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Avaliação Psicológica
versión impresa ISSN 1677-0471versión On-line ISSN 2175-3431
Aval. psicol. vol.20 no.3 Campinas jul./set. 2021
https://doi.org/10.15689/ap.2021.2003.22437.13
ARTIGOS
Por Que Regulamentar o Uso e Acesso aos Testes Psicológicos?
Why regulate the use of and access to Psychological Tests?
¿Por qué regular el uso y el acceso a las pruebas psicológicas?
Daniela Sacramento ZaniniI; Caroline Tozzi ReppoldII; Monalisa MunizIII; Ana Paula Porto NoronhaIV; Fabián J. M. RuedaV
IPontifícia Universidade Católica de Goiás - GO, Brasil, https://orcid.org/0000-0003-2515-2820
IIUniversidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre - RS, Brasil. https://orcid.org/0000-0002-0236-2553
IIIUniversidade Federal de São Carlos - SP, Brasil. https://orcid.org/0000-0003-1628-6296
IVUniversidade São Francisco - SP, Brasil. https://orcid.org/0000-0001-6821-0299
VCentro Universitário de Brasília, Brasília - DF. https://orcid.org/0000-0001-5173-0802
RESUMO
A regulamentação da avaliação psicológica, e mais especificamente dos testes psicológicos, é motivo de preocupação e debate no cenário nacional há várias décadas.
O objetivo deste artigo foi ponderar e problematizar sobre a possível ausência de regulamentação no que diz respeito ao uso e comercialização dos testes psicológicos e suas consequências para os indivíduos, sociedade e resultado da avaliação psicológica. Para isso o artigo traz um breve histórico da avaliação psicológica no Brasil, perpassando pela construção e estruturação do sistema de avaliação de testes psicológicos (Satepsi), o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3481 pelo Supremo Tribunal Federal, e ponderando acerca da necessidade, razoabilidade e adequação da regulamentação do uso e acesso aos testes psicológicos. Os autores concluem que a restrição de acesso aos testes psicológicos não possui potencial lesivo para os indivíduos, sociedade ou instrumento psicológico, mas seu acesso ou comercialização indiscriminada sim.
Palavras-chave: teste psicológico, justiça, atuação
ABSTRACT
The regulation of psychological assessments, and more specifically of psychological tests, has been a matter of concern and debate in the national context for several decades. The aim of this article was to consider and discuss the possible lack of regulation regarding the use and commercialization of psychological tests and the consequences for individuals, society and the results of the psychological assessment. For this, the article provides a brief history of psychological assessment in Brazil, passing through the construction and structuring of the psychological test assessment system (Satepsi), the judgment of the Direct Action of Unconstitutionality (ADI) 3481 by the Supreme Court, and considering the need, reasonableness and adequacy of regulation of the use of and access to psychological tests. The authors conclude that the restriction of access to psychological tests is not potentially harmful for individuals, society or psychological instrument, however, open access or indiscriminate commercialization could be.
Keywords: Psychological tests, justice, practice.
RESUMEN
La regulación de la evaluación psicológica y, más específicamente, de los tests psicológicos, ha sido un tema de preocupación y debate en el escenario nacional durante varias décadas. El objetivo de este artículo fue considerar y discutir la posible falta de regulación sobre el uso y comercialización de tests psicológicos y sus consecuencias para los individuos, la sociedad y resultado de la evaluación psicológica. Para ello, el artículo brinda una breve historia de la evaluación psicológica en Brasil, pasando por la construcción y estructuración del sistema de evaluación de tests psicológicos (Satepsi), la sentencia de Acción Directa de Inconstitucionalidad (ADI) 3481 del Supremo Tribunal Federal, y considerando la necesidad, razonabilidad y adecuación de la regulación del uso y acceso a los tests psicológicos. Los autores concluyen que la restricción del acceso a los tests psicológicos no tiene potencial dañoso para los individuos, la sociedad o el instrumento psicológico, pero sí su acceso o comercialización indiscriminada.
Palabras clave: test psicológico, justicia, actuación.
Tentativas de avaliação das características pessoais e do funcionamento geral dos indivíduos são referidas desde os primórdios da história da humanidade (Hutz, 2015; Pasquali, 2010). Ao longo do tempo, essas tentativas se sistematizaram de diferentes formas e com finalidades distintas (Bueno, & Peixoto, 2018; Faiad, Pasquali, & Oliveira, 2019) e, mais recentemente, com o avanço científico da matemática e com o nascimento da Psicometria, passaram a ser testadas quanto a sua validade e precisão (Andrade & Valentini, 2018; Cardoso & Silva-Filho, 2018). De fato, o próprio surgimento da ciência psicológica está associado aos processos de testagem psicológica por meio do laboratório de pesquisa, fundado por Wundt (1832-1920), em 1879 (Cohen, Swerdlik, & Sturman, 2014). Desde então, a Psicologia e a testagem, posteriormente expandida para a Avaliação Psicológica, muito se desenvolveram, assim como os métodos, técnicas e procedimentos utilizados para medir os diferentes construtos envolvidos nos processos psicológicos (Primi, 2018).
Atualmente, a Avaliação Psicológica é definida como um processo estruturado de investigação de fenômenos psicológicos, composto de métodos, técnicas e instrumentos, com o objetivo de prover informações à tomada de decisão, no âmbito individual, grupal ou institucional, com base em demandas, condições e finalidades específicas (American Educational Research Association [AERA], American Psychological Association [APA], & National Council on Measurement in Education [NCME], 1999, 2014; CFP, 2018). Nesse processo, o teste psicológico é uma das ferramentas usadas para avaliação psicológica (Urbina, 2007). Mais especificamente, o teste psicológico é considerado uma fonte fundamental de informação nos processos de avaliação psicológica, desde que reconhecido cientificamente como próprio para uso profissional (CFP, 2018), ou seja, sob a condição de que apresente estudos que demonstrem a pertinência científica de seu uso e sua adequação em termos psicométricos, éticos e sociais.
