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Semina: Ciências Sociais e Humanas
On-line version ISSN 1679-0383
Semin., Ciênc. Soc. Hum. vol.40 no.1 Londrina Jan./June 2019
Artigos
Transexualidade e visibilidade trans em mídias digitais: as narrativas de Mandy Candy no YouTube
Transexuality and trans visibility in digital media: the narratives of Mandy Candy on YouTube
Stephanie Caroline Ferreira de Lima1; Idilva Maria Pires Germano2
1Universidade Federal do Ceará
2Universidade Federal do Ceará
Resumo
Este artigo visa discutir a visibilidade “trans” nas novas mídias, principalmente no YouTube, a partir do estudo de narrativas autobiográficas veiculadas nessa plataforma por uma mulher transexual brasileira, Amanda Guimarães. Mais conhecida como Mandy Candy, ela teve seu canal/perfil no site selecionado por ser a primeira youtuber transexual do Brasil (BBC Brasil, 2016), ter a maior quantidade de inscritos entre youtubers trans e relatar suas experiências pessoais, postadas publicamente. Valendo-nos do canal Mandy Candy como ponto inicial de exploração dessa problemática, foram selecionados os cinco vídeos mais populares de Amanda, relacionados diretamente à transexualidade. O conteúdo dos vídeos foi analisado criticamente, mediante uma perspectiva interdisciplinar, articulando contribuições de estudos de narrativas oriundos da Psicologia Social, estudos de gênero contemporâneos das Ciências Sociais e reflexões no campo da Comunicação Social. Oscilando entre o entretenimento, a instrução e o testemunho pessoal, os vídeos de Amanda conferem visibilidade à condição transexual por meio de conteúdos francos que ajudam a reduzir estigmas e a transfobia. Por outro lado, também revelam que a transgenitalização e a busca de um corpo que passe como cisgênero (“passabilidade cis”) envolvem a conformidade aos padrões estéticos normativos de feminilidade.
Palavras-chave: Transexualidade. Narrativa autobiográfica. YouTube. Identidade de gênero. Mulheres-Trans.
Abstract
This article aims to explore visibility in new media, especially on YouTube, from the study of autobiographical narratives broadcasted on that platform by a Brazilian transsexual woman, Amanda Guimarães. Better known as Mandy Candy, she had her channel / profile on the site selected for being the first Brazilian transexual youtuber woman (BBC Brazil, 2016), with the greatest amount of inscriptions among other trans youtubers and post publicly her personal experiences. Using Mandy Candy’s channel as the starting point of estimation, were selected the 5 most popular videos of Amanda, directly related to transsexuality. The content of the videos was critically analyzed, through an interdisciplinary perspective, articulating studies of narratives from Social Psychology, Social Sciences’ contemporary Gender Studies and reflections in the field of Social Communication. Oscillating between entertainment, instruction and personal testimony, Amanda’s videos spotlight the transsexual condition in a frank and direct way helping to reduce stigmas and transphobia. However, they also reveal that transgenital process and the search for a feminine body that may be recognized as cisgender involve conformity to normative esthetic patterns of femininity.
Keywords: Transsexuality. Autobiographical narratives. YouTube. Gender identity. Trans-Women.
Introdução
Compondo o imenso iceberg da World Wide Web, o YouTube faz parte das mídias digitais, abrindo espaço para a produção amadora e profissional de vídeos, onde quem produz o canal - seu perfil no site - é capaz de definir seu objetivo para e com o público: entretenimento, comédia, culinária, vlogs, entre várias outras categorias de perfil de usuário. A produção de conteúdo para um canal de postagens engloba a filmagem, edição, publicação e divulgação deste, sendo um trabalho que pode ser realizado por uma única pessoa ou em grupo.
No que se refere a estas mídias contemporâneas, diferentes autores (ASSANGE et al., 2013; NATANSOHN, 2013; SIBILIA, 2008) têm discutido, às vezes de forma discordante, acerca do potencial de transformações na sociedade a partir de interações e relações sociais promovidas na rede pela internet. Existem divergências de posicionamento entre os estudos que tratam da espetacularização de si e exposição da própria intimidade na internet; da produção de tecnologias da informação e da comunicação; e/ou da influência da esfera on-line na vida off-line na contemporaneidade, mesmo considerando a facilidade tecnológica atual na obtenção de informação e de entretenimento, por exemplo. Por um lado, há liberdade de expressão suficiente para que usuários criem conteúdos que não sigam as normas sociais conservadoras, bem como é possível desenvolver plataformas sem fins lucrativos e que tenham objetivos educacionais (ASSANGE et al., 2013). Por outro lado, existe o risco de a Web ser utilizada para perpetuar formas de opressão, reforçar estereótipos de gênero e sexualidade, naturalizar desigualdades socioeconômicas e violar o direito à liberdade de expressão através de algoritmos que censurem de diversas formas os conteúdos produzidos - mesmo os que sigam diretrizes das plataformas (NATANSOHN, 2013).
No caso do YouTube, onde são criados canais (perfis) e postados vídeos, permitindo interações diretas entre produtores de conteúdo – os/as youtubers – e o público, vemos facilmente que os seguidores consideram as narrativas de experiências presentes no site como uma evidência de que estes produtores de conteúdo são pessoas reais, permitindo o estabelecimento de um “vínculo” entre ambos (SIBILIA, 2008). Estas relações sociais assumidas à distância através dos vários recursos tecnológicos disponíveis na plataforma a tornam um misto de rede social e portal de publicização de vídeos (BURGESS; GREEN, 2009).
