De acordo com as últimas evidências do Painel de Dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, a cada quatro minutos uma mulher brasileira é agredida. Até o mês de setembro de 2023, foram registrados mais de 183 mil casos de violência doméstica ou familiar contra a mulher (Ministério da Cidadania e Direitos Humanos, 2023), o que constitui esse tipo de violência como um problema de saúde pública.
Para compreender os motivos pelos quais as mulheres podem permanecer com seus companheiros agressores, é necessário dar visibilidade à realidade camuflada que abusa e assujeita as mulheres cotidianamente (Narvaz & Koller, 2006). Ocasionalmente, a violência contra as mulheres é aceita e tolerada em decorrência dos papéis socialmente impostos, provocando inferiorização destas sob os homens (Cortez & Souza, 2008; Ventura et al., 2013).
Algumas questões difundidas em nossa sociedade podem contribuir para a permanência de mulheres em relacionamentos abusivos. Para Sinclair (2010), essas questões podem ser categorizadas em quatro regras: 1. o papel tradicional feminino; 2. a privacidade do lar; 3. o modelo ideal de família intacta; e 4. culpabilização da vítima. A primeira regra, dentre outros aspectos, conota as aspirações femininas enquanto secundárias às de seu companheiro. A segunda regra pode ser associada ao dito popular de que em briga de marido e mulher, não se mete a colher. A terceira regra pode ser mais bem compreendida pela máxima que afirma que um casamento infeliz é melhor que um lar desfeito. E, finalmente, a quarta regra busca uma análise aprofundada da conduta da mulher vitimada, com o intuito de eximir a culpa e justificar a conduta do abusador. Além disso, Gomez et al. (2011) apontam a regra em relação ao ciúme, co-mumente, referido como justificativa para a violência. Segundo Ferreira-Santos (2003), para a cultura latina, o ciúme, frequentemente está associado ao amor, de modo que, aquele que ama deve enciumar-se de seu/sua companheiro/a e, aquele que não o sente, revela ausência de um amor verdadeiro.
De acordo com Hirigoyen (2006), geralmente, diversos fatores podem ser impeditivos para a identificação de alternativas que auxiliem a saída desses relacionamentos. Para Marques (2005), o rompimento de uma relação afetiva marcada pela violência é um processo demorado e presumir que a denúncia aos órgãos competentes define a resolutividade da questão é desconhecer o ciclo de violência e minimizar a dinâmica dessas relações. O ciclo da violência pode ser caracterizado por períodos de violência acompanhados de momentos de acomodação e calmaria entre o casal. A interrupção do abuso, nos momentos de calmaria, pode potencializar a não caracterização dos episódios sofridos enquanto abuso, pressupondo o arrependimento do abusador. Este é um dos fatos que possibilitam maior compreensão acerca da dificuldade que as vítimas encontram frente ao rompimento do vínculo com seu companheiro-agressor (Kelly & Johnson, 2008). Além disso, quando as vítimas se encorajam para realizar denúncia, correm o risco de serem revitimadas, tanto pelo parceiro quanto pelas instituições competentes (Gracia & Merlo, 2016).
Frente a tudo isso, reconhece-se a complexidade que envolve a permanência de mulheres em relacionamentos abusivos e, em concordância ao que postula a Cartilha da Lei Maria da Penha e Direitos da Mulher (Brasil, 2011), não se deve julgar as mulheres que permanecem em relações abusivas, mas sobretudo, procurar compreendê-las e auxiliá-las frente a essa situação, atuando enquanto apoio fundamental para a resolução do problema. Uma das formas de prestar apoio às mulheres é por meio da compreensão dos aspectos que influenciam o comportamento feminino, com o intuito de favorecer estratégias de convivência harmoniosas, saudáveis e adaptativas. É relevante referir que o estudo do comportamento humano é extremamente complexo, tem seu início datado do século XIX. Em 1975, Fishbein e Ajzen propõem a Teoria da Ação Racional como suporte teórico para avaliação e predição de comportamentos que, posteriormente, torna-se a Teoria da Ação Planejada.
