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Avaliação Psicológica
versão impressa ISSN 1677-0471
Aval. psicol. vol.12 no.1 Itatiba abr. 2013
Funcionamento Diferencial do Item no Alcohol Use Disorders Identification Test1
Differential Item Functioning in the Alcohol Use Disorders Identifi cation Test
Funcionamiento Diferencial del Ítem en el Alcohol Use Disorders Identifi cation Test
Nelson Hauck Filho2; Marco Antônio Pereira Teixeira
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
RESUMO
O objetivo do presente estudo foi investigar a presença de Funcionamento Diferencial do Item (DIF) para o sexo nos itens de uma popular medida de rastreio para a dependência do álcool, o Alcohol Use Disorders Identification Test (AUDIT). Os participantes foram 254 estudantes universitários. As análises de DIF foram realizadas a partir do modelo Partial Credit. Três itens não apresentaram ajuste adequado ao modelo, enquanto outro item apresentou um viés de grande magnitude para o sexo feminino. Especificamente, o item AUDIT-6 mostrou ser, de fato, um aspecto do beber com maior severidade para indivíduos do sexo feminino do que para aqueles do sexo masculino. Recomenda-se cautela na utilização de escores brutos a partir dos 10 itens originais do instrumento e a exclusão do item AUDIT-6 ou sua reformulação para a aplicação em indivíduos do sexo feminino.
Palavras-chave: funcionamento diferencial do item; teoria de resposta ao item; análise de Rasch; dependência de álcool.
ABSTRACT
The aim of the present study was to investigate Differential Item Functioning (DIF) for sex in a popular screening measure of alcohol dependence, the Alcohol Use Disorders Identification Test (AUDIT). Participants were 254 undergraduate students. Rasch analysis-based DIF procedures were employed to evaluate the possibility of sex bias in the AUDIT items. Results showed three items with inadequate fit to the unidimensional Partial Credit model and one item with a large bias against women. Specifically, item AUDIT-6 showed a larger difficulty estimate for women, suggesting a more severe aspect of drinking behavior for these individuals. Recommendations are made with regard to using raw scores based on the sum of the 10 AUDIT items. Dropping out or reformulating the AUDIT-6 item to accommodate sex differences and to reduce errors of individual ability (severity) estimates is strongly advised.
Keywords: differential item functioning; item response theory; Rasch analysis; alcohol dependence.
RESUMEN
El objetivo del presente estudio fue investigar la presencia de Funcionamiento Diferencial del Ítem (DIF) para el sexo en los ítems de una popular medida de rastreo para la dependencia del alcohol, el Alcohol Use Disorders Identification Test (AUDIT). Participaron 254 estudiantes universitarios. Los análisis de DIF fueron realizados a partir del modelo Partial Credit. Tres ítems no presentaron ajuste adecuado al modelo, mientras otro ítem mostró una tendencia de gran magnitud para el sexo femenino. Específicamente, el ítem AUDIT-6 mostró ser, de hecho, un aspecto del beber con mayor severidad para individuos del sexo femenino que para aquellos del sexo masculino. Se recomienda precaución en el uso de escores brutos a partir de los 10 ítems originales del instrumento y la exclusión del ítem AUDIT-6 o su reformulación para la aplicación en individuos del sexo femenino.
Palabras-clave: funcionamiento diferencial del ítem; teoría de respuesta al ítem; análisis de Rasch; dependencia del alcohol.