Além disso, seguindo a lógica de Walter Benjamin (2017), aplicável tanto à produção audiovisual cinematográfica referida pelo autor quanto às postagens de vídeos na internet, youtubers (como atores) e seus seguidores (como massa) relacionam-se a partir da aparelhagem tecnológica, que não é ignorada mas não serve para normatizar sua comunicação, pois esta regulação ocorre pelas convenções sociais dentro de um contexto histórico específico, visto que:
Ele [o ator] sabe, diante da aparelhagem, que ele se relaciona, em última instância, com a massa. É a massa que vai controlá-lo. E justamente a massa não é visível, ainda não está presente no momento em que ele realiza o desempenho artístico que ela controlará. A autoridade desse controle cresce por meio daquela invisibilidade (BENJAMIN, 2017, p. 300).
O YouTube, desse modo, apresenta-se como um vasto campo de pesquisa empírico que extrapola o espaço digital e a relação tecnológica entre produtores/as de conteúdo e a plataforma em si, na medida em que é possível compreender os possíveis desdobramentos dos discursos veiculados pelos canais dessa plataforma no “mundo real”, composto também pelos milhões de indivíduos que fazem parte desse “coletivo participativo” (BURGESS; GREEN, 2009), heterogêneo e ainda mais dinâmico e complexo que os meios de comunicação tradicionais.
Uma vez que a amplitude dos canais de digital influencers tem tomado proporções significativas nas relações sociais cotidianas, o YouTube fez-se campo de pesquisa sobre gênero e sexualidade na medida em que foi percebida uma crescente visibilidade de relatos advindos da população lésbica, gay, bissexual, trans, queer, intersexual entre outras (LGBTQI+) que questionam as normatividades relacionadas à sexualidade e ao corpo, pessoas que têm produzido e compartilhado cada vez mais suas histórias pessoais no site, devido a maior participação – ativista ou não – em redes virtuais (JESUS; ALVES, 2010).
Algumas pesquisas acadêmicas acerca da população LGBTQI+ no Brasil, por exemplo as de Peter Fry e Edward Macrae (1985), Berenice Bento (2006, 2008), Don Kulik (2008), Juliana Justa (2012), Jaqueline de Jesus e Hailey Alves (2010) e Alexandre Amorim (2016), serviram de base para o recorte do objeto desta investigação, no que concerne aos estudos brasileiros de gênero - cada uma voltada para campos específicos na área, tais como: homossexualidade masculina e/ou feminina, transexualidade masculina/feminina, travestilidade e movimentos sociais brasileiros LGBTQI+.
Buscando compreender a atual visibilidade conferida às questões de identidade de gênero nas plataformas digitais e em especial, à transexualidade, indagamos acerca dos discursos sobre o tema que são negociados em vídeos autobiográficos disseminados no YouTube. Para tanto, selecionou-se o canal Mandy Candy dentre diversos outros de youtubers transexuais brasileiros(as), sob o critério de que Amanda Guimarães é a pessoa transexual com a maior quantidade de inscritos/seguidores (em agosto de 2017). Além disso, ela é responsável por todo o processo de produção, edição e divulgação dos vídeos postados em seu perfil no site.
Por conta da atribuição da licença Creative Commons (CC) em seu material audiovisual, ou seja, um direito autoral livre que viabiliza o compartilhamento e a utilização do conteúdo que ela e muitos outros youtubers produzem, tornou-se viável que suas narrativas fossem coletadas e analisadas, respeitando a autoria de Amanda sobre eles e as diretrizes estabelecidas pela organização CC, de modo que a ética foi priorizada nesta pesquisa, tanto na análise dos vídeos, quanto na maneira como trechos da fala de Amanda foram transcritos para a redação deste artigo.
No canal Mandy Candy, analisaram-se os cinco vídeos com a maior quantidade de visualizações, excluindo os que não se relacionavam diretamente à transexualidade.
Devido à importância da relação entre corpo, sexo e gênero na transexualidade feminina, estes conceitos serão contextualizados e serão apresentados os estudos de gênero contemporâneos que serviram como base teórica deste estudo, de modo a facilitar a compreensão da análise dos cinco vídeos selecionados e tornar evidentes os resultados desta investigação.
Transexualidade, Sexo, Gênero e Corpo: as Perspectivas ao Saber Médico-Psiquiátrico e de Estudos Queer Feministas
O levantamento de dados mais recente relativo à população trans foi realizado em 2016 pela organização não-governamental (ONG) Transgender Europe (TGEU), a partir da visibilidade de notícias relacionadas a pessoas trans (transgêneros, travestis e transexuais), em parceria com coletivos de treze países, incluindo instituições brasileiras como a Associação das Travestis e Transexuais do Estado do Rio de Janeiro (ASTRA), a Rede Trans Brasil e o Grupo Gay da Bahia (GGB). No relatório Trans Murder Monitoring (TMM) Annual Report 2016, originado do projeto de pesquisa denominado “Transrespect versus Transphobia Worldwide”, ambos realizados pela TGEU (BALZER; LAGATA; BERREDO, 2016), afirma-se que muitos dos casos de violência transfóbica não são registrados como tal, por fatores como: a não identificação do corpo das vítimas; a cobertura midiática inapropriada que desconsidera a identidade de gênero dos sujeitos assassinados; e, principalmente, o arquivamento dos casos, os quais costumam ser invisibilizados sem solução ou reportados como se fossem homicídios sem relação com a intolerância e o preconceito de gênero.
A TGEU é uma ONG europeia de coleta e compartilhamento de dados, ativista das causas LGBTQI+. O relatório supracitado (BALZER; LAGATA; BERREDO, 2016) infere que 40% do total de assassinatos noticiados de pessoas trans ocorreu no Brasil, entre 2008 e 2016, ainda que haja subnotificação de casos de transfobia que não envolvam a morte da vítima. Ressalta-se, portanto, a importância de pesquisas especificamente acerca das condições de existência da população trans, para que coletivos, organizações, associações, ativistas, juristas etc. possam levantar debates em torno da violência transfóbica com mais dados estatísticos e qualitativos em mãos, que possam ajudá-los a mudar o foco da patologização da transexualidade para o da vulnerabilidade desta população, frente às desigualdades sociais a que está submetida e aos riscos de sofrer vários tipos de violências.
