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Psic: revista da Vetor Editora

Print version ISSN 1676-7314

Psic vol.5 no.1 São Paulo June 2004

 

ARTIGOS

 

A criança sob a ótica da Psicanálise: algumas considerações

 

Abstract hild under a psychoanalysis optics: some considerations

 

 

Léia Priszkulnik 1

Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo tem como objetivo dar alguns subsídios para se pensar sobre a criança sob a ótica da Psicanálise. Parte de um breve trajeto pela história ocidental, indicando como a idéia e o conceito de criança e de infância têm se modificado de acordo com visões de mundo peculiares a um determinado tempo e lugar. Chega até Freud que, com a Psicanálise, abre um campo de investigação, antes desconhecido, e descortina uma concepção de criança muito peculiar, que abala uma certa idealização da criança e da infância e que contesta tabus sociais, culturais, religiosos e científicos.

Palavras-chave: Criança, Infância, Psicanálise, Freud.


ABSTRACT

This article aims to give some subsidies to think about child under psychoanalysis optics. It shows a brief course by occidental history, indicating how the idea and concept of child and childhood have been changed according to visions of world particular to a given time and place. It comes until Freud. He, with psychoanalysis, opens a unknown field of investigation and bring to light a very peculiar conception of child, that affects a given idealization of child and childhood and contests social, cultural, religious and scientific taboos.

Keywords: Child, Childhood, Psychoanalysis, Freud.


 

 

A criança que Freud descortina sente tristeza, solidão, raiva, desejos destrutivos, vive conflitos e contradições, é portadora de sexualidade, escapa ao controle da educação e “[...] é capaz da maior parte das manifestações psíquicas do amor, por exemplo, a ternura, a dedicação e o ciúme” (Freud, 1907/1976a, p.139).

Essa representação de criança, que surge com Freud, não existe desde sempre. Através dos séculos, a idéia e o conceito de criança e de infância têm se modificado de acordo com visões de mundo peculiares a um determinado tempo e lugar. A idéia que temos hoje de criança não é um dado atemporal. Pode-se dizer que é uma “invenção” da Modernidade. Segundo o historiador francês Philippe Ariès (1981), no decorrer da História, a criança tem ocupado diferentes posições frente às expectativas dos pais e frente à sociedade.

Na sociedade medieval, como aponta Ariès (1981, p. 156), não se encontra o sentimento da infância, ou seja, “(...) a consciência da particularidade infantil, essa particularidade que distingue essencialmente a criança do adulto, mesmo jovem”. Ao se tornar mais independente em relação à mãe, a criança passa a fazer parte do grupo dos adultos, no qual participa das mesmas atividades e freqüenta os mesmos espaços e faz seu aprendizado para a vida. Não há uma preocupação com a educação. Conseqüentemente, a transmissão dos conhecimentos prescinde de instituições especializadas e de textos escritos. Em relação a isso, Ariès (1981) escreve que “[...] a escola era na realidade uma exceção [...] A regra comum a todos era a aprendizagem” (p. 229).

Com o passar do tempo, a situação começa a se modificar. Ariès (1981, p.162) comenta que “[...] é entre os moralistas e os educadores do século XVII que vemos formar-se outro sentimento da infância”, ou seja, “o apego à infância e à sua particularidade se exprimia [...] por meio do interesse psicológico e da preocupação moral”, visando à disciplina e à racionalidade dos costumes. A criança passa a ser vista como imperfeita e, com isso, surge a necessidade de conhecê-la melhor para poder corrigi-la e torná-la um “adulto honrado”. A educação, agora nos estabelecimentos de ensino, torna-se um importante meio de formação moral e intelectual por meio de uma disciplina rígida que adota o castigo corporal (até surras) quando necessário. A preocupação maior é, segundo Ariès, “[...] fazer dessas crianças pessoas honradas e probas e homens racionais” (p.163). A crescente preocupação moral acaba gerando a idéia da inocência infantil para “proteger” a criança e, conseqüentemente, as conversas e os contatos físicos associados a assuntos sexuais passam a ser proibidos para não “corrompê-la” nessa inocência.

