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Avaliação Psicológica
versão impressa ISSN 1677-0471
Aval. psicol. vol.9 no.3 Porto Alegre dez. 2010
Adaptação e validação de uma escala de medida de cognição na ansiedade social
Adapting and validating a measurement instrument for cognition in social anxiety
Paula Vagos1, I; Anabela PereiraI; Deborah BeidelII
IUniversidade de Aveiro
IIUniversidade Central da Florida
Resumo
Este trabalho pretende apresentar e avaliar a versão portuguesa de uma escala de medida de cognição na ansiedade social, a Escala de Crenças e Pensamentos Sociais. O instrumento foi traduzido da língua inglesa para portuguesa e a tradução foi avaliada pelo método de reflexão falada e retroversão. A versão portuguesa foi aplicada a uma amostra de 937 jovens de ambos os sexos. Uma sub-amostra de 679 participantes respondeu igualmente a um instrumento de medida de ansiedade e evitamento social, que serviu como variável critério para avaliar a validade de constructo. Os resultados indicam que a escala é constituída por dois factores: desconforto na interacção social e desconforto no desempenho público. Os índices de validade e consistência interna obtidos foram adequados, apontando para a adequabilidade psicométrica da versão portuguesa do instrumento. São agora necessários estudos aprofundados, nomeadamente para determinar a utilidade do instrumento para diagnóstico e avaliação da eficácia de intervenção.
Palavras-chave: Ansiedade social; Cognição; Avaliação psicológica; Adolescência.
Abstract
This work presents the Portuguese version of an instrument designed to measure cognition in social anxiety, The Social Thoughts and Beliefs Scale. The instrument was translated from English to Portuguese and the translation was evaluated by the thinking aloud method and back-translation. The Portuguese version was then applied to 937 youngsters in Portugal, both male and female. A sub-sample of 679 participants also filled out an instrument measuring social anxiety and social avoidance, which was used as criteria for construct validity assessment. The results suggest that the instrument is composed of two factors: discomfort in social interaction and discomfort in public performance. Validity and internal consistency indexes were adequate, pointing to good psychometric characteristics for the Portuguese version of the instrument. Further studies are now needed, namely to determine its utility as a tool for diagnostic and intervention efficacy assessment.
Keywords: Social anxiety; Cognition; Psychological assessment; Adolescence.
Introdução
A ansiedade social é uma perturbação psicológica caracterizada por um medo intenso, persistente, excessivo e desproporcional de eventos sociais, nos quais o indivíduo acredita existir a possibilidade de ser observado ou avaliado por outros (American Psychological Association, 2002). As teorias cognitivas sobre ansiedade social (Clark, 2001; Rapee & Heimberg, 1997) definem a cognição, ou seja, o significado dado a situações sociais, como um dos principais factores responsáveis pelo desenvolvimento e manutenção desta perturbação. De acordo com estas teorias, a ansiedade social é caracterizada por um ciclo, que se inicia na activação de crenças centrais negativas relativas ao próprio desempenho social, derivadas de altos padrões sociais auto-impostos, e expressas em pensamentos automáticos negativos. Esta activação cognitiva suscita afecto negativo e apreensão social, bem como enviesamento no processamento de informação. Tal interfere, por sua vez, na qualidade da resposta dada em eventos sociais, diminuindo a eficácia social e reforçando as crenças iniciais de inaptidão social.
Assim, as crenças e produtos cognitivos negativos parecem explicar o caminho indirecto que ocorre desde a ansiedade activada até ao mau desempenho interpessoal e consequências sociais, contribuindo para a pobre aceitação social, também na adolescência (Erath, Flanagan, & Bierman, 2007). Vários trabalhos têm vindo a comprovar o enviesamento cognitivo ao nível das estruturas, processos e produtos cognitivos.