Neste contexto, Berenice Bento (2006, p. 43) afirma que estudos envolvendo pessoas transexuais e intersexuais no século XX foram decisivos “à compreensão que as instituições têm das pessoas transexuais, principalmente a justiça e a medicina, que, diante das demandas para a mudança dos documentos e/ou dos corpos, fazem avaliações sobre suas feminilidades/masculinidades.” Segundo a autora, um dos nomes influentes no campo foi o médico Harry Benjamin que, em seu livro O Fenômeno Transexual (1966), distinguia o “travestismo” e o “transexualismo” a fim de diagnosticar os “verdadeiros transexuais” (BENTO, 2008, p. 96), além de defender a cirurgia transexualizadora como único tratamento efetivo (BARBOSA, 2013, p. 360).
De mais a mais, a utilização dos conceitos “transexualidade” e “transexualismo” tem variado a depender da área de pesquisa: na Medicina, na Psiquiatria e na Psicologia, a maioria se atém à segunda forma, enquanto nas Ciências Sociais a primeira é mais comum (LATTANZIO; RIBEIRO, 2017). Isto se deve à percepção dos/as pesquisadores/as quanto ao seu objeto de estudo. Por um lado, a transexualidade é definida por Márcia Arán (2006, p. 50) como sendo, resumidamente, o “sentimento intenso de não pertencimento ao sexo anatômico, sem a manifestação de distúrbios delirantes e sem bases orgânicas. Por outro, a Associação Americana de Psiquiatria, em sua 5ª versão do “Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais” (APA, 2014), utiliza o termo “transexualismo” para referir-se à disforia de gênero, que seria a contradição entre a identidade de gênero e o sexo atribuído ao sujeito em seu nascimento (APA, 2014). Acreditamos que a utilização de um termo ou outro não é acaso ou jargão de área de estudo, mas sim um posicionamento ético-político.
Há milhões de transexuais, travestis e transgêneros no mundo1, os/as quais enfrentam diariamente os efeitos de pesquisas e teorias acerca de sua identidade de gênero e de sua sexualidade. Esta população utiliza termos como “transexualidade” e “disforia de gênero” para se autoafirmar e, simultaneamente, reivindica respeito à sua identidade e à sua cidadania, acima de qualquer diagnóstico médico-psiquiátrico.
Frente a isso, uma das vias de questionamento da patologização da transexualidade pelo saber médico é a participação em coletivos de movimentos sociais como o LGBTQI+ e o transfeminista2, por pessoas trans e cisgênero (JESUS; ALVES, 2010, p. 11), porque os manuais das áreas da Saúde e da Saúde Mental (APA, 2014; OMS, 2000), que embasam as políticas públicas voltadas para esta população, mostram-se ineficientes e/ou insuficientes devido às limitações do diagnóstico e, principalmente, às especificidades identitárias de cada indivíduo transgênero, cujo corpo e modificações corporais pretendidas podem não se enquadrar no padrão médico de “verdadeiro/a transexual” (BENTO, 2008). É preocupante, portanto, a apropriação das categorias teóricas “gênero” e “identidade de gênero” em manuais médico-psiquiátricos para referir-se a transtornos de inadequação entre o corpo e o sexo biológico (APA, 2014; OMS, 2000), pois patologização da identidade de gênero do sujeito3 inviabiliza que esta identidade seja reconhecida como uma forma de existir (BENTO, 2008).
Com isto posto, apesar de John Money – um médico norte-americano – ter criado o termo identidade de gênero (BENTO, 2008), foram pesquisadoras/es feministas norte-americanas/os que estabeleceram os estudos de gênero. Joan Scott (1995) aponta que muitas feministas que se utilizavam do conceito de gênero propuseram que se realizassem pesquisas acerca das mulheres, especificamente, a fim de romper paradigmas disciplinares tradicionais, para os quais a História seria generalizável a partir da perspectiva masculina, supostamente a representante universal da espécie humana.
Apesar da perspectiva crítica por terem apontado o determinismo biológico em teorias tradicionais, os estudos de gênero das teóricas do patriarcado (SCOTT, 1995, p. 77-78) baseiam-se em diferenças físicas/corporais para suas construções teóricas que questionam as desigualdades entre homens e mulheres, o que “pressupõe um significado permanente e inerente para o corpo humano – fora de uma construção social ou cultural – e, em consequência, a a-historicidade do próprio gênero.”
Foi a partir dos anos 1990, então, com o advento dos estudos queer, que os gêneros passaram a ser estudados com outra perspectiva, ainda que pesquisas sobre transexualidade tenham sido escassas se comparadas, por exemplo, às que abordam a homossexualidade masculina e/ou feminina (BENTO, 2006; FRY; MACRAE, 1985). A principal contribuição dos estudos queer, evidentemente, foi o questionamento dos pressupostos binaristas e biologizantes, os quais circunscrevem as epistemologias feministas tradicionais (como a marxista e a do patriarcado etc.), a partir das articulações entre gênero e corpo, e entre desigualdades sociais e preconceito de gênero.
“Cisgênero” e “transgênero”, por exemplo, são categorias teóricas criadas a partir de estudos queer para denominar indivíduos cujos corpos correspondem ou não, respectivamente, às construções sócio-históricas relacionadas às suas identidades de gênero, compreendidas pela perspectiva médica a partir de dicotomias biológicas e sociais: macho/fêmea, ativo/passivo, masculino/feminino. Mulher cis, sob este prisma, é aquela que se identifica com a atribuição do sexo feminino em seu nascimento, ao contrário da mulher trans.
