Ainda que os benefícios do uso das tecnologias e o consequente acesso à internet sejam inegáveis para o aprendizado nas diferentes etapas da educação formal, a internet é um território virtual que permite a facilitação de ações de disseminação online de conteúdos inapropriados, violentos e hostis. Esses conteúdos podem causar desconforto, humilhação e danos à saúde mental da pessoa, denominada vítima, que sofre alguma agressão virtual. Especificamente no contexto da educação formal, essas práticas intimidadoras e violentas podem afetar negativamente a aprendizagem, uma vez que trazem consequências socioafetivas à vítima (Reyes & Bañales, 2016; Stevens et al., 2018).
A ação violenta que ocorre no contexto presencial é conhecida como bullying. Essa ação apresenta como cenário um local físico e uma marcação de tempo para o agressor desferir o ataque. Uma agressão física ou verbal direta a uma pessoa, tem duração determinada pelo tempo em que o confronto agressivo durar. Em contrapartida, no caso do bullying virtual ou cyberbullying, este ocorre quando o agressor se utiliza das Tecnologias para o Desenvolvimento da Informação e Comunicação – TDIC’s como meios para realizar o ataque (Castro & Zuin, 2019), sendo os ataques violentos e as injúrias realizados de forma online e direcionados à vítima com o objetivo de causar desconforto, humilhação ou constrangimento (Oliveira et al., 2023).
Dentre as TDIC’s mais utilizadas estão os celulares, computadores e similares. Esses dispositivos são usados como meios para viabilizar o ataque à vítima, sendo que estas, muitas vezes, são incapazes ou impotentes para resolver a situação, pois o ataque é constante e uma vez na internet dificilmente será retirado do ar devido ao caráter da divulgação online de alguma situação de conteúdo vexatório à vítima (Caetano et al., 2016; Pham & Adesman, 2015).
O praticante de cyberbullying considera que o ambiente virtual não é vigiado e por isso se sente à vontade para realizar o ataque. O agressor se mantém anônimo, recorrendo algumas vezes ao uso de identidades falsas/perfis fakes, conseguindo permanecer dias, meses ou até mesmo anos atacando sua vítima. A vítima, por sua vez, tem medo de denunciar ou assumir que está sofrendo cyberbullying, principalmente quando é menor de idade, pois teme que seus responsáveis legais retirem a autorização de acesso à internet. Desse modo, pode-se dizer que a vítima seria duplamente penalizada (Gonçalves & Oliveira, 2020).
O cyberbullying pode ser realizado no âmbito público, quando o agressor divulga online publicamente, sem consentimento da vítima, conteúdos como imagens, fotos, vídeos, textos, gravações de áudio, dentre outros, que possam gerar constrangimento, humilhação, difamação, injuria, depreciação ou intimidação (Beluce et al., 2021). Já a prática do cyberbullying no contexto privado abarca ações direcionadas somente a própria vítima, como envio de mensagens, ligações de áudio ou vídeo, publicações privadas, como: SMS, WhatsApp, e-mail, dentre outros (Beluce et al., 2023; Garaigordobil, 2017).
Livingstone e Stoilova (2021) ao realizarem um mapeamento dos conteúdos que crianças e adolescentes de 9 a 17 anos acessavam, observaram que essa população consome conteúdos danosos de cunho violento, racista, sexual, informação incorreta, dentre outros. Há também condutas danosas (repetição próxima) a que as crianças e os jovens são submetidos online, podendo estes serem vítimas, agressores ou testemunhas de situações que muitas vezes se envolveram de forma involuntária, mas que não conseguem resolver sozinhos.
Felippe et al. (2022) e Macaulay et al. (2022) abordam que no cyberbullying há papéis exercidos pelas pessoas envolvidas nesta prática. Há aquele que realiza a ação violenta e é chamado de agressor. Há também aqueles que são alvos das violências, denominadas vítimas. Aqueles que praticam o cyberbullying para se vingar são os retaliadores e, por fim, existem os espectadores que observam os ataques e podem tender a apoiar o agressor ou pender para buscar solução ou interrupção dos ataques.