Apesar de surgir a preocupação de separar e distinguir a criança do adulto, os critérios usados para marcar a diferença em relação ao mundo dos adultos merecem ser destacados. Como bem assinala Ariès (1981), a diferença começa “[...] pelo sentimento mais elementar de sua fraqueza, que a rebaixava ao nível das camadas sociais mais inferiores”, ou seja, começa pela humilhação; essa “[...] preocupação em humilhar a infância para distingui-la e melhorá-la se atenuaria ao longo do século XVIII” (p.181). Também nesse século XVIII, o sentimento da criança ser uma frágil criatura de Deus que precisa ao mesmo tempo ser preservada e disciplinada, passa para a vida familiar. Além disso, surge também a preocupação com o corpo que goza de boa saúde, ou seja, com a higiene e a saúde física da criança. Para apontar o novo lugar que a criança passa a ocupar na família, Ariès (1981) escreve: “Tudo o que se referia às crianças e à família tornara-se um assunto sério e digno de atenção. Não apenas o futuro da criança, mas também sua simples presença e existência eram dignas de preocupação – a criança havia assumido um lugar central dentro da família” (p. 164).

Uma das conseqüências dessa preocupação com a educação da criança é a organização da escola nos moldes mais próximos da que prevalece atualmente, ou seja, o inicio da separação dos alunos por idade e em classes regulares; a correspondência entre idade e classe escolar torna-se cada vez mais rigorosa nos anos subseqüentes, ou melhor, “[...] a preocupação com a idade se [torna] fundamental no século XIX e em nossos dias”, como afirma Ariès (1981, p. 166).

No século XIX, uma nova concepção de criança e de educação se consolida. A infância, encarada como fraqueza que necessita da humilhação para ser melhorada, cede lugar à idéia da criança precisar ser preparada para a vida adulta; preparação que exige cuidados e uma formação com disciplina rigorosa e efetiva, sem as surras de antigamente, mas ainda recorrendo a castigos corporais mais suaves. Com isso, a importância moral e social da educação aumenta e a formação metódica da criança em instituições especializadas é adaptada às novas finalidades. A infância, então, acaba sendo prolongada até quase toda a duração do ciclo escolar. Ariès (1981) assinala que “[...] nossa civilização moderna, de base escolar, [é] então definitivamente estabelecida” (p. 233).

A crescente preocupação moral e educativa, a partir do século XVII, faz com que as instituições escolares se organizem cada vez mais e que apareça a forte ligação entre criança, educação e escola. Surge, então, esse novo lugar para a criança. Segundo as palavras de Clastres (1991, p. 137), psicanalista francês:

[...] esse novo lugar dado à criança tem como efeito cristalizar o conjunto familiar, recentrá-lo em torno dessa nova criança em surgimento, ‘a criança escolar’. Esse deslocamento em nome do ideal do ‘adulto aprimorado’ vai dizer respeito à sociedade em sua totalidade.

No final do século XIX, a ciência que se desenvolve começa a mostrar uma criança mortalmente atingida pelas doenças infecciosas e vítima do regime escolar. A higiene infantil, então, começa o combate à mortalidade, e os novos conhecimentos começam a questionar os princípios educativos. Inicia-se uma série de estudos e pesquisas tendo a criança como temática, ou seja, a criança passa a ser objeto específico de estudo das várias áreas de conhecimento. Um outro fato importante é a instituição da escolaridade primária obrigatória que é adotada, mais ou menos, a partir de 1890 nos países ocidentais atingidos pela industrialização crescente. No Brasil, a expansão da educação começa sobretudo a partir de 1930, época em que também algumas condições estão concorrendo para a implantação definitiva do processo de industrialização no País.

Nesse período, final do século XIX e início do século XX, Freud com a Psicanálise abre um campo de investigação antes desconhecido. Introduz a noção de inconsciente e abala a confiança que a cultura ocidental deposita na razão. “Descobre” a sexualidade infantil e contesta a idéia da “inocência” da criança, o que também provoca abalos na concepção que o ser humano tem dele mesmo.

A Psicanálise, então, traz um novo discurso sobre o ser humano, não como indivíduo (objeto da ciência), mas como marcado pelo inconsciente, por essa “outra cena” ao mesmo tempo inquietante e familiar, um ser humano passível de sonhar, amar, desejar, construir crenças, odiar, culpar-se, etc.