Diferenças em padrões de uso e abuso de bebidas alcoólicas entre jovens do sexo masculino e feminino são largamente reconhecidas na literatura científica e generalizáveis a diversos contextos culturais (Dawson, Grant, & Stinson, 2004; Harrel & Karim, 2008; Mäkelä e cols., 2006). Estudantes universitários do sexo masculino, em geral, consomem bebidas alcoólicas em maior frequência e quantidade do que aqueles do sexo feminino (Wicki, Kuntsche, & Gmel, 2010). Uma extensa revisão da literatura nacional, por exemplo, mostrou que o consumo pesado de bebidas alcoólicas é mais prevalente entre homens do que entre mulheres, especialmente quando considerado o público jovem (Silveira e cols., 2008). Essa diversidade de padrões é atribuível tanto a normas sociais próprias do contexto universitário e que prescrevem sobre comportamentos tidos como aceitáveis para cada sexo quanto a aspectos fisiológicos associados ao sexo biológico e que influenciam no metabolismo do álcool (Hustad & Carey, 2005; Lewis & Neighbors, 2004). No entanto, as diferenças entre homens e mulheres também podem ser realçadas pela presença de itens, nos instrumentos, com algum tipo de viés que favoreça um dos sexos em detrimento do outro (Wechsler, Dowdall, Davenport, & Rimm, 1995). Vieses nos indicadores utilizados podem, dessa forma, aumentar a taxa de Erro de Tipo I em análises inferenciais, ajudando a superestimar efeitos ou mesmo criar diferenças espúrias nas comparações entre os sexos. Em virtude disso, cada vez mais, tem havido um interesse em investigar vieses para o sexo em medidas de comportamentos relacionados ao consumo do álcool, tais como expectativas sobre o uso (McCarthy, Pedersen & D'Amico, 2009), problemas decorrentes do uso (Earleywine, LaBrie, & Pedersen, 2008) e sinais e sintomas da dependência (Hoeppner, Kahler, & Jackson, 2011).
O Alcohol Use Disorders Identification Test (AUDIT; Babor, de la Fuente, Saunders, & Grant, 1989; Babor, Higgins-Biddle, Saunders, & Monteiro, 2001) é um dos principais instrumentos utilizados para o rastreio da potencial dependência do álcool em serviços de saúde em diversos contextos ao redor do mundo (Bradley e cols., 2003). O questionário é composto por 10 itens de autorrelato (que também podem ser aplicados por um entrevistador) que avaliam hábitos de uso e sinais e sintomas de dependência (Babor e cols., 2001). Pontos de corte foram desenvolvidos para identificar padrões de uso de risco (8-15 pontos), uso nocivo (16-19 pontos) e provável dependência (20-40 pontos), a partir do escore bruto total de um indivíduo no AUDIT (Babor e cols., 1989; Babor e cols., 2001). Essas categorias, ordenadas em termos da severidade crescente no envolvimento com o álcool, mostram o quanto um indivíduo com a pontuação indicada se aproxima de grupos de pacientes com diagnóstico clínico de dependência do álcool e histórico de abuso da substância.
A avaliação de vieses nos itens do AUDIT é um assunto de relevância prática, uma vez que o instrumento tem sido utilizado em investigações sobre diferenças entre homens e mulheres quanto a aspectos relacionados ao beber (Alati e cols., 2004; Welcome, Razvodovsky, & Pereversev, 2010). Rumpf, Hapke, Meyer e John (2002) avaliaram a influência do sexo na capacidade do instrumento AUDIT de discriminar grupos critério de indivíduos com sinais e sintomas de abuso e dependência mediante análises de curva Receiver Operating Characteristic (ROC). As análises separadas por sexo mostraram diferenças significativas entre as áreas debaixo da curva obtidas para homens e mulheres quanto aos pontos de corte de uso de risco e dependência, sugerindo a presença de vieses nos itens. Uma hipótese explicativa para essa diferença é que o item AUDIT-3 possa superestimar diferenças entre homens e mulheres no que diz respeito à frequência de "episódios de uso pesado". Especificamente, a consigna tradicional do item AUDIT-3 questiona o indivíduo (homem ou mulher) sobre a frequência do uso de "seis ou mais doses", ignorando as reconhecidas diferenças entre os sexos quanto ao metabolismo do álcool (Hustad & Carey, 2005). Em razão disso, tem sido sugerida uma alteração para "quatro ou mais doses" quando o item é aplicado a mulheres (Bradley e cols., 2003; Olthuis, Zamboanga, Ham, & Van Tyne, 2011). No estudo de Olthuis e cols. (2011), por exemplo, essa mudança na definição de episódio de uso pesado, quando considerado o sexo do indivíduo, melhorou a capacidade do AUDIT de identificar mulheres com padrões problemáticos de uso de álcool (via curva ROC).