Para Ajzen (1985), a Teoria da Ação Planejada surge como uma alternativa à Teoria da Ação Racional, para justificar de que modo as influências sobre um sujeito podem determinar sua decisão frente a algum comportamento. Courneya e Mccauley (1995) afirmam que, nessa teoria, a intenção de uma pessoa para realizar um comportamento é o determinante fundamental para sua execução. Para Ajzen (1991), esse modelo teórico pressupõe que as intenções para execução de um comportamento envolvem três construtos: 1. atitudes em relação ao comportamento; 2. as normas subjetivas e 3. o controle comportamental percebido, de modo que essas variáveis associadas permitem a predição do comportamento.
As atitudes referem-se a avaliações subjetivas que relacionam uma característica a um objeto. As normas subjetivas dizem respeito à pressão social percebida para realização de determinado comportamento. E, segundo Ajzen e Fishbein (1980), o controle comportamental percebido como a percepção de facilidades e/ou dificuldades para a execução do comportamento. Segundo Ajzen (2002), os três construtos assinalam medidas diretas e são baseados em medidas indiretas, chamadas crenças em relação a determinado comportamento. As crenças exercem papel central nessa teoria, são consideradas bases sólidas, cognitiva e afetiva para a construção de atitudes, normas subjetivas e controle comportamental percebido (Chaves, & Fernandes et al., 2018; Chaves, & da Silva et al., 2018).
As crenças podem ser: comportamentais, normativas e de controle, revelando, respectivamente, os resultados prováveis para realização de um comportamento, a percepção de pessoas significativas acerca do que o sujeito deve ou não fazer e, os recursos e obstáculos que o indivíduo percebe frente a realização de um comportamento. Fernandes et al. (2019) afirmam que a Teoria da Ação Planejada pode auxiliar pesquisadores na construção de instrumentos para mensuração de atitudes, assim como mediante a análise dos resultados desses instrumentais, verificar aspectos que influenciam o comportamento, favorecendo delineamento de ações e programas de intervenção. Nesse sentido, o desenvolvimento de um instrumento que enfatiza a intenção feminina de permanecer em um relacionamento abusivo pode favorecer a prestação de serviço psicológico de promoção de saúde e prevenção à ocorrência de abusos e violação de direitos às mulheres.
No contexto presente, a construção de novos instrumentos de avaliação psicológica é uma temática de grande interesse para a psicologia, especialmente, após a Resolução do Conselho Federal de Psicologia – CFP nº 02/2003 (CFP, 2003). Segundo Pasquali (1998), a elaboração de um instrumento de medida é uma tarefa desafiadora e precisa efetuar-se com rigor metodológico, por meio de etapas e procedimentos precisos e bem definidos. Para Lima et al. (2012), o processo de validação de instrumentos deve ser compreendido como uma ferramenta metodológica de análise da capacidade do instrumento aferir, precisamente, aquilo que pretende mensurar. Torna-se cada vez mais relevante dispor de instrumentos qualificados que forneçam auxílio aos clínicos e pesquisadores no direcionamento de suas intervenções profissionais, investigações diagnósticas e forneçam aos pesquisadores recursos metodológicos para o estudo dos processos avaliativos, sobretudo, considerando a escassez de medidas psicométricas válidas e precisas para a avaliação de temas associados ao sexismo e misoginia, como é o caso permanência de mulheres em relacionamentos abusivos (Cortez et al., 2019). Dessa maneira, este estudo tem o objetivo de desenvolver um instrumento que permita identificar atitudes de mulheres acerca da permanência feminina em relacionamentos abusivos, assim como avaliar suas propriedades psicométricas (estrutura interna e relações com variáveis externas).
Método
Todas as participantes deste estudo foram voluntárias e concordaram com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, indicando a autorização e o entendimento de todos os aspectos da investigação, de acordo com a Resolução Nº 466/12 do Conselho Nacional de Saúde (Brasil, 2012). O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (Parecer CAAE 64409517.5.00005013).