De acordo com Joan Scott (1995), outra problemática das teorias tradicionais sobre gênero é que várias delas pressupunham a existência de uma essência feminina em suas investigações e, simultaneamente, questionavam o paradigma tradicional da Ciência, ao demonstrarem que a participação das mulheres na História se deu de forma distinta da apontada pela perspectiva hegemônica. Devido a isto, considera-se que a utilização de categorias teóricas dos estudos queer tenha sido mais adequada a esta pesquisa.
Além disso, a heterogeneidade no grupo de mulheres trans configura tanto um embate político quanto relacionado à identidade de gênero. Para Berenice Bento (2008) e Bruno Barbosa (2013), divergências entre travestis e mulheres transexuais baseiam-se na hierarquização social do corpo das mulheres trans, na qual o sintagma mamas-vagina define quem seria uma “mulher de verdade”, a partir da perspectiva do diagnóstico médico-psiquiátrico.
Esta pretensão de unir sujeitos que se identificam como transgêneros é proveniente do movimento LGBTQI+ dos Estados Unidos, no qual a denominação trans é menos criticada do que no Brasil por conta do termo transvestites, referente às travestis. Contudo, questiona-se esta maneira de auto-identificação principalmente pelo fato de as travestis, muitas vezes, não se identificarem como trans e se sentirem invisibilizadas no movimento LGBTQI+ brasileiro, de forma que são estabelecidas discussões acaloradas em torno da diferenciação entre travestis e mulheres transexuais.
Conforme assinalaram Sampaio e Germano (2017, p. 461), o corpo tambem é construído segundo práticas resultantes do avanço da ciência e da tecnologia médicas e farmacológicas. Mediante cirurgias plásticas, uso de hormônios e outras substâncias e técnicas que reinventam os corpos, passa-se a atribuir novos significados à natureza do sexo. Daí, “questionar que o sexo é uma construção tanto quanto o gênero não é negar a materialidade do corpo. [...] O gênero produzido culturalmente não constrói marcas no corpo que está passivamente à sua espera. Quando afirmamos que o sexo não é natural, compreendemos que este é uma interpretação política e cultural do corpo.” Sendo assim, não é surpreendente que a experiência da transexualidade tenha se dado de forma ativa e contestadora ao longo da história de vida de Amanda e de sua contínua transição de gênero.
A história de vida de Amanda e as narrativas de experiência da transexualidade: os limite da identificação como pessoa “trans” e da “passabilidade cis”
No canal Mandy Candy4 há grande quantidade de vídeos postados e que abordam temas variados, tais como: avaliações de produtos que ela comprou ou recebeu como “presente” de marcas de cosméticos, relatos de cirurgias plásticas e procedimentos estéticos que ela realizou, comentários pessoais acerca de polêmicas que circularam na internet, conselhos sobre relacionamentos, relatos de seu dia-a-dia na Ásia, debates com participação de amigos youtubers, entre outros.
Ainda que tenham decorrido anos desde o início do processo de transição de gênero da youtuber, a transexualidade é tópico abordado recorrentemente em suas narrativas5. Narrar sobre sua condição de mulher transexual é, para ela, uma maneira de buscar reconhecimento e visibilidade quanto à sua identidade de gênero e, além disso, gerar empatia no público e respeito à população trans. Se, de um lado, o canal da youtuber é tributário de um processo de espetacularização de si nas mídias digitais, em que pessoas comuns são transformadas em celebridades da noite para o dia e, em última instância, atende à lógica e aos valores da sociedade de consumo contemporânea (SIBILIA, 2008), de outro, dá voz à sua autora-narradora, que oferece informações valiosas e apoio para outras pessoas que estão se descobrindo transexuais ou iniciaram a transição de gênero.
O contato com o público não se dá apenas por meio do canal da youtuber, aliás. Ela costuma escolher alguns comentários de seguidores de suas outras redes sociais para responder em forma de vídeo. Por meio de edição, coloca imagens digitais “recortadas” na parte inferior da tela, uma por uma, para que seja possível ler e acompanhar suas reações em torno das questões e afirmações do público, como fez em “Tudo sobre minha cirurgia de redesignação sexual (mudança de sexo)” (MANDY CANDY, 2015b), que será analisado mais adiante.
As dúvidas do público foram, inclusive, a motivação para que Amanda postasse “Sinto prazer na pepeca depois da cirurgia?” (MANDY CANDY, 2016a), um vídeo que trata de sua sexualidade após a operação de redesignação sexual e é o de menor duração entre os selecionados. Ela descreve, no início, os comentários mais recorrentes em tom de brincadeira, respondendo à pergunta proposta no título, em seguida, afirma:
Tem muito tabu envolvendo essa cirurgia, porque muita gente acha que só vai lá e corta o pinto e joga no lixo, né? Ou leva pra casa, pra outros fins [risos]. Tem gente que acha que é só feito um buraco ali e mais nada. E tem pessoas que dizem que fazer essa cirurgia faz a gente perder [ela adiciona um efeito musical de suspense, na edição do vídeo, no trecho sublinhado [todo o prazer envolvendo o genital]. Então, vamos desmistificar este tabu, agora, falando sobre a cirurgia. [0:53 a 1:13] [...]
E a resposta deste mistério é: sim, a gente sente prazer na pepequinha. (MANDY CANDY, 2016a, 1:20 a 1:29)6
O conteúdo produzido por ela não se restringe ao público cisgênero, apesar da elementaridade de muitas das perguntas respondidas, perceptível nos trechos transcritos acima. Acredita-se que a busca por visibilidade, em suas narrativas, possui um caráter duplo: está ligada à celebrização e à espetacularização de si nas novas mídias (SIBILIA, 2008), mas também atrelada a debates e ações voltadas à reivindicação de direitos de pessoas LGBTQI+. Ou seja, ambos os sentidos podem ser atribuídos às narrativas de Amanda, uma vez que o entretenimento, a diversão e seus relatos são imprescindíveis em seu canal, no qual o cotidiano da jovem é o foco e não o tema da transexualidade em si mesma (MANDY CANDY, 2017a).