Oliveira et al. (2023) evidenciam que há um comportamento crescente que assume protagonismo nos últimos anos, o dos espectadores ou observadores. Os observadores podem apresentar um comportamento agressivo-passivo, no qual observam e repassam as informações adiante, mas não agem de modo a avisar a vítima ou denunciar a ação violenta. Todavia, há também os observadores que assumem o papel de avisar a vítima ou que denunciam o crime virtual quando essa ação viola regras de postagem de alguma rede social.
Beluce et al. (2022) realizaram um levantamento dos tipos mais frequentes da prática do cyberbullying. Dentre estes estão: Cyberstalking no qual há perseguição da vítima por meio de mensagens que provocam medo e desconforto; Flaming que diz respeito ao envio ou publicações de conteúdos vulgares, vexatórios, ofensivos e agressivos com objetivo de incitar que outros adotem o mesmo comportamento em relação à vítima; Outing que se refere ao envio ou publicações de conteúdos íntimos de cunho vexatório (repetição no mesmo parágrafo) os quais o agressor obteve com ou sem consentimento da vítima.
Os autores citam ainda a existência da Difamação, que abarca envio ou publicações de conteúdos pautados em fofocas, calúnias ou boatos sobre a vítima com vista a difamá-la; Assédio, que diz respeito ao envio ou publicações de conteúdos e mensagens que envolvem injúrias ou insultos; Trickery, que engloba o envio ou publicações de conteúdos pessoais que a vítima enviou de forma confidencial ao agressor; Perfil Fake ou roubo de identidade, que ocorre quando o agressor se passa por outra pessoa para enviar ou publicar conteúdos vexatórios que provocam constrangimento e humilhação à vítima; Exclusão, que abarca o bloqueio ou exclusão da vítima de um dado grupo; Sexting implica no envio ou publicação de mensagens com conteúdos sexuais ou provocativos (vídeos, fotos, imagens, dentre outros) explícitos e, por fim, há o Trolling que concerne ao envio ou publicação de conteúdos com foco em debochar, ridicularizar, irritar ou humilhar a vítima (Beluce et al., 2022).
Embora a internet seja um território no qual as pessoas se sentem livres para praticar ações violentas, acreditando que ficarão impunes, há dispositivos legais que pretendem disciplinar e regular o uso desse espaço de interação. A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – LGPD – Lei n. 13.709 (LGPD, 2018), por exemplo, busca exercer ação disciplinadora na proteção dos dados pessoais nos ambientes digital e físico. Há ainda a Lei 13.185/2015, que elucida as condutas violentas classificando-as em agressões verbais, materiais, psicológicas, morais, sociais e sexuais. No corpo da lei, é possível também ver a especificidade da violência no meio virtual, quando preconiza que o cyberbullying implica na depreciação da vítima nas redes sociais, com o envio de mensagens ou publicações que invadem a intimidade ou adulteram alguma informação sobre ela. Abarca o envio de conteúdos pessoais, sem o consentimento da pessoa, de modo a causar sofrimento ou constrangimento.
A situação da violência digital tem se tornando exponencial ao longo dos anos. Dentre as situações, pode-se citar perseguições, humilhações, constrangimentos e estelionatos (roubando ou sendo roubados) (Beluce et al., 2021. Martínez-Monteagudo et al. (2020) e Biswas et al. (2020) indicam que aqueles que passaram por situações de cyberbullying apresentam problemas de ansiedade, baixa autoestima e dificuldade de utilizar estratégias de enfrentamento da situação, o que também fora evidenciado por Beluce et al. (2023). Nessa perspectiva, Kowalski et al. (2020) observam que jovens vítimas de cyberbullying estão propensas à ideação suicida (por vezes com desfechos fatais que levam ao óbito).
Face à gravidade do cyberbullying e à escassez de instrumentos brasileiros para mapear, de forma confiável a situação, a presente pesquisa buscou averiguar as propriedades psicométricas da Escala de Avaliação do Cyberbullying. Ademais, foram examinadas diferenças e relações na pontuação da escala, considerando os perfis de vítima, agressor e retaliador e variáveis demográficas.
Método
Participantes
Participaram da pesquisa 529 estudantes do Ensino Médio regular e técnico (Midade=17,03; DP=3,32) matriculados em diferentes séries desta etapa escolar, quais sejam: 1ª série (n = 151; 28,5%), 2ª série (n=142; 26,8%), 3ª série (n=192; 36,3%) e 4ª série (n=20; 3,8%). A maior parte da amostra era do gênero feminino (n=302; 57,1%), considerando que as opções de caracterização eram apenas feminino ou masculino. Os estudantes residiam nos estados de São Paulo (n=126; 23,8%), Mato Grosso do Sul (n=139; 26,3%) e Paraná (n=264; 49,9%).
