid., p. 249). O tratamento dado ao real está no cerne da experiência da psicanálise e, portanto, da Escola. O gradus está implícito numa escola de psicanálise devido ao fato de o analista poder querer que a Escola garanta a sua formação.

O gradus está concebido em: Analista Praticante (AP), Analista Membro da Escola (AME) e Analista da Escola (AE). O AME, analista membro da Escola, torna-se responsável pelo progresso da Escola, "pelo fato de que a Escola reconhece como psicanalista que comprovou sua capacidade" (Ibid.), esse analista é indicado por outros AMEs visto que ele colabora na transmissão da psicanálise, tem analisandos que poderão ser futuros passadores e tem supervisionados. A lógica presente na formação do analista no que tange ao gradus está associada à concepção de que "a verdadeira análise original só pode ser a segunda, por constituir a repetição que da primeira faz um ato, pois é ela que introduz o a posteriori próprio do tempo lógico, que se marca pelo fato de que o psicanalisante passou a psicanalista" (Ibid., p. 258). Isso aponta para o fato de que Freud não fez autoanálise. Ele abriu o caminho, do contrário, o analista não contaria socialmente. Freud nomeia o ofício de psicanalisar de psicanálise. "Porque nomear alguém como analista é algo que ninguém pode fazer, e Freud não nomeou nenhum" (LACAN, 1976/2003 , op. cit., p. 568).

O analista praticante (AP) é registrado na Escola, "no começo, nas mesmas condições em que nela se inscrevem o médico, o etnólogo e tutti quanti" (LACAN, 1967/2003, op. cit., p. 248) que exercem, praticam a psicanálise. Tal afirmação de Lacan mostra que, pela garantia da formação do analista, há uma aposta que vai mais além do AP, "tutti quanti", ou seja, todo aquele que tiver uma "participação efetiva nas atividades da Escola e na experiência de cartel" (Os princípios diretivos para uma Escola orientada pelo ensino de Sigmund Freud e Jacques Lacan, 2008, p. 264) poderá ser acolhido na Escola; mas eles se inscrevem nas condições que nela se inscrevem o médico, o engenheiro etc.; a garantia da formação do analista pela Escola faz uma aposta num plus no gradus, plus decorrente da própria experiência da análise no sentido lato.

Já o Analista da Escola (AE) é aquele que "torna-se psicanalista da própria experiência" (Ibid.), e o passe seria "a verificação da historisterização da análise" (LACAN, 1976/2003, p. 569), visto que "o analista só se historisteriza por si mesmo, mesmo quando se faz confirmar por uma hierarquia" (Ibid., p. 568).

A hierarquia é inerente à experiência da análise e ao dispositivo do passe. Contudo, o dispositivo do passe conforme o site da EPFCL <http:/www.campolacaniano.com.br/escola.php> está construído sob o modelo do chiste:

O analisante, nomeado passante, que tem a convicção de ter chegado ao fim de sua questão de analisante, se oferece para dar testemunho de sua passagem a analista. Ele o faz diante de dois passadores. Os passadores, por sua vez, são designados por seus analistas (AME) que, em função do momento preciso dessas análises, [estarem próximos ao final de análise] os consideraram aptos a escutar aquilo que atesta a virada a analista no testemunho do passante (Ibid.).

A Escola deve poder "garantir a relação do analista com a formação que ela dispensa", mas é aí que, na "Proposição", Lacan aponta para a falha, "a falta de inventividade para exercer um ofício" (LACAN, 1967/2003, op. cit., p. 249). A manutenção de um regime semelhante ao de outras sociedades na Escola de Psicanálise para regular o gradus deve ser salientada em seus efeitos de mal-estar. De fato, nas diversas questões levantadas pelo passe cabe destacar os efeitos de mal-estar decorrentes da nomeação ou não-nomeação de AE. Apesar dos desafios inerentes ao passe e que dizem respeito à própria psicanálise, ou seja, o real em jogo na experiência psicanalítica, o passe ainda permanece como "proteção possível para evitar a extinção da experiência"? (Ibid., p. 250). Freud foi até o rochedo da castração deixando para os seus seguidores a elaboração acerca da análise finita.