Ela demonstra a intenção de desconstruir o imaginário social voltado às pessoas trans, referente à divergência entre a genitália e o gênero, no vídeo “Eu conto que sou trans para os homens?” (MANDY CANDY, 2016c). Explica que, depois de apresentar seu namorado à época aos espectadores do YouTube, muitos questionaram se ela havia contado para ele que é uma mulher transexual, uma vez que ele é chinês e, por isso, não conhecia o canal dela no YouTube antes de se relacionarem, além de terem passado a morar juntos em Hong Kong, neste período. Ela afirma que sua relação com a própria identidade de gênero mudou ao longo dos anos, bem como a preocupação com sua aceitação social.
Mandy destaca não sentir medo de sofrer violência, especificamente, mas de ser rejeitada socialmente. Antes de fazer a cirurgia transgenitalizadora, de acordo com ela (MANDY CANDY, 2016c), após os primeiros encontros com rapazes os quais a tratavam “como uma princesa”, ela contava ser uma mulher transexual e eles se transformavam: passavam a objetificá-la e desrespeitá-la, tentavam manter o relacionamento amoroso em segredo e falavam frequentemente sobre sexo, referindo-se a ela como fetiche sexual (MANDY CANDY, 2016c, 3:30).
Percebe-se que a busca por aceitação social é bastante problemática, pois causou várias desilusões amorosas. Enfatiza-se, aqui, que mesmo as práticas sexuais e culturais de pessoas lésbicas, gays, bissexuais e transexuais costumam ser restringidas por padrões heteronormativos cisgêneros, ainda que não correspondam com suas experiências pessoais. Por exemplo: os manuais médicos (APA, 2014; OMS, 2000) pressupõem que pessoas transexuais seriam heterossexuais, negando o “diagnóstico da transexualidade verdadeira” a quem não condiga com a orientação sexual normatizada (BENTO, 2006).
Além do mais, no vídeo “Como era minha voz de ‘homem’ (como mudei minha voz)” (MANDY CANDY, 2016b), a youtuber questiona os padrões de feminilidade e de masculinidade relacionados a características sexuais secundárias, como a voz humana. Este era, inclusive, o vídeo mais visualizado entre todos os que foram postados em seu perfil, em 2017. Ela afirma que o produziu com o intuito de responder à pergunta mais frequente do público: “Amanda, como é que tu fez [sic] pra tua voz ficar assim? (MANDY CANDY, 2016b, 1:30). E a intenção dela foi mostrar que, na realidade, sua voz sempre foi como a escutamos nos vídeos.
Antes do processo de transição de gênero, em contrapartida, ela assume que costumava disfarçar a voz fina imitando trejeitos masculinos e utilizando gírias consideradas “de homem”. Admite, além disso, ter sentido vergonha da própria voz no início da transição de gênero, porque considerava necessário ter a voz mais fina, até que um dia refletiu: “[...] é a maior besteira! Não é porque eu falo um monte de palavrão, um monte de coisa [...] escandalosa, que eu vou ser menos mulher que alguma outra que fala mais delicadamente.” (MANDY CANDY, 2016b, 4:49 a 04:58). Com esta argumentação, busca tranquilizar outras mulheres trans, as quais se considerem “meio masculinas” ou “não passáveis”7: “Sua voz é maravilhosa do jeito que ela é! Não tem problema você ter uma voz um pouquinho mais grave, gata. Mas se tu não se sente bem, vai treinar ela [sic] e tentar falar de um jeito que te agrade mais. Tudo é possível nessa vida, como eu já falei.” (MANDY CANDY, 2016b, 5:06 a 5:19).
A história de vida de Mandy ilustra que gênero e orientação sexual são construções teóricas distintas, nas quais a identidade de gênero é a maneira como o sujeito se sente com relação ao próprio corpo e à sua subjetividade, enquanto a orientação sexual refere-se à inclinação pessoal para relacionamentos amorosos e sexuais. Com isso, evidencia-se o sentido da autoafirmação de Amanda como mulher transexual heterossexual, pois: a) é mulher – ainda a feminilidade não seja um fator unânime entre mulheres (cisgêneros e transgêneros); b) ela considera que ser uma mulher transexual é sua identidade de gênero; e c) é heterossexual por se relacionar com homens, ou seja, com o gênero considerado socialmente como oposto ao dela.
Os conselhos que Amanda Guimarães oferece a pessoas trans, principalmente para mulheres trans, são referentes à realização da cirurgia de transgenitalização em hospitais com médicos especializados. No vídeo “Tudo sobre minha cirurgia de redesignação sexual (mudança de sexo)” (MANDY CANDY, 2015b), o mais longo entre os que foram analisados nesta pesquisa, percebe-se o caráter educativo da narrativa de Amanda, uma vez que ela reconhece que sua fala não conseguiria representar todas as mulheres trans e, simultaneamente, tenta legitimar sua fala ao explicitar que seu ponto de vista é baseado na própria experiência como mulher transexual.