Instrumentos
Este estudo adotou a Escala de Avaliação do Cyberbullying – EAC (Beluce, 2019; Beluce et al., 2023). A referida escala mensura a percepção de estudantes que frequentam os níveis de ensino médio e superior acerca dos diferentes papéis associados ao fenômeno do cyberbullying. A EAC é composta por um total de 24 itens, os quais são distribuídos ao longo de três fatores distintos, a saber: Vítima, Agressor e Retaliador. A chave de resposta da EAC é categorizada em três rótulos, sendo eles: "Sempre", "Às vezes" e "Nunca". A escala apresenta evidências de validade baseada nas análises da sua estrutura interna, considerada satisfatória, e estimativas de fidedignidade, com alfa de Cronbach de 0,962 para a dimensão Vítima, 0,999 para Agressor e 0,877 para Retaliador. Ressalte-se que a presente pesquisa também buscou confirmação das propriedades psicométricas da EAC especificamente para a amostra analisada neste estudo. Como exemplo de um item, pode se citar: “Utilizei a internet para fazer/publicar comentários maldosos ou ofensivos sobre um (a) colega”.
Procedimento
Esta pesquisa tem suas raízes em um projeto previamente avalizado pelo Comitê de Ética em Pesquisa vinculado à instância responsável, conforme determina o Parecer nº 2.364.852. Obtidas as devidas autorizações por parte das instituições educacionais, efetivou-se o processo de coleta de dados, que foi conduzido de forma coletiva durante aproximadamente 45 minutos cedidos do horário de aulas realizadas presencialmente. Para o preenchimento do instrumento direcionado ao cyberbullying, os estudantes receberam orientações específicas indicando que assinalassem as proposições que ilustravam incidentes e/ou contextos vivenciados em repetidas ocasiões e por um período temporal excedente a 30 dias. Procedimento similar ao descrito pode ser observado no estudo de Patchin e Hinduja (2015).
Análise de dados
Os dados da coleta foram estruturados em planilhas e submetidos às análises estatísticas descritiva (médias, desvio padrão e índices percentuais) e inferenciais (confirmação de estruturas fatoriais, cálculos de correlação de Pearson, modelagem de regressão linear e procedimentos de teste de diferenças, tais como Análise de Variância e teste t de Student). Para a análise fatorial que buscou confirmar as propriedades psicométricas do modelo apresentado pela EAC (Beluce, 2019; Beluce et al., 2023), assim como para as técnicas estatísticas que averiguaram os índices de ajuste, adotou-se a versão 0.17.3.0 do software JASP. As demais análises estatísticas anteriormente mencionadas foram efetuadas com o uso do software Statistical Package for the Social Sciences – SPSS, versão 23.
Para as análises que objetivaram confirmar o modelo proposto pela EAC considerando a amostra de participantes investigada, ou seja, estudantes do Ensino Médio, recorreu-se ao método estimador pautado nos Mínimos Quadrados Ponderados (Diagonal Weighted Least Square – DWLS), a uma estimação com erros-padrão robustos e, ainda, empregou-se para o tratamento de dados faltantes o método Máxima Verossimilhança de Informação Completa (Full-Information Maximum Likehood – FIML). Adicionalmente, aplicou-se ao modelo fatorial investigado a avaliação de indicadores de ajuste, fundamentados no teste Root Mean Square Error of Approximation – RMSEA) e nos testes Comparative Fit Index – CFI >0,90 e Tucker-Lewis Index – TLI > 0,90 conforme Hu & Bentler (1999). A consistência interna dos itens, que evidencia a confiabilidade da escala para o objetivo ao qual se propõe, com baixo nível de erro associado a medida, foi avaliada mediante o alfa de Cronbach (α>0,60) (Prieto & Muñiz, 2000) e Ômega de McDonald's (ω>0,70) (Dunn et al., 2013).
