Durante muito tempo, as organizações se mostraram avessas a mudanças, esforçando-se para manter seu funcionamento previsível e sob controle (Lahlou & Beaudoin, 2017). Nesse contexto, a criatividade foi, historicamente, considerada uma característica bastante aversiva de ser cultivada no ambiente de trabalho. No entanto, mais recentemente, as organizações têm buscado aderir a um movimento de substituição das estruturas estabelecidas e rígidas, para formas mais fluidas e criativas, na tentativa de se reinventarem e se manterem competitivas em um mundo marcado por intensas mudanças (Sharif, 2015), imprevisibilidade do mercado e das exigências dos consumidores (Gazzaroli, Gozzoli, & Sánchez-Gardey, 2019). Consequentemente, a criatividade no local de trabalho tem assumido papel crítico para sobrevivência e competência organizacional (Cai, Lysova, Khapova, & Bossink, 2019).
Amabile (1996) definiu a criatividade no trabalho como o processo em que os funcionários da organização geram ideias que buscam criar, melhorar ou modificar os produtos, procedimentos ou políticas organizacionais. Nesse contexto, nas últimas décadas, a criatividade vem sendo visualizada como uma importante característica que pode ser construída, sustentada e aproveitada como forma de aumentar a performance competitiva das empresas (Pettigrew, 2017). Considerando a importância crítica da criatividade, gestores têm buscado meios de facilitar a performance criativa de seus funcionários, por meio do oferecimento de condições, suporte e encorajamento ao desenvolvimento de ideias criativas (Cai, 2019).
A importância da criatividade no contexto de trabalho é refletida no grande número de estudos encontrados, cujo aumento tem se dado especialmente nos últimos 30 anos (Fischer, Malycha, & Schafmann, 2019). A estimulação da criatividade individual mostra-se um elemento vital para as empresas, principalmente considerando-se os benefícios que tal característica pode promover em relação a vantagem competitiva (Acar, Tarakci, & Knippenberg, 2019).
Consequentemente, diversas organizações têm procurado, constantemente, por formas de estimular a criatividade de seus funcionários, ao mesmo tempo em que os pesquisadores se mostram interessados em entender os fatores que atuam de modo a facilitar ou inibir essa característica no contexto do trabalho (Shafi, Zoia, Lei, Song, & Sarker, 2020). Nesse ambiente, a criatividade pode se mostrar importante para a geração de novas ideias, diversificação de produtos, atendimento de demandas, recrutamento e manutenção de bons funcionários, além de solução de problemas (Spadari, Nakano, & Peixoto, 2017).
Consequentemente, no contexto organizacional, a criatividade vem sendo foco de uma série de pesquisas, voltadas a diferentes propósitos: 1. compreender como fatores individuais e ambientais interagem para influenciar a capacidade dos membros da organização de produzirem ideias novas e úteis, 2. descobrir como a criatividade individual é influenciada pelas características do grupo (normas, tamanho e grau de coesão) e clima organizacional (Thompson, 2018). A diferença entre as duas ênfases se situa no fato de que, enquanto a criatividade individual se concentra no processo de geração de novas ideias, a criatividade organizacional se concentra em resultados mais amplos (produtos criativos, novos métodos e processos) sendo, esta última, influenciada pela criatividade individual de seus funcionários, do grupo e do ambiente (Indriartiningtias & Hartono, 2017).
A criatividade tem sido estudada sob diferentes enfoques, enfatizando a pessoa, processo, produto ou ambiente (Nakano & Wechsler, 2018). Dentre o primeiro grupo, dos fatores individuais, uma série de características vêm sendo destacadas, especialmente, traços, valores e estados psicológicos que podem favorecer a expressão criativa (Cai, 2019). Autonomia, metas desafiadoras, habilidades de comunicação, entusiasmo com novas ideias, colaboração (Hatum, 2017), autoconfiança, abertura a experiências, tomada de risco, fluência em comunicação, motivação (Indriartiningtias & Hartono, 2017), bem como curiosidade, persistência e imaginação (Nakano & Wechsler, 2018) têm sido apontadas como variáveis de personalidade associadas com a criatividade.