No que se refere a estruturas cognitivas, os indivíduos que sofrem de ansiedade social parecem possuir esquemas interpessoais negativos, caracterizados por uma representação negativa de si próprio, dos outros e da relação social. O indivíduo com ansiedade social representa-se como frágil, vulnerável, diferente, isolado, incapaz de organizar a sua vida individualmente e desejoso de agradar aos outros, mesmo que tal implique sacrificar os próprios interesses ou desejos (Cunha, 1996; Cunha & Pinto- Gouveia, 1999; Pinto-Gouveia, Castilho, Galhardo, & Cunha, 2006); ao outro, representa como alguém propenso a avaliar, criticar e julgar, não amistoso ou de confiança, ao mesmo tempo que é alguém a quem se quer agradar e/ou impressionar (Alden & Wallace, 1995; Baldwin & Main, 2001; Cunha, 1996; Cunha & Pinto-Gouveia, 1999; Pinto-Gouveia e colaboradores, 2006). A relação social é, consequentemente, vista como fonte de sofrimento emocional e respostas sociais desagradáveis, sendo, portanto, temida (Cunha, 1996; Cunha & Pinto- Gouveia, 1999; Pinto-Gouveia e colaboradores, 2006).
No que se refere ao processamento de informação, tem sido verificado um enviesamento negativo específico para informação de natureza social ao nível da atenção e da interpretação. O indivíduo com ansiedade social tende a focar-se em pistas negativas, do próprio comportamento (Alden & Wallace, 1995; Stopa & Clark, 1993), do evento social (Alden & Wallace, 1995) ou do comportamento do outro, visto como informativo da avaliação que poderá estar a realizar do próprio (Ingram, Scott, Holle, & Chavira, 2003). Este indivíduo tende, igualmente, a interpretar eventos ambíguos, especificamente de natureza social e relativos a si próprio, de forma mais negativa que sujeitos sem ansiedade social (Amin, Foa, & Coles, 1998; Huppert, Foa, Furr, Filip, & Mathews, 2003; Voncken, 2006), e a esperar resultados mais negativos desses eventos e particularmente das suas falhas sociais (Stopa & Clark, 2000; Voncken, 2006).
Por último, em resposta ao processamento enviesado de informação, ancorado nas estruturas cognitivas centrais, são activadas respostas fisiológicas, comportamentais e cognitivas. As primeiras referem-se a palpitações, tremuras, sudorese, rubor, dentre outros (Neal & Edelmann, 2003); as segundas ao evitamento de situações sociais ou à prática de comportamentos de segurança em eventos sociais que não podem ser evitados (McManus, Sacadura, & Clark, 2008; Rowa & Antony, 2005). Os produtos cognitivos referem-se a pensamentos sociais negativos automáticos. Os sujeitos com ansiedade social referem mais pensamentos negativos auto-avaliativos em situações de desempenho e interacção social (Beazley, Glass, Chambless, & Arnkoff, 2001; Stopa & Clark, 2000). Este tipo de pensamentos ou auto-declarações negativas está presente desde a infância e adolescência, sendo mais frequentes a partir da adolescência, onde, para além do próprio desempenho, os pensamentos automáticos negativos referem-se à interacção social (Alfano, Beidel, & Turner, 2006) e são especialmente centrados em si próprio (Glass & Furlong, 1990).
Considerando a importância da cognição para a compreensão e manutenção da ansiedade social, Turner, Johnson, Beidel, Heiser e Lydiard (2003) desenvolveram um instrumento para avaliar a presença de pensamentos e crenças sociais associados a esta perturbação. Este instrumento, denominado Social Thoughts and Beliefs Scale (STABS), foi considerado adequado para avaliar cognições características da ansiedade social, diferenciando indivíduos com ansiedade social de indivíduos com outras perturbações de ansiedade. A sua utilidade e adequabilidade psicométrica foram comprovadas em amostras clínicas (Turner e colaboradores, 2003) e não clínicas (Fergus, Valentiner, Kim, & Stephenson, 2009), sendo a sua constituição definida em dois factores: comparação social, referindo-se a crenças de que os outros seriam mais socialmente competentes que o próprio; e inaptidão social, consistindo de crenças de que o próprio se comportaria de forma estranha numa situação social e pareceria ansioso aos outros.