Resultados e Discussão
Tendo em vista os objetivos e método propostos, tem-se que o valor do qui-quadrado, registrado como 1,08 atestou a congruência do modelo proposto. Os coeficientes de ajuste comparativo revelaram uma sólida adequação da estrutura modelada, evidenciada por um índice de RMSEA de 0,013 e valores de 0,99 tanto para o CFI quanto para o TLI. Assim, os resultados obtidos com a Análise Fatorial Confirmatória (AFC) ratificaram o modelo estrutural da EAC (Beluce et al., 2019; Beluce et al., 2023), validando sua adequação psicométrica para identificação e mensuração do cyberbullying entre estudantes do Ensino Médio.
Destarte, confirmou-se a estrutura composta por 24 itens, dispostos em três dimensões: Vítima com 15 itens (1 a 15), Agressor com 3 itens (16 a 18) e a dimensão Retaliador, composta por 6 itens (19 a 24). A esse respeito, vale mencionar que mesmo com uma quantidade discrepante de itens por dimensão, estando uma delas com apenas 3 itens, os indicadores psicométricos evidenciaram bons ajustes do modelo. A Tabela 1, disposta na sequência, traz as cargas fatoriais dos itens e os coeficientes de consistência interna de cada dimensão da EAC alcançados com os resultados da AFC efetuado neste estudo.
Tabela 1 Distribuição dos itens por dimensão e suas respectivas cargas fatoriais – AFC
Nº | Questões | 1 | 2 | 3 | α e ω Total Dim |
---|---|---|---|---|---|
1 | Fizeram comentários agressivos sobre mim nas redes sociais (Facebook, Twitter, outros). | 0,638 | Vítima α e ω=0,979 | ||
2 | Enviaram mensagens (WhatsApp; Messenger, outros) que me ofenderam. | 0,543 | |||
3 | Postaram imagens íntimas, que não gostaria que ninguém visse, nas redes sociais (Facebook, Twitter, outros). | 0,840 | |||
4 | Criaram uma conta falsa e enviaram mensagens e/ou postando em redes sociais como se fosse eu. | 0,785 | |||
5 | Um(a) ex-namorado(a) postou fotos minhas (“nudes”/nudez) na internet porque terminei com ele(a). | 0,853 | |||
6 | Recebi, mais de uma vez, mensagens (WhatsApp, Messenger, e-mail, outros) me ameaçando. | 0,714 | |||
7 | “Trollaram” (zombar/provocar de forma maldosa) comigo nas redes sociais (Facebook, Twitter, outros). | 0,629 | |||
8 | Alguém enviou várias vezes para mim, sem minha permissão, fotos/vídeos com nudez ou poses sensuais. | 0,635 | |||
9 | Fizeram (incitaram) pessoas me ofender e/ou zombar (piadas maldosas) de mim em salas de bate-papo. | 0,723 | |||
10 | Fizeram (incitaram) pessoas me ofender e/ou tirar sarro de mim em grupos de mensagens instantâneas (WhatsApp, Messenger, outros). | 0,653 | |||
11 | Filmaram enquanto me agrediam (me batiam) e postaram o vídeo na internet para realizar comentários maldosos e zombar de mim. | 0,852 | |||
12 | Compartilhei fotos com alguém em quem confiava e essa pessoa enviou para todo mundo essas fotos por mensagens (WhatsApp; Messenger, e-mail, outros). | 0,808 | |||
13 | Há algum tempo, alguém me persegue enviando várias mensagens (WhatsApp, Messenger, e-mail, outros) agressivas e/ou me insultando nas redes sociais (Facebook, Twitter, outros). | 0,811 | Vítima α e ω=0,979 | ||
14 | Enviaram várias mensagens (WhatsApp, Messenger, e-mail, outros) com comentários ofensivos (me ofenderam) sobre mim. | 0,765 | |||
15 | Um(a) ex-namorado(a) enviou fotos minhas (“nudes”/nudez) por mensagens (WhatsApp, Messenger, e-mail, outros) para todos. | 0,848 | |||
16 | Compartilhei mensagens (WhatsApp, Messenger, e-mail, outros) íntimas de um(a) colega/amigo(a) da universidade. | 0,829 | Agressor α=0,970 e ω=0,972 | ||
17 | Enviei, várias vezes, fotos minhas com nudez ou em poses sensuais para um(a) colega da universidade. | 0,845 | |||
18 | Compartilhei vídeos íntimos de um(a) colega/amigo(a) da universidade. | 0,878 | |||