A regulamentação da avaliação psicológica, e mais especificamente dos testes psicológicos, é motivo de preocupação e debate no cenário nacional há várias décadas. A partir da década de 1980, o Brasil passou por grandes mudanças na área de avaliação psicológica, com a criação dos primeiros laboratórios sobre o tema: Centro de Pesquisas em Psicodiagnóstico (CPP), na Universidade de São Paulo no campus situado em Ribeirão Preto, criado pelo Prof. Dr. André Jacquemin em 1975; Laboratório de Pesquisa em Avaliação e Medida (LABPAM), fundado pelo Prof. Dr. Luiz Pasquali na Universidade de Brasília, em 1988; Laboratório de Mensuração (LM), implantado pelo Prof. Dr. Cláudio Simon Hutz, também em 1988, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul; e Laboratório de Avaliação e Medidas Psicológicas (LAMP), fundado em 1994 pela Profa. Dra. Solange Muglia Wechsler na Pontifícia Universidade Católica de Campinas (Bueno & Ricarte, 2017). Esses laboratórios, coordenados por pesquisadores preocupados com os rumos da avaliação psicológica no país, contribuíram de forma muito significativa para o surgimento de outras iniciativas, como a fundação do Instituto Brasileiro de Avaliação Psicológica (IBAP) e da Associação Brasileira de Rorschach e Técnicas Projetivas (AsBRo), a criação de linhas de pesquisa específicas em avaliação psicológica em Programas de Pós-Graduação Stricto Sensu, assim como a criação de um programa específico com ênfase na temática. Essas ações foram acompanhadas por um crescimento exponencial da área, que também pode ser observado pelo aumento na quantidade de laboratórios e centros de pesquisas na área com a catalogação de 69 locais (Silva-Filho et al., 2021) e o número de grupos de pesquisa relacionados à avaliação psicológica e que fazem parte da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia (ANPEPP), que atualmente conta com seis grupos, com mais de 120 pesquisadores diretamente ligados a eles.
Importante destacar que esse movimento da área esteve apoiado desde o começo por iniciativas do Conselho Federal de Psicologia (CFP), que muito contribuiu para fortalecer e qualificar a avaliação psicológica no país. A título de exemplo, pode ser citada a publicação da Resolução CFP nº 25/2001, que definia o teste psicológico como método de avaliação privativo do psicólogo e regulamentava sua elaboração, comercialização e uso. Tal documento foi revogado pela Resolução CFP nº 02/2003, que vigorou por mais de 15 anos e que também definia e regulamentava o uso, a elaboração e a comercialização de testes psicológicos. Mais recentemente, em abril de 2018, foi publicada a resolução CFP nº 09/2018 que versa sobre a temática, revogando todas as resoluções anteriores e estando em vigência até o presente momento. Outras duas ações muito importantes do CFP em relação à área de avaliação psicológica foi a criação, em 2003, do Sistema de Avaliação de Testes Psicológicos (SATEPSI)1 e a regulamentação da Especialidade em Avaliação Psicológica, em 2019.
Se por um lado a área de avaliação psicológica muito cresceu nas últimas décadas, a partir de 1990 e em especial nos últimos 20 anos, esse crescimento veio acompanhado também por questionamentos. Um dos principais sempre esteve relacionado à exclusividade da utilização de testes psicológicos por parte dos profissionais psicólogos. A esse respeito, em 05 de março de 2021, ocorreu o julgamento virtual da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3481 do Supremo Tribunal Federal (STF), que declarou inconstitucionais os dispositivos da Resolução CFP nº 02/2003, que restringiam a comercialização e o uso de manuais de testes psicológicos a profissionais inscritos no conselho e determinava que as editoras registrassem os dados dos psicólogos que os comprassem.
Importante destacar que o relator da ação no STF reconheceu a competência legal do CFP para regulamentar e aprovar testes psicológicos como forma de conferir confiabilidade à sua utilização. Ainda, reconheceu que a utilização de testes psicológicos é função privativa do psicólogo, conforme destacado na Lei Federal 4.119/62 que regulamenta a profissão de psicólogo e os cursos de Psicologia no nosso país. No entanto, sob a ótica do relator, isso não justificaria a restrição à sua comercialização, uma vez que os testes psicológicos foram equiparados a livros ou publicações voltadas para o conhecimento científico. Dessa forma, no entender do relator, haveria uma distinção entre o uso privativo e o acesso ao seu conteúdo. Cabe destacar que esse entendimento não foi unanime na corte. Após pedido de vistas ao processo o resultado final da votação foi sete votos a favor da relatoria contra cinco que argumentaram acerca da diferença das informações contidas nos manuais dos testes psicológicos para os livros, seu caráter de tecnologia profissional e a necessidade de segurança dos dados.
Diante dessa breve apresentação e do panorama atual no que diz respeito aos testes psicológicos, o objetivo deste artigo foi ponderar e problematizar sobre a possível ausência de regulamentação no que diz respeito ao uso e comercialização dos testes psicológicos. Importante destacar que não será questionado nem discorrido sobre a decisão legal proferida pelo STF, mas tecer considerações sobre aspectos que se considera extremamente importantes de serem abordados pensando no questionamento sobre a exclusividade do uso dos testes e nos impactos da ADI 3481 para os indivíduos e, principalmente, para a sociedade. Para isso, nos apoia-se em três eixos de discussão, quais sejam, a adequação, a necessidade e a razoabilidade2 da restrição do uso e acesso aos testes psicológicos. A partir dessa discussão, pretende-se demonstrar que, apesar da restrição de direitos de acesso a informação (no caso o acesso aos testes psicológicos) esses se justificam, pois tem como objetivo último a proteção do indivíduo, da sociedade e de um instrumento profissional cujo desenvolvimento é oneroso em tempo e recursos financeiros e sua divulgação pode impactar nos resultados provenientes de seu uso. Para isso, três questionamentos e posicionamentos são apresentados.