O presente trabalho presente apresentar o processo de construção da versão portuguesa do Social Thoughts and Beliefs Scale, bem como realizar a sua análise psicométrica preliminar junto a uma amostra adolescente não clínica. Para isso, foi necessário proceder à tradução e adaptação do instrumento e à sua aplicação piloto numa amostra adolescente portuguesa.
Processo de tradução e adaptação do Social
Thoughts and Beliefs Scale
A tradução da escala para língua portuguesa foi feita a partir da versão americana do instrumento por um estudante do curso de doutorado em psicologia. A avaliação desta tradução seguiu dois processos: forward-translation e back-translation (Hambleton, Merenda, & Spielberger, 2005; Sireci, Yang, Harter, & Ehrlich, 2006). O primeiro passa pela avaliação da versão traduzida por um grupo de examinados com características demográficas próximas do grupo a que se destina o instrumento. Cinco alunos do ensino secundário público avaliaram a prova pelo método de reflexão falada e não foram verificadas dificuldades. O processo de back-translation refere-se à tradução da versão portuguesa para a língua original e resolução de possíveis discrepâncias. A tradução para língua inglesa foi feita por um professor doutorado e perito em psicologia, alheio ao presente trabalho. Quatro itens tiveram de ser revistos após a primeira retroversão por não existir equivalência entre a retroversão e a versão original do instrumento (itens 5, 6, 14 e 19). Este processo está exemplificado com o item 19 na Tabela 1.
Destes processos de avaliação resultou a versão portuguesa do instrumento, denominada Escala de Pensamentos e Crenças Sociais, considerada equivalente ao instrumento original, uma vez que a versão original e a versão traduzida do instrumento não apresentavam divergências de conteúdo ou compreensãos2. Em seguida serão apresentados os dados relativos à análise psicométrica deste instrumento.
Método
Participantes
O processo de amostragem foi polietápico. Numa primeira fase, procedeu-se a uma amostragem por grupo, tendo como critério o distrito de Aveiro. Foram seleccionadas nove escolas secundárias, em função da sua classificação no ranking nacional de escolas, seleccionando três escolas de nível de desempenho médio, alto e baixo. Oito escolas aceitaram participar com a avaliação de duas turmas de cada ano de ensino, seleccionadas aleatoriamente pelos concelhos executivos das próprias escolas. A amostra ficou assim constituída por 937 estudantes que completaram a Escala de Pensamentos e Crenças Sociais, com idades compreendidas entre os 15 e os 22 anos (M = 16,75; DP = 1,48). Destes, 38,7% (n = 363) eram do sexo masculino e 61% (n = 572) eram do sexo feminino. No que respeita ao ano de escolaridade, 32,7% (n = 306) frequentavam o 10º ano, 33,5% (n = 314) frequentavam o 11º ano e 33,76% (n = 315) frequentavam o 12º ano. Dois alunos não deram qualquer informação relativamente aos seus dados demográficos.
Desta amostra, 72.4% dos jovens (n = 679) responderam, no mesmo momento de avaliação, a um segundo questionário. Destes, 38.4% (n = 261) eram do sexo masculino e 61,3% (n = 416) eram do sexo feminino. Relativamente ao ano de escolaridade, 31,7% (n = 215) frequentavam o 10º ano, 36,1% (n = 245) frequentavam o 11º ano e 32% (n = 217) frequentavam o 12º ano. As idades destes alunos variaram entre os 15 e os 20 anos (M = 16,68; DP = 1,14). Dois alunos não deram qualquer informação relativamente aos seus dados demográficos. A observação dos dados permite concluir que a média de idades e distribuição por sexo e ano de escolaridade deste grupo de alunos é semelhante à da amostra de que foi retirada. Igualmente, verificámos que os alunos que apenas preencheram o primeiro questionário não diferem dos alunos que responderam aos dois questionários, no que respeita à média de idades (t = -0.26; p = 0.76), distribuição por sexo (χ 2 = 0.79; p = 0.78) ou ano de escolaridade (χ 2 = 3; p = 0.22).