19 | Postei nas redes sociais (Facebook, Twitter, outros) comentários maldosos/agressivos sobre alguém da universidade que fez o mesmo comigo antes. | 0,782 | Retaliador α e 03=0,959 | ||
20 | Enviei mensagens (WhatsApp, Messenger, e-mail, outros) maldosas/ofensivas/agressivas sobre alguém que fez o mesmo comigo antes. | 0,765 | |||
21 | Criei uma conta falsa e enviei mensagens como uma outra pessoa que costumava me ofender na universidade. | 0,851 | |||
22 | “Trollei” (zombar/fazer piadas maldosas) alguém da universidade que fez o mesmo comigo antes. | 0,610 | |||
23 | Fiz (incitei) pessoas ofenderem ou zombarem de um(a) colega da universidade que fez o mesmo comigo antes. | 0,777 | |||
24 | Postei nas redes sociais (Facebook, Twitter, outros) fotos/vídeos comprometedoras sobre alguém da universidade que fez o mesmo comigo antes. | 0,875 |
Fonte. Os próprios pesquisadores
Em face ao exposto, e considerando a pertinência da temática referente a violência digital, que é de esfera global e com consequências importantes no âmbito psicoeducacional (Biswas et al., 2020; Martínez-Monteagudo et al., 2020; Watts et al., 2017), pode-se aferir a existência de um instrumento brasileiro com indicadores adequados para a verificação da existência de cyberbullying na amostra de estudantes do Ensino Médio. Nessa direção, verificou-se que a consistência interna dos itens foi considerada satisfatória, assegurando a confiabilidade da escala para o seu objetivo (α>0,70) e (ω>0,70) (Dunn et al., 2013; Prieto & Muñiz, 2000).
No que concerne às análises que trataram especificamente das dimensões da escala, os resultados apontaram para a dimensão Vítima, composta por 15 itens, com pontos variáveis entre 0 e 30, e média de 9,75 (DP=11,1). Observou-se ainda que 27,7% (n=147) dos alunos do Ensino Médio desta amostra obtiveram pontuação igual ou superior à média estabelecida para esta dimensão.
Por sua vez, os resultados obtidos para a dimensão Agressor, constituída com 3 itens, oscilaram entre 0 e 6, e média de 1,81 (DP=2,58). Tais escores revelaram ainda que 29,3% (n=155) dos participantes alcançaram pontuações semelhante ou acima da média prevista para esta dimensão, isto é, se reconheceram de alguma forma nas questões que retratavam comportamentos associados ao perfil agressor em práticas de cyberbullying.
A dimensão Retaliador, composta por 6 itens, registou pontuações entre 0 e 12, e média de 4,04 (DP=4,75). Estes resultados também revelaram a identificação com o perfil retaliador apresentada por um número significativo de estudantes, fato observado ao se verificar que 31,3% (n=166) dos alunos do Ensino Médio obtiveram índice igual ou superior a média estabelecida para a dimensão em questão.
Verifica-se, portanto, que quase 30% da amostra de pesquisa pode ser avaliada como vítima do cyberbullying, o que pode ser considerado bastante alarmante, apesar de consonante com a literatura científica (Beluce et al., 2021). Isso porque as vítimas são penalizadas de diferentes formas pela exposição, com efeitos danosos em diferentes áreas da vida, como saúde física, emocional e psicológica (Ansary, 2020; Gonçalves & Oliveira, 2020).
Investigou-se ainda a identificação dos estudantes com os perfis de vítima, agressor ou retaliador e as potenciais diferenças entre os gêneros desses participantes. Para tanto, empregou-se o teste t de Student, que apontou algumas diferenças entre as pontuações obtidas pelos alunos que se reconheceram nos perfis agressor e retaliador. O teste t de Student não revelou diferenças significativas (p=0,551) entre as médias alcançadas pelos estudantes que se identificaram mais com os comportamentos e situações vivenciadas pela vítima, ao se considerar os grupos constituídos segundo o gênero dos participantes. A Tabela 2 expõe os resultados originados das análises que investigaram tais diferenças.