As análises estatísticas regularmente empregadas na avaliação do AUDIT, como a curva ROC, possibilitam avaliar a capacidade geral do instrumento de discriminar grupos clínicos e não-clínicos. Essas técnicas analíticas são de grande importância para a validação de medidas de rastreio em geral, fornecendo estimativas de percentagens de falsos positivos e falsos negativos para diferentes pontos de corte a partir de critérios clínicos (Zweig & Campbell, 1993). Todavia, quando a capacidade diagnóstica de uma medida varia entre grupos populacionais, utilizar a curva ROC não possibilita identificar empiricamente quais itens específicos estão enviesados, quantificar a magnitude deste viés e entender seu significado a partir de modelos teóricos. Para esse propósito, são mais adequadas as análises de Funcionamento Diferencial do Item (Differential Item Functioning ou DIF).
O DIF ocorre quando os valores de um ou mais parâmetros psicométricos de um item específico [por exemplo, a dificuldade (di)] apresentam variação entre determinados grupos populacionais, favorecendo um conjunto de pessoas em detrimento de outro (Embretson & Reise, 2000). Dessa maneira, em uma medida de rastreio como o AUDIT, o DIF de acordo com o sexo pode se dar em função de diferenças entre homens e mulheres quanto à dificuldade (di) estimada para o item. Nesse caso, a probabilidade de resposta positiva ao item varia entre os sexos, mesmo quando controlado o nível de envolvimento com o álcool dos indivíduos. Em um estudo, por exemplo, verificou-se que 38% do total de itens do AUDIT e de três outros instrumentos para rastreio de dependência de álcool apresentaram DIF para sexo ou origem étnica (Schafer & Cherpitel, 1998). A estratégia de avaliação do DIF empregada foi a regressão logística, que permite identificar se a probabilidade de ocorrência de um desfecho (como a resposta positiva a um item) é influenciada de maneira diversa por grupos particulares de indivíduos (Swaminathan & Rogers, 1990). Uma possível interpretação do DIF, em casos como esse, é que o item representa um nível diverso de severidade no envolvimento com o álcool para homens e mulheres no contexto cultural de origem dos participantes.
A existência de DIF confunde o significado dos escores de um indivíduo em um instrumento psicométrico, aumentando o erro padrão da medida (Bond & Fox, 2007). De fato, o DIF pode fazer com que grupos específicos de indivíduos sejam beneficiados ou prejudicados a partir de falsas diferenças detectadas pela avaliação. Por exemplo, mulheres com padrões de beber problemático podem não ser identificadas pelos pontos de corte se alguns itens estão enviesados para o sexo masculino. No caso do AUDIT, por exemplo, não há garantias de que a avaliação seja isenta de viés simplesmente ao alterar a definição de episódio de uso pesado para mulheres (item AUDIT-3), uma vez que outros itens também podem apresentar DIF. Portanto, a investigação do DIF no AUDIT e em medidas em geral de rastreio de possível dependência de bebidas alcoólicas é crucial em estudos e intervenções com grupos populacionais que apresentam alta prevalência de padrões de beber problemático, como os estudantes universitários (Harrel & Karim, 2008; Peuker, Fogaça, & Bizarro, 2006; Teixeira & Dias, 2009). Entretanto, apesar da possível existência de viés para o sexo nos itens do AUDIT e da relevância do assunto, este aspecto ainda não recebeu, até o momento, atenção por parte de investigações empíricas no Brasil. O objetivo do presente estudo, dessa maneira, foi investigar evidências de DIF para o sexo nos 10 itens do AUDIT em uma amostra de estudantes universitários.
Método
Participantes
Participaram do estudo 254 estudantes (60% do sexo feminino) de uma universidade federal do Rio Grande do Sul. As idades variaram entre 18 e 30 anos, com média = 20,85 e DP = 2,33. Os participantes eram alunos de graduação dos cursos de Administração (27,5%), Psicologia (38%), História (16,5%), Economia (9,4%) e Ciências Contábeis (8,6%). A amostra foi definida por conveniência.