Para além das características individuais, o ambiente organizacional também assume papel importante, podendo atuar de forma a facilitar a expressão criativa, por exemplo, por meio de diferentes práticas que envolvem treinamento e educação dos funcionários, possibilidade de flexibilização do trabalho e das horas trabalhadas, autonomia, diminuição dos níveis de formalização das atividades (Hatum, 2017). Outros aspectos também são citados e envolvem promoção de um ambiente que permita assumir riscos, comunicação que permitem troca de informações e feedback, promoção de um clima de tolerância ao fracasso (Gazzaroli et al., 2019), diversidade na composição dos grupos de trabalho, clima e trocas interpessoais entre membros de um grupo de trabalho (Tu, Lu, Choi, & Guo, 2019). Sendo assim, as pesquisas têm demonstrado que as organizações necessitam fornecer um sistema de suporte ao desenvolvimento da criatividade organizacional (Olszak, Bartus, & Lorek, 2018).
Indiferente ao aspecto enfatizado, é importante esclarecer que as concepções mais atuais da criatividade consideram tal habilidade como uma característica potencial presente, ao menos enquanto potencial, em todos os indivíduos. Dessa forma, ao reconhecer que as variações na expressão criativa envolvem somente seu nível, ou seja, a intensidade com que ela se encontra presente em cada pessoa e, ao mesmo tempo o reconhecimento de um nível relacionado a criatividade intitulada little c, o qual consiste na habilidade de encontrar soluções criativas para problemas cotidianos (Kaufman, Luria, & Beghetto, 2018; Lassig, 2019), a criatividade se torna passível de ser alcançada. Ta l compreensão possibilita o reconhecimento e avaliação das diversas formas de expressão criativa, incluindo-se, por exemplo, o potencial criativo no trabalho, foco do estudo.
Partindo do princípio de que, na prática, diversas organizações afirmam ter a criatividade como pré-requisito para a contratação e até mesmo promoção no ambiente de trabalho, mas não contam com instrumentos que avaliem de forma válida e fidedigna esse construto (Spadari et al., 2017), especificamente nesse contexto, o desenvolvimento da Escala de Potencial Criativo do Trabalho foi iniciado. A escala tem como objetivo principal atender tanto a necessidade das empresas em avaliarem previamente os candidatos, no momento do processo de seleção, assim como possibilitar o acompanhamento e desenvolvimento de seus funcionários por meio de processos avaliativos periódicos.
Dentre o processo de investigação das qualidades psicométricas do instrumento, os resultados de dois estudos são apresentados. O Estudo 1 buscou investigar evidências de validade baseadas na estrutura interna e precisão do instrumento. Já o Estudo 2 buscou investigar a relação com variáveis externas do tipo convergente.
Estudo 1: Evidências de Validade por meio da Estrutura Interna e Precisão
Participantes
A amostra foi composta por 552 participantes, com idades entre 18 e 73 anos (M=34,8; DP=10,9), provenientes de diversas empresas de pequeno, médio e grande porte e de diferentes ramos (imobiliário, industrial, financeiro, construção civil, hospitalar e pública). Dos participantes, 72% (n=395) pertenciam ao sexo feminino, predominantemente da região sudeste. Em relação ao nível educacional, 44% (n=243) dos participantes haviam completado o ensino superior, 30% (n=166) eram pós-graduados, 14% (n=79) indicaram ter o ensino superior incompleto, 9% (n=53) o ensino médio, e 2% (n=7) o nível técnico. Quatro sujeitos não responderam essa informação em seus formulários. Em relação ao tempo de empresa, 12,3% (n=68) tinham menos de 1 ano de empresa, 46,7% (n=258) entre 1 e 5 anos, 20,8% (n=115) de 6 a 11 anos, 7,4% (n=41) de 12 a 17 anos, 3,1% (n=17) 18 a 25 anos, 3,3% (n=18) de 26 a 30 anos e 2,5% (n=14) acima de 30 anos de tempo de empresa, 3,9% (n=20) não informaram.
