O Inventário Portage Operacionalizado (IPO) é uma adaptação de um instrumento americano criado por Bluma, Shearer, Frohman e Hilliard, em 1976, chamado Guia Portage de Educação Pré-Escolar (“Portage Guiade to Early Education”). O inventário tem por objetivo avaliar o desenvolvimento infantil e é composto por 580 itens. O Guia compõe o “Projeto Portage”, que é um sistema de treinamento de pais e educadores para planejar e realizar intervenção visando promover o desenvolvimento da criança (Williams & Aiello, 2018).
Os 580 itens que compõem o instrumento, compreendendo a faixa etária de 0 a 6 anos de idade, estão estruturados em em cinco áreas do desenvolvimento: Socialização, 83; Cognição, 108; Linguagem, 99; Autocuidados, 105; Desenvolvimento motor, 140, mais uma área específica de Estimulação infantil para os bebês de 0 a 4 meses que conta com 45 itens. Bluma et al. (1978) destacam que os itens do inventário não estão redigidos na forma de objetivos comportamentais completos. No inventário original, os itens identificam os comportamentos a serem observados, mas não especificam as condições necessárias e critérios para se considerar uma resposta correta. Cabe ao aplicador, em função dos resultados do inventário, estabelecer os objetivos de ensino para a criança, e propor condições e critérios, alterando-os à medida que essa evolui (Williams & Aiello, 2001; 2018).
Uma informação adicional sobre o Guia Portage é a existência de um “fichário de atividades”, que faz parte do instrumento proposto por Bluma et al. (1976). Trata-se de um conjunto de fichas, cada uma corresponde a um item do IPO. Em cada ficha, há a descrição de uma hierarquia de atividades a serem realizadas no ensino para que a criança seja estimulada até que possa cumprir a tarefa prevista pelo item do IPO. A função do fichário é orientar o planejamento de atividades para o ensino da criança. As tarefas lá descritas ajudam o responsável a identificar os desempenhos aprendidos, apresentar alternativas de atividades de ensino e sugerir maneiras diferentes de ensinar habilidades.
Na versão brasileira do instrumento, as pesquisadoras Williams e Aiello (2001; 2018) propuseram a operacionalização de cada um dos 580 itens. De modo geral, os itens são compostos por um ou mais de um total de quatro componentes: o material a ser utilizado; as condições que o aplicador deve oferecer para a avaliação; a especificação da resposta que a criança deveria apresentar e os critérios a serem cumpridos para a resposta ser considerada correta. Em cada área, antes da apresentação dos itens, há uma instrução específica para a aplicação dos itens que informa quais os critérios de desempenho quando estes se diferenciam dos critérios gerais e as normas de aplicação dos itens da área.
Nos itens, em todas as áreas, nem todas as descrições apresentam os quatro componentes (material, condição, especificação da resposta e critério). A ausência de um ou mais componentes, contudo, não compromete a compreensibilidade do item. Um exemplo é descrição apenas da condição e resposta em alguns itens, pois o título do item informa os componentes material e critério necessários para a aplicação (Williams & Aiello, 2001; 2018).
Qualidades específicas do instrumento contribuíram para a escolha da adaptação do IPO destinado a crianças com baixa visão. Resumidamente, as qualidades e características específicas do instrumento, que sustentaram a decisão de adaptá-lo, estão relacionadas à possibilidade de avaliar o desenvolvimento de crianças de 0 a 6 anos, preenchendo uma lacuna e podendo-se contar com um instrumento elaborado no Brasil ou adaptado para o país. A avaliação com o instrumento tem a propriedade de informar tanto o repertório atual da criança como o desempenho esperado para a faixa etária. Em relação à aplicação, há duas características relevantes, o fato de os profissionais com especialidades diferentes e os leigos treinados poderem empregar o instrumento e, ainda, a possibilidade de reaplicação sem perder o valor de avaliação do desenvolvimento. Finalmente, mas não menos importante, é possível utilizar os resultados da avaliação para o planejamento e realização de intervenção para promover o desenvolvimento (Williams & Aiello, 2018).