Instrumentos
Alcohol Use Disorders Identification Test (AUDIT; Babor e cols., 1989; Babor e cols., 2001). O instrumento é composto por 10 itens que avaliam diversos aspectos do uso de bebidas alcoólicas. Alguns desses aspectos são: padrão de uso (por exemplo, "Com que frequência você consome bebidas que contêm álcool?"), prejuízos relacionados ao uso (por exemplo, "Nos últimos 12 meses, com que frequência você não conseguiu cumprir as tarefas que habitualmente lhe exigem por ter bebido?") e sintomas de provável dependência (por exemplo, "Nos últimos 12 meses, com que frequência você percebeu que não conseguia parar de beber, depois de ter começado?"). Os oito primeiros itens são avaliados em escala Likert de quatro pontos, enquanto os dois últimos apresentam escala de três pontos. A consistência interna para os 10 itens foi α = 0,85 na presente amostra.
Procedimentos
O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da universidade onde foram coletados os dados (nº do processo: 23081.008017/2006-51; CAAE: 0049.0.243.000-06). Os questionários, em formato de autorrelato, foram aplicados de forma coletiva em salas de aula, respondidos individualmente, após permissão prévia das coordenações de curso, autorização dos professores e assinaturas de termos de consentimento pelos participantes.
Análise de dados
As análises dos dados foram realizadas com os softwares SPSS 17.0 e Winsteps 3.72.2. As análises de funcionamento diferencial foram feitas a partir do modelo Partial Credit (Masters, 1982). No modelo Partial Credit, uma extensão do modelo de Rasch (1960) para uso com itens politômicos, cada item possui uma estrutura de medida própria, calibrada a partir das distribuições de frequência observadas para as k categorias de resposta (Embretson & Reise, 2000). O modelo permite que as distâncias entre cada ponto k na escala variem entre os itens (Embretson & Reise, 2000), o que é adequado para um instrumento como o AUDIT, em que cada item apresenta alternativas com conteúdo específico e dispostas em ordem crescente de intensidade. Além disso, é calculada uma estimativa geral de dificuldade (σi) para cada item, que representa a posição da estrutura de medida do item como um todo no contínuo do construto. O DIF, nesse caso, consiste em diferenças significativas na estimativa de dificuldade obtida para homens e mulheres (Bond & Fox, 2007; Linacre, 2012). Para avaliar essa diferença, nesta pesquisa, foi utilizado o teste t de Welsch, o teste de Mantel e a magnitude da diferença nas estimativas de dificuldade de cada item entre os grupos (DIF contrast). Itens com DIF substancial costumam apresentar diferenças significativas (p < 0,05) nos testes t e de Mantel, além de um DIF contrast acima de 0,64 (Draba, 1977; Linacre, 2012).
Resultados
Verificou-se que 91,7% dos participantes declararam serem usuários de bebidas alcoólicas (pelo menos eventualmente), apresentando escore diferente de zero no AUDIT. Mais de dois quintos da amostra (43,29%) esteve acima do ponto de corte de oito pontos sugestivo de beber problemático. Os participantes foram classificados nas faixas recomendadas pela literatura para o instrumento, a partir dos escores brutos: uso de baixo risco (1-7 pontos), uso de risco (8-15 pontos), uso nocivo (16-19 pontos) e provável dependência (20-40 pontos) (Babor e cols., 1989; Babor e cols., 2001). O teste quiquadrado foi utilizado para investigar a associação entre o sexo dos participantes e essas categorias de padrão de uso de bebidas. O teste qui-quadrado foi significativo, χ2 = 21,64, gl = 4, p < 0,001, mostrando associação entre o sexo dos participantes e as categorias definidas. Subsequentemente, para avaliar a significância estatística dos resíduos padronizados da análise qui-quadrado em cada categoria específica do AUDIT, empregou-se o teste binomial não paramétrico de comparação entre duas proporções. Esse teste permitiu obter um valor p para as diferenças entre as frequências em cada categoria do AUDIT entre homens e mulheres. Os resultados dessas análises são apresentados na Tabela 1. Como se verifica, os homens apresentaram um padrão mais alto de uso de bebidas alcoólicas em três das quatro categorias de uso. As análises subsequentes, portanto, buscaram investigar se uma porção dessa diferença não era devida a aspectos outros que o construto avaliado pelo AUDIT.