Instrumentos
Escala de Potencial Criativo no Trabalho, composta por 19 itens a serem respondidos em escala Likert de cinco pontos (variando de “concordo totalmente” a “discordo totalmente”), divididos em dois fatores teoricamente pensados. O Fator 1, chamado de “Bloqueios e barreiras à criatividade” seria composto por 11 itens e envolve afirmações que se relacionam de forma inversa à criatividade. Já o Fator 2 seria composto por oito itens, intitulado “Atributos e características que favorecem a criatividade” e engloba itens que se encontram relacionados diretamente à criatividade.
Procedimentos
Inicialmente, o projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em pesquisa (CAAE 02515318.5.0000.5481). Posteriormente, as pesquisadoras entraram em contato com os gestores responsáveis pelas empresas que autorizaram a coleta de dados, a fim de explicar o objetivo da pesquisa, bem como adquirir sua autorização por escrito. Após o consentimento da empresa, a primeira autora compareceu aos locais para realizar o convite aos funcionários. Na ocasião, explicou os objetivos da pesquisa, metodologia dela e as atividades que seriam realizadas pelos participantes. Ressalta-se que foi esclarecido acerca do sigilo e que, em nenhum momento, os gestores saberiam o resultado dos testes dos funcionários, além disso garantiu-se que eles poderiam descontinuar a participação em qualquer momento da pesquisa, de modo a garantir que não haveria conflito ético.
Posteriormente, os termos de consentimento livres e esclarecidos (TCLE) foram entregues aos funcionários e aqueles que se disponibilizaram a participar, por meio da assinatura do TCLE, responderam a escala. A aplicação foi realizada de forma coletiva sem limite d e tempo de resposta, durando, em média, 30 minutos.
Análise de dados
Construiu-se um banco de dados contendo as informações sociodemográficas (sexo, idade, nível de escolaridade e tempo na empresa), bem como as respostas a cada um dos itens de todos os participantes. Com auxílio do programa RStudio 3.4 (R Core Team, 2018) utilizando-se o pacote Lavaan (Rosseel, 2014), empregou-se a análise fatorial confirmatória (AFC). Considerando as orientações referentes ao tipo de método utilizado para estimação, optou-se por utilizar o Diagonal Weighted Least Squares (DWLS). Foram verificadas as diferenças entre os índices de ajuste: qui-quadrado (χ2), graus de liberdade (gl), Comparative Fix Index (CFI), Tucker Lewis Index (TLI) e Root Mean Square Error of Approximation (RMSEA). Importante informar que as interpretações dos dados relacionados ao CFI, TLI e RMSEA seguiram as orientações de Pilati e Laros (2007). Assim, para o CFI e o TLI valores compreendidos entre 0,90 e 0,95 devem ser considerados como indicadores de ajuste suficiente, por sua vez, valores acima de 0,95 são entendidos como indicadores de bom ajuste. Para os valores do RMSEA, os referidos autores, afirmam que são esperados valores inferiores à 0,08 para que o modelo seja considerado adequado.
Após a realização dessas ações, verificou-se a precisão do instrumento por meio da análise dos coeficientes de alfa de Cronbach. Os resultados foram analisados considerando as orientações de Hair, William, Babin e Anderson (2009), segundo os quais, o limite inferior geralmente aceito é de 0,70, apesar de aceitar sua redução para 0,60 em pesquisas exploratórias. Importante destacar que, para essa análise, utilizou-se o software Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) versão 22.
Resultados
Estimou-se inicialmente o valor do χ2 (0,0001) e dos graus de liberdade (gl=553), verificando-se que o CFI (0,976) e TLI (0,973) apresentaram bom ajuste, de acordo com os critérios adotados (Pilati & Laros, 2007). Por sua vez, o RMSEA (0,038) apresentou valor menor ao valor mínimo sugerido, 0,08. Sendo assim, o conjunto de informações obtidas, por meio desses índices de ajuste, sugerem a adequação do modelo. A Tabela 1 apresenta maior detalhamento desses resultados.