Uma revisão sistemática de artigos sobre o uso do IPO recolheu os trabalhos (42) que o utilizaram nos últimos 14 anos e os analisou em relação ao objetivo, delineamento, procedimento, resultados e limitações (Aiello & Williams, 2021). O IPO foi empregado com eficiência em residências, clínicas, escolas, instituições ou centros universitários, em diversas regiões do país, e para 1000 crianças, com 19 síndromes diferentes.
A decisão de fazer a adaptação do IPO está igualmente relacionada à escolha do público, nesse caso, crianças com baixa visão. O destaque para essa população justifica-se pelo número considerável de pessoas com baixa visão no país, conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em 2010, no Brasil, havia 6.056.654 pessoas com baixa visão ou visão subnormal entre as 6,5 milhões de pessoas com alguma deficiência visual. Os dados informam que, dentre as pessoas com deficiência visual, com cegueira e com baixa visão, encontra-se um público maior de pessoas com baixa visão.
Dadas as condições de avaliação do desenvolvimento das crianças com baixa visão no país, a proposta de adaptação do IPO considerou o termo “adaptação” conceituado por Oliveira e Nunes (2015; 2019) e pelos Standards for Educational and Psychological Testing (2014) da American Educational Research Association (AERA), American Psychological Association (APA) e National Council on Measurement in Education (NCME). As duas formulações convergem ao considerar a necessidade de modificações ou acomodações, inclusive nos procedimentos de padronização e normatização, para atender pessoas com deficiência. Há diversas formas de adaptação de acordo com os Standards: alterações no meio de apresentação do teste (instruções e itens); mudanças em parte dos itens do instrumento com respostas orais e outra, escrita; formato das respostas (orais ou escritas) dependendo do tipo de comprometimento do respondente. Essas alternativas aumentam a acessibilidade dos instrumentos e ultrapassam as barreiras impostas pela deficiência (Oliveira & Nunes, 2015; 2019).
Particularmente, no caso de pessoas com baixa visão, incluindo as crianças, a adaptação e a utilização dos instrumentos a elas destinados implicam atender, o máximo possível, os diferentes graus de comprometimento e de eficiência visual característicos da população. A diversidade de acesso e capacidade visual dessas pessoas aumenta as exigências na elaboração e adaptação de instrumentos psicológicos e requer atenção aos diversos fatores aí implicados (Oliveira & Nunes, 2015).
A eficiência visual diz respeito ao melhor uso possível da capacidade visual (visão disponível), como afirmam Corn e Erin (2010) e Santos et al. (2021). Por exemplo, duas pessoas, com o mesmo diagnóstico clínico e mesma acuidade visual, podem diferir na eficiência visual e, portanto, nas habilidades visuais. A oportunidade para a pessoa com baixa visão tornar-se mais eficiente visualmente decorre igualmente das habilidades visuais, habilidades cognitivas, experiências, personalidade e autoestima.
A pluralidade de fatores relacionada à eficiência visual (Corn & Erin, 2010; Santos et al., 2021) foi contemplada pelo IPO que se propõe a fazer o levantamento do repertório global da criança (Masini, 1995). Além disso, o alcance e a pertinência do emprego do instrumento na avaliação do desenvolvimento de crianças foram atestados em diferentes estudos, de acordo com a revisão sistemática da literatura realizada por Aiello e Williams (2021).
Considerando uma outra perspectiva de avaliação, Nascimento e Flores-Mendoza (2007) destacam a importância de se aferir o desenvolvimento cognitivo de pessoas com algum tipo de deficiência visual com mais precisão. Um levantamento assistemático da literatura sobre a produção nacional de instrumentos psicológicos de avaliação para pessoas com deficiência visual no país permitiu recuperá-los.
Duas escalas de avaliação de inteligência foram adaptadas para a realidade brasileira e apenas as escalas verbais foram adequadas para crianças cegas e com baixa visão. A Escala Wechsler de Inteligência para crianças, em sua terceira versão (WISC-III), e a Escala de Inteligência Wechsler para adultos, também na terceira edição (WAIS-III) foram adaptadas por Nascimento e Flores-Mendoza (2007).