Análises de DIF foram então realizadas para verificar se as diferenças entre os grupos eram devidas a desigualdades legítimas entre os grupos no construto avaliado pelo instrumento ou a vieses relacionados ao sexo biológico do participante nos itens individuais. Assim, utilizou-se o modelo Partial Credit para estimar: 1) a adequação dos itens a uma escala intervalar de progressivo envolvimento e problemas com bebidas alcoólicas e 2) as diferenças nas estimativas de dificuldades dos itens para cada sexo. A unidimensionalidade foi avaliada mediante a análise de componentes principais dos resíduos do modelo, sendo consideradas violações autovalores maiores do que 1,5 no primeiro contraste principal (Linacre, 2012). Correlações residuais acima de 0,30 entre pares de itens também foram investigadas, uma vez que sinalizam dependência local e, consequentemente, violações da unidimensionalidade (Linacre, 2012). O ajuste individual dos itens foi avaliado pelos índices infit e outfit. Itens adequados e produtivos para a construção de uma medida intervalar devem apresentar ajuste infit e outfit dentro do intervalo de valores 0,60-1,40 (Bond & Fox, 2007).
Os resultados mostraram que o item AUDIT-1 ("Com que frequência você consome bebidas que contém álcool?") apresentou ajuste inadequado (infit = 2,60 e outfit = 0,40), sendo excluído das análises. Observou-se também que os itens AUDIT-2 e AUDIT-3 violaram a unidimensionalidade da medida, apresentando correlações residuais entre si e com outros itens acima do valor máximo recomendado como aceitável de 0,30 (Bond & Fox, 2007). De fato, a análise de componentes principais para os nove itens, após a exclusão do item AUDIT-1, apresentou um autovalor de 2,1 para o primeiro contraste principal. Esses três itens foram, portanto, removidos do instrumento para as análises subsequentes. O novo conjunto de sete itens não apresentou correlações residuais acima de 0,30, sendo observado um autovalor de apenas 1,4 para o primeiro contraste.
Procedeu-se, na sequência, às análises de DIF. Os resultados são apresentados na Figura 1, em forma de um gráfico no qual são plotadas as estimativas de dificuldade (σi) de cada item para homens e mulheres. Observou-se que, embora seis itens tenham apresentado estimativas de dificuldade bastante similares entre ambos os sexos, houve uma diferença de 3,06 logits para o item AUDIT-6 ("Com que frequência precisou beber logo pela manhã para "curar" uma ressaca?"). Esse item, portanto, excedeu substancialmente o limite recomendado de 0,64 logits, podendo ser considerado um item com viés bastante acentuado para o sexo do indivíduo respondente. O teste t de Welsch e o teste de Mantel se mostraram significativos, com p < 0,01. Os seis itens restantes após a exclusão do AUDIT-6 apresentaram bom ajuste ao modelo de Rasch, com o primeiro contraste com autovalor de 1,4 e sem a presença de correlações residuais entre os itens acima de 0,30. Assim, foi possível construir uma medida intervalar da severidade do envolvimento com bebidas alcoólicas, sendo que esta medida abrangeu o espaço entre -1,10 e 1,12 logits do construto. A fidedignidade para os seis itens da medida foi de 0,84, considerada adequada, apesar do reduzido número de itens.
