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Avaliação Psicológica
versión impresa ISSN 1677-0471
Aval. psicol. vol.12 no.2 Itatiba ago. 2013
Interesses profissionais e papéis de gênero: escolhas femininas no BBT-Br
Vocational interests and gender roles: female choices in the Berufsbilder-Test (BBT-Br)
Intereses profesionales y papeles de género: opciones femeninas en el BBT-Br
Milena Shimada1; Lucy Leal Melo-Silva
Universidade de São Paulo
RESUMO
Gênero, nível educacional e situação socioeconômica são variáveis relevantes em investigações sobre escolha de carreira. Este estudo focaliza o gênero, objetivando avaliar interesses profissionais de participantes do sexo feminino. A amostra é constituída por 373 participantes, de 14 a 21 anos de idade, procedentes de escolas públicas (n = 94) e particulares (n = 279), atendidas em um Serviço de Orientação Profissional, que foram avaliadas por meio do BBT-Br. Os resultados evidenciaram interesses por atividades relacionadas à ajuda e ao cuidado com o outro (demonstrados pela elevada escolha dos radicais S e w do BBT-Br), características apontadas pela literatura como socialmente esperadas para o papel feminino. Já os radicais rejeitados se relacionam a aspectos de agressividade (K), bem como a ambientes profissionais caracterizados pela organização e racionalidade (v). Discute-se a importância de intervenções no campo da Orientação Profissional que ajam sobre os estereótipos de gênero, evitando a restrição de possibilidades no desenvolvimento de carreira.
Palavras-chave: escolha da carreira; interesses; gênero; orientação profissional; Berufsbilder Test (BBT-Br).
ABSTRACT
Gender, educational and socioeconomic levels are important variables in the understanding of career choice. This study focuses on gender, aiming to investigate the vocational interests of female participants. The sample was composed by 373 women, aged between 14 and 21 years old, from public (n = 94) and private schools (n = 279), who performed the Berufsbilder Test (BBTBr) during a Vocational Guidance process. The results indicated preferences for activities related to help (predominance of the factors S and w); these profiles can illustrate expectations of female roles socially constructed. The rejected factors are related to aggressiveness (K) and professional environments characterized by organization and rationality (v). The relevance of acting on the gender stereotypes in vocational intervention, avoiding the restriction of possibilities in career development, is discussed.
Keywords: career choice; interests; gender; career guidance; Berufsbilder Test (BBT-Br).
RESUMEN
Género, nivel educativo y situación socioeconómica son variables relevantes en investigaciones sobre elección de carrera. Este estudio focaliza el género, objetivando evaluar intereses profesionales de participantes del sexo femenino. La muestra está constituida por 373 participantes, de 14 a 21 años de edad, procedentes de escuelas públicas (n = 94) y particulares (n = 279) atendidas en un Servicio de Orientación Profesional, que fueron evaluadas por medio del BBT-Br (Berufsbilder Test). Los resultados evidenciaron interés por actividades relacionadas a la ayuda y al cuidado del otro (demostrados por la elevada elección de los radicales S y w del BBT-Br), características apuntadas por la bibliografía como socialmente esperadas para el papel femenino. Los radicales rechazados se relacionan a aspectos de agresividad (K), así como a ambientes profesionales caracterizados por la organización y la racionalidad (v). Se discute la importancia de intervenciones en el campo de la Orientación Profesional que actúen sobre los estereotipos de género, evitando la restricción de posibilidades en el desarrollo de carrera.
Palabras-clave: elección de la carrera; intereses; género; orientación profesional; Berufsbilder Test (BBT-Br).
As diferenças sexuais são claramente observadas no nível do corpo, do funcionamento das glândulas e nas funções reprodutivas. Peculiaridades são observadas em cada sexo no funcionamento fisiológico e no comportamento (Boff, 2002). Tais diferenças remetem a uma elaboração sociocultural do ser humano homem ou mulher. Historicamente, na sociedade patriarcal, aos homens foram conferidas atividades ligadas à aventura, à conquista, ao perigo físico, à dominação e ao exercício do poder sobre outros e às mulheres as tarefas de reprodução, de educação dos filhos e do cuidado com a vida, sobretudo das crianças, adolescentes e idosos. Homens e mulheres podem diferir nas escolhas por atividades ocupacionais, o que não seria problema para a relação homem-mulher e nem para a civilização. Torna-se problema se as diferenças são interpretadas como inferioridade dos diferentes (Whitaker, 1988).