Outra iniciativa no Brasil, realizada por Campos e Nakano (2014), apresentou a construção de três subtestes (Verbal, Memória e Lógico-espacial) para avaliação da inteligência de crianças com deficiência visual, baseados no modelo de Cattel-Horn-Carroll (CHC). O estudo para verificar a adequação dos subtestes foi realizado com 14 crianças, seis meninas e oito meninos, com deficiência visual e idade de 7 a 12 anos. Dez participantes tinham baixa visão e quatro eram cegos. Os resultados mostram a adequação dos subtestes à população estudada. Esse teste, entretanto, não foi totalmente finalizado, considerando-se que as autoras afirmam a importância de novos estudos para a obtenção das evidências de validade.
Em se tratando especificamente da avaliação do desenvolvimento de crianças com deficiência visual, ainda não há, no Brasil, instrumentos padronizados e validados que atendam às demandas dessa população. Algumas poucas pesquisas com adaptações assistemáticas do IPO foram realizadas. As adaptações iniciais visavam caracterizar o desempenho de crianças cegas, na faixa etária de 4 a 6 anos de idade, em todas as áreas abordadas pelo Instrumento (Canosa, 2013; França-Freitas & Gil, 2012; 2019). Tinham o objetivo de fazer o levantamento de repertório de participantes cegos das pesquisas sobre promoção do desenvolvimento e aprendizagem dessa população. Godoy (2019), ao investigar a atenção compartilhada de crianças com deficiência visual, estendeu as adaptações ao incluir todas as áreas e faixas etárias do IPO. Ainda que as adaptações assistemáticas atendessem aos propósitos aos quais se destinavam, não satisfaziam a orientação encontrada na literatura sobre a avaliação psicológica e psicometria. Adaptação e a validação requerem planejamento e rigor em relação à fidedignidade do conteúdo, características psicométricas e legitimidade do instrumento para a população-alvo (Cassepp-Borges et al., 2010; Bandeira, 2019).
Mesmo que a importância do rigor metodológico seja reconhecida, não há, entretanto, consenso na literatura sobre o procedimento e as etapas para a adaptação de um instrumento para crianças com deficiência, dentro de uma mesma cultura/língua. Encontrou-se na literatura, por exemplo, as etapas propostas por Cassepp-Borges et al. (2010), Borsa et al. (2012), Bandeira (2019) e a 2ª edição das Diretrizes do ITC para Tradução e Adaptação de Testes, publicada em 2017 pela International Test Commission que, entretanto, são destinadas a adaptações transculturais, mas não tratam de adaptação para populações específicas.
A fragilidade metodológica das adaptações assistemáticas realizadas por França-Freitas e Gil (2012; 2019), Canosa, (2013) e Godoy (2019), que não atendiam aos requisitos técnicos e formais da adaptação e construção de instrumentos psicológicos, orientou a definição do objetivo deste trabalho. O procedimento ora apresentado resultou na adaptação de um instrumento que seja acessível ao público-alvo, atendendo às recomendações Cassepp-Borges et al. (2010), Borsa et al. (2012) e Bandeira (2019). Os autores destacaram a necessidade de preservar a fidedignidade do conteúdo, as características psicométricas e a legitimidade do instrumento. Garantir essas características do IPO, na versão destinada às crianças com baixa visão, permitirá avaliar o desenvolvimento global e por área. Isso posto, o objetivo deste trabalho foi descrever o procedimento de adaptação do IPO para crianças com baixa visão, de acordo com os requisitos da área de adaptação e validação de instrumentos.
Método
Considerando as orientações de Cassepp-Borges et al. (2010), Borsa et al. (2012) e Bandeira (2019) e, em concordância com a 2ª edição das Diretrizes do ITC para Tradução e Adaptação de Testes (2017), o processo de adaptação transcultural de instrumentos psicológicos deve ocorrer em sete etapas básicas: 1. Tradução do instrumento do idioma de origem para o idioma-alvo; 2. Síntese das versões traduzidas; 3. Avaliação da síntese por juízes experts; 4. Avaliação do instrumento pelo público-alvo; 5. Tradução reversa; 6. Estudo-piloto e 7. Análise da estrutura fatorial do instrumento. As duas primeiras etapas foram cumpridas na operacionalização do Inventário Portage, de Williams e Aiello (2001; 2018): Tradução do instrumento do idioma (1) e Síntese das versões traduzidas (2), o que dispensa retomá-las na adaptação para populações específicas.