Discussão
O objetivo do presente estudo foi avaliar o funcionamento diferencial para o sexo nos itens do AUDIT com uma amostra de jovens universitários. Os resultados mostraram diferenças entre homens e mulheres quanto aos escores brutos no AUDIT classificados em quatro categorias de uso de álcool, sendo que a possibilidade da influência do DIF nessas diferenças foi posteriormente investigada. Para tanto, foram feitas comparações entre as estimativas de dificuldade para cada item do instrumento em homens e mulheres a partir do modelo Partial Credit, seguindo recomendações da literatura (Bond & Fox, 2007; Linacre, 2012). As análises conduziram a dois conjuntos de resultados principais com relevância para a utilização prática do instrumento. Em primeiro lugar, três itens (AUDIT-1, AUDIT-2 e AUDIT-3) não apresentaram ajuste ao modelo Partial Credit. O item AUDIT-1 apresentou infit e outfit fora do intervalo de valores recomendável de 0,6-1,40, evidenciando uma maior quantidade de resíduos do que o previsto pelo modelo (Bond & Fox, 2007; Linacre, 2012). Os itens AUDIT-2 e AUDIT-3, por sua vez, apresentaram correlações residuais substanciais entre si, o que sugere uma dependência local entre os mesmos (Bond & Fox, 2007). Além disso, os três itens forçaram a existência de um contraste principal com autovalor de 2,1. Há, portanto, a possibilidade de que esses três itens não avaliem o mesmo aspecto do beber que os demais itens (AUDIT-1) ou que sejam substancialmente influenciados por aspectos estranhos ao conteúdo dos demais itens (AUDIT-2 e AUDIT-3). Uma implicação importante desse resultado é que os três itens mencionados, quando somados aos demais, não necessariamente contribuem para a composição de um escore total que representa um crescente de problemas com o álcool.
Em segundo lugar, seis dos itens restantes apresentaram uma adequada equivalência das estimativas de dificuldades em homens e mulheres, tendo a diferença variado de 0,09 a 0,46 logits; ou seja, de tamanho muito pequeno a moderado (Linacre, 2012). No entanto, o item AUDIT-6 apresentou um DIF contrast de magnitude 3,06. Esse valor é quase cinco vezes o valor de 0,64, definido na literatura como sinalizando DIF de grande magnitude (Linacre, 2012). O significado prático desse viés é que, para cada ponto k na escala de medida do item, a mesma pontuação indica um nível de severidade de problemas com o beber muito maior para mulheres do que para homens. Portanto, a desconsideração de um viés como o detectado para o item AUDIT-6 pode, no contexto das análises inferenciais a partir de dados de coletas com o instrumento, aumentar a taxa de Erro de Tipo I. Nesse caso, o tamanho do efeito da diferença entre homens e mulheres quanto ao uso e ao abuso de bebidas pode ser superestimado. Isso pode levar a conclusões incorretas sobre a verdadeira prevalência de mulheres universitárias com padrões de uso problemático de bebidas.
Embora seja difícil precisar exatamente a natureza complexa das variáveis responsáveis por esse viés específico, uma possível interpretação remete ao fator conscienciosidade, do modelo dos Cinco Grandes Fatores da personalidade. A conscienciosidade descreve características como organização, ordem, dedicação, responsabilidade e preocupação com aspectos do próprio comportamento e, em geral, correlaciona-se negativamente com o uso e o abuso de bebidas alcoólicas em jovens (Ibañez e cols., 2010; McAdams & Donnellan, 2009). Existe uma tendência de, em diversas culturas, as mulheres serem mais conscienciosas, em média, do que os homens (Figueredo e cols., 2005; Srivastava, John, Gosling, & Potter, 2003). Indivíduos mais conscienciosos, por sua vez, são mais preocupados com a própria saúde e mais envolvidos em comportamentos de busca por tratamentos e soluções adequadas quando em situações de problemas de saúde (Flynn & Smith, 2007). Assim, é relativamente mais raro que mulheres apresentem comportamentos de descuido para com a própria saúde, de modo que a ingestão de álcool como forma de automedicação em resposta a um episódio de abuso no dia anterior pode ocorrer apenas quando uma mulher alcançou um estágio avançado de problemas com bebidas. Em contraste, esse mesmo comportamento pode ser relativamente mais comum entre homens, não necessariamente indicando o mesmo nível de problemas do que em mulheres. Novos estudos, todavia, poderão investigar melhor se o viés nesse item específico de fato se deve a esse traço específico de personalidade ou a outras diferenças entre os sexos que repercutem em comportamentos de abuso de bebidas alcoólicas.
