A Psicologia tem discutido a definição e as formas de avaliação da personalidade extensivamente nos últimos 50 anos, originando uma área de estudo específica ( Oliveira, & Bandeira, 2018 ). Apesar da variedade de definições desse construto, de forma geral, pode-se entender a personalidade como um conjunto de características relativamente estáveis ao longo do tempo que configuram padrões de sentimentos, pensamentos e comportamentos das pessoas. A organização desse conjunto de características pode resultar em um funcionamento adaptativo ou patológico ( Oliveira, & Bandeira, 2018 ).
O diagnóstico da patologia da personalidade é uma tarefa que demanda conhecimentos na área e treinamento prático. Mudanças significativas no modelo diagnóstico dos transtornos da personalidade (TP) estão em curso e implicam desfechos diferentes ( Oliveira, & Bandeira, 2020 ; Oliveira et al., 2020 ). O uso de ferramentas diagnósticas auxilia o profissional na tomada de decisão, contudo, diferentes métodos podem gerar dados que nem sempre são convergentes. O objetivo desta Nota Técnica é apresentar ponderações no diagnóstico dos TP pelo modelo dimensional por meio de duas ferramentas distintas: o Inventário de Personalidade para o DSM-5 ( Personality Inventory for DSM-5 [PID5]; Barchi-Ferreira, et al., 2019 ; Krueger et al., 2012 ) e a Entrevista Diagnóstica para os Transtornos da Personalidade (E-TRAP; Carvalho et al., 2020 ). Ambas ferramentas têm como objetivo realizar um diagnóstico, mas existem diferenças sutis: o PID-5 é um instrumento autoaplicável, ao passo que a E-TRAP é uma entrevista semiestruturada. Embora a E-TRAP seja uma ferramenta diagnóstica, observa-se que seu uso é potencializado ao ser aplicada juntamente com outros testes ( Carvalho et al., 2020 ).
O Modelo Dimensional/Híbrido dos Transtornos da Personalidade no DSM-5
Os TP foram incluídos em todas as edições do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), sendo que a quinta edição (DSM-5; American Psychiatric Association [APA], 2014 ) contém dois modelos diagnósticos distintos. O sistema diagnóstico oficial segue a perspectiva categórica, na qual os quadros psicopatológicos são compreendidos como entidades independentes. Desse modo, os TP são organizados em 10 categorias distintas, cada uma composta por um conjunto de características psicológicas que a tipificam ( Oliveira, & Bandeira, 2018 ). O diagnóstico é dado quando uma pessoa atende os critérios mínimos do algoritmo da categoria. Modelos contemporâneos, como o sistema alternativo Research Domain Criteria (RDoC) e o consórcio Hierarchical Taxonomy of Psychopathology (HiTOP), têm considerado os achados da neurociência e da genômica nas categorias diagnósticas, demonstrando os avanços em direção a uma perspectiva dimensional dos TP ( Lima et al., 2023 ).
Em consonância a esse movimento, o DSM-5 apresenta um modelo alternativo híbrido para o diagnóstico dos TP além do modelo categórico. Nesse novo modelo, o aspecto central da patologia consiste no prejuízo no funcionamento intrapessoal e interpessoal e inclui um modelo dimensional de traços patológicos da personalidade ( APA, 2014 ). Assim, o TP é definido como um padrão persistente de alterações da percepção de si e das relações, marcado por uma experiência interna e comportamentos difusos, inflexíveis e duradouros.
O modelo alternativo dos TP é considerado híbrido, pois, inclui os sistemas categórico e dimensional, ou seja, a avaliação é feita dimensionalmente e o diagnóstico é feito de forma categórica. Para a confirmação do diagnóstico nesse modelo é necessário observar prejuízos moderado a grave no funcionamento da personalidade no que tange às esferas intrapessoal ( self ) e/ou interpessoal (critério A) e a presença de um ou mais traços patológicos da personalidade (critério B). Esses dois critérios são dimensionais, ou seja, as pessoas variam na quantidade dessas dimensões. Cabe destacar que o critério B compreende 25 traços que se agrupam em cinco domínios amplos (afetividade negativa, distanciamento, antagonismo, desinibição e psicoticismo). Além disso, para o diagnóstico é preciso identificar: a pervasividade dos critérios A e B (Critério C); a cronicidade dos critérios A e B (Critério D); a especificidade dos critérios A e B (Critério E), se não são atribuíveis aos efeitos de uma substância ou a outra condição médica (Critério F), e se não são adaptativos para o estágio do desenvolvimento do indivíduo ou para seu ambiente sociocultural (Critério G). A conclusão diagnóstica pode ser categórica, uma vez que existem algoritmos para o diagnóstico de seis das dez categorias tradicionais da abordagem categórica.