Etapa 1 – Construção do Instrumento com Base na Teoria da Ação Planejada
Participaram do estudo um grupo de 27 mulheres universitárias, da cidade de [trecho omitido pela revista] com idades entre 18 e 42 anos (M=23,37; DP=5,79). Todas as participantes estavam vivendo um relacionamento (59,2% em um namoro; 18,5% em um casamento; 14,8% em relações casuais; 3,7% em um noivado e 3,7% em união estável). O tempo de relacionamento variou de 1 mês a 25 anos (22,2% viviam relação com período inferior a 1 ano; 59,2% no período entre 1 ano e 5 anos; 11,11% no período de 5 a 10 anos e 7,4% no período acima de 10 anos).
Instrumentos e Procedimentos
Foram realizadas entrevistas semiestruturadas individualmente. 14 perguntas abertas requeriam que as participantes respondessem sobre vantagens e desvantagens, além das facilidades e dificuldades em permanecer em um relacionamento abusivo, considerando também as pessoas ou grupos cujas opiniões sobre a realização desse comportamento seriam importantes para as respondentes. As vantagens e desvantagens são consideradas crenças comportamentais. Os fatores que facilitam ou dificultam a permanência em um relacionamento abusivo estão relacionados às crenças de controle. As pessoas ou grupos mais citados pelas entrevistadas são consideradas como referentes ligados às crenças normativas. Conforme procedimento descrito por Moutinho e Roazzi (2010), os referidos eixos seguiram o modelo postulado pela Teoria da Ação Planejada.
As entrevistas foram realizadas de forma individual em sala com isolamento acústico apropriada para tal finalidade. O agendamento das entrevistas considerou a disponibilidade das participantes, com o intuito de preservar a identidade e bem-estar das envolvidas. O recrutamento aconteceu no formato de bola de neve (Goodman, 1961). Com base nas verbalizações realizadas pelas participantes, o tempo mínimo de entrevista foi 50 minutos e o tempo máximo foi de 1 hora e 30 minutos. Todas as entrevistas foram gravadas mediante autorização prévia das participantes.
Análise de Dados
Para a análise dos dados, utilizou-se o software IRAMUTEQ (Interface de R pour lês Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires), seguindo as seguintes etapas: (a) Transcrição das entrevistas; (b) Adequação para a confecção do corpus textual; (c) Análise estatística; e (d) Classificação Hierárquica Descendente (CHD) (Camargo & Justo, 2013). O corpus textual foi dividido em 909 segmentos de textos e, destes, 783, ou seja, 86,14% foram retidos para análise.
Resultados da Etapa 1
A construção do instrumento quantitativo ocorreu após a identificação e agrupamento das referidas atitudes. O corpus textual foi dividido em três classes por meio da análise da CHD. A Classe 1, referente às Atitudes de desfavorabilidade, foi a segunda classe mais expressiva do conteúdo das entrevistas (34,87% do corpus textual). Essa classe apresenta consequências psicológicas, a exemplo de ideação suicida e culpabilização da vítima, aliada ao controle sobre relações sociais e vestimentas como desvantagens de permanecer em um relacionamento abusivo. Além disso, as respondentes indicaram insegurança e ingenuidade como fatores predisponentes para a permanência nesses relacionamentos.
A Classe 2, Impedimentos para a saída, refere o controle comportamental, foi a mais expressiva (38,95% do corpus). Essa classe apresenta a dependência emocional e financeira, a valorização da família e a preocupação com os filhos como alguns dos fatores favoráveis à permanência de mulheres em relacionamentos abusivos. Enquanto pontuaram o amor próprio como componente fundamental para a saída desses relacionamentos. Já a Classe 3, Imposição social, refere à norma subjetiva (26,18% do corpus textual), indicou a família, em seus mais variados parentescos, enquanto fator de proteção para a não permanência em relacionamentos abusivos, ao mesmo tempo em que pontuou amigos da igreja e pessoas mais velhas como grupos mais suscetíveis à aprovação desse comportamento.