Tabela 1 Valores das Cargas Fatoriais para os Fatores Específcos
Item | Fator 1 | Fator 2 |
---|---|---|
6 | 0,364 | |
10 | 0,382 | |
14 | -0,160 | |
19 | 0,546 | |
21 | 0,245 | |
22 | 0,621 | |
27 | 0,451 | |
28 | 0,637 | |
32 | 0,680 | |
34 | 0,591 | |
36 | 0,671 | |
2 | 0,325 | |
3 | 0,376 | |
4 | 0,344 | |
11 | 0,477 | |
16 | 0,554 | |
20 | 0,407 | |
30 | 0,420 | |
31 | 0,384 |
Conforme pôde ser visualizado, os valores das cargas fatoriais dos onze itens que compõem o Fator 1 variaram entre -0,160 e 0,680. Considerando-se o conteúdo dos itens, interpretou-se que tal fator se refere à itens que se relacionam de forma inversa à criatividade, sendo chamado de “Bloqueios e barreiras à criatividade” visto que envolvem características como a preferência por situações rotineiras e/ou convencionais, a pouca tomada de iniciativa e até mesmo a ausência de curiosidade.
O Fator 2, denominado Atributos e características que favorecem a criatividade, é composto por oito itens, cujas cargas fatoriais oscilaram entre 0,325 e 0,554. Esse fator engloba itens cujos conteúdos apontam para incentivo à expressão criativa. Como exemplos de características podem ser citados a busca por novos desafios, entusiasmo e motivação diante de novos trabalhos e aplicação de novas ideias.
Diante dos resultados, e considerando que a literatura sugere que devem ser mantidos itens com cargas superiores a 0,30 (Pilati & Laros, 2007), a exclusão do item 14 foi considerada. Entretanto, os pesquisadores optaram por mantê-lo nas análises subsequentes visto que os estudos aqui apresentados ainda se constituem em estudos iniciais com a escala, de modo que estudos futuros poderão fornecer mais dados acerca da decisão de manutenção ou exclusão desse item.
Em relação à precisão do instrumento, a consistência interna foi aplicada. Os valores dos coeficientes de alfa de Cronbach foram de 0,79 para o Fator 1 e de 0,77 para o Fator 2, interpretados como adequados.
Estudo 2: Evidências de Validade com Base em Variáveis Externas do Tipo Convergente
Participantes
A amostra a foi composta por 50 participantes, com idades entre a 17 e 61 anos (M=32,96; DP=11,47), selecionados por conveniência e provenientes de diversas empresas de pequeno, médio e grande porte e de diferentes ramos (imobiliário, industrial, financeiro, construção civil, hospitalar e pública) localizadas no interior do estado de São Paulo. Dos participantes, 31 eram do sexo feminino, sendo 18% (n=9) com escolaridade correspondente ao ensino médio, 56% (n=28) com ensino superior completo, 12% (n=6) com ensino superior incompleto, 10% (n=5) pós-graduados e 4% (n=2) técnicos.
Instrumentos
Escala de Potencial Criativo no Trabalho (EPCT) – descrita no Estudo 1
Teste Pensando Criativamente com Palavras de Torrance – versão brasileira (TPCP) (Wechsler, 2004). Composto por seis atividades, cujas respostas são dadas sob a forma escrita, o teste tem por objetivo a avaliação da criatividade verbal de adolescentes e adultos. O instrumento pode ser administrado tanto de forma coletiva quanto individual, com limite total de 50 minutos.
Nove características criativas são corrigidas em cada resposta fornecida pelo sujeito: fluência, flexibilidade, elaboração, originalidade, expressão de emoção, fantasia, movimento, perspectiva incomum, analogias/metáforas. As quatro primeiras são consideradas características cognitivas da criatividade e, somadas, dão origem ao Índice Criativo Verbal I. As demais, são consideradas características emocionais. A soma das características cognitivas e emocionais dá origem ao Índice Criativo Verbal II.