Antes de se pensar especificamente na criança sob a ótica da Psicanálise, alguns conceitos psicanalíticos, como “inconsciente”, “sexualidade”, “corpo” e “linguagem”, precisam ser abordados resumidamente.

Para Chauí (1996), com a noção de inconsciente surge algo desconhecido – ou só indiretamente conhecido – para a consciência, algo sobre o qual a consciência nunca poderá refletir diretamente e que determina tudo o que a consciência e o sujeito sentem, falam, dizem e pensam, ou seja, com a noção de inconsciente, Freud descobre “(...) uma poderosa limitação às pretensões da consciência para dominar e controlar a realidade e o conhecimento” (p. 169).

Vale a pena ressaltar que o inconsciente freudiano não deve ser pensado como o lugar da irracionalidade em oposição à racionalidade da consciência, pois ele tem seus atributos e sua lógica própria (lógica do inconsciente) que diferem marcadamente das leis da atividade psíquica consciente (lógica do consciente). O inconsciente freudiano designa um sistema psíquico que possui um modo próprio de funcionamento (processo primário, deslocamento e condensação) e opera segundo leis próprias (desconhece o tempo, a negação, a contradição).

Com a descoberta da sexualidade infantil, perverso-polimorfa, Freud provoca uma onda de protestos enorme. Ele mesmo se refere a isso, assinalando que:

A infância era encarada como “inocente” e isenta dos intensos desejos do sexo, e não se pensava que a luta contra o demônio da “sensualidade” começasse antes da agitada idade da puberdade; tais atividades sexuais ocasionais, conforme tinha sido impossível desprezar nas crianças, eram postas de lado como indícios de degenerescência ou de depravação prematura, ou como curiosa aberração da natureza; poucos dos achados da Psicanálise tiveram tanta contestação universal ou despertaram tamanha explosão de indignação como a afirmativa de que a função sexual se inicia no começo da vida e revela sua presença por importantes indícios mesmo na infância ([1924 ou 1925]/1976b, p. 46-47).

A descoberta da sexualidade infantil, sem indícios de degenerescência ou de depravação prematura ou como curiosa aberração da natureza, provoca, então, protestos e espanto na sociedade conservadora do final do século XIX, já que até essa época a criança era vista como um símbolo de pureza, um ser assexuado. Assim, para escândalo da comunidade científica e da moralidade cristã-vitoriana de então, a sagrada associação entre a criança e a inocência fica abalada.

O conceito de sexualidade para Freud é bem específico. A sexualidade está separada de uma ligação estreita com os órgãos sexuais e o sexo genital e é considerada uma função corpórea mais abrangente que visa basicamente ao prazer e que pode, ou não, servir às finalidades de reprodução. Laplanche e Pontalis (1976), no verbete sobre sexualidade, resumem nitidamente o conceito:

Na experiência e na teoria psicanalíticas, “sexualidade” não designa apenas as atividades e o prazer que dependem do funcionamento do aparelho genital, mas toda uma série de excitações e de atividades presentes desde a infância, que proporcionam um prazer irredutível à satisfação de uma necessidade fisiológica fundamental (respiração, fome, função de excreção, etc.), e que se encontram a título de componentes na chamada forma normal de amor sexual (p. 619).

O conceito freudiano de sexualidade questiona a noção de instinto sexual. Instinto (instinkt) seria um esquema de comportamento herdado, próprio de uma espécie animal, que pouco varia de um indivíduo para outro, que se desenrola segundo uma seqüência temporal pouco suscetível de alterações, e que parece corresponder a uma finalidade, ou seja, seria uma seqüência mais menos esteriotipada de ações em que o objeto visado é mais rígido e fixo (sentido biológico). Freud, então, propõe a noção de pulsão (trieb) sexual, em que o objeto não é fixo, nem os fins são “naturais” e é característica da sexualidade humana. Com a descoberta da sexualidade infantil, Freud descobre o corpo erógeno: é o corpo representado investido sexualmente; é o corpo representado originário ou a imagem que se tem do corpo, marcado pela pulsão, “no qual as manifestações somáticas surgem articuladas à fantasmática do sujeito e suas vicissitudes” (Cukiert & Priszkulnik, 2000, p. 57).

Como conseqüência, a noção de corpo para a Psicanálise tem uma especificidade que merece ser mencionada, pois é bem diferente da noção de corpo para a Biologia.