Vale ressaltar que, independente do correto entendimento das causas do viés no item AUDIT-6, não considerar a diferença na relevância desse indicador para cada sexo na pontuação do instrumento e na classificação a partir de pontos de corte pode levar à subestimação do nível de problemas com o beber de mulheres universitárias. O DIF encontrado, portanto, sinaliza que diferenças encontradas nesse item entre homens e mulheres podem se dever mais ao sexo do indivíduo do que ao construto avaliado pelo instrumento. O DIF encontrado na presente amostra, se generalizável a outros contextos, pode ter repercussão na sensibilidade e na especificidade dos pontos de corte utilizados. Nesse caso, os erros de medida serão maiores para a avaliação em mulheres jovens.
A partir dos resultados do presente estudo, é desejável que pesquisas futuras no Brasil, sobre as propriedades psicométricas do AUDIT, busquem estimar a sensibilidade e a especificidade do instrumento considerando possíveis diferenças entre homens e mulheres. Para tanto, recomendase: 1) cautela na inclusão dos itens AUDIT-1, AUDIT-2 e AUDIT-3 para o cômputo dos escores brutos; e 2) exclusão ou modificação do item AUDIT-6 para mulheres, de modo que a escala de resposta seja diferente para cada sexo ou que as respostas de mulheres a esse item recebam um peso distinto para o cálculo dos escores na medida. Sobre a redução do instrumento ao excluir os itens AUDIT-1, AUDIT-2 e AUDIT-3, as análises mostraram que a fidedignidade do instrumento, mesmo na versão final com seis itens (após também excluir o AUDIT-6), foi bastante satisfatória, sendo 0,84. Isso significa que o instrumento, mesmo se utilizado com uma quantidade menor de itens do que o formato original, é capaz de ordenar de maneira bastante precisa os indivíduos segundo seu nível de problemas com o álcool.
Quanto ao item AUDIT-6, que apresentou DIF de acordo com o sexo, há a possibilidade de que seja removido ou, se houver razões teóricas para sua manutenção, que tenha sua pontuação alterada. Assim, por exemplo, a pontuação das mulheres nesse item pode ser equivalente ao dobro dos pontos para homens ou outra forma de pontuação pode ser proposta. As alterações na contribuição do item AUDIT-6 para o escore total em cada sexo poderão ser investigadas por meio de novas análises de DIF, a fim de se verificar se essa proposta de reformulação é suficiente para reduzir o viés do item. Adicionalmente, análises de curva ROC deverão ser feitas para investigar se a reformulação aumenta a sensibilidade e a especificidade da medida para mulheres. A influência da faixa etária na magnitude desse viés também deverá ser mais bem investigada futuramente, bem como a sua presença em amostras que não sejam de perfil estudantil universitário.
Considerações finais
O presente estudo buscou trazer uma contribuição à literatura nacional sobre o rastreio da potencial dependência do álcool, avaliando a presença de DIF para o sexo nos itens do AUDIT em uma amostra universitária. Os resultados encontrados sugerem que há dificuldades psicométricas com a medida e que estudos futuros deverão considerar a exclusão de três itens (AUDIT-1, AUDIT-2, AUDIT-3) e a exclusão ou reformulação de outro (AUDIT-6). Uma limitação metodológica, entretanto, é que a amostra utilizada foi composta apenas por jovens universitários, não sendo possível generalizar o viés encontrado no referido item para outros grupos populacionais. O presente estudo representa a primeira investigação no país sobre DIF no instrumento AUDIT, de modo que são ainda necessários estudos sobre outros tipos de vieses e sobre o impacto dos mesmos na capacidade da medida de identificar grupos clínicos.
Referências
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Recebido em junho de 2011
Reformulado em maio de 2012
Aceito em agosto de 2012
Sobre os autores
Nelson Hauck Filho: Psicólogo, doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Marco Antônio Pereira Teixeira: é Psicólogo, doutor em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É professor adjunto no Instituto de Psicologia da UFRGS.
1Trabalho realizado com auxílio financeiro da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) em forma de bolsa de doutorado ao primeiro autor
2Endereço para correspondência:
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Psicologia. Rua Ramiro Barcelos, 2600, sala 117, Bairro Santana. CEP: 90035-003, Porto Alegre-RS, Brasil. Tel.: (51) 3308 5454. E-mail: hauck_psychology@hotmail.com