Os pós-freudianos propuseram em grupos, dentro das suas escolas e escolhas de orientação teórica: kleiniana, winnicottiana, psicologia do ego, teorias acerca do final da análise. Por exemplo, Balint ao propor a identificação do psicanalisante com seu guia sustentou como palavra de ordem de algumas sociedades de psicanálise, a existência de uma parte sadia no analista com a qual o eu do analisante deveria fazer uma aliança. Daí surge a seguinte questão: de que serve a passagem do analisante pela experiência da análise?

A proposta do passe feita por Lacan destitui o lugar do analista didata que delibera sobre as análises, supervisões, enfim, sobre a formação do psicanalista em algumas sociedades. O novo gradus proposto pela Escola de Lacan tem função ativa e está integrado ao novo modelo de Escola no qual a experiência da análise é determinante, e é dela que vêm a ser extraídos os princípios diretivos da Escola. O acolhimento à entrada na Escola está diretamente articulado à participação nas atividades da Escola e à experiência de cartel, no que a experiência da análise pessoal é fundamental na relação do analisante com o saber da psicanálise. Portanto, o convite de que a demanda de entrada na Escola seja renovado num momento posterior visa impulsionar que o desejo de saber possa se presentificar apesar dos pontos de real que ele toca e que, por isso mesmo, precisam ainda ser elaborados na experiência de análise.

As indicações de AME devem ser feitas em sigilo por outros AMEs que atestem o trabalho de transmissão da psicanálise na Escola e das análises e supervisões conduzidas pelos analistas indicados para AME. Mais uma vez a experiência da análise deve fundamentar as indicações de AME.

Na Carta da IF-EPFCL e seu anexo (2008/2010) há a seguinte afirmação:

A Escola que se dedica a cultivar o discurso analítico. A experiência prova que esse discurso, sempre ameaçado pelo recalque, pela tendência a se perder e a se fundir no discurso comum, está à mercê das contingências do ato analítico. A Escola é feita para sustentar essa contingência (p. 252).

Logo, o passe vem relançar questões relativas ao discurso analítico e ao ato analítico. A psicanálise só tem chance de não se perder dos seus princípios se os analistas desafiarem o tom tranquilizador do inconsciente. Para tanto, Lacan promulga a seguir a política do sintoma no que ele mantém um sentido no real. Logo, o analista pode ter mais liberdade nas suas táticas, mas sua estratégia numa análise deve orientar-se por essa política no que ela leva em consideração o sujeito e seu sintoma.

Portanto, como já tinha dito, o tratamento dado ao real está no cerne da experiência da psicanálise e, consequentemente, da Escola. Em 1967, Lacan destaca que o analista pode querer que a Escola garanta a sua formação. Em 1976, ele chama atenção para o fato de o passe estar "à disposição daqueles que se arriscam a testemunhar da melhor maneira possível" (LACAN, 1976/2003) a historização da análise. Cabe, então, dizer que o passe depende de toda a Escola e não apenas da CLEAG, do CIG e dos cartéis do passe. O passe está na dependência direta do que, enquanto analistas, fazemos nas análises de nossos analisantes, como na dependência dos AMEs que indicamos. O passe está na dependência do ato analítico.

Uma ressalva feita por Lacan cabe ser retomada: "nomear alguém como analista é algo que ninguém pode fazer, e Freud não nomeou ninguém" (1976/2003, p. 568). A nomeação de AE é por dois anos, tempo em que esse AE é convidado a poder transmitir, em diferentes ocasiões, o que decantou da experiência do passe. Após esse período, e depois de não ser mais AE, ele inclusive poderá ser indicado ou não como AME e se submeterá ao encaminhamento devido. Entretanto, a nomeação de AE e AME parece carregar muita idealização que contradiz com o que pode se extrair de uma experiência de análise. Dos passes, atribui-se, em certa medida, algum reconhecimento, o que põe em xeque o uso do dispositivo pela Escola. É importante, então, que seja retomada a questão feita por Lacan aos italianos para a nossa própria Escola: ela tem condições de fornecer essa garantia?