A modernização da sociedade gerou um modelo de distribuição de renda reduzindo o poder aquisitivo das famílias (Romanelli, 1995). Com o aumento da participação feminina na força de trabalho, decorrente das dificuldades econômicas enfrentadas pelas famílias, observa-se crescente participação de mulheres trabalhando fora e de homens participando de atividades domésticas e da educação dos filhos. Para enfrentar a diminuição de renda e obter acesso aos novos bens de consumo, muitas famílias são obrigadas a ampliar o número de seus integrantes no mercado de trabalho, estabelecendo-se assim novas relações familiares. A crescente inclusão feminina no domínio público das atividades profissionais foi revestida de significado simbólico positivo, conferindo à trabalhadora e produtora de rendimentos um novo lugar nas representações sobre as mulheres (Romanelli, 1991, p. 33).
Destaca-se que as mudanças nas representações sobre o papel feminino no âmbito familiar e no mundo do trabalho trazem importantes reflexões também no campo da Orientação Profissional (Melo-Silva, 2005). Tais questionamentos remetem a influências das diferenças de gênero nas escolhas de carreira dos indivíduos, observando-se o desenvolvimento de teorias e pesquisas na área.
No que se refere a discussões teóricas sobre o tema, destaca-se o trabalho de Lassance e Magalhães (1997) no contexto brasileiro, que consiste em uma reflexão sobre como a diferença biológica entre os sexos é assumida segundo a hierarquização de papéis sociais, influenciando os processos de formação da identidade profissional. Segundo os autores, por meio do processo de socialização são organizados e tipificados papéis sociais, influenciando a construção da identidade de gênero dos indivíduos.
Dessa maneira, Lassance e Magalhães (1997) apontam que se naturalizam profissões masculinas e femininas. As femininas seriam aquelas que permitiriam às mulheres a realização de seu autoconceito, como aquelas que envolvem o cuidado, o relacionamento interpessoal e a expressão de afeto, aspectos valorizados em seu processo de socialização. Já as carreiras masculinas necessitariam características como a autonomia, competitividade e a racionalidade; seriam também carreiras de maior status social, por demandarem competências socioculturalmente associadas à maior maturidade e desenvolvimento no contexto do trabalho.
No cenário internacional, destaca-se a teoria da Circunscrição e Compromisso de Gottfredson (2002, 2005), que tem norteado pesquisas e práticas na área do desenvolvimento e aconselhamento de carreira (Leung, 2008). A autora se embasa em perspectivas desenvolvimentistas e sociológicas, afirmando que as pessoas distinguem suas opções ocupacionais a partir de três dimensões: gênero ou tipo sexual das carreiras, seu prestígio social e interesses profissionais. Gottfredson (2002, 2005) afirma que, durante a adolescência, passa a ocorrer uma interação entre essas dimensões e o autoconceito dos indivíduos, havendo um processo de exploração vocacional orientado pela circunscrição de possibilidades aceitáveis de escolha de carreira.
A autora enfatiza que esse processo de exploração é modulado pela acessibilidade percebida das opções ocupacionais; assim, aspirações consideradas ideais podem ser abandonadas em função de outras consideradas mais acessíveis. Dessa forma, as pessoas efetuam compromissos, podendo abdicar preferências relacionadas ao tipo sexual das carreiras, ao seu prestígio social ou aos seus interesses. Gottfredson (2002, 2005) assinala que a acomodação aos compromissos vocacionais diminui quando o prestígio social associado à carreira escolhida não corresponde à posição social do indivíduo, e mais ainda quando afeta aspectos de sua identidade de gênero.
No intuito de compreender as influências do gênero no desenvolvimento de carreira das pessoas, além das discussões teóricas, destacam-se pesquisas voltadas a investigar as diferenças na distribuição de homens e mulheres em diversas carreiras. Nesse sentido, o estudo de Santos e Melo-Silva (2005) mostra um levantamento sobre alunos matriculados em cursos do campus de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, evidenciando que nos cursos de Economia, Contabilidade, Administração, Informática Biomédica e Medicina observaram-se mais homens; enquanto em Enfermagem, Fonoaudiologia, Terapia Ocupacional, Nutrição, Farmácia, Psicologia, Pedagogia, Fisioterapia e Química predominaram as mulheres. As autoras ressaltam que os cursos mais procurados por homens foram aqueles tradicionalmente rotulados pelo raciocínio, organização e cálculos, além das carreiras de maior prestígio social, como foi o caso da Medicina. Já as mulheres, com exceção dos cursos de Química e Farmácia, predominaram nas carreiras que são caracterizadas pelo cuidado e pela assistência.