A preocupação da youtuber em informar o público sobre o tema abarca, inclusive, a escolha estratégica do título do vídeo, que leva a expressão “mudança de sexo”, utilizada pela mídia tradicional para se referir à cirurgia de transgenitalização. Logo no início, a narradora faz uma ressalva sobre o título, explicando sua seleção a fim de atingir um público menos informado no assunto:
E antes que você venha falando ‘AMANDA! Por que você tá usando ‘Mudança de Sexo’ [no título]? É errado! e blá-blá-blá-blá-blá-blá.’ Gente! Eu sei que é errado! Mas [enfatiza a palavra], quando a pessoa procura sobre esse assunto no Google, ou no YouTube, na internet e o que for, ela vai colocar ‘mudança de sexo’ [ela gesticula como se digitasse em um teclado]. Ninguém procura por ‘redesignação sexual’, porque as pessoas não sabem este termo. É errada essa palavra, eu já expliquei isso em diversos vídeos, mas é como o pessoal conhece, tá? Eu não tenho como tá falando termos supercomplicados aqui, porque quem me assiste é um pessoal totalmente de fora do nosso meio (MANDY CANDY, 2015b, 0:07 a 0:38).
Este vídeo trata, principalmente, da experiência no pré e no pós-operatório de transgenitalização de Mandy, realizada pelo médico Dr. Kamol em um hospital da Tailândia. Antes de relatar esta experiência, porém, ela faz um alerta às mulheres transexuais que gostariam de se submeter a esta cirurgia:
Quando tu vai fazer a cirurgia, tu tem que levar mais [ela diz esta palavra em close, com olhos arregalados] dinheiro ainda. Já não era barato, e isso foi um baque pra mim, lá no momento, porque ninguém me falou nada, que tinha que fazer isso: eu cheguei lá achando que já era um preço, já tinha vendido carro, pego [sic] empréstimo... Tô devendo até hoje uns 15 mil no banco. Então vai preparada, porque é do outro lado do mundo, né, gata? Não dá pra ti [sic] ficar sem dinheiro! (MANDY CANDY, 2015b, 3:40 a 4:01).
Pouco antes, neste vídeo, Amanda aconselha às mulheres trans que procurem profissionais médicos com especialização em cirurgias de redesignação sexual, a fim de diminuir os riscos de erro médico e/ou de resultados catastróficos.
Os relatos de Mandy sobre sua transgenitalização sinalizam os contornos do corpo almejado por mulheres trans. A feminização facial e corporal, visando a moldagem de traços físicos delicados e curvilíneos – como diz Mandy, “bem de Barbiezinha” – parece ser o padrão estético transexual feminino. A incansável busca por esse perfil corporal, que intervém nos genitais, seios, nádegas, coxas, rosto e outras partes, também é relatado por mulheres transexuais que participaram de outras pesquisas (BARBOSA, 2013; BENTO, 2006, SAMPAIO; GERMANO, 2017). Como se observa, mulheres trans (transexuais e travestis) costumam recorrer aos discursos e práticas de transformação e embelezamento corporal atreladas aos padrões estéticos normativos de corporeidade feminina e feminilidade, além de associarem saúde a beleza, ao buscarem se assemelhar o máximo possível à mulher ideal – e, muitas vezes, irreal (SAMPAIO; GERMANO, 2017).
As “escandalosas e exageradas” e as “finas e elegantes” são a mais frequente diferenciação entre as mulheres trans, de acordo com Barbosa (2013). Consideram que, quanto mais próxima da performance de uma mulher cisgênero, “mais mulher” (BARBOSA, 2013, p. 363-364) uma mulher trans é reconhecida pelo grupo, o que demarca uma hierarquização baseada na “passabilidade cis”. Neste sentido, vale destacar que a divisão desta discussão em tópicos não significa que sejam independentes um do outro. A “passabilidade” é um dos aspectos mais importantes para esta idealização da feminilidade, por ser uma tentativa constante de seguir padrões de beleza e de diferenciação sexual (pênis-homem e vagina-mulher), ainda que a intenção de muitas pessoas trans seja evitar ser alvo da violência transfóbica e, por isso, muitas/os preferirem adequar o próprio corpo ao dimorfismo defendido pela perspectiva médico-psiquiátrica ao invés de enfrentá-lo diariamente.
Conforme defendido por Paul B. Preciado (2008, p. 95), a heteronormatividade cisgênero pode ser considerada uma “coerção performativa”, à medida em que estão presentes, cotidianamente, imposições sociais linguísticas e corporais, reguladas por convenções culturais normativas ligadas à sexualidade e à identidade de gênero. Questiona-se, portanto, não o sofrimento pela inadequação entre corpo e identidade de gênero, como é referida a disforia de gênero nos manuais médico-psiquiátricos (APA, 2014; OMS, 2000), mas sim as generalizações relacionadas à percepção do próprio corpo, entre pessoas trans. Isto significa que há uma necessidade de admitir que existem diversas maneiras de experienciar a transexualidade, a transgeneridade e a travestilidade, para além das recomendações de “tratamento” das instituições ligadas à área da Saúde.
Estes ideais de feminilidade não são, em si, o problema das narrativas de Mandy. Refletem, contudo, as expectativas sociais relacionadas à mulher, como se cada uma fosse passível de universalização. A submissão, a passividade, a delicadeza, a simpatia e a mansidão não são inerentes às mulheres, como sabemos, senão pressões sociais de comportamento legitimadas pela ciência tradicional a partir da modernidade, a qual classificava comportamentos femininos entre normais e patológicos, sendo os últimos contrários à subalternidade dita ideal.
Dando continuidade à análise de vídeos, “Fizeram piada transfóbica comigo no Brasil”, o mais atual entre os cinco selecionados, é voltado para a discussão da “passabilidade cis”, a partir do incômodo de Amanda frente à transfobia no Brasil. O vídeo é iniciado com um pedido desculpas ao público, por ela imaginar que nem todos gostem que ela fale sobre transexualidade (MANDY CANDY, 2017b, 00:38). Sua expressão é triste e ela afirma que este não é um vídeo de entretenimento, mas um desabafo.