1. Por que a restrição ao uso e comercialização dos testes psicológicos é adequada? Mais especialmente, é correta e condizente com a prática técnico-científica e profissional da psicologia no Brasil e em outros países?
A avaliação psicológica é uma prática imprescindível para o psicólogo. É por meio dela que, por exemplo, são identificados problemas ou competências, que se analisa as características psicológicas dos sujeitos e que se programa a intervenção mais adequada para as diferentes situações e contextos profissionais. Assim, pode-se perceber que essa atividade é fundamental para a maioria das decisões tomadas pelo psicólogo, de modo que é uma prática que norteia seu trabalho. Isso fica evidente na recente publicação de Reppold, Wechsler, Almeida, Elosua e Hutz (2020), que apresenta um perfil dos psicólogos brasileiros que utilizam testes psicológicos. Os resultados desse levantamento indicaram que 94,33% dos psicólogos respondentes afirmavam fazer uso de testes psicológicos em seu exercício profissional.
Sendo a Avaliação Psicológica inerente à profissão do psicólogo, ela está presente em diferentes contextos que referem-se às diversas áreas e propósitos particulares de aplicação do conhecimento da ciência psicológica: saúde mental, psicologia da saúde (para realizações de procedimentos médico-cirúrgicos, como a cirurgia de vasectomia, entre outros), no trabalho (para processos de avaliação de desempenho, intervenções em desenvolvimento de carreira, entre outros), no esporte, na psicologia clínica, na avaliação para porte e manuseio de arma de fogo, nos processos seletivos e concursos públicos, na perícia psicológica no contexto do trânsito (para a obtenção da Carteira Nacional de Habilitação) ou na avaliação em contextos jurídicos (a título de definição de guarda ou progressão de pena, como exemplos), além de muitos outros contextos nos quais o psicólogo está inserido (Faiad & Alves, 2018). Essa avaliação é considerada como um processo de coleta de dados, que integra e analisa informações do sujeito ou grupo avaliado para maior conhecimento, melhor compreensão desse indivíduo ou dinâmica dessas pessoas, com vistas à tomada de decisão pautada na ciência, na técnica e na ética.
Um dos mais típicos instrumentos de avaliação são os testes psicológicos, considerados como medidas objetivas e padronizadas de uma amostra de comportamento, que buscam medir fenômenos psicológicos (Hutz, 2015; Urbina, 2007). Contudo, para que os testes sejam eficientes e precisos, eles devem passar por estudos que comprovem suas qualidades psicométricas, assim como devem atender determinadas especificações que garantam reconhecimento e credibilidade por parte da comunidade científica (AERA, APA, & NCME, 2014; Pasquali, 2010).
De fato, o que diferencia um teste comumente encontrado em periódicos ou qualquer outro meio de divulgação não científico e os testes psicológicos é que os primeiros provavelmente foram construídos com base no senso comum e não obedecem às exigências preconizadas pela ciência que estuda as medidas psicológicas, chamada Psicometria. Dessa forma, não há uma preocupação, por parte de quem construiu o teste, com o que realmente mede ou se mede sem erros o que diz pretender medir. Em termos técnicos, não há estudos de evidências de validade de conteúdo, estrutura interna, relações com outras variáveis (critério, discriminação, convergência), processos de resposta e de consequência da testagem, assim como tampouco estudos de confiabilidade ou precisão. Por isso, não é difícil supor as razões pelas quais os resultados da "enquete" publicada em alguma revista popular de banca de jornal, intitulada "Veja se você é ciumento", são previsíveis e trazem poucas informações relevantes. Em face disso, não devem ser confundidos com os instrumentos de trabalho do psicólogo, a saber, os testes psicológicos.
Assim, os testes psicológicos, por definição, são considerados instrumentos científicos. Isso porque no seu processo de construção precisam apresentar características que evidenciem os diversos elementos envolvidos na validade e na confiabilidade (precisão) de seus resultados, sempre pautados na teoria e ciência psicológica. Nesse sentido, a elaboração de instrumentos de medida válidos e precisos, como os testes psicológicos, faz-se necessária para a prática do psicólogo, uma vez que o uso de bons instrumentos é um requisito para gerar avaliações adequadas e, consequentemente, tratamentos mais eficazes nos casos em que a avaliação psicológica é utilizada para diagnóstico e/ou predição de melhora/prognóstico. Dessa forma, pode-se dizer que o teste psicológico é uma tecnologia profissional do psicólogo, uma vez que se constitui como ferramenta de trabalho para sua atuação.
A construção de testes psicológicos é considerada uma atividade complexa, que exige domínios específicos de Psicometria, Estatística, além do conhecimento amplo sobre os construtos teóricos avaliados e os contextos de sua aplicação (Reppold, Zanini, & Noronha, 2019). A dimensionalidade desses construtos, assim como as competências necessárias para avaliá-los, são ensinados nos cursos de Psicologia por meio de diversas disciplinas relacionadas à área de Avaliação Psicológica. Estas fazem parte das Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de Psicologia e não estão presentes em outros cursos de graduação (Conselho Nacional de Educação [CNE], 2011; 2019).
A literatura destaca competências e habilidades desenvolvidas na formação do psicólogo que permitem ao profissional graduado em Psicologia o uso correto do teste psicológico, bem como a relação adequada entre seus resultados e os condicionantes sociais e históricos dos indivíduos. Nunes et al. (2012) citam 27 competências (detalhamento das competências podem ser consultado em Muniz, 2017), dentre as quais destaca-se: a necessidade de conhecer a legislação pertinente à avaliação psicológica (Resoluções do CFP, Código de Ética Profissional do Psicólogo, histórico do Sistema de Avaliação dos Testes Psicológicos - SATEPSI - e as políticas do Conselho Federal de Psicologia para a Avaliação Psicológica); a necessidade de considerar os aspectos éticos na realização da avaliação psicológica; ter conhecimento sobre o processo de construção de instrumentos psicológicos e sobre validade, precisão, normatização e padronização; saber selecionar instrumentos e técnicas de avaliação de acordo com objetivos, público-alvo e contexto; ter capacidade crítica para refletir sobre as consequências sociais da avaliação psicológica.