Com base nessas classes, os itens dos instrumentos foram gerados pelos pesquisadores no formato de comitê de especialistas para avaliar as dimensões referentes às atitudes, norma subjetiva, controle comportamental e intenção de permanecer em relacionamentos abusivos. Conforme sugerido por Borsa et al. (2012), também foi realizada uma etapa de análise semântica com a população-chave da medida para verificar se as instruções e a escala de resposta eram compreensíveis. Todas as questões foram avaliadas como adequadas pelas participantes, sendo realizadas correções de menor vulto sobre o ordenamento do discurso (voz ativa e voz passiva, por exemplo).
O critério analítico empregado para a avaliação dos itens como satisfatórios ocorreu de forma qualitativa por maioria simples. A saturação teórica percebida pelos juízes especialistas, em maioria, respaldou a decisão na construção inicial dos itens. A compreensibilidade relatada pelos participantes respaldou a decisão na aplicação final dos itens (Ollaik, & Ziller, 2012). No total, foram gerados 27 itens, os quais foram testados quanto às propriedades psicométricas na segunda etapa do estudo.
Etapa 2 – Evidências de Validade Baseadas na Estrutura Interna e na Relação com Variáveis Externas para o Instrumento
A amostra deste estudo foi composta por 875 mulheres com idades entre 18 e 49 anos (M=28,35; DP=6,87). A maioria das respondentes (73,1%) está em um relacionamento amoroso. Destes, 31,8% foram classificados como namoro; 29,7% classificados como casamento; 4,3% classificados como casual; 3,8% como união estável e 3,5% como noivado. Além disso, 52,7% referiram não possuir religião e 64,6% não possuem filhos. A maioria das mulheres respondentes (72,7%) afirmaram viver ou ter vivido um relacionamento abusivo e, 94,5% delas, referiram conhecer alguém que está ou esteve em um relacionamento abusivo.
Acerca da escolaridade da amostra, 60,9% afirmaram possuir ensino superior completo; 31,3% possuem ensino superior incompleto ou estão cursando; 7,1% concluíram o ensino médio; 0,6% possuem ensino médio incompleto ou estão cursando; e, apenas, 0,1% concluíram apenas o ensino fundamental. A respeito do Estado em que residem, 27,1% são de São Paulo; 10,9% são do Rio Grande do Sul; 8,2% são de Alagoas; 8% são de Pernambuco e 7,8% são de Minas Gerais.
Acerca da orientação sexual, 83,7% afirmaram-se enquanto heterossexuais; 13,3% bissexuais; 1,8% homossexuais e 1,3% outros. A amostra foi do tipo não probabilística por conveniência, satisfazendo a indicação proposta por Pasquali (1999), cujo critério do tamanho da amostra recomendado para análise fatorial refere-se ao número de 10 sujeitos para cada item do instrumento.
Instrumentos
Além de um questionário sociodemográfico, utilizou-se como instrumento a Escala de Atitudes para Mulheres sobre a Permanência em Relacionamentos Abusivos (AMPRA), desenvolvida nesta investigação. Trata-se de um instrumento de autorrelato composto por 27 itens elaborados no corrente estudo, no modelo da Teoria da Ação Planejada (TAP).
Pelo enquadramento, o dimensionamento dos itens avalia atitudes, normas, controle comportamental percebido e intenção de mulheres permanecerem em um relacionamento abusivo. A escala de resposta empregada foi do tipo Likert de sete pontos (1=Discordo totalmente; 7 = Concordo totalmente).
Procedimentos
As participantes do estudo foram contatadas por meio das redes sociais, a partir do compartilhamento da página de acesso ao instrumento on-line. A plataforma empregada para aplicação foi o Google Forms, o qual não registrou informações sensíveis passíveis de identificação dos participantes, como IP, cookies etc.