O corpo biológico é um corpo objetivado (objeto da ciência), um organismo, para ser estudado em termos de suas funções (digestão, respiração, etc.), do funcionamento específico dos vários órgãos e seus tecidos, do funcionamento das células. O corpo para a Psicanálise é um corpo tecido e marcado pela sexualidade e pela linguagem (Priszkulnik, 2000, p. 20).

Freud, portanto, propõe uma nova leitura da corporeidade, que acaba oferecendo uma nova leitura da construção do sujeito humano.

A Psicanálise freudiana enfatiza a palavra e o poder da palavra. Freud (1926/1976c) destaca isso quando escreve: “Não desprezemos a palavra; afinal de contas, ela é um instrumento poderoso; é o meio pelo qual transmitimos nossos sentimentos a outros, nosso método de influenciar outras pessoas; as palavras podem fazer um bem indizível e causar terríveis feridas” (p. 214).

A palavra nomeia, ordena, alivia, consola, cura; chega a criar quando nomeia algo.

O poder da palavra e o fato do sujeito humano estar inserido na linguagem e falar merecem de Jacques Lacan, um nome de peso no universo psicanalítico, um desenvolvimento teórico considerável. Esse autor, seguindo o espírito da obra freudiana, mostra de forma enfática a importância da linguagem para a constituição do sujeito humano, já que somos humanos porque falamos. O inconsciente, como formulado por Freud, se revela na fala, mesmo que o sujeito não queira, e além de seu conhecimento consciente, ou seja, a linguagem opera fora de nosso controle consciente. Para estudar o discurso humano, já que o humano é um sujeito falante, Lacan (1985) recorre à lingüística e ao signo lingüístico (esse signo comporta duas faces: o significado ou conceito da palavra e o significante ou a imagem acústica do som material), reexamina o campo da linguagem e centra esse campo sobre o conceito de significante. Procurando articular o inconsciente freudiano e a linguagem, Lacan (1985) vai afirmar que o inconsciente é “estruturado, tramado, encadeado, tecido de linguagem; e não somente o significante desempenha ali um papel tão grande quanto o significado, mas ele desempenha ali o papel fundamental” (p. 139).

Um significante pode produzir várias significações, ou seja, uma mesma imagem acústica pode querer dizer coisas diferentes para sujeitos diferentes; posso querer dizer uma palavra com determinada significação, mas quando falo, falo sem saber e sempre mais do que sei (além do conhecimento consciente), portanto ao falar posso estar dando à palavra uma significação diferente daquela que realmente queria dar. Quem ouve, pode dar à mesma palavra uma outra significação bem diferente da minha, da qual também não tem conhecimento. Essa situação também abala a ilusão do ser humano de saber perfeitamente o que está falando, de ter certeza que o outro ser humano está entendendo plenamente o que está sendo falado e de ter a convicção que é possível uma comunicação sem ambigüidades. A fala tem a característica de ser inevitavelmente ambígua.

Lacan, nas suas formulações, também se refere ao corpo marcado pela linguagem, o corpo que pode ser “tocado” por meio da palavra. Essa idéia da palavra poder “tocar” e modificar o corpo, aparece em Freud num texto onde ele discorre sobre o tratamento psíquico. Ele escreve que um leigo sem dúvida achará difícil compreender de que forma os distúrbios patológicos do corpo e da mente podem ser eliminados por ‘meras’ palavras. Ele achará que lhe estão pedindo que acredite em mágica (1905/1972, p. 297).

Agora, então, com esses parâmetros – inconsciente, sexualidade, corpo, linguagem – como pensar a criança para a Psicanálise?

A criança que Freud descortina é um sujeito desejante, ela está submetida às leis da linguagem que a determinam, demandando amor e não só os objetos que satisfaçam as necessidades. Não é a criança “inocente”, aquele ser em quem o “demônio da sensualidade” não provoca abalos, inquietações e perturbações.