Tabela 2 Diferenças entre os gêneros dos estudantes considerando a identifcação com os perfs do cyberbullying
Dimensão | M(X) | DP | t | p | ||
---|---|---|---|---|---|---|
Masculino | Feminino | Masculino | Feminino | |||
Agressor | 1,65 | 1,91 | 2,46 | 2,66 | −1,122 | 0,005 |
Retaliador | 3,62 | 4,31 | 4,38 | 4,97 | −1,629 | 0,000 |
Fonte. Os próprios pesquisadores
Embora tenham sido pouco expressivas as diferenças entre as pontuações obtidas entre os gêneros estudados, observa-se que os maiores índices, quer seja para o perfil agressor, quer seja para o papel do retaliador, foram alcançados por estudantes do gênero feminino. Destaca-se também as médias resultantes para os perfis retaliador e agressor, cujos valores demonstraram que os estudantes de ambos os gêneros pontuaram duas vezes mais em questões que expressavam o comportamento retaliador do que naquelas que retratavam as ações do agressor.
Felippe et al. (2022) evidenciam em seu estudo que, geralmente, indivíduos do sexo masculino com idade entre 12 e 15 anos são os que assumem mais frequentemente o papel de agressor, contudo, declaram que não há consenso a esse respeito na literatura. A falta de concordância pode ser evidenciada com os dados do presente estudo, visto que o sexo feminino foi quem apresentou diferenças estatisticamente significativas para os comportamentos denominados como agressor e retaliador. O fato indica a necessidade de pesquisas futuras que investiguem a temática com a profundidade merecida, sobretudo ao considerar o impacto desses comportamentos para a saúde física e mental dos estudantes (Kowalski et al., 2020).
Distinções foram encontradas entre as médias dos estudantes agrupados segundo o estado de procedência e a identificação com os perfis do cyberbullying. Para análise dessas diferenças potenciais entre as pontuações dos alunos investigados, aplicou-se o teste ANOVA. Os resultados indicaram que há contrastes significantes (F(2,512)=143,923; p=0,001) entre os estudantes do Estado do Paraná e dos demais estados. Os escores do post hoc de Tukey revelaram que os estudantes oriundos do Estado do Paraná (M=16,53) se percebem 5 vezes mais no perfil de vítima do cyberbullying do que aqueles oriundos dos estados do Mato Grosso do Sul (M=3,10) e São Paulo (M=3,22).
As diferenças também foram significativas entre os alunos advindos do Estado do Paraná e demais estados quanto ao reconhecimento com comportamentos dos perfis agressor (F(2,523)=162,501; p=0,000) e retaliador (F(2,516)=136,136; p=0,001). Os índices revelaram que os estudantes paranaenses pesquisados (M=3,41) se identificaram 20 vezes mais com comportamentos agressores que os alunos do estado de São Paulo (M=0,17) e 14 vezes mais com esse perfil que aqueles que cursam o Ensino Médio no estado do Mato Grosso do Sul (M=0,24). Resultados similares foram evidenciados para a identificação com o perfil retaliador. Os paranaenses (M=6,48) indicaram que se reconhecem; aproximadamente, 5 vezes mais com as ações do perfil retaliador que os estudantes paulistas (M=1,21) e que os alunos sul-ma-to-gossenses (M=1,30). Quando se debruça na literatura científica sobre dados nacionais, é possível observar que não há dados com recortes por estados ou regiões que possam elucidar essas especificidades nos resultados ao se considerar os estados da federação. Contudo, é possível constatar que seja pela perspectiva do perfil da vítima, ou do retaliador ou ainda do agressor, os jovens dos estados estudados foram submetidos (ou submeteram outros) ao cyberbullying. Os dados ora obtidos merecem atenção, pois apontam para a necessidade das redes públicas dos diferentes estados traçarem políticas públicas estruturantes que possam atuar no sentido do enfrentamento desta situação de violência. De qualquer modo, esta comparação entre estados merece ser aprofundada na sua existência e significado, nomeadamente recorrendo a estudos futuros com amostras representativas e equiparáveis.