Análise de Dados
Os dados foram tabulados no SPSS 18.0 (Statistical Package for Social Sciences), sendo realizadas análises descritivas (frequência absoluta, frequência relativa, média, desvio padrão) para a caracterização dos participantes. As recomendações para análise fatorial foram seguidas em conformidade a Brown (2015). A retenção fatorial observou os critérios de análise paralela, autovalor de Kaiser e a pertinência teórica dos fatores, observando-se autovalor superior empírico superior a 1,00 em comparação ao autovalor simulado.
A análise fatorial com o modelo saturado foi realizada por meio do software JASP 0.12.2 com estimador WLS (Weighted Least Squares) para dados ordinais, tendo como ponto de corte da carga fatorial valores iguais ou superiores a 0,30. A rotação empregada foi do tipo Oblimin, uma vez que a base teórica empregada dispõe sobre a existência de correlações entre os fatores analisados. Em seguida, realizou-se a análise de consistência interna pelo alfa de Cronbach e ômega de McDonald, atribuindo-se como valores razoáveis indicadores superiores a 0,60 (Dunn et al., 2014).
Com a elaboração dos fatores, gerou-se os escores fatoriais por fator, os quais foram empregados na análise de correlação de Pearson e análise de Regressão Múltipla com o uso do método enter em um único bloco de variáveis preditoras, utilizando como critério para análise dos efeitos a proposta de Cohen et al. (2003), sendo efeito pequeno = 0,01~0,10; efeito moderado=0,11~0,30 e efeito grande = 0,31~0,50.
Resultados da Etapa 2
A retenção fatorial indicou cinco fatores pela análise paralela e quatro fatores por meio do critério de Kaiser. Tendo em vista a perspectiva teórica, manteve-se a estrutura em quatro fatores. No modelo saturado de análise fatorial, foram obtidos os fatores: 1. atitudes, 2. normas subjetivas, 3. controle comportamental percebido e 4. intenção comportamental. Obteve-se um modelo de 39,4% de variância explicada para o atributo avaliado, sendo 10,60% do primeiro fator; 9,90% do segundo; 10,00% do terceiro e 9,00% do quarto fator. O nível de consistência interna para os fatores foi adequado, sem superior a 0,70, conforme Tabela 1.
Tabela 1 Estrutura Fatorial Saturada para a AMPRA
Itens | Fator 1 (AT) | Fator 2 (NS) | Fator 3 (CC) | Fator 4 (IN) |
---|---|---|---|---|
21 - As mulheres permanecem em um relacionamento abusivo para proteger os seus filhos. | 0,75 | 0,08 | −0,04 | −0,04 |
32 - As mulheres permanecem em um relacionamento abusivo por conta dos filhos. | 0,71 | 0,05 | −0,04 | 0,03 |
24 - As mulheres permanecem em relacionamentos abusivos por conta da pressão social. | 0,54 | −0,11 | 0,25 | 0,08 |
7 - Os filhos podem ser um impedimento para a saída de mulheres de relacionamentos abusivos. | 0,64 | 0,07 | −0,08 | −0,05 |
19 - A cultura atual favorece a permanência de mulheres em relacionamentos abusivos. | 0,46 | −0,11 | 0,22 | −0,05 |
8 - Sentir-se culpada pela violência é normal para quem permanece em um relacionamento abusivo. | 0,46 | −0,06 | 0,11 | 0,02 |
30 - Muito tempo de relacionamento dificulta a saída das mulheres de um relacionamento abusivo. | 0,43 | 0,02 | 0,00 | 0,19 |
15 - A culpa é um dos fatores que fazem com que as mulheres permaneçam em um relacionamento abusivo. | 0,41 | −0,09 | 0,05 | 0,08 |
54 - Ter medo de ficar sozinha é importante para permanecer em um relacionamento abusivo. | 0,30 | 0,02 | −0,01 | 0,26 |