Instrumentos
Escala de Pensamentos e Crenças Sociais (EPCS)
Trata-se do instrumento resultante da tradução e adaptação linguística do Social Thoughts and Beliefs Scale, que foi construído com o intuito de avaliar a presença de pensamentos sociais típicos da ansiedade social (Turner e colaboradores, 2003). A EPCS, à semelhança da sua versão original americana, é constituída por 21 itens. Cada item é respondido numa escala gradativa em 5 pontos, desde nada característico até sempre característico, referindo-se ao quanto determinado item é característico do pensamento do respondente ao antecipar ou participar em eventos sociais. Quanto maior o valor obtido pelo sujeito, maior o número de pensamentos sociais negativos característicos de ansiedade social que ele endossa face a situações sociais ansiógenas.
Escala de Ansiedade e Evitamento de Situações Sociais para Adolescentes (EAESSA)
Este instrumento pretende avaliar a ansiedade e evitamento social a partir de 34 itens respondidos em duas escalas. A primeira refere-se à ansiedade sentida em eventos sociais típicos da adolescência, e varia em 5 pontos, desde nada ansioso a muitíssimo ansioso; a segunda refere-se ao evitamento das mesmas situações sociais, variando em 5 pontos, desde nunca evito a evito quase sempre. Quanto mais elevados os valores obtidos em cada uma das escalas, maior o nível de ansiedade social sentida e maior o nível de evitamento de situações sociais, respectivamente. Este instrumento tem demonstrado adequabilidade psicométrica, no que se refere aos índices de fidelidade e validade factorial e de constructo (Cunha, Gouveia, & Salvador, 2008; Cunha, Gouveia, Salvador, & Alegre, 2004). No presente trabalho foram obtidos índices de consistência interna medida pelo Alpha de Cronbach de 0.94 para a escala de ansiedade e de 0.91 para a escala de evitamento social.
Procedimento
A recolha de dados foi realizada após obtida autorização por parte da Direcção Geral de Inovação e Desenvolvimento Curricular e dos concelhos executivos das escolas secundárias participantes. Os instrumentos foram aplicados como parte de um protocolo de avaliação do desempenho social, que incluía igualmente questionários de avaliação de assertividade, além de uma folha de rosto em que eram pedidas informações demográficas (sexo, idade e ano de escolaridade). Foi preenchido em contexto de sala de aula, demorando em média 40 minutos. Um dos investigadores deslocou-se a cada escola para explicar sucintamente os objectivos da investigação, a saber, caracterizar o desempenho social na adolescência e desenvolver estratégias para a sua promoção. A confidencialidade das respostas foi garantida e a participação dos alunos foi voluntária.
Resultados
Análise factorial exploratória
Foi realizada uma análise factorial exploratória com o método de componentes principais e rotação varimax. Foram mantidos os factores com valores próprios superiores a 1. Os itens foram alocados ao factor em que tivessem saturação mais alta, sendo o valor mínimo de saturação considerado aceitável de 0,40.
Foi encontrada uma solução de dois factores (KMO = 0,96), cuja constituição não corresponde aos factores descritos por Turner e colaboradores (2003) e replicados por Fergus e colaboradores (2009). Os factores encontrados explicam 47,2% da variância de resultados. Com base na análise de conteúdo dos itens que compõem cada factor, o primeiro foi denominado de desconforto na interacção social e o segundo de desconforto no desempenho público (Tabela 2).
O primeiro factor refere-se a pensamentos negativos relativos a eventos sociais onde o indivíduo está em contacto recíproco directo com outras pessoas. O segundo refere-se a pensamentos negativos referentes a eventos sociais em que o desempenho social está a ser observado, avaliado ou comparado com outros.
Sensibilidade da escala
A análise de resultados descritivos, de curtose e assimetria permite concluir que tanto as subescalas como a escala completa se aproximam da distribuição normal. É notória, ainda assim, uma ligeira assimetria positiva (Tabela 3).