As competências aqui mencionadas não representam a totalidade de conhecimento necessário para a condução de uma avaliação psicológica, mas evidenciam as competências técnicas e o compromisso ético e social necessários para realização de tal tarefa. Da mesma forma, as 27 competências descritas como imprescindíveis para a utilização de testes psicológicos e realização de avaliações psicológicas realçam a complexidade dessa ação e a necessidade de uma formação criteriosa para promover avaliações éticas, coerentes e benéficas para o indivíduo e a sociedade. Questiona-se, portanto, que o uso do teste psicológico seja feito sem que o profissional possua as competências que devem ser aprendidas nos cursos de preparação em Psicologia.
O conteúdo discutido até o momento neste texto é resultado e ilustra o esforço de experts da área em qualificar a formação acadêmica relacionada à prática da avaliação psicológica, relação fundamental e sempre enfatizada em diversos textos (eg., Noronha, 2002; Nunes & Primi, 2010; Wechsler, Hutz, & Primi, 2019). Em âmbito profissional, ações do Conselho Federal de Psicologia e outras entidades da Psicologia também tem somado esforços em prol da área e vêm transformando a Avaliação Psicológica no cenário brasileiro nesses últimos 20 anos (Nunes et al., 2012; Reppold & Noronha, 2018; Wechsler et al., 2019). Além do Sistema Conselho (composto pelos Conselhos Regionais e Federal de Psicologia), várias entidades científicas, universidades e seus centros de pesquisa, editoras, empresas e profissionais estão envolvidos no compromisso de qualificação progressiva da Avaliação Psicológica, em especial, com os testes psicológicos. Nesse período, observou-se uma maior organização das entidades científicas vinculadas, com a participação do Instituto Brasileiro de Avaliação Psicológica (IBAP) e da Associação Brasileira de Rorschach e Métodos Projetivos (AsBRo) e com a constituição de grupos interinstitucionais de pesquisa em avaliação psicológica registrados na Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia (ANPEPP). Essa organização da área possibilitou a realização de eventos científicos periodicamente e a criação de um periódico destinado exclusivamente ao tema, intitulado "Avaliação Psicológica", com boa qualificação junto ao sistema de classificação de periódicos científicos da CAPES. Nunca se publicou tanto sobre avaliação psicológica neste país (Noronha & Reppold, 2010; Reppold, Serafini, Gurgel, & Kaiser, 2017; Reppold, Serafini, Ramires, & Gurgel, 2017; Reppold et al., 2018).
Também foi a ação coordenada dessas entidades, IBAP e AsBRo junto ao Conselho Federal de Psicologia que culminou na criação da Comissão Consultiva em Avaliação Psicológica, em 2003, e que permanece para assessorar o Sistema Conselhos de Psicologia em suas ações de regulamentação da Avaliação Psicológica, o que levou a mudanças importantes e a um balanço positivo para a qualificação da área. Desde então, tem sido oferecido à categoria um Sistema de Avaliação dos Testes Psicológicos que auxilia o profissional na escolha do teste psicológico e na avaliação de sua qualidade. Esse sistema de avaliação e garantia de qualidade dos testes psicológicos (SATEPSI) foi comparado, pelos pares, à ANVISA, em relação à proteção que propicia à população beneficiária do atendimento psicológico e reconhecido quanto à qualidade e eficiência em publicações internacionais. Parte disso deve-se aos critérios estabelecidos pelo sistema, que se baseou em referências e guidelines internacionais (Andrade & Valentini, 2018; Nunes & Primi, 2010).
As ações do Conselho Federal de Psicologia e das diversas entidades da Psicologia visam a garantir o uso adequado, competente e ético dos procedimentos em avaliação psicológica (Cardoso & Silva-Filho, 2018). Isso requer regulamentação de todos os setores envolvidos, desde a criação, busca de evidências de validade, normatização e aprovação, até a edição, distribuição, comercialização e uso dos testes. É nessa perspectiva que a venda de testes psicológicos deve ser controlada e restrita aos profissionais que têm competência para manuseá-lo e para interpretar seus dados, e que possam ser fiscalizados quanto aos malefícios causados às pessoas e sociedade decorrentes do mau uso, do uso inapropriado, entre outros, dos testes psicológicos.
Além disso, resultados de avaliação psicológica podem trazer impactos irreparáveis para a sociedade, e não somente para as pessoas ou grupo avaliado. Por exemplo, para o porte e registro de arma de fogo é de responsabilidade do psicólogo a condução de todo o processo de avaliação, assim como o registro e arquivamento dos documentos resultantes deste. Essa conduta é necessária porque o psicólogo pode responder ética e profissionalmente em seu conselho de classe por diversas condutas que possam ser avaliadas como inapropriados em um processo de avaliação psicológica. A esse respeito, tem-se como exemplo a escolha incorreta de testes psicológicos ou de testes que não foram avaliados pelo Sistema de Avaliação de Testes Psicológicos e que, portanto, não tem sua qualidade técnica científica comprovada; o manuseio indevido dos testes; a emissão de conclusões que extrapolem o aspecto avaliado ou não sejam sustentadas por evidências demonstradas na avaliação e fundamentadas em teorias e técnicas; a produção incorreta de documento psicológico, entre outros.
No entanto, como a profissão do psicólogo é regulamentada, há o Código de Ética do Profissional Psicólogo (CFP, 2005) que orienta as condutas éticas, bem como há diversas resoluções produzidas pela CFP com o intuito de orientar e regulamentar a atuação profissional do psicólogo, entre as quais, aquelas específicas para a prática da avaliação psicológica em geral e diversos contextos. Contudo, isso só é possível devido à existência de um sistema estruturado para tal finalidade no contexto do Conselho Federal de Psicologia que normatiza e regula o uso de testes psicológicos no contexto profissional do psicólogo. Assim, no caso de os testes não serem regulamentados quanto à comercialização e ao uso, ações inadequadas do ponto de vista técnico exercidas por outros profissionais estariam fora do escopo da regulamentação do Conselho Federal de Psicologia.