Uma série de estudos envolvendo a investigação de suas qualidades psicométricas foi desenvolvida e apontou resultados positivos para evidências de validade de critério, diferenciando, de forma adequada, sujeitos criativos e não criativos, precisão por meio do teste e reteste, evidências de validade de construto (Wechsler, 2004).
Procedimentos
Os termos de consentimento livre e esclarecidos (TCLE) foram entregues aos funcionários, sendo que, aqueles que concordaram, assinaram o documento e responderam a ambos os instrumentos, de forma coletiva, em uma única sessão de aplicação, com duração média de 1 hora e 10 minutos. A administração foi iniciada pelo teste TPCP devido ao fato de exigir controle de tempo de resposta para cada atividade, seguido pela aplicação da EPCT, sem limite de tempo.
Análise de dados
Posteriormente, ao final do processo de coleta de dados, os instrumentos foram corrigidos, estimando-se no TPCP, a pontuação em cada uma das características avaliadas, assim como o valor total por meio do Índice Criativo Verbal 1 e Índice Criativo Verbal 2. Já a EPCT teve a pontuação em cada um dos itens estimada, assim como a do participante nos dois fatores (Bloqueios e barreiras à criatividade/Atributos e características que favorecem a criatividade). A correlação de Spearman foi utilizada, dado o número reduzido da amostra e a ausência de normalidade dela.
Resultados
A primeira análise realizada visou a estimativa da estatística descritiva de cada um dos instrumentos utilizados na pesquisa. Para isso, no teste Pensando Criativamente com Palavras de Torrance – versão brasileira foram consideradas as oito características que ele avalia, juntamente com seus índices totais, ICV 1 e ICV 2. Para a Escala de Potencial Criativo Organizacional foram estimadas as pontuações nos dois fatores que a compõem. Os resultados obtidos nessa análise encontram-se na Tabela 2.
Tabela 2 Estatística Descritiva por Instrumento
Instrumento | Medida | Mínimo | Máximo | Média | DP |
---|---|---|---|---|---|
Pensando Criativamente com Palavras de Torrance | Fluência | 18 | 75 | 39,30 | 14,57 |
Flexibilidade | 11 | 43 | 23,20 | 7,60 | |
Elaboração | 2 | 52 | 19,70 | 10,69 | |
Originalidade | 2 | 47 | 13,40 | 8,85 | |
E. Emoção | 0 | 10 | 2,46 | 2,36 | |
Fantasia | 0 | 13 | 2,10 | 2,65 | |
P. Incomum | 0 | 8 | 1,62 | 2,02 | |
Analogia | 0 | 11 | 1,22 | 2,18 | |
ICV I | 47 | 193 | 95,82 | 35,76 | |
ICV II | 47 | 215 | 103,22 | 38,34 | |
Escala de Potencial Criativo no Trabalho | Fator 1 | 14 | 44 | 28,72 | 6,91 |
Fator 2 | 16 | 38 | 30,33 | 4,10 |
Em seguida, a correlação de Spearman entre as medidas dos instrumentos foi estimada. Os resultados são apresentados na Tabela 3.
Tabela 3 Correlação de Spearman entre os Dois Instrumentos
Variável | ICV1 | ICV2 | Fator1 | Fator2 | |
---|---|---|---|---|---|
1. ICV1 | Spearman’s rho | - | |||
2. ICV2 | Spearman’s rho | 0,987*** | - | ||
3. Fator1 | Spearman’s rho | -0,228 | -0,293* | - | |
4. Fator2 | Spearman’s rho | 0,182 | 0,190 | -0,380** | - |
Nota. *p<0,05; **p<0,01; ***p<0,001
Os resultados indicaram que a única correlação significativa foi encontrada entre o Fator 1 (Bloqueios e barreiras à criatividade) e o Índice Criativo Verbal II, que representa a pontuação total no teste e engloba todas as características avaliadas. É importante destacar que a correlação se mostrou negativa (r=-0,293; p≤0,045), tal como esperado. As demais correlações entre os instrumentos não se mostraram significativas.