Reflexão semelhante foi realizada no contexto português por Saavedra, Almeida, Gonçalves e Soares (2004), em um estudo com 1760 universitários ingressantes. Os resultados apontaram que o sexo feminino predominou nos cursos relacionados às Letras e à Educação, enquanto o sexo masculino se distribuiu principalmente nos cursos de Ciências, Engenharias e Tecnologias em geral.
Outro estudo investigando o acesso ao Ensino Superior quanto ao gênero e também ao nível sociocultural foi realizado por Almeida, Guisande, Soares e Saavedra (2006), com 1407 alunos da Universidade do Minho, também no contexto português. Os resultados evidenciaram que a maioria dos participantes do sexo masculino (61,5%) frequentava cursos de Engenharia, enquanto apenas 13,3% frequentavam cursos na área de Ciências Sociais. O oposto foi observado nas mulheres, que predominaram nos cursos das Ciências Sociais (42,9%) e constituíram minoria nas Engenharias (19,2%). A fim de mudar essa realidade, Saavedra, Taveira e Silva (2010) defendem a inserção de modelos de intervenção em carreira desde o jardim de infância até a formação superior e idade adulta.
Almeida e cols. (2006) relacionam os resultados encontrados a teorias do campo da Orientação Profissional que apontam influências do gênero nas escolhas educativas e de carreira das pessoas, bem como na sua percepção de inserção socioprofissional. Entretanto, ressaltam que apesar das diferenças encontradas, foi possível observar maior frequência de mulheres em cursos tradicionalmente masculinos do que o oposto (homens em cursos predominantemente associados ao sexo feminino). Esse dado, semelhante ao encontrado em Saavedra e cols. (2004), pode evidenciar uma maior flexibilidade das participantes do sexo feminino para cursos menos tradicionais; ou um reflexo da ampliação no acesso e frequência do nível superior de ensino pelas mulheres, como também apontado no contexto brasileiro por Santos e Melo-Silva (2005).
Sobre as diferenças na distribuição de homens e mulheres em diversas carreiras, apontadas nas pesquisas expostas, Su, Rounds e Armstrong (2009) afirmam que os interesses são um ponto central nesta temática; isto porque são importantes preditores de escolhas educacionais e profissionais, podendo contribuir para a disparidade de gênero em diferentes áreas. Assim, para fins deste estudo, cumpre destacar investigações que focalizam gênero e os interesses profissionais, construto de grande relevância que tem sido amplamente pesquisado no âmbito das intervenções em carreira (Nunes, Okino, Noce & Jardim-Maran, 2008).
Dentre as pesquisas nacionais, encontra-se o trabalho de autoria de Nunes e Noronha (2011), cujo objetivo foi estudar a relação entre a autoeficácia para atividades ocupacionais e suas fontes e interesses. Foram avaliados 289 adolescentes por meio da Escala de Autoeficácia para Atividades Ocupacionais (EAAOc) e o Self-Directed Search (SDS); e 107 alunos, por meio da EAAOc e da Escala de Aconselhamento Profissional (EAP). Para análise dos dados, utilizou-se um modelo de regressão linear; os resultados indicaram que a variável sexo contribuiu significativamente para o modelo, no caso de avaliação de interesses. Houve evidências de maior interesse de homens pelo tipo Realista do SDS2, e preferência das mulheres pelo tipo Social. Nunes e Noronha (2011) argumentam que esses dados, em conjunto, são coerentes com as expectativas teóricas sobre a formação dos interesses profissionais.
Já a pesquisa de Noronha, Barros e Nunes (2009) investigou a associação entre os interesses e a inteligência e analisou diferenças nestes construtos relacionadas ao sexo. Participaram 211 alunos do Ensino Médio, responderam a EAP e a Bateria de Provas de Raciocínio (BPR-5). Os resultados apresentaram baixas correlações significativas entre os construtos. No BPR-5, os homens tiveram médias mais elevadas do que as mulheres no raciocínio espacial e numérico. Já sobre as diferenças nos interesses, os achados de Noronha e cols. (2009) indicaram que os homens tiveram médias significativamente mais altas nas "Ciências exatas" (tamanho do efeito de d = 0,05) e "Atividades burocráticas" (d = 0,03); e as mulheres tiveram média mais elevada em "Artes e comunicação" (d = 0,05), "Ciências humanas e sociais aplicadas" (d = 0,05) e "Entretenimento" (d = 0,08).