22 - Na opinião do meu pai, eu devo permanecer em um relacionamento abusivo. | −0,04 | 0,02 | 0,70 | 0,00 |
12 - Na opinião da minha mãe, eu devo permanecer em um relacionamento abusivo. | −0,14 | 0,10 | 0,63 | 0,02 |
28 - Na opinião de pessoas mais velhas, eu devo permanecer em um relacionamento abusivo. | 0,10 | −0,08 | 0,67 | 0,02 |
37 - As pessoas cujas opiniões são importantes para mim, apoiariam que eu | −0,10 | 0,23 | 0,53 | −0,02 |
17 - Na opinião das pessoas da minha igreja, eu devo permanecer em um relacionamento abusivo. | 0,08 | 0,01 | 0,61 | −0,01 |
45 - Na opinião das mulheres, em geral, eu devo permanecer em um relacionamento abusivo. | 0,05 | 0,10 | 0,46 | 0,03 |
50 - Na opinião dos homens, em geral, eu devo permanecer em um relacionamento abusivo. | 0,25 | −0,01 | 0,46 | 0,02 |
57 - Ter independência emocional é fundamental para sair de um relacionamento abusivo. | 0,00 | 0,03 | −0,02 | 0,71 |
47 - Ter amor próprio é importante para sair de um relacionamento abusivo. | −0,03 | 0,00 | −0,02 | 0,69 |
23 - Para sair de um relacionamento abusivo, é preciso não ter medo de estar sozinha. | 0,01 | 0,00 | 0,01 | 0,59 |
18 - Para sair de um relacionamento abusivo, é necessário independência emocional. | 0,06 | 0,04 | 0,00 | 0,59 |
25 - Ter liberdade para a tomada de decisões é essencial para sair de um relacionamento abusivo. | 0,02 | −0,04 | 0,03 | 0,52 |
13 - Para sair de um relacionamento abusivo, é necessário amor próprio. | −0,08 | −0,04 | 0,02 | 0,56 |
53 - Permanecerei em um relacionamento abusivo caso as pessoas mais velhas achem que eu devo. | 0,02 | 0,78 | 0,02 | 0,01 |
48 - Permanecerei em um relacionamento abusivo caso meus pais achem que eu devo. | −0,02 | 0,77 | 0,06 | 0,02 |
43 - Permanecerei em um relacionamento abusivo caso as pessoas cujas opiniões são importantes para mim sejam favoráveis. | 0,05 | 0,69 | 0,00 | 0,01 |
49 - Eu me esforçarei para permanecer em um relacionamento abusivo, caso isso me traga vantagens. | −0,02 | 0,58 | 0,03 | 0,01 |
56 - Permanecerei em um relacionamento abusivo caso meus amigos de igreja achem que eu devo. | 0,05 | 0,69 | −0,04 | −0,02 |
Autovalor | 2,85 | 2,67 | 2,68 | 2,43 |
Variância Explicada | 10,60% | 9,90% | 10,00% | 9,00% |
Ômega de McDonalds | 0,80 | 0,83 | 0,80 | 0,78 |
Alfa de Cronbach | 0,79 | 0,81 | 0,80 | 0,77 |
Média (DP) | 5,48(0,96) | 3,04(1,24) | 6,38(0,72) | 1,40(0,79) |
Nota. Destaque em negrito indica a representatividade do item ao fator; AT=Atitude; NS=Norma Subjetiva; CC=Controle Comportamental; IN=Intenção
Evidências de Validade Baseadas nas Relações com Variáveis Externas
As correlações foram significativas entre: atitude e religião, atitude e filhos, norma subjetiva e religião, norma subjetiva e filhos, norma subjetiva e viver ou ter vivido um relacionamento abusivo, além de controle e filhos e, controle e viver ou ter vivido um relacionamento abusivo. E, finalmente, intenção comportamental e viver ou ter vivido um relacionamento abusivo, intenção comportamental e religião, intenção comportamental e filhos. Todos os construtos, com exceção da atitude, correlacionaram-se significativamente com a variável de viver ou ter vivido em um relacionamento abusivo. Dessa forma, é possível indicar que ter experienciado um relacionamento abusivo implica em desfavorabilidade à permanência.