Parece oportuno ressaltar que a adaptação do Inventário Portage Operacionalizado para crianças com baixa visão (IPO-BV) caracteriza-se por ser a adaptação de um instrumento para uma população específica. Desse modo, algumas etapas foram semelhantes e outras diferiram daquelas recomendadas para as adaptações transculturais (Cassepp-Borges et al., 2010; Borsa et al., 2012; International Test Commission, 2017; Bandeira, 2019).
Na adaptação do IPO para crianças com baixa visão, cinco etapas foram previstas, como se segue: 1. Análise do IPO Original por uma comissão de especialistas; 2. Avaliação da proposta de adaptação do IPO-BV por juízas experts; 3. Análise das contribuições de juízas experts na adaptação do IPO-BV; 4. Avaliação do IPO-BV pelo público-alvo e 5. Estudo-piloto com os usuários do IPO-BV. No presente trabalho, apresentou-se a etapa 1, Análise por uma comissão de especialistas, como procedimento de adaptação do Inventário para a população de crianças com baixa visão.
Participantes
Três profissionais com formação em Psicologia e com expertise em diferentes domínios compuseram a Comissão de Especialistas. Cada participante foi designada “especialista”, com expertise em um domínio específico: deficiência visual (baixa visão), psicóloga com baixa visão congênita, cursando a pós-graduação em Educação Especial; desenvolvimento infantil, psicóloga com doutorado; adaptação e aplicação do Inventário Portage Operacionalizado (IPO), psicóloga, com doutorado e uma das autoras da adaptação do IPO para a população Brasileira (Williams & Aiello, 2001; 2018).
A escolha das integrantes da comissão apoiou-se na recomendação de Bandeira (2019), que orienta que pesquisadores da área contem com auxílio de um grupo de pesquisadores sendo um especialista com domínio do construto do instrumento, um com conhecimento teórico-prático sobre instrumento e, se possível, um com conhecimento em adaptação de instrumentos. Em relação à adaptação para pessoas com deficiência, Oliveira e Nunes (2019) complementam a recomendação de Bandeira (2019) e indicam a necessidade de se contar também com um especialista com as mesmas características, ou especificidades semelhantes às da população a que se destina o instrumento.
Instrumentos
Em uma síntese da apresentação do instrumento, retoma-se que o IPO é destinado a crianças de 0 a 6 anos de idade. É composto por 580 itens, uma instrução geral com critérios de desempenho e normas de aplicação em cada uma das áreas do desenvolvimento: Estimulação Infantil – 45 itens; Desenvolvimento motor – 140; Autocuidados – 105; Cognição – 108; Socialização – 83; Linguagem – 99 (Williams & Aiello, 2018).
Para melhor compreensão do procedimento de adaptação, enfatiza-se que nem todos os itens do instrumento original descrevem todos os componentes: material; condição; especificação da resposta e critério. De acordo com Williams e Aiello (2018), nem sempre foi necessário descrever todos os componentes dado que o título do item era suficientemente informativo, prescindindo do detalhamento de um ou mais componentes. Do ponto de vista da construção de instrumentos, essa característica pode ser apontada como uma fragilidade, uma vez que autores da área destacam a importância da padronização dos itens em instrumentos de avaliação. (Cassepp-Borges et al., 2010; Hutz, 2015; Damásio & Borsa, 2017; Bandeira, 2019). O instrumento adaptado foi denominado Inventário Portage Operacionalizado para Crianças com Baixa Visão – IPO-BV.
Procedimento
O procedimento descrito na sequência produziu a adaptação de um instrumento para uma população específica dentro de uma mesma cultura e sintetizou o trabalho realizado. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de São Carlos, com o parecer de número 3.045.005 CAAE 03494218.9.0000.5504, conforme a Resolução 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde.
As especialistas dispuseram de exemplares do Manual do Inventário Portage Operacionalizado – IPO (Williams & Aiello, 2018). Em um trabalho individual, cada uma delas examinou a descrição original dos 580 itens, correspondentes a cada área, em todas as faixas etárias do IPO e preencheu um protocolo previamente elaborado. Os itens assinalados para as modificações consideradas necessárias para crianças com baixa visão foram registrados nos protocolos.