Outro estudo, de Sartori, Noronha e Nunes (2009) analisou as diferenças de médias entre os instrumentos EAP e SDS, em função do sexo e série escolar. Participaram da pesquisa 177 estudantes com média de idade de 15,7 anos. Verificou-se que as médias de interesses não diferiram significativamente em razão do sexo; na EAP, os homens tiveram médias mais altas que as mulheres nas Ciências Exatas, e as mulheres, nas Ciências Biológicas e da Saúde. Já no SDS, as diferenças significativas ocorreram nos tipos Realista e Empreendedor (médias mais elevadas dos homens) e no tipo Social (médias mais elevadas das mulheres).
Já entre as investigações que focalizam gênero e interesses profissionais no âmbito internacional, encontrase o estudo de Carvalho (2012), que objetivou investigar a relação entre o gênero e os interesses profissionais, de acordo com as dimensões de Prediger3. A amostra foi composta de 469 estudantes portugueses do 9º ano, com idade média de 15 anos, que foram avaliados pelo Career Occupational Preference System Interest Inventory (COPS). Os resultados indicaram um efeito significativo do gênero sobre os interesses, sendo que o sexo masculino apresentou mais interesse pelo trabalho com coisas (áreas de Tecnologia e Negócios), enquanto as mulheres pelo trabalho com pessoas (áreas da Comunicação, Serviços e Arte).
Cvencek, Meltzoff e Greenwald (2011), por sua vez, investigaram os estereótipos de gênero associados à matemática em 247 crianças americanas do ensino fundamental. Os resultados obtidos por meio de dois tipos de medidas (implícitas e explícitas de autorrelato) indicaram que os meninos eram mais fortemente identificados com a matemática do que as meninas, evidenciando que os estereótipos de gênero associados à disciplina são adquiridos precocemente.
Como exemplo de estudo de meta-análise, há o trabalho de Su e cols. (2009), que examinou a magnitude e a variabilidade das diferenças de gênero nos interesses profissionais, por meio de 47 inventários de interesses. Os resultados obtidos na dimensão coisas-pessoas de Prediger mostraram que os homens preferem trabalhar com coisas, enquanto as mulheres preferem trabalhar com pessoas. Além disso, de acordo com a tipologia de Holland, os homens demonstraram interesses prioritariamente Realistas e Investigativos; e as mulheres, Artísticos e Sociais.
Hirschi e Läge (2007) examinaram a relação entre os conceitos secundários da teoria de Holland e prontidão para escolha da carreira em 358 estudantes suíços. Um dos aspectos avaliados nesse estudo tratou da diferença entre os interesses entre os participantes do sexo feminino e masculino, avaliados pelo Allgemeiner Interessen- Struktur-Test (AIST-R). Os resultados encontrados por Hirschi e Läge (2007) mostraram que os homens pontuaram mais no tipo Realista e Investigativo, enquanto as mulheres, nos tipos Artístico, Social e Empreendedor.
Por fim, destaca-se o trabalho de Proyer e Häusler (2007), que investigou a estabilidade das diferenças de gênero nos interesses profissionais por meio de métodos de avaliação distintos. Os autores avaliaram 448 participantes por meio de um questionário e de um inventário não-verbal de interesses. Os resultados de ambas as técnicas evidenciaram scores mais altos para os homens no tipo Realista, enquanto as mulheres apresentaram pontuações mais altas nos tipos Artístico e Social, como também encontrado no estudo de Su e cols. (2009).
Em continuidade às reflexões sobre tais questões na prática e na pesquisa , o presente estudo se insere no contexto da avaliação de interesses em processos de intervenção em carreira. Mais especificamente, pretendese caracterizar os interesses de ex-usuárias de um Serviço de Orientação Profissional, por meio do Teste de Fotos de Profissões BBT-Br. Objetiva-se compreender os interesses profissionais das participantes à luz da literatura científica sobre gênero e suas influências nos comportamentos vocacionais, bem como discutir as implicações e possibilidades para o trabalho do orientador profissional.
Método
Participantes
Foram avaliadas 373 jovens do sexo feminino, de 14 a 21 anos de idade (M=16,75; D.P.=1,08), procedentes de escolas públicas (n=94) e particulares (n=279). As participantes foram atendidas em um serviço de Orientação Profissional de uma universidade pública do interior do Estado de São Paulo, Brasil, constituindo-se assim em uma amostra clínica. Os atendimentos foram realizados nas modalidades: grupo (87,1%) e intervenção individual (12,9%). Durante a intervenção, entre outros instrumentos e técnicas foi administrado o Teste de Fotos de Profissões BBT-Br, Forma Feminina, cujos protocolos constituem a base de dados principal do presente estudo.