Todos os fatores também se correlacionaram com a variável de possuir filhos, de modo que tê-los pode indicar favorabilidade à permanência, além de apresentar-se enquanto obstáculo para a saída e apresentarem-se como referentes modais salientes. Nenhum construto esteve associado com a variável de estar em um relacionamento amoroso. E a variável religião se correlacionou positivamente com atitudes e normas subjetivas, enquanto associou-se negativamente com a intenção comportamental. Apesar destas correlações apresentarem-se significativas, o coeficiente de correlação foi bastante reduzido, concentrando- se, respectivamente, pouco acima de 0,10 e abaixo de 0,30 Cohen et al. (2003). Ainda assim, apresentam-se relevantes para compreender de que forma o instrumento associa-se positivamente e negativamente com as variáveis sociodemográficas, conforme Tabela 2.
Tabela 2 Correlações entre os Construtos da Teoria e as Variáveis Sociodemográficas
Variáveis | Possuir religião | Estar em um relacionamento amoroso | Possuir filhos | Viver ou ter vivido um relacionamento abusivo |
---|---|---|---|---|
Atitude | 0,17** | 0,02 | 0,10** | −0,06 |
Norma Subjetiva | 0,09** | −0,02 | −0,12** | −0,10** |
Percepção de Controle | −0,02 | 0,03 | −0,09** | −0,14** |
Intenção Comportamental | −0,06* | −0,03 | −0,10** | −0,16** |
Nota. **Nível de significância=0,01; *Nível de significância=0,05
Para analisar o poder explicativo das variáveis independentes, percepção de controle comportamental, das atitudes e da norma subjetiva, na variável dependente, intenção de permanecer em um relacionamento abusivo, foi realizada uma análise de regressão múltipla. A análise resultou em um modelo estatisticamente significativo [F(1,873) = 106,068; p<0,001]. A variância explicada para o modelo foi de 10,8%, o qual inclui apenas a norma subjetiva (β = 0,329; t=10,299; p<0,01) como preditora significativa da intenção comportamental de permanecer em um relacionamento abusivo. É possível identificar que atitudes e controle comportamental não apresentam capacidade preditiva, conforme Tabela 3.
Discussão
O presente estudo objetivou desenvolver um instrumento que permita identificar as atitudes de mulheres acerca da permanência feminina em relacionamentos abusivos, assim como avaliar suas propriedades psicométricas (estrutura interna e relações com variáveis externas). Os resultados demonstraram que, de forma geral, esses objetivos foram satisfeitos. A estrutura interna do instrumento evidenciou quatro fatores para avaliar as atitudes, normas subjetivas, controle comportamental e intenção de permanecer em um relacionamento abusivo, o que foi compatível com a perspectiva teórica empregada da Teoria da Ação Planejada – TAP (Fishbein & Ajzen, 1975). De forma geral, o instrumento possibilita identificar situações de vulnerabilidade cognitiva e comportamental das mulheres em situação de violência e que optam por permanecer nessa situação, o que pode indicar o uso para rastreio de recursos psicológicos desadaptativos nessas condições, a fim de criar estratégias que favoreçam a intenção de sair de relacionamentos abusivos e, portanto, favorecer os direitos pessoais e sociais das mulheres que vivenciam relacionamentos abusivos.
No que tange às relações com variáveis externas, a partir dos resultados deste estudo, observou-se que, para essa amostra populacional, tanto as atitudes quanto a norma subjetiva exercem relações sobre a intenção comportamental de permanecer em um relacionamento abusivo. Entretanto, conforme podemos identificar na Análise de Regressão, o papel das atitudes na intenção comportamental é tão baixo que não apresenta significância. Esse dado nos indica que a pressão social percebida para a permanência em um relacionamento abusivo implica na intenção para não o realizar. Nesta perspectiva, pode-se afirmar que as mulheres deste estudo demonstram menor preocupação com os motivos que podem facilitar e/ou dificultar a permanência em relacionamentos abusivos e o quão (des)favoráveis são a execução dele. Esses dados assemelham-se com os de Edwards (2011), onde atitudes mais positivas para deixar o parceiro e maior pressão social percebida foram relacionadas positiva e significativamente com as intenções comportamentais para deixar o parceiro.