Mesmo que outro conselho de classe se proponha a regulamentar os testes psicológicos para que os profissionais de determinada categoria possam utilizar, questionamentos podem ser feitos, como regulamentar, fiscalizar e orientar os profissionais, bem como analisar eticamente uma atuação profissional, sem que estejam presentes profissionais (no caso, não psicólogos) que tenham competências teóricas, técnicas e científicas em relação aos testes psicológicos, que é um produto que reúne diversos conhecimentos da ciência psicológica, e que para se apropriar desse arcabouço, é necessário a formação em Psicologia, pois é por meio desse curso que se obtém tal competência. Assim, também cabe destacar que a comercialização dos testes, conforme decisão do STF, mesmo garantindo o uso somente aos profissionais da psicologia como consta na Lei Federal 4.119/62, terá consequências graves para a atuação do psicólogo e para a sociedade.
Para o psicólogo, o teste psicológico, instrumento do seu trabalho, poderá sofrer manipulação dos seus resultados. Para a sociedade, pode agravar os problemas de saúde mental, já que as pessoas comprarão o teste e terão a possibilidade de se autoaplicarem e interpretar os resultados de forma equivocada, ou mesmo que seja de forma correta, sem ter o embasamento teórico e científico sobre o construto para realizar uma análise fundamentada, observando outros elementos necessários para qualquer análise de resultados de testes e que deve ser realizada somente dentro de uma avaliação psicológica.
O resultado de um teste psicológico sem demais informações coletadas por meio de uma avaliação psicológica, realizada por um psicólogo, que analisa de forma ampliada e pautada na ciência psicológica, pode levar a interpretações equivocadas e interferir negativamente no estado de saúde mental da pessoa que teve contato com essas interpretações de forma descontextualizada.
Por fim, vale destacar que diversos países têm adotado diferentes formas de controle de acesso aos testes psicológicos. Nos Estados Unidos e Canadá, por exemplo, há uma classificação dos testes e, de acordo com esta, estipula-se o nível de formação que o profissional necessita ter para manusear e/ou adquirir o instrumento. Essas diretrizes da avaliação psicológica amparam-se em literatura científica psicológica internacional e seguem os standard da área especificados nos documentos:
I - American Educational Research Association, American Psychological Association & National Council on Measurement in Education (2014).
II - International Testing Comission (2005). Diretrizes para o Uso de Testes: International Test Commission. (http://www.intestcom.org);
III - International Testing Comission (2005). ITC Guidelines for Translating and Adaptating Tests. (http://www.intestcom.org);
IV - International Testing Comission (2014). The ITC Guidelines on the Security of Tests, Examinations, and Other Assessments. (http://www.intestcom.org);
V - International Testing Comission (2013). ITC Guidelines on Quality Control in Scoring, Test Analysis, and Reporting of Test Scores. (http://www.intestcom.org).
2. Por que a restrição ao uso e comercialização dos testes psicológicos assim como sua regulamentação é necessária?
É importante ressaltar que a finalidade de um teste psicológico é medir uma amostra de comportamento (Urbina, 2007) e, com isso, contribuir com o processo de avaliação psicológica para a melhor compreensão do funcionamento cognitivo, emocional e social de um indivíduo. O teste é uma ferramenta para o exercício profissional do psicólogo em uma avaliação psicológica, então o uso e comercialização precisa visar essa finalidade.
Dessa forma, é necessário regulamentar o uso e comercialização dos testes psicológicos para evitar malefícios, como os que serão aqui discutidos. Conforme assinalado anteriormente, são necessárias habilidades específicas para o manuseio, interpretação e utilização dos dados dos testes. Não se tem conhecimento de que essas habilidades sejam trabalhadas na formação de outros profissionais. Além disso, a não regulamentação do uso e/ou venda dos testes poderia gerar ônus para a população ao ser usada indevidamente para fins distintos daqueles preconizados nas normatizações da área de avaliação psicológica. Como exemplo, pode-se citar:
1 - O uso de testes de inteligência para justificar o fracasso escolar, culpabilizando o indivíduo, sem uma análise de todo o contexto envolvido no processo de ensino e aprendizagem, como os condicionantes sociais, históricos, culturais e ambientais.
2 - O ensino/treino de testes psicológicos para pessoas que farão avaliação psicológica para obtenção ou renovação de Carteira Nacional de Habilitação, manuseio de arma de fogo, concurso público, como exemplos, poderia gerar resultados desastrosos.
3 - Qualquer profissional poderia comprar os testes e usá-los sem o conhecimento necessário, fazendo generalizações ou inferências que extrapolam os resultados obtidos ou não considerando os contextos que podem estar influenciando.
Em relação ao item dois, a literatura científica demonstra evidências de validade preditiva dos testes psicológicos em diversos contexto como no ambiente de trabalho ao serem passivos de acidentes envolvendo os trabalhadores (Baumgartl & Primi, 2005), em concursos públicos identificando e, consequentemente, levando à reprova, perfis contraindicados no exame psicológico de candidatos à policiais militares que foram admitidos por ordem judicial e, posteriormente, no exercício da profissão apresentaram condutas desviantes (Faiad & Alves, 2018).
Um estudo ainda revela a percepção de 783 candidatos à obtenção da Carteira Nacional de Habilitação e condutores habilitados sobre os benefícios sociais produzidos pela avaliação psicológica. Essa população pesquisada relatou que o processo de avaliação psicológica auxilia na identificação de fatores de risco para diminuir o índice de acidentes e, por fim, julgaram ser importante que a avaliação psicológica fosse realizada com maior periodicidade (Lamounier & Rueda, 2005).