Instrumentos
Roteiro de Triagem. Desenvolvido pela equipe do Serviço de Orientação Profissional, objetiva levantar os dados sociodemográficos dos clientes, os motivos da consulta, as expectativas sobre o atendimento, entre outras informações (Melo-Silva, 2005). Para fins deste estudo, foram extraídas do roteiro as informações sociodemográficas das clientes.
Resumo de Atendimento. Documento que reúne informações referentes aos atendimentos, como: modalidade de atendimento (grupo ou individual), número de faltas, de sessões ocorridas, possíveis encaminhamentos e permanência (concluinte ou abandonador) no processo de Orientação Profissional.
Teste de Fotos de Profissões BBT (Berufsbilder Test). Tratase de um método projetivo para a clarificação da inclinação profissional, criado por Martin Achtnich (1991). O BBT é o único método projetivo aprovado pelo Conselho Federal de Psicologia para utilização em Orientação Profissional, entre os instrumentos disponíveis na área para uso e comercialização (CFP, 2013), sendo que neste estudo utilizou-se sua versão feminina (Jacquemin, Okino, Noce, Assoni, & Pasian, 2006). Ressalta-se que o BBT-Br apresenta adequadas evidências de validade junto ao contexto sociocultural brasileiro, como demonstrado em investigações recentes (Barrenha, 2011; Noce, 2008; Okino, 2009; Pasian & Jardim-Maran, 2008), o que justifica o uso em procedimentos de intervenção. Achtnich (1991) propôs oito fatores, ou radicais de inclinação, como os elementos básicos para se classificar as tendências motivacionais, as inclinações e os interesses das pessoas. Esses radicais, em conjunto com variáveis ambientais e socioculturais, influenciariam as escolhas dos indivíduos, inclusive as vocacionais. No BBT, a estrutura de inclinação profissional seria elaborada a partir da classificação, por parte do orientando, das 96 fotos que compõem o teste em três grupos: fotos que o agradam (escolhas positivas), fotos que o desagradam (escolhas negativas) e fotos que o deixam indeciso ou indiferente (escolhas neutras). Destaca-se que essa classificação das imagens seria realizada considerando-se as impressões afetivas dos indivíduos sobre as fotos, não apenas os aspectos concretos e racionais de suas representações (Jacquemin e cols., 2006). Os radicais de inclinação propostos por Achtnich (1991) são: W: relacionado à: ternura, feminilidade, sensibilidade e necessidade de tocar; K: relacionado à força física, dureza e agressividade; S: subdividido em: Sh - disponibilidade em ajudar, curar, interesse pelo outro e Se - energia, dinamismo, necessidade de movimento, coragem; Z: necessidade de mostrar (a si e ao produto do seu trabalho), de representar, de admirar a beleza e a estética; V: relacionado com a razão, inteligência, objetividade e necessidade de conhecimento; G: intuição, criatividade, ideia, imaginação; M: relacionado à matéria, à substância e posse (afetiva e material); O: subdividido em Or (necessidade de falar e de comunicar) e On (necessidade de nutrir, alimentar).
Procedimentos
Posteriormente à aprovação do projeto pelo Comitê de Ética em Pesquisa da universidade que sediou a investigação, iniciou-se a sistematização dos dados. Primeiramente, foi realizado um levantamento no arquivo de Avaliação Psicológica do Serviço de Orientação Profissional, referente aos anos de 2003 a 2008, das jovens atendidas neste período e que haviam respondido o BBTBr, Forma Feminina. Em seguida, realizou-se a consulta aos Roteiros de Triagem nos prontuários das clientes, a fim de se obter os dados sociodemográficos pertinentes ao estudo; o Resumo do Atendimento foi consultado para levantar os dados referentes à modalidade de intervenção (grupo ou individual). Os dados obtidos por meio dos protocolos do BBT-Br foram digitados em programa computacional especializado, que possibilita o acesso a dados individuais e grupais das estruturas de inclinação. Posteriormente, utilizou-se o Statistical Analysis Software (SAS) 9.0 para organização descritiva dos resultados.