Consistência interna
Para análise da consistência interna foi utilizado o Alpha de Cronbach¸ tendo como critério o valor de 0,70, de acordo com as indicações de Nunally (1978). Os resultados obtidos foram de 0,93, 0,91 e 0,82 para a subescala de desconforto na interacção social, desconforto no desempenho público e escala completa, respectivamente. Estes valores são adequados de acordo com o critério considerado.
Todos os itens se correlacionaram com a escala completa ou subescala a que pertenciam em valores superiores a 0,40, demonstrando associaremse ao conteúdo abordado pela escala completa e especificamente pela subescala a que pertencem. Ao mesmo tempo, a exclusão de qualquer item da escala ou subescalas não aumentava os índices de consistência interna obtidos. Tendo isto em consideração, nenhum item foi excluído da composição final das escalas ou subescalas.
Correlações entre subescalas e escala completa
Foram encontradas correlações positivas significativas a um nível de significância inferior a 0,001 entre a subescala 1 e 2 (r = 0,78), entre a subescala 1 e a escala completa (r = 0,97) e entre a subescala 2 e a escala completa (r = 0,92). Estas correlações indicam a homogeneidade de conteúdos abordados pelas subescalas, bem como a sua incorporação numa medida de escala completa.
Análise por variáveis demográficas
Género
Os alunos do sexo feminino obtiveram resultados mais elevados nos resultados obtidos nas duas subescalas e na escala completa. Esta diferença apenas atingiu nível de significância estatística para a subescala de desconforto no desempenho público (t = -3,12; p < 0,001; Tabela 4).
Grupos etários
Não foram verificadas correlações significativas entre a idade e qualquer uma das medidas consideradas. De igual modo, relativamente aos anos de escolaridade, apenas verificámos existirem diferenças significativas entre o 10º e o 12º ano na subescala de desconforto no desempenho público (t = 2,39; p < 0,05), sendo os alunos do 10º ano a obterem valores mais elevados (Tabela 4).
Validade de constructo
trabalho (Clark, 2001; Rapee & Heimberg, 1997) consideram a activação integrada de respostas emocionais, comportamentais e cognitivas como características de ansiedade social. Assim, elevados níveis de ansiedade social e evitamento social deverão aparecer associados a elevados níveis de pensamentos sociais negativo, pelo que se esperavam correlações significativas positivas entre as escalas da EAESSA e as subescalas e escala completa da EPCS, que avaliam, respectivamente, níveis de ansiedade, evitamento e pensamentos sociais negativos. As correlações encontradas confirmam esta hipótese (Tabela 5), sugerindo que a ECPS avalia pensamentos sociais relevantes para a ansiedade social na adolescência.
Discussão
O presente trabalho cumpriu dois objectivos essenciais. O primeiro passou pela apresentação do processo de tradução e adaptação linguística para a língua portuguesa de uma escala de medida da cognição na ansiedade social, desenvolvida originalmente por Turner e colaboradores (2003) para avaliar pensamentos sociais negativos tipicamente presentes em sujeitos com ansiedade social. A versão portuguesa do instrumento, denominada Escala de Crenças e Pensamentos Sociais (EPCS), ficou constituída após análise pelo método de reflexão falada e equivalência de retroversão (Hambleton e colaboradores, 2005), não tendo sido verificada a necessidade de adaptar o conteúdo ou instruções do instrumento.
O segundo objectivo deste trabalho passou pela análise preliminar da qualidade psicométrica da versão portuguesa da EPCS, numa amostra portuguesa adolescente. Para isso, foi avaliada a estrutura interna da escala, os índices de sensibilidade e fidelidade associados aos resultados da escala e o comportamento da escala face ao sexo e grupo etário.