Tal qual realizado para as análises que investigaram as variâncias entre as médias das dimensões da escala EAC e o Estado de procedência dos estudantes, aplicou-se a ANOVA para averiguar demais distinções considerando grupos de alunos da amostra constituídos a partir das séries/anos escolares em que estavam matriculados. Nessas condições, identificou-se que os alunos do Ensino Médio distinguem (F(3,488)=6,52; p=0,001) quanto à percepção de comportamentos que configuram o perfil da vítima na prática do cyberbullying. O teste post hoc de Tukey revelou que os alunos da 3ª série (M=11,96) uma maior identificação com as questões que compõem o perfil da vítima em comparação com os estudantes da 1ª série (M=7,21). Não foram observados contrastes significativos entre as médias dos alunos das outras séries.
Distinções significativas (F(3,498)=7,96, p=0,000) foram suscitadas entre as séries escolares cursadas pelos estudantes do Ensino Médio e a Dimensão Agressor da escala EAC. Constatou-se que os alunos da 3ª série (M=2,31) demonstraram maior identificação com o perfil agressor que os estudantes da 2ª (M=2,22) e da 1ª (M=1,17) séries. As análises comparativas também apontaram diferenças válidas (F(3,491)=5,805; p=0,001) para os estudantes da 3ª série (M=4,84), que mostraram maior reconhecimento com o comportamento retaliador que os alunos da 1ª série (M=3,07) e da 2ª série (M=4,73). No tocante à 4ª série, não foram encontradas diferenças significantes quanto à identificação do aluno com ações agressivas e/ou comportamentos retaliadores característicos do fenômeno cyberbullying.
Há ainda a relatar os resultados originados das análises que estudaram as possíveis diferenças existentes entre as dimensões do cyberbullying ao se observar os grupos de alunos distribuídos segundo o número de horas que permanecem online e as suas preferências quanto aos dispositivos tecnológicos. Os escores obtidos com o teste ANOVA não identificaram diferenças entre os grupos mencionados.
De modo geral, verifica-se que os estudantes da 3ª série discriminam melhor e se identificam nas dimensões da EAC tanto como vítimas, quanto agressores e retaliadores. Ta l fato corrobora com a literatura científica que analisa os estudantes do Ensino Médio em comparação com estudantes universitários, indicando que aqueles com maior idade se mostram menos propensos a agressividade e mais empáticos (Watts et al., 2017). No que diz respeito aos dados de análise do número de horas online e dispositivos utilizados, a não existência de diferenças na amostra pesquisada difere da literatura científica, que apresenta o uso em excesso e a preferência pelo computador como relacionado a prática de cyberbullying (Barlett et al., 2017).
Além das análises expostas, os dados foram utilizados para calcular o coeficiente de correlação de Pearson em busca das possíveis relações entre as dimensões que retratavam os principais perfis do cyberbullying. Para a análise dos dados correlacionais, adotou-se os seguintes critérios: valores abaixo de 0,30 foram considerados como correlações de baixa magnitude, valores entre 0,30 e 0,50 para magnitude moderada e as correlações iguais ou superiores a 0,50 foram tratadas como de alta magnitude. Os resultados dessas investigações estão apresentados na Tabela 3.
Tabela 3 Correlações entre as dimensões da Escala de Avaliação do Cyberbullying
Dimensões | Vítima | Agressor | Retaliador |
---|---|---|---|
Vítima | - | 0,941*** | 0,938*** |
Agressor | 0,941*** | - | 0,922*** |
Retaliador | 0,938*** | 0,922*** | - |
Legenda. ***p<.001. Fonte. Os próprios pesquisadores
As análises correlacionais conduzidas revelaram que todas as dimensões da EAC apresentaram correlações positivas, robustas e estatisticamente significativas. Ao considerar as investigações de Varjas et al. (2010) e Compton et al. (2014), é possível ponderar que uma interpretação plausível para a correlação positiva entre agressores e vítimas está relacionada ao sentimento de autoproteção/autopreservação frequentemente observado entre os agressores. De acordo com esses estudos, os perpetradores muitas vezes se veem como possíveis vítimas e justificam suas ações agressivas como um meio para se protegerem. Cabe ainda salientar o conceito de ciclo de violência delineado pelos pesquisadores Anderson et al. (2008) ao destacarem que em muitos cenários, os participantes envolvidos em situações de violência, tanto agressores quanto vítimas, tendem a perpetuar e reforçar comportamentos agressivos.