Resultados
Inicialmente, são apresentados os resultados referentes às estruturas de inclinação profissional positivas das participantes, em função da origem escolar. Dessa forma, a Tabela 1 mostra os radicais (primários e secundários) de inclinação ordenados por frequência decrescente de escolhas positivas pelas participantes do estudo.
A Tabela 1 permite visualizar que as participantes das duas redes de ensino apresentaram a mesma sequência de radicais de inclinação em suas estruturas primárias positivas, sendo S e G os mais frequentemente escolhidos. O elevado número de escolhas positivas de fotos representativas do radical S, principal nas estruturas de inclinação de ambos os subgrupos de participantes, sugere interesses por atividades ocupacionais caracterizadas pelo senso social. Pôde-se observar, dentre as imagens classificadas, a predominância daquelas representativas da vertente Sh, indicando a necessidade de contato interpessoal, bem como a disponibilidade e o interesse em ajudar o outro. O segundo radical destacado nas estruturas de inclinação G evidencia, por sua vez, interesses relacionados à abstração e ao uso da criatividade, sugerindo preferências por atividades como investigação, estudo e pesquisa. Com relação às estruturas de inclinação secundárias, observa-se que o radical mais escolhido positivamente foi w. Esse radical representa aspectos de sensibilidade, subjetividade e cuidado, sinalizando interesses por ambientes e objetos de trabalho delicados e ternos.
Em seguida, complementando os resultados apresentados, a Tabela 2 lista as cinco fotos mais classificadas como positivas pelas participantes avaliadas, com as respectivas frequências de escolha, em função da origem escolar. Por meio desses resultados, é possível verificar quais fotos despertam maior interesse das participantes estudadas, bem como os radicais que representam, ilustrando os resultados obtidos nas estruturas de inclinação.
Dentre as cinco fotos mais frequentemente escolhidas positivamente pelas participantes, listadas na Tabela 2, é possível verificar que duas foram comuns a todos os grupos (inclusive normativos): "Mãe com criança" (Ow) e "Professora maternal" (Sw). Ambas evidenciam o radical w, reforçando os resultados das estruturas de inclinação secundárias. Quanto às de fotos específicas de cada subgrupo da amostra, nota-se que as demais imagens mais frequentemente escolhidas pelas participantes procedentes de escolas públicas são representativas do radical S, principal nas estruturas de inclinação primárias apresentadas. São elas: Pediatra (vertente Sh), Guia de turismo (vertentes Sh e Se) e Alpinista (vertente Se). Já as participantes de escolas particulares classificaram mais frequentemente como positivas as fotos Publicitária, Psicóloga em grupo e Bióloga; nota-se que as duas últimas representam o G, radical de destaque nas estruturas primárias. Prosseguindo a apresentação dos resultados, a Tabela 3 mostra os dados referentes às estruturas de inclinação profissional negativas das participantes.
Observando-se as estruturas negativas das participantes na Tabela 3, nota-se que estas apresentaram elevadas escolhas em relação aos radicais primários K e M. Tais escolhas indicam rejeição por atividades profissionais que necessitam do uso da força física, da agressividade e do controle, características do radical K; ainda, sinalizam desinteresse pelo contato com matérias, como substâncias ou materiais antigos (M). Quanto às estruturas secundárias, para ambos os subgrupos da amostra, o radical mais classificado negativamente foi v. Ele expressa a necessidade da razão e da objetividade, evidenciando rejeição por ambientes e objetos de trabalho caracterizados pela precisão e organização. Ainda em relação às escolhas negativas, a Tabela 4 apresenta as cinco imagens do BBT-Br que foram mais rejeitadas por cada subgrupo da amostra estudada.
Pode-se observar, na Tabela 4, que ambos os subgrupos apresentam as imagens Encarregada de lavanderia (Mm), Mecânica de automóveis (Km) e Amoladora (Ks), dentre as cinco fotos mais frequentes. Esse fato corrobora a rejeição das participantes por atividades caracterizadas pelos radicais primários K e M.
Discussão
Foi possível verificar que, de uma forma geral, as estruturas de inclinação das participantes se assemelharam aos encontrados por Jacquemin e cols. (2006), nos estudos normativos da Forma Feminina do BBT-Br. Quanto às diferenças, observa-se que o radical Z (ligado à estética, necessidade de reconhecimento de si e de seu trabalho), destacado nas normas, ocupou posição intermediária nas estruturas dos subgrupos avaliados; em contrapartida, nota-se que o radical G sobressaiu-se neste estudo, apresentando a segunda maior média de escolhas positivas. Tal resultado pode refletir as especificidades das amostras: nos referenciais normativos de Jacquemin e cols. (2006), foram participantes estudantes da 1ª e 2ª séries do Ensino Médio. Já neste estudo, a amostra foi composta por estudantes do 1º, 2º, 3º ano do Ensino Médio e cursinho pré-vestibular, que procuraram atendimento psicológico em Orientação Profissional. Assim, a característica clínica da amostra estudada pode ser um dos fatores explicativos para a elevada escolha do radical G (relativo ao pensamento, aos estudos e à pesquisa), uma vez que essa população aspira a um curso superior (Melo-Silva, Noce, & Andrade, 2003).