Esse reconhecimento também se vê expresso de modo recorrente na mídia, por meio da divulgação de casos de candidatos reprovados nos processos de avaliação psicológica para manuseio de arma de fogo, mas que conseguem autorização por meio de liminar e, posteriormente, envolvem-se em acidentes de trabalhos ou fazem uso indevido da arma com agravos significativos para a sociedade e para o próprio indivíduo.
Em conjunto, essas informações destacam que o teste psicológico é um meio para avaliar o indivíduo quanto a suas capacidades cognitivas, emoções e/ou comportamentos mais frequentes. No entanto, para que se tenha um entendimento adequado diante dos testes, as pessoas, ao respondê-lo, precisam se colocar de maneira real sobre o que elas sabem, pensam, sentem, observam ou percebem. Caso contrário, o que será obtido pelo teste não corresponderá a uma amostra do comportamento que representa o construto avaliado (funcionamento cognitivo, social e/ou emocional etc.) e, dessa forma, o psicólogo estará diante de dados incongruentes ou falseados.
Sendo assim, o acesso prévio ao teste por possíveis avaliados poderia suscitar manipulação dos dados e respostas, permitindo que responda de forma socialmente desejável ou com base em informações prévias sobre quais respostas deveriam ser emitidas. Em consequência, nessas condições, o teste perde sua função, pois o psicólogo não estará diante de uma coleta de dados que reflete o funcionamento cognitivo, social e/ou emocional da pessoa, mas terá somente informações de um funcionamento que o indivíduo está manipulando e que não é congruente com sua subjetividade, ou o psicólogo estará frente a respostas decoradas para serem emitidas no teste, mas que não representam o sujeito e sim uma maneira manipulativa diante o teste.
A falta de regulamentação dos testes, portanto, deixa cair por terra os esforços científicos que tornam uma avaliação psicológica efetiva. O teste psicológico é um instrumento construído com bases teóricas e comprovado cientificamente por meio de diversos estudos de evidências de validade e precisão, tal como destacado anteriormente, sendo que tais estudos seguem uma padronização para serem realizados, e qualquer mudança nessas regras pode comprometer o psicólogo. O instrumento e o psicólogo não poderá fazer uso da normatização (comparação dos dados com amostras normativas, análise e interpretação das informações), pois estas foram baseadas em estudos prévios que seguiram rigorosa metodologia, inclusive sem ter na amostra da população pessoas treinadas para responder ao teste, justamente pelos motivos apontados anteriormente que fazem com que esse tipo de prática descaracterize a função do instrumento psicológico. Então, quando o teste chega ao usuário (respondente) e profissional psicólogo, diversos estudos de validade, precisão, padronização e normatização foram realizados e aprovados pelo Conselho Federal de Psicologia.
Sobre a padronização, que se refere a como aplicar, corrigir e interpretar o teste, e a normatização, que se trata de comparar o resultado da pessoa com algumas referências, por exemplo, amostra da população geral, devem ser respeitadas e seguidas, exatamente como está descrito no manual, por quem fará uso do material. Qualquer mudança na forma de aplicar, corrigir, interpretar e utilizar as normas poderá interferir nas evidências de validade e precisão do instrumento. Assim, não é difícil compreender a necessidade dessa sistematização.
Por exemplo, imagine um teste que foi elaborado para avaliar raciocínio indutivo em crianças de 6 a 10 anos de idade, no formato individual, com uma interação constante entre avaliando e avaliado, pois quem está aplicando precisa anotar todas as respostas do sujeito submetido ao teste e deve registrar e controlar o tempo para cada tarefa. Como tal teste pode ser aplicado em crianças pré-escolares se os itens foram elaborados com um nível de complexidade necessária ou um nível de entendimento possível para avaliar crianças entre 6 e 10 anos? Como esse instrumento pode ser usado no formato coletivo se o profissional precisa estar atento a cada resposta a ao tempo de cada tarefa? Como comparar o resultado obtido por uma criança de 4 anos se há somente tabelas normativas para as de 6, 7, 8, 9 e 10 anos? Não há como proceder a aplicação em crianças pré-escolares e/ou no formato coletivo. Ao efetuar uma dessas formas de aplicação, automaticamente o profissional está inserindo uma variável interveniente que não foi estudada durante o processo de construção do instrumento e, com isso, as evidências de validade e precisão não podem mais ser asseguradas.
Assim, também se aplica a questão de se ter um instrumento validado para um contexto e idade, mas não validado para pessoas previamente treinadas. Não há como comparar indivíduos que foram treinados para responder a um instrumento, com os que não foram treinados. Isso se configura uma variável (treinamento) que irá interferir na validade do instrumento, que não foi construído para populações treinadas nele, além de impossibilitar a comparação com a amostra normativa, sendo injusto a comparação citada anteriormente. Além de o treinamento descaracterizar a função do teste e o comprometer, essa situação se configura como desonesta, pois todos os sujeitos submetidos a um teste precisam ter as mesmas oportunidades de instrução da aplicação.
Todo esse cuidado é para que a utilização do teste psicológico realmente possa contribuir para o processo de avaliação psicológica visando sempre o benefício do indivíduo que está sendo avaliado e da sociedade, que se beneficiará do serviço do psicólogo. Isso posto, que finalidade o teste tem se não for para obter informações da verdadeira realidade do sujeito, como pessoa única, com suas idiossincrasias? Treinar pessoas para responder os testes é tornar todos com as mesmas características de personalidade, capacidades cognitivas, percepções sobre as situações e com o mesmo sentir diante a qualquer evento que ocorra na vida. E isso é ignorar toda a subjetividade, construção social e histórica do indivíduo.