Investigou-se ainda a possibilidade do aluno, vítima de cyberbullying, atuar como uma variável preditora também de possíveis/futuros comportamentos agressores ou retaliadores. Para isto, foram efetuadas análises de regressão linear simples com uso do método enter, que consideraram como variáveis de saída/desfecho os perfis do cyberbullying investigados nesse estudo: agressor e retaliador. A Tabela 4 expõe os resultados dessas análises regressivas.
Tabela 4 Valores preditivos do reconhecimento como vítima do bullying virtual para a identifcação com possíveis comportamentos agressores e/ou retaliadores
Variável Independente | p | R | R2ajustado | F | β | t | Durbin-Watson |
---|---|---|---|---|---|---|---|
Vítimaa | 0,001 | 0,941 | 0,885 | F(1,512)=3039,252 | 0,218 | 62,90 | 1,677 |
Vítimab | 0,001 | 0,938 | 0,880 | F(1,506)=3713,105 | 0,398 | 60,93 | 1,763 |
Nota.aPreditor (VI) o reconhecimento como vítima; variável dependente (VD) o perfil agressor; bPreditor (VI) o reconhecimento como vítima; variável dependente (VD) o perfil retaliador
O modelo de regressão identificou contribuição preditora significante do estudante vítima do bullying virtual na atribuição de variabilidade do índice do perfil agressor. Os resultados indicaram que se perceber/encontrar vivendo as condições infligidas à vítima foi um fator que predisse 88% da variância de comportamentos observados tanto nos perpetradores como nos retaliadores do cyberbullying.
É relevante destacar que os coeficientes do modelo preditivo foram submetidos ao teste Durbin-Watson (valores ótimos próximos de 2) que confirmou a independência dos resíduos, ou seja, a inexistência de autocorrelação residual entre as variáveis investigadas (Dufour & Dagenais, 1985; Durbin & Watson, 1971).
A prática do cyberbullying pode durar dias, meses e até anos (Gonçalves & Oliveira, 2020). Com isso, pode-se aventar que mesmo diante de dispositivos legais que buscam disciplinar e regular os espaços online, as dificuldades ao longo de todo o processo (como denúncia, investigação, tempo dispendido), podem gerar a expectativa de resolução por conta própria naqueles que sofrem com esse tipo de violência. Além disso, há que se considerar todas as implicações negativas que podem depor contra a vítima, ocasionando inclusive questões de saúde mental e fazendo com que os atos de agressão, que podem ser de diferentes ordens, conforme Beluce et al. (2020), se perpetuem em um ciclo inesgotável, com impactos importantes ao indivíduo, quer seja com situações que afetam diretamente o contexto escolar (Reyes & Bañales, 2016; Stevens et al. 2018), ou ainda as demais esferas do seu cotidiano (Kowalski et al., 2020).
Considerações Finais
Os dados da literatura científica apontam para o aumento do cyberbullying em território nacional e internacional, bem como para as suas consequências sobrepujantes na esfera da saúde física e mental e, ainda, na própria aprendizagem. Tendo isso em vista, destaca-se a relevância do presente estudo, que atinge os objetivos aos quais se propôs, ao evidenciar as propriedades psicométricas da escala para a amostra de estudantes do Ensino Médio brasileiro. Diferenças e relações nas pontuações da escala também foram aferidas, considerando os três perfis de vítima, agressor e retaliador.
O estudo em questão não se encontra livre de limitações. Assim, pesquisas futuras devem abarcar o emprego de métodos e instrumentos diversos às escalas de autorrelato, com o intuito de contemplar os dados de maneira mais global no que tange à percepção dos estudantes quanto ao cyberbullying. Aliado a isso, recomenda-se como agenda futura que novas investigações venham a contemplar a prática desse tipo de violência e sua relação com variáveis psicoeducacionais, considerando seu impacto aos contextos de aprendizagem, preferencialmente com a incorporação de amostras equiparáveis de estudantes das cinco regiões do Brasil.
Por fim, espera-se que as informações retratadas no presente estudo possam ser usadas como meio de informação e, acima de tudo, que oportunizem experiências escolares como a formação continuada de professores, denúncias e amparo frente as consequências dessas violências. Acredita se, pois, que a existência de um instrumento com propriedades psicométricas adequadas cumpre seu objetivo, ao promover transformação na população a qual se destina, seja no âmbito da promoção de práticas assertivas, como na prevenção do cyberbullying.