Retomando-se as escolhas negativas das participantes, verifica-se que os radicais primários mais rejeitados foram K e M. O radical K se relaciona a atividades operacionais, que necessitam de aspectos como agressividade e obstinação; o M, por sua vez, caracteriza-se pelo contato e manuseio de matérias e substâncias. Esse resultado pode estar relacionado ao fato de algumas atividades que expressam esses radicais no BBT-Br principalmente o K serem tipicamente masculinas (Achtnich, 1991), ou seja, pautadas por características tradicionalmente conferidas aos homens, como a força física (Whitaker, 1988). Exemplos são as imagens Mecânica de automóveis (Km) e Amoladora (Ks), frequentemente rejeitadas pelas participantes do estudo.
Entretanto, outra possível interpretação para a escolha negativa de tais radicais é a rejeição por atividades que não exigem formação superior, de caráter técnico ou manual (por exemplo, a imagem Encarregada de lavanderia (Mm), rejeitada pela maioria das participantes), aspectos que podem refletir a desvalorização no contexto sociocultural brasileiro (Melo-Silva e cols., 2003). Assinala-se que o prestígio social das carreiras é um aspecto relevante na circunscrição dos interesses vocacionais, sendo que os indivíduos tendem a excluir de suas possibilidades ocupacionais carreiras que não possibilitem a manutenção de sua posição social (Gottfredson, 2002). Assim, deve-se atentar para as diversas variáveis envolvidas nos comportamentos vocacionais.
Quanto às estruturas de inclinação profissional, os resultados evidenciaram o radical primário S como o mais escolhido pelas participantes. Ressalta-se que a escolha positiva desse radical é predominante em sua vertente Sh, indicando disponibilidade para as relações interpessoais e a necessidade de entrar em contato com o outro por meio da ajuda e do senso social. Esses são aspectos apontados pela literatura como socialmente vinculados ao gênero feminino (Lassance & Magalhães, 1997), podendo embasar tipificações de profissões como masculinas ou femininas e, consequentemente, a circunscrição de possibilidades ocupacionais (Gottfredson, 2005).
Complementando a análise, examinando-se as séries positivas de radicais secundários, verifica-se que o radical w foi o mais escolhido, resultado concordante com os referenciais normativos. Esse resultado é corroborado pela alta escolha positiva das fotos: Mãe com criança (Ow), a mais frequentemente escolhida pelas participantes; e Professora maternal (Sw). Destaca-se que dados semelhantes foram encontrados nos estudos normativos de Jacquemin e cols. (2006) e também por Achtnich (1991), em estudos com a população suíça realizados na década de 1970. Achtnich (1991) associa a elevada escolha das fotos que representam o radical w à necessidade de interação, de cuidado e à maternidade, papel do gênero feminino socialmente esperado. A escolha de tais fotos evidencia o poder atrativo dessas imagens, representando o papel feminino cristalizado ao longo de décadas, ainda que a mulher esteja ocupando mais espaços no mundo do trabalho.
Verifica-se que os referidos achados nas estruturas de inclinação corroboram os estudos de Carvalho (2012) e de Su e cols. (2009), sobre a tendência geral de mulheres apresentarem maior interesse em trabalhar com pessoas (de acordo com as dimensões de Prediger). Também é possível observar correspondência dos resultados com os obtidos nos estudos de Hirschi e Läger (2007), Proyer e Häusler (2007) e Su e cols. (2009), investigações internacionais que utilizaram a tipologia de Holland para avaliação dos interesses; estes evidenciaram maiores escores das mulheres nos tipos Artístico e Social. O tipo Artístico é caracterizado pela expressão de ideias e emoções, enquanto o tipo Social descreve um estilo pessoal em que predominam a empatia e o interesse por relações interpessoais (Primi, Mansão, Muniz, & Nunes, 2010), características semelhantes às expressas pelos radicais mais escolhidos pelas participantes deste estudo.