Consequentemente, há um prejuízo para o sujeito avaliado, pois deixará de ter um maior conhecimento sobre si e de possíveis dificuldades e até mesmo psicopatologias que poderiam e deveriam ser tratadas. No entanto, o prejuízo é para além do indivíduo, pois abrange um malefício para a sociedade. Como exemplo dessa situação de treinamento, pode ser citado o caso de um candidato ao cargo de policial militar que foi treinado por uma pessoa, não psicóloga (pelo código de ética mesmo que fosse um psicólogo esse comportamento de treinar alguém para um teste infringe a ética), que comprou o teste e o ensinará a responder exatamente com as respostas que o fará ser aprovado em um concurso. Posteriormente, a avaliação desse sujeito realizada pelo psicólogo que está organizando o concurso estará comprometida, pois o candidato não respondeu de modo congruente com seu funcionamento cognitivo, social e emocional, mas sim de acordo com o que decorou para responder. Dessa forma, a avaliação final poderá emitir um parecer favorável.
No entanto, se o candidato não tivesse sido treinado, o parecer poderia ser desfavorável, com base nas informações que seriam autênticas do sujeito. Se fosse esse o caso, o policial conseguir ser aprovado por ter manipulado, a sociedade, agora, conviveria com um servidor que, por exemplo, pode ter dificuldade de relacionamento interpessoal e demonstrar no dia a dia alta impulsividade e agressividade, características indesejáveis para alguém que lida com a segurança.
3 - Por que a restrição ao uso e comercialização dos testes psicológicos é razoável?
O uso profissional de testes psicológicos somente faz sentido quando incluído como parte de um processo de avaliação psicológica, pois os resultados obtidos apenas se tornam relevantes quando analisados com outras informações que são coletadas e compreendidas por meio de técnicas, métodos e procedimentos que possibilitem uma melhor compreensão do funcionamento cognitivo, emocional e social de um indivíduo ou grupo. Então, o teste psicológico é uma ferramenta que faz parte da avaliação psicológica, sendo uma tecnologia profissional que demanda formação específica para desenvolvimento de conhecimentos e competências necessárias para seu uso.
Os resultados de um teste psicológico, quando não analisados sob a perspectiva de conhecimentos e técnicas da ciência psicológica, têm grande potencial para causar malefícios à sociedade. Resultados isolados de testes psicológicos, sem uma análise que inclua informações sobre histórico social, comportamentos, sentimentos e pensamentos do avaliado e, sobretudo, isentos de pressupostos teóricos da ciência psicológica, não oferecem uma compreensão aprofundada sobre o funcionamento do indivíduo ou grupo. Como exemplo, em um teste de avaliação da inteligência, uma pessoa que obteve resultado classificado como abaixo da média, pode, por meio de outras técnicas, ter esse resultado relativizado se verificado que ela apresenta boa capacidade de raciocínio. Um psicólogo pode concluir, nesse caso, que o resultado do teste de inteligência seria decorrente de uma falta de atenção, provocada por problemas emocionais, que se minimizadas, poderiam acarretar melhora no desempenho do indivíduo.
Os conhecimentos da ciência psicológica permitem que o psicólogo hipotetize, investigue e compreenda questões que estão além dos resultados imediatos de um teste psicológico. Essa capacidade de análise está diretamente relacionada à formação profissional recebida. Como já citado nas seções anteriores, além das teorias que embasam os testes psicológicos, é importante que o profissional também tenha conhecimentos de Estatística e Psicometria para avaliação e desenvolvimento de instrumentos e sistemas de avaliação, assim como conhecimentos para realizar avaliações em condições singulares que envolvam demandas particulares, como manuseio de arma de fogo, concursos públicos ou redação de laudos e outros documentos escritos em decorrência da Avaliação Psicológica. Neste sentido, não se observa benefício no uso de testes psicológicos ou acesso às informações de um teste psicológico pela população em geral ou por outros profissionais não qualificados na ciência psicológica e, portanto, não aptos a conduzirem uma avaliação psicológica resguardando todos os aspectos envolvidos no processo de avaliação.
Por fim, destaca-se que, ao se regulamentar o uso dos testes psicológicos, não se restringe o acesso ao conhecimento científico da Psicologia, visto que este pode ser consumido por meio de publicações científicas que são irrestritas à sociedade. A regulamentação dos testes psicológicos é uma forma de proteger a sociedade dos malefícios que podem ocorrer a partir de uso indevido e indiscriminado deles.
Atualmente, o Conselho Federal de Psicologia, que tem por obrigação fiscalizar, orientar e regulamentar a prática dos profissionais da área, cuidando para que atuem de forma ética e benéfica para a sociedade, não conseguiria garanti-las, caso os testes fossem comercializados e utilizados por qualquer profissional ou pela comunidade em geral. Dessa forma, a não regulamentação dos testes ou a abertura da comercialização e uso para profissionais não habilitados poderia causar prejuízo quanto ao respeito aos direitos humanos e, quanto à proteção à sociedade, pois esta estaria exposta a práticas com testes psicológicos que poderiam resultar em conclusões distorcidas ou equivocadas, que resultem em ações que podem levar ao preconceito, discriminação, opressão ou injustiça.
Em suma, não há benefícios na desregulamentação da venda ou uso dos testes psicológicos. Informação científica envolvendo os testes estão amplamente disponíveis em publicações (livros e artigos científicos), assim, profissionais que desejam ou necessitam dessas informações podem obtê-las livremente. O que não se disponibiliza são os itens do teste, incluindo folhas de resposta, crivos e gabaritos e informações sobre sua aplicação e interpretação. Essas informações devem mesmo ser sigilosas, pois constituem uma ferramenta de trabalho importante para os psicólogos, conforme já apontado ao logo de todo o texto.
A restrição ao uso de testes exclusivamente para psicólogos não é gravosa para a população em geral. Não há nenhum prejuízo para as pessoas, caso elas não tenham conhecimento dos itens do teste e/ou de como respondê-los. Em contrapartida, sua liberação, sim, poderia trazer sérios riscos à sociedade em geral e à profissão do psicólogo em específico.