Os resultados da análise factorial realizada sugerem uma a constituição da escala em dois factores, constituídos em subescalas e denominados de desconforto na interacção social e desconforto no desempenho público. O primeiro refere-se a pensamentos negativos relativos a eventos sociais onde o indivíduo está em contacto recíproco directo com outras pessoas, enquanto o segundo respeita a pensamentos negativos referentes a eventos sociais em que o desempenho social está a ser observado, avaliado ou comparado com outros. Estes factores não correspondem aos encontrados por Turner e colaboradores (2003) por análise factorial exploratória numa amostra adulta clínica, que foram replicados por Fergus e colaboradores (2009) por análise factorial confirmatória numa amostra universitária não clínica. Estes trabalhos definiram dois factores denominados de comparação social e inaptidão social.
As diferenças culturais, etárias e clínicas entre as amostras destes trabalhos e a do presente estudo poderão justificar a diferente estrutura interna encontrada para as duas versões do instrumento (Sireci e colaboradores, 2006), americana e portuguesa, respectivamente. Tal não põe em causa a qualidade do processo de tradução e adaptação, até porque a constituição obtida na amostra portuguesa vem de encontro às principais categorias de eventos sociais definidos no DSM-IV (A.P.A., 2002) e avaliados por medidas de auto-declarações na ansiedade social (Dodge, Hope, Heimberg, & Becker, 1988), que parecem suscitar diferentes estilos cognitivos (Beazley e colaboradores, 2001; Turner, Beidel, & Larkin, 1986): ansiedade na interacção social e ansiedade de desempenho.
A análise da sensibilidade e consistência interna encontrada para os resultados obtidos nos factores de desconforto na interacção social e desconforto no desempenho público atestam a qualidade psicométrica do instrumento. Os resultados indicam que estas subescalas medem constructos homogéneos e sensíveis à distribuição contínua de ansiedade social na população em geral, que inclui a sua expressão normativa, passando pela sua expressão sub-clínica e chegando à sua expressão clínica ou patológica (Rapee & Spence, 2004).
As correlações encontradas entre os resultados das subescalas e entre estes e os resultados da escala completa indicam que as subescalas parecem versar aspectos diferentes de um mesmo constructo. Este constructo global, que corresponde a pensamentos sociais negativos em eventos sociais, poderá ser melhor interpretado pela combinação de pensamentos negativos face à interacção social e face ao desempenho público, tal como avaliados pelas subescalas, que se correlacionam de forma mais forte com os resultados da escala completa do que entre si. Estes resultados são sustentados por trabalhos anteriores sobre a cognição na ansiedade social, que referem a existência de um único factor referente a pensamento negativo generalizado em eventos sociais (Beazley e colaboradores, 2001), podendo, de acordo com Wenzel, Brendle, Kerr, Purath e Ferraro (2007), ser referente a si próprio, aos outros ou aos próprios eventos sociais.
Os resultados obtidos no presente trabalho parecem apontar para a validade de constructo do instrumento em análise, ou seja, para a garantia de que o instrumento avalia o que se propõe medir. Por um lado, verificámos serem os alunos do sexo feminino a apresentarem níveis mais elevados de pensamentos sociais negativos, o que vem de encontro ao demonstrado por vários trabalhos, que indicam que as raparigas apresentam maiores níveis de ansiedade social (D'el Rey, Pacini, & Chavira, 2006; Dell'Osso e colaboradores, 2002; Levpuscek, 2004; Turk e colaboradores., 1998; Vagos & Pereira, 2010) e, particularmente, de pensamentos sociais negativos (Glass & Furlong, 1990; Vagos & Pereira, 2009). Por outro lado, foram obtidas correlações significativas positivas com outro instrumento de avaliação de ansiedade social na adolescência, indicando que os dois instrumentos medirão constructos próximos. As baixas correlações encontradas entre os resultados dos instrumentos considerados, ainda que significativas, são justificadas por estarem a ser avaliadas diferentes dimensões do funcionamento psicológico na ansiedade social tal como definidas por Dodge e colaboradores (1988) ou Glass e Furlong (1990), a saber, níveis de ansiedade, níveis de evitamento comportamental, e níveis de pensamentos ou crenças cognitivas.