Terminada essa tarefa, as especialistas reuniram-se para aferir a concordância em relação aos itens que deveriam ser adaptados. Iniciando-se pelo primeiro item da área de estimulação infantil, cada especialista informava a sua posição sobre a necessidade de adaptação, que era transcrita em um segundo protocolo. Este permitiu o registro e a visualização da posição de cada especialista para posterior comparação.
Havia quatro possibilidades de análise dos itens, em qualquer das áreas: 1. Todas as especialistas concordarem que o item deveria permanecer como especificado no IPO original (Williams & Aiello, 2018) – assinalava-se “concordância com original”; 2. Todas as especialistas concordarem com a necessidade de modificação do item, em qualquer um de seus componentes (material, condição, resposta e/ou critério). Essa possibilidade foi registrada em modificação do item independentemente de componente indicado para alteração (material, condição, resposta e/ou critério) e assinalava-se “concordância com mudança”; 3. Pelo menos uma das três especialistas discordasse da indicação de modificação de um item, independentemente do componente indicado para alteração (material, condição, resposta e/ou critério), nesse caso, assinalava-se “discordância”.
Quando havia discordâncias, a necessidade de modificação indicada para o item era discutida pelas três especialistas até consenso. Se a divergência persistisse, o “Fichário de atividades” era consultado para verificar as especificidades da hierarquia de habilidades previstas para a realização do item pela criança. Depois da consulta ao “Fichário”, se todas as especialistas concordassem com a modificação do item, ele era acrescentado à relação de itens a serem modificados. Persistindo a discordância, o item passava a compor a relação dos que não seriam adaptados, mas sempre assinalado como discordância.
O método de índice de concordância (IC) foi adotado para aferir o grau de concordância entre as especialistas em cada área. Para esse modelo, utilizou-se a fórmula: acordo/acordo + desacordo x 100. Bauer (2003) afirma que, ao empregar esse procedimento, a fidedignidade é geralmente considerada como sendo muito alta quando r>0,90; alta, quando r>0,80; e aceitável, na amplitude 0,66<r<0,79. decidiu-se adotar o critério mais exigentes, com o mínimo de 90% de concordância entre as especialistas, para cada área do IPO.
De posse das duas relações de itens – aqueles a serem adaptados e aqueles que permaneceriam na forma original, – a especialista em deficiência visual fez as alterações e reescreveu os itens. As alterações deram-se por acréscimo ou substituição de informações em relação à descrição do item original, em qualquer dos componentes. Procedeu-se, então, à organização de uma relação contendo todos os itens reescritos/modificados.
A comissão reuniu-se para examinar os itens modificados e contabilizá-los e, ao final da análise, elaborou uma tabela com informações sobre o total e a porcentagem dos itens modificados em cada área. Além dos dados numéricos, um terceiro protocolo foi preenchido para a Estimulação infantil e as cinco áreas. Esse protocolo era composto por três colunas: a primeira com o título do item, a segunda com a descrição original (Williams & Aiello, 2018) e a terceira com a descrição do item modificado pela comissão de especialistas.
Por um acordo prévio entre especialistas, pautado nos estudos realizados para a operacionalização do Inventário (Williams & Aiello, 2018), foram mantidos sem modificação: (a) os critérios gerais para considerar uma resposta correta; (b) as normas de aplicação apresentadas em cada área; (c) o número de tentativas necessário para a avaliação; (d) a proposta de atividade de cada item e (e) as notas ou observações. Os componentes “Condição” e “Material” foram acrescentados quando inexistentes ou foram modificados para que a criança com baixa visão conseguisse cumprir a atividade solicitada. No entanto, houve a necessidade de elaborar “Instrução Geral” para os aplicadores, contendo informações relacionadas à identificação do comportamento visual e à distância de apresentação dos objetos. Em síntese, a comissão especificou que o Inventário Portage Operacionalizado destinado a crianças com baixa visão seria composta pela Instrução Geral para aplicadores e um protocolo para cada área, contendo os itens adaptados e os itens que não necessitaram de adaptações. O material permitiria a continuidade das etapas de adaptação.
Resultados
A Comissão de Especialistas propôs a adaptação do IPO adaptado para crianças com baixa visão que recebeu o título de Inventário Portage Operacionalizado para Crianças com Baixa Visão (IPO-BV). O instrumento foi constituído por 248 itens adaptados e 332 itens da versão original do Inventário.