A construção desse sujeito humano criança começa antes mesmo de ela nascer biologicamente. Antes de vir ao mundo, ela já é falada pelos outros, já é marcada pelo desejo inconsciente dos pais e ocupa um lugar no imaginário desses pais (esses pais têm as marcas dos pais deles, esses últimos têm as marcas dos respectivos pais e, assim, sucessivamente). Ela é esperada de determinado jeito, já representa algo para um e outro dos pais em função da história de cada um, já tem um lugar marcado simbolicamente. Ao nascer ela já encontra essa trama inevitável, e é inevitável pelo fato de o ser humano pertencer a uma dada filiação, a uma dada sociedade, a uma dada cultura. Portanto, ela nasce inserida na linguagem e num determinado contexto familiar e socioeconômico-cultural. Essa criança freudiana já existe antes mesmo do nascimento biológico e persiste no adulto, porque o que Freud acentua é a importância das impressões nos primeiros anos de vida para a compreensão dos distúrbios no adulto.

Se pensarmos na palavra criança, ela também é uma criação da linguagem e vimos como essa noção se modifica no decorrer da História e como a noção de criança, nos dias atuais, está muito ligada à “criança escolar”. Então, a criança freudiana está aquém e além da criança estudada, por exemplo, pela Biologia e também está aquém e além da criança escolar.

Essa criança já é falada antes mesmo de nascer e vai demorar, algum tempo, para ter acesso à sua própria fala, para dispor de uma função simbólica própria. Mas, isso não significa que não se possa conversar com ela. Ela nasce inserida na linguagem e, portanto, precisará aprender a falar. Os adultos que não conversam com crianças pequenas pela simples razão de acreditarem que elas não entendem o sentido das palavras, estão equivocados. É evidente que o vocabulário delas é mais reduzido; entretanto, quando nos dirigimos a elas com palavras mais simples, não só elas entendem o que está sendo dito, como as palavras dirigidas a elas adquirem um sentido “humanizador” (somos seres humanos porque falamos). Resgatar a criança por meio de sua fala possibilita separar essa determinada criança das concepções que os adultos possam estar fazendo dela.

A criança freudiana nasce com o corpo-organismo que passará pelas etapas de desenvolvimento e de maturação estudadas pela Biologia. Entretanto, ela vai construindo o corpo tecido e marcado pela sexualidade e pela linguagem (dependente das vicissitudes de sua própria vida e de sua estruturação inconsciente), corpo que, muitas vezes, não coincide com o corpo-organismo e que, muitas vezes, pode chegar a alterar o funcionamento desse corpo-organismo.

Freud observa que o nascimento de uma criança nunca corresponde exatamente ao que os pais esperam dela, pois o que eles esperam é a perfeição. Ele refere-se a isso escrevendo que os pais

[...] acham-se sob a compulsão de atribuir todas as perfeições ao filho [...] e de ocultar e esquecer todas as deficiências dele [...] A criança concretizará os sonhos dourados que os pais jamais realizaram [...] O amor dos pais, tão comovedor e no fundo tão infantil, nada mais é senão o narcisismo dos pais renascido, o qual, transformado em amor objetal, inequivocamente, revela sua natureza anterior (Freud, 1914/1974, p.108).

Assim, os pais (ou qualquer outro adulto) sempre idealizam a criança (é inevitável). Esperam que ela seja inteligente, educada, obediente, boa aluna, asseada, ordeira, etc., enfim, uma supercriança que se transformará num superadulto. Como é impossível para qualquer ser humano atingir a perfeição, quanto mais se espera de uma criança, mais ela pode fracassar, e esse fracasso pode ser até “saudável”, na medida em que fracassar diante de um ideal inatingível é a condição de buscar um caminho próprio, de buscar usufruir suas características específicas e singulares.

A Psicanálise sublinha que idealizar o outro (criança, aluno, amigo, cônjuge, etc.) é inevitável, na medida em que qualquer relação com o outro traz a marca do narcisismo, que faz parte da constituição do sujeito humano, e ninguém se livra dele ou se “cura” dele.

Outro aspecto importante que merece ser enfatizado na relação entre a criança e o adulto é a amnésia infantil. Freud se refere a essa amnésia infantil, conhecida e explicada pela ciência por uma imaturidade funcional da criança para registrar as suas impressões, apresentando uma explicação específica. Laplanche e Pontalis (1976), no verbete amnésia infantil, escrevem de maneira bem clara que é a

amnésia que geralmente cobre os fatos dos primeiros anos de vida. [Para Freud] ela resulta do recalcamento que incide na sexualidade infantil e se estende à quase totalidade dos acontecimentos da infância. O campo abrangido pela amnésia infantil encontraria o seu limite temporal [por volta dos cinco ou seis anos] (p. 52).