Conforme explicitado em sua autobiografia (GUIMARÃES, 2016), a história de vida da youtuber foi composta por obstáculos relacionados à sua aparência física e sua gestualidade afeminada, que eram tomados como justificativas – socialmente aceitas – para a violência sofrida por Amanda durante a infância e adolescência. Quando seu corpo passou por modificações, ela pôde ser como gostaria, com expressão de gênero feminina. Porém, foi enquadrada de outra maneira: é uma mulher trans. Ocorreu, então, a aceitação das normas estéticas heteronormativas cisgênero e, simultaneamente, o sofrimento por assumir-se publicamente e na internet como uma mulher trans, por conta da transfobia sofrida em consonância com a pressão estética, ambas relacionadas à “passabilidade”.
Os padrões de beleza podem ser considerados o alicerce mais sutil da transfobia, devido à patologização desta identidade de gênero e à imposição da busca pela “passabilidade”. Nesse sentido, ela denuncia uma tentativa constante de aniquilação das identidades de gênero que não condizem com o padrão cisgênero heteronormativo, os corpos considerados abjetos por serem socialmente distanciados dos temas que causam comoção social e dor da perda. Como aponta Judith Butler (2015), são “vidas inelutáveis”, ou seja, vidas que “não são passíveis de luto”. Sabemos que há mulheres trans que não são nem pretendem ser “passáveis”, por exemplo, as travestis. Os conflitos entre as identidades de gênero trans, travesti e transexual (BARBOSA, 2013; BENTO, 2006), costumam originar-se de discursos que se apoiam no discurso biomédico, por referir-se ao “transexualismo” e ao “travestismo” como transtornos de saúde mental e fetiche sexual, respectivamente (APA, 2014; OMS, 2000). São consideradas “doidas” e “putas”, de acordo com Barbosa (2013), por serem patologizadas e estigmatizadas, simultaneamente. Acerca destas questões, Amanda critica:
Durante muito tempo da minha vida, quando eu ainda não tinha esse rostinho que eu tenho hoje, quando eu não era totalmente ‘passável’ [ela gesticula as aspas com as mãos] – que palavra horrorosa, né? – eu andava na rua e eu sempre era muito julgada. As pessoas me olhavam, as pessoas ficavam cochichando, as pessoas ficavam fazendo piadinha. Porque, no início da transição, a gente ainda não tem uma aparência aceitável pra sociedade. E vocês sabem como [ela sorri, em ironia] a sociedade é maravilhosa, né? A sociedade aceita [ela dá ênfase na palavra, em ironia] uma pessoa, entre aspas, ‘diferente’ [gesticula as aspas com as mãos novamente, sorrindo], a sociedade acolhe [enfatiza, ironicamente] quem tá precisando ser acolhido.
[Em close:] Só que não! A sociedade te julga e quer te botar lá [ela gesticula com o indicador pra baixo] no chão, quer que você fique rastejando. Quer que tu fique [sic] tão mal que o único pensamento que tu tem [sic] na cabeça é se jogar duma ponte. É isso que faz com a gente [pessoas transexuais]! É isso que a sociedade faz com a gente, mas eu não vou começar aqui a problematizar, porque eu já começo, né... [suspira] ficar raivosa e... TÁ [suspira novamente] (MANDY CANDY, 2017b, 02:02 a 02:45).
Se a “passabilidade” rege a percepção social acerca da feminilidade de uma mulher trans, fatores como classe social, estrutura familiar, etnia e faixa etária são, também, variáveis para a vulnerabilidade delas aos discursos transfóbicos. Assim, o auto-reconhecimento de Amanda como uma mulher trans privilegiada é, ao mesmo tempo, uma realidade dentro do contexto sócio-histórico brasileiro e uma denúncia à vulnerabilização da população trans, visto que a condição precária não atinge a todos/as com a mesma intensidade, ainda que todos/as tenhamos vidas precárias (BUTLER, 2015).
Conclusão
Oscilando entre o entretenimento, a instrução e o testemunho pessoal, os vídeos de Amanda conferem visibilidade à condição transexual por meio de conteúdos francos que ajudam a reduzir estigmas e a transfobia. Ao revelar a sua vida pessoal como mulher trans, Amanda descortina o universo trans para um grande público curioso, simpatizante ou não, e se mostra capaz de oferecer suporte para pessoas que se encontram em transição de gênero, como uma voz experiente nos seus trâmites. Por outro lado, os vídeos também revelam que a transição de gênero, especialmente a que abrange a transgenitalização, está associada à intervenção contínua sobre esse corpo, por meio de sucessivos procedimentos médicos, cirúrgicos, farmacológicos, estéticos e outros que perseguem certo corpo de mulher. A busca incessante de um corpo feminino e belo que passe como cisgênero (“passabilidade cis”) parece assim envolver uma conformidade a padrões estéticos normativos de feminilidade.
Tendo transicionado de gênero há mais de dez anos, mediante várias intervenções, Amanda alcançou uma aparência que lhe permite hoje passar facilmente como mulher cis e, deste modo, evitar ser vítima de preconceito e agressão transfóbica nas ruas. Apesar de sua trajetória, contudo, entre as lições que afirma ter aprendido e que transmite a seus seguidores é de que uma “pessoa que é mulher trans e que está em transição ou que não transicionou também é mulher”, como afirma em entrevista (LUCON, 2016). Para a youtuber, afinada com o pensamento queer, mulheres que rejeitam a cirurgia de redesignação sexual e que desejam manter seu pênis não deixam de ser mulheres se assim se definirem. O seu arremate à entrevista é eloquente: “E espero que um dia acabe esse cis e trans e sejamos todos apenas pessoas.”