À Guisa de Conclusão
O presente artigo buscou discutir a complexidade dos processos de Avaliação Psicológica e o importante papel dos testes psicológicos nesse processo. De forma específica, apresentou argumentos que justificam a necessidade de regulamentação dos testes psicológicos em uma estrutura baseada na teoria do filósofo alemão Robert Alexy sobre os direitos fundamentais que discorre sobre a adequação, a necessidade e razoabilidade das normas. Em geral, os argumentos aventados neste artigo podem ser resumidos nos seguintes aspectos:
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A construção dos testes psicológicos é uma atividade complexa, que demanda conhecimentos técnicos específicos e, portanto, nem todas as pessoas ou profissionais teriam a habilidade e competência para o uso adequado deles;
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Os testes demandam conhecimentos ofertados em uma formação específica, a da psicologia e, portanto, constitui uma tecnologia profissional do psicólogo;
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A área de Avaliação Psicológica desprendeu esforços significativos nos últimos anos para qualificar seus métodos, técnicas e instrumentos, o que culminou em um aumento dos testes psicológicos disponíveis e no reconhecimento da avaliação psicológica como um procedimento importante em diferentes contextos (como saúde e segurança, por exemplo);
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Como fruto desses esforços duas importantes entidades científicas foram fundadas: o Instituto Brasileiro de Avaliação Psicológica (IBAP) e a Associação Brasileira de Rorschach e outros Métodos Projetivos (AsBRo), ambas reconhecidas internacionalmente e com ações importantes no âmbito brasileiro;
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Com o apoio dessas entidades, foi desenvolvido um Sistema de Avaliação dos Testes Psicológicos (SATEPSI) pelo Conselho Federal de Psicologia com objetivo de avaliar a qualidade técnica dos testes psicológicos para uso profissional do psicólogo;
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Ao controlar a qualidade dos testes psicológicos usados em contexto profissional, garante-se uma atuação profissional ética e de qualidade (por parte do psicólogo) e protege-se a sociedade de possíveis consequências resultantes de um processo avaliativo inadequado.
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Ainda, nesse aspecto, reserva-se o caráter avaliativo e terapêutico da avaliação psicológica, o que poderia ser descaracterizado caso o teste fosse de acesso irrestrito.
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A não regulamentação dos testes psicológicos pode representar sérios riscos para os indivíduos e para a sociedade na medida em que possibilita o uso inapropriado ou a manipulação de dados, sobretudo na possibilidade de sua disponibilização para a população geral e os riscos decorrentes desse acesso.
Como destacado no início do trabalho, o objetivo não foi realizar uma valoração sobre a legalidade da decisão proferida pelo STF, até porque não corresponde e foge aos conhecimentos dos pesquisadores. No entanto, cabe sim ponderar e argumentar sobre os graves problemas que tal decisão pode acarretar. Entende-se e reforça-se, mais uma vez, que a restrição à comercialização e ao uso de testes exclusivamente para psicólogos não é um perigo para a sociedade, mas sua liberação indiscriminada, mesmo que seja apenas para o conhecimento e acesso sem abranger o uso profissional, pode trazer consigo graves riscos à sociedade.
Agradecimentos
Não há menções.
Financiamento
A presente pesquisa não recebeu nenhuma fonte de financiamento sendo custeada com recursos dos próprios autores.
Contribuições dos autores
Declaramos que todos os autores participaram da elaboração do manuscrito.
Disponibilidade dos dados e materiais
Não se aplica por se tratar de um estudo teórico.
Conflito de interesses
Os autores declaram que não há conflitos de interesses.
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Endereço para correspondência:
Daniela Sacramento Zanini
Rua 9, nº 769 ap.702, St. Oeste
74110-100 - Goiania, GO - Brasil
E-mail: dazanini@yahoo.com
Recebido em abril de 2021
Aceito em junho de 2021
Sobre os autores
Daniela Sacramento Zanini é Doutora em Psicologia. Bolsista Produtividade em Pesquisa 2 do CNPq. Presidente eleita do Instituto Brasileiro de Avaliação Psicológica (gestão 2021-2023). Coordenadora da Comissão Consultiva de Avaliação Psicológica do Conselho Federal de Psicologia (gestão 2017-2019) e membro atual da referida comissão (2020-2022).
Caroline Tozzi Reppold é Doutora em Psicologia. Bolsista Produtividade em Pesquisa 1D do CNPq. Presidente do Instituto Brasileiro de Avaliação Psicológica (gestão 2011-2013). Membro da Comissão Consultiva de Avaliação Psicológica do Conselho Federal de Psicologia (gestões 2010-2013, 2017-2019 e 2020-2022).
Monalisa Muniz é Doutora em Psicologia. Presidente do Instituto Brasileiro de Avaliação Psicológica (gestão 2017-2019). Conselheira do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (gestão 2016-2019). Membro da Comissão Consultiva de Avaliação Psicológica do Conselho Federal de Psicologia (gestão 2020-2022).
Ana Paula Porto Noronha é Doutora em Psicologia. Bolsista Produtividade em Pesquisa 1A do CNPq. Presidente do Instituto Brasileiro de Avaliação Psicológica (gestão 2007-2009). Coordenadora da Comissão Consultiva de Avaliação Psicológica do Conselho Federal de Psicologia (gestão 2013-2016) e membro atual da referida comissão (2020-2022).
Fabián J. M. Rueda é Doutor em Psicologia. Bolsista Produtividade em Pesquisa 1C do CNPq. Coordenador da Comissão Consultiva de Avaliação Psicológica do Conselho Federal de Psicologia (gestão 2017-2019). Secretário-Geral do Conselho Federal de Psicologia (gestão 2020-2022).
1 Mais informações podem ser obtidas em satepsi.cfp.org.br
2 A discussão da adequação, necessidade e razoabilidade é proposta por Robert Alexy como forma de ponderação de princípios quando duas normas se colidem. Nesse caso, as normas que se colidem são, por um lado, o direito a informação e, por outro, a restrição de acesso aos testes psicológicos como forma de proteção do instrumento, indivíduo e sociedade.