O grupo etário avaliado parece consistente em relação aos medos sociais endossados. Trabalhos anteriores indicam que da infância à adolescência aumentam os pensamentos sociais relativos à interacção social (Alfano e colaboradores, 2006), deixando os pensamentos relativos ao desempenho público como possível factor diferenciador da cognição social na adolescência.
Tendo a adolescência como uma fase de desenvolvimento de especial vulnerabilidade a medos sociais (Beidel, 1998; Elizabeth, King, & Ollendick, 2004; Emeriaud, 2006; Inderbitzen, Walters, & Bukowski, 1997; Kashdan & Herbert, 2001), importa construir instrumentos que permitam compreender esta realidade e alertar para a prevenção do desenvolvimento da forma patológica de ansiedade social (Cunha, Pinto-Gouveia, & Soares, 2007; Erath e colaboradores, 2007; Manfro e colaboradores, 2003). Por outro lado, a revisão exaustiva de instrumentos de avaliação na ansiedade social (Osório, Crippa, & Loureiro, 2005) e especificamente na infância e adolescência (Albano & DiBartolo, 2007; Kearney, 2005), revela a escassez de instrumentos de medida da cognição na ansiedade social traduzidos para a língua portuguesa e aplicáveis à adolescência. O presente trabalho será o primeiro passo para responder a esta lacuna. Apesar da versão original este instrumento ter sido construída com o intuito de servir de medida diagnóstica e diferenciadora em amostras clínicas (Turner e colaboradores, 2003), o presente trabalho vem ao encontro de trabalhos anteriores (Fergus e colaboradores, 2009) ao propor a sua pertinência e utilidade em populações não clínicas.
Ainda que preliminares, os resultados obtidos sugerem a adequabilidade psicométrica deste instrumento de medida da cognição na ansiedade social, em amostras não clínicas adolescentes. Trabalhos futuros serão pertinentes para colmatar aspectos não abordados no presente trabalho, nomeadamente alargar a faixa etária de estudo, bem como testar o comportamento do instrumento como factor de diagnóstico e de medida da eficácia terapêutica na ansiedade social. Com o presente trabalho espera-se ter dado um contributo positivo para a compreensão, investigação e divulgação da Escala de Crenças e Pensamentos Sociais, ainda apenas como instrumento informativo e de prevenção face à perturbação de ansiedade social, mas cuja utilidade poderá e deverá ser verificada e alargada em trabalhos continuados.
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Recebido em março de 2010
Reformulado em julho de 2010
Aceito em agosto de 2010
Sobre as autoras:
Paula Vagos: licenciada em Psicologia Clínica e está no momento a concluir o seu doutoramento na mesma área. Tem participado em vários congressos nacionais e internacionais, bem como é autora de várias publicações em actas de congressos e revistas científicas na área. Recebeu em 2008 o prémio de Jovem Investigadora pela Sociedade Portuguesa de Psicologia da Saúde. Actualmente, é também assistente convidada na Universidade de Aveiro e está a concluir o seu trabalho de doutoramento.
Anabela Pereira:doutorada em psicologia e Professora Auxiliar com Agregação na Universidade de Aveiro. É autora e co-autora de vários livros e trabalhos científicos, nacionais e internacionais. Tem colaborado em projectos de investigação financiados pela FCT, IIE e FCG, e em mestrados e doutoramentos em Psicologia da Saúde. É Presidente da RESAPES_AP e coordenadora científica do GAP-SASUC, dos Grupos de Prevenção da Fundação Portuguesa de Cardiologia Centro, e do projecto LUA.
Deborah Beidel:doutorada em psicologia e Professora de Psicologia e Directora do Programa Doutoral em Psicologia na Universidade Central da Florida. É autora de mais de 200 publicações científicas, incluindo revistas científicas, capítulos de livros e livros. Recebeu vários prémios, incluindo em 2007 o prémio Samuel M. Turner Clinical Researcher Award pela American Psychological Association, e vários financiamentos do National Institute of Mental Health and the Autism Speaks Foundation
1Contato:
Email: paulavagos@ua.pt
2Este instrumento poderá ser obtido entrando em contacto com a primeira autora