No decorrer da realização desta pesquisa, foi possível perceber que a heteronormatividade cisgênero, a preocupação com a estética feminina e o sofrimento pela transfobia estão imbricados aos discursos médico-psiquiátricos biologizantes acerca da transexualidade. Estes discursos – que patologizam, regulam e impõem formas corporais restritas que não abarcam inúmeras pessoas trans – necessitam ser questionados por impossibilitarem a garantia de direitos básicos à população trans.
Consideramos que as narrativas autobiográficas de Mandy, assim como as de outras pessoas trans que se dispuseram a relatar suas experiências acerca da transexualidade em ambientes presenciais e virtuais, são especialmente relevantes para a transformação de um cultura de transfobia que infelizmente é expressiva na vida brasileira. Sua experiência, ao ser divulgada, debatida, compartilhada, revela os agenciamentos possíveis de pessoas trans em nossa conjuntura e os horizontes de transformação do cenário de intolerância e violação de direitos da população trans entre nós.
Assinalamos, particularmente, a necessidade de impulsionarmos estudos sobre a experiência de afirmação da identidade de gênero nas plataformas digitais e o papel que essas exercem politicamente. Acreditamos que a quantidade reduzida de trabalhos acadêmicos envolvendo o papel das mídias digitais no debate sobre a transexualidade no campo dos estudos de gênero contemporâneos seja uma demonstração de que a transexualidade, assim como a experiência trans - no sentido amplo do termo - demandam maior discussão sob diferentes aspectos, como a visibilidade, os relatos de experiência, a “passabilidade cis”, a transfobia, os padrões estéticos de feminilidade e de masculinidade etc., para que a normatividade heterossexual e cisgênero seja, cada vez mais, colocada em xeque.
Entre os limites deste estudo, um ponto a considerar é a dificuldade de análise dos vídeos, de modo a abarcar simultaneamente seus aspectos formais, temáticos e interativos, e a necessidade, portanto, de aprimorar o método a partir de contribuições de áreas como a Comunicação e o Audiovisual, considerando a especificidade do suporte utilizado para difundir esses conteúdos.
Por fim, mas não menos importante, quanto às mídias digitais, cabe afirmar que o YouTube figura como um campo de pesquisa bastante promissor, considerando o número significativo e crescente de usuários que produzem, consomem e compartilham conteúdos sobre os mais variados temas, incluindo aqueles mais sensíveis que suscitam intenso debate. As narrativas autobiográficas postadas publicamente em plataformas digitais, tais como o YouTube, alargam o horizonte de pesquisa sobre as subjetividades contemporâneas e seus modos de produção. Além de lócus privilegiado para a exposição do eu e para a luta por reconhecimento identitário, o ambiente digital tem desafiado os pesquisadores a superar o uso de ferramentas mais convencionais de investigação social, tais como as entrevistas e questionários, e explorar mais os recursos audiovisuais que hoje se multiplicam.
Referências
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Tramitação
Recebido em: 2 ago. 2018
Aceito em: 6 dez. 2018
Notas
1 Não se sabe ao certo quantas. Na pesquisa mais recente que encontramos, toma-se como referencial a população dos Estados Unidos, em que entre 0,3% e 0,8% dos indivíduos adultos entrevistados se afirmou transexual (FLORES et al., 2016), dependendo do estado americano. Porém, faz-se a ressalva de que este dado desconsidera travestis e transgêneros não binários, servindo apenas para contabilizar a soma de homens transexuais e mulheres transexuais, especificamente.
2 O transfeminismo é definido por Jaqueline de Jesus e Hailey Alves (2010, p. 14-15) como uma vertente do movimento feminista que questiona o binarismo (homem-mulher, masculino-feminino), base do feminismo tradicional. As autoras afirmam que o “sexismo [binarista] prejudica não apenas a população transgênero, mas todo e qualquer ser humano que não se enquadre em tal modelo, como mulheres histerectomizadas e/ou mastectomizadas e homens orquiectomizados e/ou “emasculados” por motivos de saúde, como o câncer” e que o “transfeminismo reconhece a interseção entre as variadas identidades e identificações dos sujeitos e o caráter de opressão sobre corpos que não estejam conforme os ideais racistas e sexistas da sociedade, de modo que busca empoderar os corpos das pessoas como eles são (incluindo as trans), idealizados ou não, deficientes ou não, independentemente de intervenções de qualquer natureza.”
3 A homossexualidade deixou de figurar como doença mental somente em 1990, após a retirada desta na Classificação Internacional de Doenças, publicada pela Organização Mundial da Saúde. Vale ressaltar que os diagnósticos de “transexualismo” e de “travestismo” permanecem no CID-10 (OMS, 2000), apesar de haver pesquisas acadêmicas que oferecem justificativas para a retirada destes em 2018, pois estão sendo discutidas novas resoluções para a publicação da 11ª versão do CID (CLAM, 2014).
4 Seu perfil de usuário no YouTube localiza-se a partir do link: https://www.youtube.com/user/mandyparamaiores.
5 Mandy expõe sua indignação acerca de comentários transfóbicos recebidos antes e depois de se assumir transexual na internet, no vídeo intitulado “Travecão Filho da Put*!– Cyberbullying”. Este vídeo tinha 69.757 visualizações em novembro de 2017. Por não se enquadrar nos critérios metodológicos de recorte desta pesquisa, não foi analisado (MANDY CANDY, 2015a).
6 Este é o formato adotado neste artigo para referenciar as transcrições realizadas pela autora, a fim de atribuir a autoria do vídeo a Amanda Guimarães (cujas falas estão em itálico), complementando a linguagem escrita com a descrição de alguns gestos importantes da youtuber, entre colchetes.
7 A “passabilidade cis” será tema do próximo tópico. É um termo comumente utilizado por Mandy e outras várias pessoas trans, por isso está entre aspas. Refere-se a passar despercebida/o enquanto mulher ou homem, sem que se note que é uma pessoa trans.