Discussão
O presente estudo teve, como objetivo, investigar dois tipos de evidências de validade e precisão para a Escala de Potencial Criativo no Trabalho. Ta l investigação se baseou na compreensão do caráter cumulativo dos estudos de evidência de validade (Ambiel & Carvalho, 2017). É importante citar que o Estudo 1 buscou investigar, de forma mais aprofundada, a estrutura fatorial da EPCT visto que, em estudo anteriormente conduzido com o instrumento com esse objetivo (Spadari et al., 2017), a análise fatorial exploratória do instrumento apresentou resultados que não foram considerados adequados pelos pesquisadores.
Diante disso, uma nova análise da estrutura interna, agora por meio da análise fatorial confirmatória foi realizada, ampliando-se a amostra (de 170 para 552 participantes). A estrutura composta por dois fatores tinha sido encontrada anteriormente, mas o problema maior se referiu ao fato de que cinco itens no Fator 1 e quatro itens no Fator 2 apresentavam direção oposta aos demais itens que compunham cada fator, tendo conotação positiva no fator relacionado aos bloqueios e conotação negativa no fator relacionado aos promotores da criatividade.
A nova análise da estrutura fatorial confirmou novamente os dois fatores, que agrupam as características e fatores favorecedores e impeditivos à expressão criativa, reforçam a percepção acerca da existência de fatores que podem promover e/ou inibir a criatividade. Dentre os possíveis focos existentes na temática (Fortwengel, Schüßler, & Sydow, 2017), o instrumento proposto se volta à identificação de características relacionadas à pessoa criativa, expressas no ambiente de trabalho.
Tomando-se inicialmente os aspectos negativos, que compuseram o primeiro fator da escala, diversos estudos na literatura científica têm apontado uma série de obstáculos e bloqueios ao desenvolvimento da criatividade, os quais podem ser originados de diferentes fontes, destacando-se, dentre essas, as individuais (psicológicas ou emocionais) e a crença que o indivíduo apresenta em relação à própria criatividade (Rocha & Wechsler, 2019). Dentre essas barreiras, destacam-se, segundo as autoras, a crença de não ser criativo, o medo de errar, a preferência pela estabilidade, valorização da lógica, preferência pela tradição ao invés de mudanças, medo de se expor, busca por soluções rápidas e imediatas, pensamento rígido, dificuldade em suspender julgamentos e críticas. Igualmente, a falta de motivação, de habilidades ou experiência, inflexibilidade, inibição/timidez, falta de oportunidade/tempo, repressão social, são apontadas como características pessoais que se relacionam de forma negativa com a expressão da criatividade (Alencar, 1998, 2001).
Diante das descrições citadas, pode-se verificar que o Fator 1 da escala proposta corresponde à descrição de comportamentos que bloqueiam a criatividade. Seu conhecimento pode ser utilizado com a finalidade de que mudanças organizacionais possam ser feitas visando encorajar as ideias criativas, oferecendo suporte para que elas possam ser expressas livremente (Cai, 2019). No entanto, convém destacar que a presença dessas barreiras pessoais não pode ser interpretada como um fator isolado, sendo importante ressaltar os obstáculos que podem estar presentes no ambiente.
Considerando-se que fatores individuais (criatividade dos funcionários) e ambientais (criatividade organizacional) interagem de modo a influenciar a criatividade no ambiente de trabalho (Indriartiningtias & Hartono, 2017; Thompson, 2018). Nesse sentido, o incentivo a ambos passa, necessariamente, pelo fornecimento de recursos ambientais adequados (Bangshöj, Carlsson, & Shurrab, 2013) para que as ideias possam ser elaboradas, testadas e, caso adequadas, implementadas.