Do total de 580 itens originais, 248 (43,10%) foram adaptados de acordo com a proposta da Comissão de Especialistas. Os 332 itens permaneceram os mesmos do IPO original elaborado por Williams e Aiello (2018).
Na Tabela 1 foram apresentados os dados da distribuição dos 248 itens, a frequência dos itens que permaneceram tal como os originais e a frequência e porcentagem de itens adaptados pelas especialistas. Do total de 580 itens, 248 (43,10%) foram adaptados. A área com menor número de itens adaptados foi a de Autocuidados (15,23%), e aquela com maior número de itens foi Cognição (67,6%).
Tabela 1 Frequência dos Itens Originais e Adaptados e Concordância entre Especialistas na Adaptação do IPO-BV
Áreas | Itens | Concordância entre especialistas % | ||
---|---|---|---|---|
Original | Adaptados | |||
Frequência | Frequência | Porcentagem | ||
Estimulação infantil | 45 | 19 | 42,22 | 100 |
Socialização | 83 | 26 | 31,32 | 97,59 |
Cognição | 108 | 71 | 67,6 | 100 |
Linguagem | 99 | 53 | 53,53 | 100 |
Autocuidados | 105 | 16 | 15,23 | 100 |
Desenvolvimento Motor | 140 | 63 | 45 | 100 |
Total | 580 | 248 | 43,10 |
O índice geral de concordância obtido foi superior a 90%. Quanto ao índice de concordância por área, a área de socialização foi a única que apresentou o 97,59%, para as demais, houve concordância de 100%.
Na Tabela 2, foram elencados e detalhados os itens adaptados que tiveram necessidade de acréscimos e/ou alterações, por componente, para cada área e faixa etária. Considerando-se que um item poderia ter até quatro componentes (material, condição, resposta e critério), foram modificados 462 componentes, com 190 acréscimo e 272 alterações que poderiam ocorrer em um mesmo item ou em itens diferentes. Por exemplo, nas alterações relacionadas ao “Material” predominaram as indicações de uso de objetos com alto contraste e cores vivas e na “Condição” acrescentou-se a necessidade de situar os objetos respeitando a preferência de campo visual da criança (Ver Tabela 2).
Tabela 2 Quantidade de Adaptações nos Componentes, por Área (Acréscimos e Alterações)
Quantidade de adaptações de componentes por área | ||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Comp. | Áreas | EI | SO | CO | LI | AC | DM | Total |
Material | 11 | 12 | 66 | 42 | 9 | 61 | 201 | |
Condição | 18 | 26 | 70 | 49 | 16 | 63 | 242 | |
Resposta | 9 | 3 | 2 | 0 | 3 | 0 | 17 | |
Critério | 0 | 1 | 0 | 0 | 1 | 0 | 2 | |
Total | 38 | 42 | 138 | 91 | 29 | 124 | 462 |
Nota. EI=Estimulação Infantil; SO=Socialização; CO=Cognição; LI=Linguagem; AC=Autocuidados; DM=Desenvolvimento Motor
A maior parte das modificações realizadas pela Comissão de Especialistas aconteceu nos componentes “Condição” (242), sendo 170 acréscimos e 71 alterações. Em ordem decrescente do número de modificações estão os componentes “Material” (201), com 113 acréscimos e 88 alterações; o componente “Resposta” teve 17 modificações, sendo três acréscimos e 14 alterações e o componente “Critério” teve o menor número de modificações, exclusivamente por acréscimo (02).
Para fins de ilustração, na Tabela 3, estão descritas a versão original e a adaptação do item 18, na área de Cognição.