Essa amnésia infantil distancia o adulto da própria infância e é inevitável. É inevitável também que essa distância da própria infância, distancie o adulto da criança, a tal ponto que esta se torna um enigma para ele. Assim, a Psicanálise afirma que a criança é sempre um enigma para o adulto (como o adulto também é um enigma para a criança), ou seja, a criança sempre interpela o adulto (como o adulto também interpela a criança). Portanto, aceitar que a criança é sempre um enigma para o adulto é reconhecer que a relação com a criança não está “resguardada” de contradições, choques e conflitos.

Pensar na criança implica necessariamente o adulto com suas concepções ou com seus preconceitos em relação à infância. Construir um ideal para a criança, implica necessariamente construir um ideal para o adulto. Se existe a idéia da criança como “um adulto em miniatura”, o adulto é o padrão a ser atingido e, conseqüentemente, a criança pode ser vista como “inferior” enquanto não atingir o padrão esperado. Se a criança é vista como “uma tábula rasa”, ela é vista como “um pedaço de barro” (algo “menor”), que precisa ser moldado pelo adulto provedor e protetor. Se ela é vista como “inocente”, ela precisa da proteção do adulto e da disciplina imposta pelo adulto para não se deixar corromper pelas tentações do mundo. Assim, independentemente de como a criança é vista, existe o padrão de adulto a ser atingido. Dito de outra maneira, o adulto idealiza a criança sem perceber que também está construindo um ideal para ele; pode ser um ideal de pai ou mãe, de aluno(a), de professor(a), de trabalhador(a), etc.

A Psicanálise, ao trazer um novo discurso sobre o ser humano, destaca que qualquer relação entre sujeitos traz à baila desentendimentos, choques entre idéias, sentimentos de amor e ódio, culpas, ternura mútua, etc., toda a vasta gama de emoções e afetos que existem em cada um de nós. Conseqüentemente, a relação entre sujeitos não existe sem tropeços e esses tropeços são inevitáveis por sermos sujeitos marcados pelo inconsciente (o inconsciente freudiano) e por nossas relações serem mediadas pela linguagem.

O que Freud afinal descortina é uma concepção de criança muito peculiar, ou seja, “[...] não a criança policiada, educada, disciplinada, e sim a criança visada pelo gozo, gozo que deixa seus traços no adulto, em seus sucessos e seus fracassos, suas perversões ou suas sublimações” (Clastres, 1991, p.138). Ele postula um sujeito que escapa ao controle da educação ao propor uma criança dotada de uma sexualidade perverso-polimorfa. Desfaz a aura de imaculada castidade erguida ao redor das crianças, porque se supunha que o estado de pureza era o seu estado natural, e abala essa idealização da infância. Contesta a concepção de infância como sendo um período calmo e tranqüilo ao enfatizar que as crianças também precisam achar sentidos para muitas questões e enigmas que geram muita ansiedade, como “de onde viemos”, “para que estamos aqui”, “para onde vamos”, “o que é a morte, o sexo, a maldade, a rejeição, o desejo, o limite, o amor”, ou seja, enfatiza que elas também vivem conflitos e contradições diante de questões essenciais do ser humano diante de si mesmo e dos grandes mistérios da vida e do universo.

Com o poder de sua obra e com a amplitude e a audácia de suas especulações, Freud abalou e revolucionou o pensamento e as vidas de uma era. Com seu trabalho, ele contestou e continua contestando tabus sociais, culturais, religiosos e científicos.

 

Referências

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Chauí, M. (1996). Convite à filosofia. São Paulo: Ática.        [ Links ]

Clastres, G. (1991). A criança no adulto. In: J. Miller (Org.), A criança no discurso analítico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.        [ Links ]

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Endereço para correspondência
Av. Prof. Mello Moraes, 1721 - Bloco F. CEP 05508-030 - Cidade Universitária - São Paulo-SP
E-mail: leiapris@ajato.com.br

Encaminhado em 03/05/04
Revisado em 23/06/04
Aceito em 30/07/04

 

 

Sobre a autora:

1 Léia Priszkulnik: Psicóloga Clínica, Psicanalista, Profa. Dra. do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da USP, Docente e orientadora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica do IP-USP.