No ambiente organizacional, os principais bloqueios à criatividade envolvem o desrespeito pela diversidade, medo de mudança, relações baseadas em normas preestabelecidas, excesso de trabalho, ausência de sentido e medo do risco, ausência de reconhecimento, apoio e segurança, presença de intransigência e autoritarismo, falta de espírito de equipe (Alencar, 1998, 2001), pressão de tempo, escassez de tempo e desestímulo a novas ideias (Alencar & Fleith, 2003). Tais condições geralmente afetam, de forma negativa, a motivação para o trabalho, contribuindo para o bloqueio do potencial criativo.
O segundo fator, interpretado como “Atributos e características que favorecem a criatividade”, apontam para características de personalidade e potencialidades que estariam presentes nos indivíduos criativos. Dentre elas, têm sido destacadas perseverança, tolerância à ambiguidade, abertura a novas experiências, individualismo e disponibilidade para correr riscos (Lubart, 2007), iniciativa, independência, espontaneidade, sensibilidade, intuição, intenso envolvimento com o trabalho realizado, otimismo, flexibilidade pessoal, persistência (Alencar, 1996; Friend et al., 2016), fantasia, imaginação, motivação, humor, fluência de ideias, originalidade (Wechsler, 2008), autonomia, habilidades de comunicação (Hatum, 2017), autoconfiança, motivação, dentre outras (Indriartiningtias & Hartono, 2017). Tais estados psicológicos e traços de personalidade atuam de modo a favorecer a expressão criativa dentro do nível individual (Cai, 2019).
No entanto, tal como ressaltado em relação aos fatores que bloqueiam a criatividade, diversos aspectos presentes no contexto organizacional também podem atuar de modo a favorecer sua manifestação. Parolin (2008), por exemplo, destaca que o espaço para a criatividade deve ser permeado por práticas que visem a valorização das pessoas e de seus resultados, clareza sobre a estratégia organizacional, práticas coerentes com os valores da empresa, estruturas mais flexíveis, espaço para envolvimento e participação dos funcionários, feedbacks construtivos, avaliação de desempenho associado ao desenvolvimento profissional e oferecimento de incentivos. Outras práticas que favorecem a criatividade envolvem o treinamento dos funcionários para o desenvolvimento de seu potencial criativo, possibilidade de flexibilização do trabalho, autonomia, menos formalidade em relação às atividades desenvolvidas (Hatum, 2017), assim como a presença de ambiente que permita assumir riscos e apresente tolerância ao fracasso (Gazzaroli, Gozzoli, & Sánchez-Gardey, 2019). Tais condições ambientais se mostram fatores positivos que encorajam a criatividade nas organizações, possibilitando o desenvolvimento do indivíduo no contexto do trabalho.
É importante ressaltar que a criatividade se mostra relacionada, de forma direta, à manutenção de bons índices de saúde mental positiva (Oliveira, Nakano, & Wechsler, 2016), podendo atuar como um recurso favorável ao enfrentamento dos riscos e desafios que são enfrentados cotidianamente nos mais diferentes contextos, mas também como ferramenta para superar as dificuldades e adversidades. Entretanto, essa relação também pode se dar de forma negativa, visto que a criatividade e saúde mental se influenciam mutuamente (Acar & Runco, 2012; Kaufman, 2005). Partindo-se dessa premissa, o desenvolvimento de ambientes favorecedores à expressão criativa deve ser incentivado, ressaltando-se, aqui no texto, sua ocorrência no contexto do trabalho.