Embora o controle comportamental percebido tenha se relacionado à intenção, quando combinado com atitudes e normas subjetivas, não se apresentou de forma significativa. Edwards (2011) revela resultados diferentes do estudo que norteou a construção de seu questionário, de Byrne e Arias (2004). Neste, atitudes e controle comportamental percebido relacionavam-se à intenção para sair desse relacionamento, mas a norma subjetiva não o fazia. Para justificar a discrepância, Edwards (2011) utilizou-se dos dados sociodemográficos, considerando que, em seu estudo, a amostra estava composta por mulheres universitárias, enquanto o de Byrne e Arias (2004) contou com mulheres violentadas que procuraram ajuda em instituições comunitárias. Esses autores evidenciaram que as normas subjetivas não se relacionaram com a intenção de saída de um relacionamento abusivo porque muitas das mulheres de sua amostra não revelavam o abuso para outras pessoas. Entretanto, Edwards et al. (2012) salientam que a pesquisa com mulheres universitárias sugere que aproximadamente 75% delas divulgam a violência para outras pessoas com idade semelhante. Além disso, a maioria das mulheres universitárias vivem em proximidade com outros indivíduos, de modo que, o isolamento não é um fato provável para elas como pode ser para mulheres não universitárias.
Ainda sobre as relações com variáveis externas, por meio da correlação de Pearson, notou-se correlações significativas entre os construtos da teoria e as variáveis sociodemográficas acerca da religião, filhos e viver ou ter vivido um relacionamento abusivo. Esse resultado parece indicar relações dessas variáveis frente à intenção de permanecer em um relacionamento abusivo e, portanto, devem ser consideradas. Os dados da pesquisa de Edwards (2011) são consistentes com os resultados deste estudo e evidenciam que, apesar de tratarem de mulheres universitárias de diferentes contextos socioeconômicos, sendo Brasil e Estados Unidos da América, os países retratados, a Teoria da Ação Planejada parece indicar a representatividade da Norma Subjetiva frente à predição do comportamento de permanecer/sair de um relacionamento abusivo.
Embora a literatura refira o poder preditivo da Teoria da Ação Planejada diante da determinação da intenção comportamental frente a diferentes comportamentos, Conner e Armitage (1998) já defenderam a inclusão de outras variáveis, com o intuito de maximizar a explicação da variabilidade motivacional e o poder preditivo desse modelo teórico. Entretanto, a seleção dessas variáveis depende de sua importância para a compreensão do comportamento estudado.
A principal contribuição do presente estudo refere-se ao desenvolvimento de um instrumental para avaliação da intenção de permanecer em relacionamentos abusivos que pode ser utilizado para investigações futuras de situações de violência vivenciadas por mulheres que se encontram nessa condição. Entre as limitações da investigação, salienta-se que a amostragem no formato de bola de neve pode restringir a variabilidade dos temas encontrados para a um nicho específico, devendo investigações qualitativas e quantitativas ulteriores em diferentes localidades verificar elementos associados à permanência feminina em relacionamentos abusivos que possam ser acrescentados ao presente instrumento.
Ademais, investigações futuras que visem compreender a intenção do par masculino em elicitar ou manter uma conduta abusiva frente às mulheres pode se mostrar útil para desenvolver compreensões expandidas à assistência de casos que envolva violência e abusos entre pares românticos. Em última instância, urge ainda a necessidade de que compreensão dessas diferentes estratégias de permanência e abuso sejam rastreadas de forma efetiva, uma vez que somente com a plena compreensão delas torna-se possível impactar no desenvolvimento de políticas públicas de atenção psicossocial em saúde ao tema.