Tabela 3 Descrição Original e Exemplo de Adaptação do Item 18 da Área de Cognição
Área de Cognição | |
---|---|
Item | 18. Emparelha objetos semelhantes. |
IPO Original |
Condição: Para diminuir a complexidade da tarefa, não apresente objetos com qualquer dimensão diferente, exemplo: cor, tamanho, forma, textura. Dispor objetos que servirão como modelo (exemplo: uma bola, uma boneca, uma colher), entregar seus pares à criança solicitando resposta de emparelhar. Resposta: Emparelhar = cada tentativa corresponde a colocar um objeto próximo do seu objeto semelhante. Material: Duas bolas, duas bonecas, duas colheres, duas camisetas da mesma cor, duas frutas iguais. Critério: Emparelhar pelo menos três diferentes pares de objeto. |
IPO Adaptado |
Material: Duas bolas, duas bonecas, duas colheres, duas camisetas da mesma cor, duas frutas iguais, com alto contraste ou com cores vivas. Condição: Para diminuir a complexidade da tarefa, não apresente objetos com qualquer dimensão diferente, exemplo: cor, tamanho, forma, textura. Dispor objetos que servirão como modelo no campo visual da criança (exemplo: uma bola, uma boneca, uma colher), entregar seus pares à criança. Se necessário deixar a criança aproximar-se ou tocar para explorar antes de solicitar a resposta de emparelhar os objetos. Resposta: Emparelhar = cada tentativa corresponde a colocar um objeto próximo do seu objeto semelhante. Critério: Emparelhar pelo menos três diferentes pares de objetos. |
Como indicado na Tabela 3, as adaptações propostas pela Comissão de Especialistas são relacionadas à acessibilidade dos materiais, com a orientação da utilização de objetos com alto contraste e cores vivas. O componente “Condição” também foi modificado para contemplar as recomendações para que se apresente os objetos ou modelos no campo visual da criança com baixa visão. Acrescentou-se, ainda, a possibilidade de permitir que a criança se aproximasse ou tocasse o objeto necessário à aplicação do item para que ela o explorasse antes de se solicitar a resposta.
Discussão
A proposta da adaptação do IPO-BV poderá auxiliar os profissionais que trabalham com essa população e pretendem utilizar o IPO em sua prática. Considera-se que adaptação propiciará uma avaliação do desenvolvimento das crianças de até 6 anos, com baixa visão, e possibilitará criar programas de intervenção precoce para estimular as potencialidades desse público. Essa possibilidade é respaldada pela discussão dos resultados da pesquisa de Williams e Aiello (2018) quando afirmam que recorrendo ao treinamento dos pais, familiares e profissionais, a aplicação do IPO possibilita planejar e realizar atividades de estimulação, visando o desenvolvimento do potencial destas crianças durante a idade pré-escolar.
A proposta deste trabalho vai igualmente ao encontro das considerações de Brambring e Troster (1994) e Vieira (2018) sobre a importância de se dispor de instrumentos psicológicos nacionais, destinados a avaliar as pessoas com deficiência. Para os autores, a falta de estudos no Brasil que priorizem a adaptação de instrumentos psicológicos para essa população pode ter, entre possíveis consequências, uma escassa produção científica sobre o desenvolvimento e o perfil de crianças e adultos com essa condição. Adicionalmente, há uma preocupação com a cientificidade do processo de avaliação psicológica direcionada a esse grupo expressa por Baraldi et al. (2013), Zanfelici e Oliveira (2013) e Muniz et al. (2015) que, consequentemente, tem relação com a necessidade de um rigor científico no processo de adaptação e validação de instrumentos para pessoas com deficiência.
A pertinência da adaptação do IPO é fortalecida considerando a necessidade da acessibilidade plena, ou seja, tornar o instrumento o mais acessível possível considerando os seus objetivos e o público para o qual está sendo construído ou adaptado (Oliveira & Nunes, 2019). Ao preocupar-se com essas questões, os autores orientam que os desenvolvedores de instrumentos psicológicos se baseiem nos princípios da “Testagem Universal”. A abordagem respeita os pressupostos teóricos do instrumento ao passo que se preocupa com o seu formato e utilização pelo número máximo de usuários daquela população (Oliveira & Nunes, 2019).
A concordância com a compreensão do termo “adaptação” apresentada por autores e instituições como Oliveira e Nunes (2015; 2019), AERA et al. (2014) justifica a proposta de adaptação do IPO-BV feita pela Comissão de Especialistas, pois as adaptações incluíram alterações no meio de apresentação do instrumento (elaboração de uma instrução geral para aplicadores e alterações nas instruções de cada área) e mudanças em parte dos itens do instrumento (alterações e/ou acréscimos nos componentes “Material” e “Condição” nos 248 itens adaptados).