Ao trabalhar na tradução do texto: "O passe contra o esquecimento", de Sol Aparício, para o Wunsch, número 14, muitas das questões já elencadas até aqui foram se atualizando. No texto, Sol Aparício diz que:

O procedimento do passe constitui, no seio da Escola, a condição da possibilidade de uma reflexão em comum que é pouco comum, diretamente fundada na experiência analítica, sobre o que está em jogo no discurso analítico, discurso do qual a Escola é responsável (<http://champlacanien.net/public/docu/4/wunsch14.pdf>, p. 17).

O passe foi relançado dentro da nossa escola. "A passagem a analista permanece uma questão1. É a questão – cuja resposta falta ainda", nos diz Sol Aparicio. Para ela:

O que importa é evitar o esquecimento da questão – sem ela, que é bastante importante, não existirá nada de hystoricização da análise. Qual analisante feliz dos benefícios de sua análise se deterá para hystoricizar? A experiência está prometida ao esquecimento pelo seu sucesso, pelos seus efeitos terapêuticos, que engendram um esquecimento, sobretudo, salubre, se não houvesse um desejo de saber para ir contra (Ibid., p. 20).

Logo, em prol de uma questão que persiste, Sol Aparício propõe o passe contra o esquecimento, e a nós parece ser útil continuar o debate acerca da Escola e da Garantia para esclarecer se estamos à altura desta tarefa.

Tal qual a atemporalidade do desejo de Maruge, no filme a que me referi no início de minha exposição, "o problema do desejo" no "próprio psicanalista" (LACAN, 1971/2003, p. 245) não pode ser relegado ao esquecimento. Para tanto, no trabalho da CLEAG há sempre uma presteza no acolhimento das mais diferentes demandas, sobretudo, nas demandas de passe.

 

Referências

APARICIO, S. O passe contra o esquecimento. In: http://champlacanien.net/public/docu/4/wunsch14.pdf.         [ Links ]

__________. Persistance d'une question. In: Mensuel no 54, Paris, outubro 2010.         [ Links ]

Carta da IF e seu Anexo. In: Catálogo da IF-EPFCL 2008-2010, versão impressa.         [ Links ]

Os princípios diretivos para uma Escola orientada pelo ensino de Sigmund Freud e Jacques Lacan. In: Catálogo da IF-EPFCL 2008-2010, versão impressa.         [ Links ]

LACAN, J. (1967). Proposição de 9 de outubro de 1967 para o psicanalista da Escola. In: LACAN, J. Outros Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, pp. 248 -264.         [ Links ]

__________. (1971). Ato de Fundação. In: LACAN, J. Outros Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, pp. 235 -247.         [ Links ]

__________. (1976). Prefácio à edição inglesa do Seminário 11. In: LACAN, J. Outros Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, pp. 557 -559.         [ Links ]

Site EPFCL BRASIL <http://www.campolacaniano.com.br/escola.php>, consultado em 19 de fevereiro de 2015.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: ahfernandes03@gmail.com

Recebido: 20/02/2015
Aprovado: 21/04/2015

 

 

* Psicanalista, AME da EPFCL-Brasil, Membro do Fórum Salvador, Membro do Campo Psicanalítico de Salvador, Doutora em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise (Paris VII), Professora da Graduação e da Pós-Graduação do Instituto de Psicologia (UFBA), Pesquisadora do CNPq.
1 V. S. APARICIO, "Persistance d'une question", In: Mensuel n. 54, octobre 2010.