Os resultados do segundo estudo apontaram que o Fator 2 (Bloqueios à criatividade) se mostrou relacionado, de forma negativa e significativa, com o ICV II, que representa a pontuação total no instrumento tomado como base para a comparação. Considerando-se que tal fator avalia os fatores que impedem a expressão criativa e que o outro instrumento avalia o potencial criativo, os resultados encontrados apontam para evidências favoráveis da fonte de evidência de validade investigada. No entanto, ressalva deve ser feita em relação à ausência de correlação significativa e positiva entre o Fator 1 e o ICV II, tal como esperado. Possíveis hipóteses explicativas envolvem diferenças devido ao formato dos instrumentos. Enquanto a escala consiste em uma autoavaliação, o teste de Torrance avalia o potencial criativo. As pessoas podem, no momento de julgarem as características criativas em si mesmas, ser influenciadas por alguma compreensão equivocada do conceito, realizarem uma avaliação marcada por aspectos subjetivos ou ainda não terem consciência sobre seu potencial criativo.
Do mesmo modo, pode-se pensar na diferença entre o formato das tarefas. A escala consiste em uma série de frases relacionadas a características pessoais, enquanto o teste envolve o fornecimento de respostas escritas para situações hipotéticas. Desempenho diferente devido ao tipo de tarefa pode ser o motivo de não ter sido encontrada correlação entre as medidas, tendo-se mostrado, mais fácil para os participantes, identificarem, de forma mais precisa, os fatores que bloqueiam sua criatividade do que as características positivas que apresentam.
Ao confirmar o modelo de dois fatores para o instrumento, pode-se verificar que a escala contempla os dois polos importantes que envolvem fatores que podem favorecer ou reprimir a criatividade no trabalho. A avaliação das respostas dos sujeitos nos dois fatores pode auxiliar a compreensão acerca da predominância de uma percepção acerca de um ambiente favorável ou de bloqueio criativo, bem como das principais características apresentadas pelo funcionário, de modo que tal informação pode ser utilizada pela empresa para oferecer treinamento ou melhor aproveitamento dos talentos em outras áreas.
Considerações Finais
As análises aqui apresentadas indicaram, de modo geral, resultados favoráveis ao instrumento proposto. No entanto, convém destacar que se trata dos primeiros estudos voltados à investigação de suas qualidades psi-cométricas, sendo necessários diversos outros até que o instrumento se mostre adequado para o propósito para o qual foi construído.
Algumas limitações do estudo podem ser citadas. Dentre elas a composição da amostra, predominantemente oriunda de uma única região do Brasil (sudeste), fazendo-se notar também a predominância de indivíduos do sexo feminino (72%) e de nível educacional bastante elevado (cerca de 74% com ensino superior completo ou pós-graduação), situação que não representa a realidade nacional, situação que limita a possibilidade de generalizações dos resultados. Nesse sentido, a coleta de dados junto a funcionários com menor nível de escolaridade é recomendada nos estudos posteriores, a fim de que maior diversidade possa ser contemplada nas amostras, especialmente durante a elaboração de suas tabelas normativas.
Do mesmo modo, a limitação no número de instrumentos disponíveis para avaliação da criatividade no Brasil para uso em adultos, deve ser citada. A escolha do instrumento tomado para comparação pode ter exercido influência nos resultados, dada a diferença no formato e objetivo, conforme já citado. Outra possibilidade envolveria o uso do Teste Pensando Criativamente com Figuras de modo a ampliar o estudo de busca por evidências de validade com base em critérios externos. Salienta-se que somente estes dois testes estavam aprovados para uso na população brasileira, para avaliação do potencial criativo em adultos no Brasil na ocasião da coleta de dados. No entanto, seus estudos de validade já tiveram seu prazo vencido e, no momento, eles se encontram classificados como não aprovados.
Diante das limitações apontadas, recomenda-se cautela na interpretação dos resultados aqui apresentados. Do mesmo modo, a condução de novos estudos, voltados à investigação de outras fontes de evidências de validade para a escala, considerando análise dos seus itens, evidências de validade com base em variáveis externas do tipo divergente, evidências de validade de critério e de validade ecológica são recomendados a fim de garantir o uso seguro do instrumental. Somente assim, a escala poderá ser disponibilizada para ser utilizada com o objetivo de contribuir par a processos de contratação e de desenvolvimento de carreira para cargos que exigem criatividade dos funcionários.