Assinala-se que os estudos de Nunes e Noronha (2011) e Sartori e cols. (2009), realizados no contexto brasileiro, evidenciaram maior interesse das mulheres também no tipo Social. Por sua vez, a investigação de Noronha e cols. (2009), que utilizou a Escala de Aconselhamento Profissional (EAP), mostrou predominância dos interesses femininos nos campos Artes e comunicação, Ciências humanas e sociais aplicadas e Entretenimento. Tais resultados auxiliam na compreensão das influências das expectativas de gênero no desenvolvimento dos interesses profissionais, sendo que os achados deste estudo se aproximam do que a literatura tem revelado. Ao mesmo tempo, evidenciam a importância de investigações mais aprofundadas sobre os interesses, em diferentes contextos e abrangendo populações diversificadas.
Considerações finais
Em síntese, este estudo procurou contribuir para a produção de conhecimento sobre gênero e suas influências nos comportamentos vocacionais, tornando-se relevante ao utilizar um instrumento projetivo pouco investigado no contexto brasileiro, no que se refere a esta temática. Ainda, o estudo buscou contribuir com as intervenções psicológicas em Orientação Profissional, especificamente sobre a utilização do BBT-Br. Na interpretação dos resultados do teste, recomenda-se ao orientador avaliar e trabalhar concepções dos clientes sobre assunções estereotipadas, tanto de gênero quanto do caráter masculino ou feminino atribuído às atividades apresentadas nas fotos escolhidas e rejeitadas. Esse tipo de análise no processo de intervenção sublinha a relevância da etapa qualitativa da aplicação do BBT, e é importante a fim de alertar os orientandos para que evitem restringir suas possibilidades ocupacionais. Assinala-se que seria importante que escolas e diferentes grupos sociais criassem espaços de reflexão sobre as questões de gênero nas ocupações, o mais cedo possível (Saavedra, Taveira, & Silva, 2010), a fim de desconstruir crenças e estereótipos, buscando a conscientização de como são reproduzidos os valores considerados socialmente adequados e ampliando as possibilidades de desenvolvimento de carreira.
No que se refere a investigações no contexto brasileiro, seria relevante abranger populações diversificadas, de outras faixas etárias e níveis de ensino. Também seria interessante investigar rapazes que escolhem carreiras tipicamente femininas e moças que escolhem as carreiras tidas como masculinas. Para além das situações de escolha profissional, é relevante compreender como são construídas suas carreiras, em diferentes níveis profissionalizantes (básico, técnico e superior) e diferentes expectativas de prestígio social e econômico.
Referências
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Almeida, L. S., Guisande, M. A., Soares, A. P., & Saavedra, L. (2006). Acesso e sucesso no Ensino Superior em Portugal: questões de género, origem sócio-cultural e percurso académico dos alunos. Psicologia: Reflexão e Crítica, 19(3), 507-514. [ Links ]
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Recebido em agosto de 2012
Reformulado em dezembro de 2012
Aprovado em janeiro de 2013
Sobre as autoras
Milena Shimada: é psicóloga pela Universidade de São Paulo e Mestrado em Psicologia pela Universidade de São Paulo. Atualmente é doutoranda pelo Programa da Pós-Graduação em Psicologia da FFCLRP-USP, bolsista FAPESP
Lucy Leal Melo-Silva: é editora da Revista Brasileira de Orientação Profissional. Departamento de Psicologia e Educação, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo.
1Endereço para correspondência: Av. Bandeirantes, 3900, 14040-901, Ribeirão Preto-SP.
2A teoria tipológica de Holland compreende os interesses como expressão da personalidade dos indivíduos, podendo ser conceituados em seis tipos: Realista (R), Investigativo (I), Artístico (A), Social (S), Empreendedor (E) e Convencional (C). Os seis tipos são ilustrados em um hexágono, sendo que a relação entre os tipos em termos de similaridades e diferenças são retratadas pela distância entre os tipos correspondentes (tipos adjacentes são mais similares aos tipos que são opostos no hexágono (Leung, 2008).
3Prediger, baseado no modelo de Holland, propôs duas dimensões de tarefas ocupacionais: trabalhar com coisas versus pessoas (grau em que os indivíduos preferem tarefas interpessoais ou impessoais); e trabalhar com dados versus ideias (grau em que os indivíduos preferem ocupações que envolvem tarefas criativas ou, então, tarefas concretas). (Carvalho, 2012; Su, Rounds, & Armstrong, 2009).