À vista da proporção dos itens adaptados (248) em relação aos que permaneceram os mesmos (332), cabe justificar as principais adaptações realizadas. O componente “Condição” foi acrescentado ou alterado em todos os itens que requeriam resposta visual das crianças. As mudanças visaram orientar o aplicador para expor o objeto, pessoa ou outro material alvo da resposta no campo visual de preferência da criança ou para deixá-la se aproximar conforme a necessidade. As orientações dessa natureza maximizam a possibilidade de a criança fazer o melhor uso da visão (eficiência visual) (Corn & Erin, 2010; Santos et al., 2021) e cumprir o item.
As adaptações no componente “Material” foram realizadas especialmente para aumentar a probabilidade de a criança localizar os objetos e realizar o item. As mudanças recaíram, principalmente, nas solicitação do uso de material com alto contraste ou com cores vivas ou da lanterna ou de objetos que produzissem som (Martín & Ramírez, 2003). Destaca-se que algumas pessoas com baixa visão podem ter lesões que geralmente afetam a sensibilidade para o reconhecimento do tamanho do objeto e o contraste entre o próprio objeto e o ambiente. Nesses casos, é imprescindível utilizar materiais que favoreçam o contraste, melhorando a discriminação visual. Destaca-se que o componente “Material” foi acrescentado à maior parte dos itens nos quais não eram descritos.
É importante reconhecer que a adaptação do IPO para crianças com baixa visão é um desafio pelas peculiaridades da população e pelas implicações objetivas de atender os requisitos da avaliação psicológica. A população a que se destina apresenta diversos graus de comprometimento visual e de capacidade do uso funcional da visão exigindo que o instrumento as contemple.
Acrescenta-se que a etapa de “Análise pela Comissão de Especialistas” é inédita, apesar de haver recomendações na literatura sobre a importância de contar com um grupo de pesquisadores especialistas na hora de adaptar ou construir instrumentos (Bandeira, 2019; Oliveira & Nunes, 2019), não há dados consistentes sobre a contribuição de uma comissão de especialistas na etapa inicial de adaptação de instrumentos para pessoas com deficiência. O exame crítico do procedimento aqui adotado, recomenda a aplicação dessa etapa em outros estudos de adaptação ou construção de instrumentos psicológicos para populações específicas dentro de uma mesma cultura. Sugere também que outros tipos de análises estatísticas (descritivas e inferenciais) poderiam aprimorar a verificação da concordância entre especialistas e, assim, alterar alguns resultados.
Novas pesquisas são necessárias para dar continuidade à validação do IPO-BV, com o intuito de aferir com maior precisão as propriedades psicométricas e as evidências de validade de conteúdo do instrumento. Pesquisas com esse objetivo deveriam investir na realização de, pelo menos, três outras etapas: avaliação dos itens adaptados por juízes experts; avaliação do instrumento pelo público-alvo e realização de estudos pilotos de aplicação do inventário adaptado em crianças com baixa visão. (Cassepp-Borges et al., 2010; Borsa et al., 2012; Bandeira, 2019).
A despeito da necessidade da cumprir as etapas indicadas com o rigor preconizado pela área de construção e adaptação de instrumentos psicológicos, destaca-se o que parece constituir uma qualidade do procedimento adotado neste estudo, que foi contar com uma composição mais abrangente das especialidades na comissão. A literatura recomenda que a comissão tenha um membro com conhecimento do construto do instrumento, outro com conhecimento teórico-prático sobre instrumento ou na área de adaptação e outro especialista com as mesmas características, ou especificidades semelhantes às da população a que se destina o instrumento (Bandeira, 2019; Oliveira & Nunes, 2019).
Na composição da Comissão de Especialista deste estudo, atendeu-se às recomendações da área, ou seja, havia uma especialista no construto (Desenvolvimento infantil) e uma especialista com conhecimento teórico-prático na aplicação do inventário e na adaptação de instrumento (uma das autoras do IPO – Williams e Aiello, 2018). Um terceiro membro que compôs a comissão era uma pesquisadora e especialista com baixa visão, conhecedora das peculiaridades da população-alvo – crianças com baixa visão. O trabalho dela na comissão adiciona uma expertise necessária quando a adaptação pretende atender populações específicas. A participação dessa especialista parece favorecer o rigor na elaboração de um instrumento específico para a avaliação do desenvolvimento de crianças com baixa visão.