Análise Técnica: Ferramentas Diagnósticas: Métodos, Especificidades e Complementaridades
A avaliação dos traços patológicos do modelo alternativo para os TP do DSM-5 ( APA, 2014 ) foi feita inicialmente por meio do PID-5, um instrumento de autorrelato, composto por 220 itens que cobrem as 25 facetas da patologia da personalidade, agrupadas em cinco domínios. No Brasil, existem duas versões adaptadas do PID-5, uma realizada por Barchi-Ferreira et al. (2019) e outra por Oliveira et al. (2021) . Essa última também está publicada em outros estudos (como Lugo et al., 2019 ; Oliveira et al., 2020 ), os quais têm reportado evidências de validade baseadas na estrutura interna e na relação com variáveis externas, além de indicadores favoráveis de fidedignidade.
O tempo de aplicação do PID-5 é considerado longo, em torno de 40 minutos. Um aspecto a ser destacado é a linguagem acessível desse instrumento para pessoas com baixa escolaridade, facilitando a aplicação em avaliandos que possuem alguma dificuldade de insight ou para descrever seus próprios comportamentos e emoções. O levantamento dos escores do PID-5 exige obter a pontuação de cada questão (16 itens invertidos), calcular a média, usar os dados normativos de cada faceta e cada domínio e avaliar os critérios diagnósticos dos TP. Para tanto, recomenda-se um estudo do instrumento, de sua aplicação e correção. Atualmente os dados normativos estão disponíveis em Lugo et al. (2019) .
Outra ferramenta disponível no Brasil para a avaliação dos traços patológicos da personalidade é a E-TRAP, desenvolvida por Carvalho et al. (2020) , entrevista semiestruturada que auxilia no diagnóstico dos TP, elaborada com base nos critérios A e B do modelo dimensional/híbrido e no modelo categórico. O formato de entrevista semiestruturada possibilita o acesso qualitativo e quantitativo dos traços e critérios que permitem ao profissional decidir sobre o nível de prejuízos no funcionamento e traços patológicos da personalidade de adultos a partir de 18 anos de idade. A utilização da E-TRAP é destinada a profissionais experientes na área da saúde mental.
A entrevista é composta por duas partes, sendo uma para avaliação do prejuízo no funcionamento da personalidade (critério A) e outra para avaliação dos traços patológicos da personalidade (critério B) do modelo híbrido, sendo que na segunda parte também podem ser avaliados os 78 critérios diagnósticos do modelo categórico ( Carvalho et al., 2020 ). A E-TRAP é aplicada por computador, tendo em vista que o conjunto de perguntas a ser feito para cada pessoa varia de acordo com as características individuais dos examinandos. Um sistema de algoritmo é aplicado de modo a permitir que o avaliador se certifique do nível da característica que ele está avaliando. O critério A é avaliado por meio de 12 perguntas principais, as quais são seguidas de perguntas-prova. Existem ainda perguntas auxiliares optativas que podem ser usadas a depender da produção narrativa do avaliando ( Carvalho et al., 2020 ). O critério B é avaliado por 25 perguntas principais e mais 25 perguntas complementares que serão apresentadas somente caso haja indicativo, mesmo que mínimo, do traço. Os 78 critérios diagnósticos do modelo categórico também são apresentados na segunda parte da E-TRAP.
A aplicação da E-TRAP pode ser feita considerando apenas a parte A, apenas a parte B, ou ambas. Para estabelecer um diagnóstico de TP é recomendada a aplicação das duas partes. O tempo de aplicação da E-TRAP (partes A e B) é longo, durando aproximadamente uma hora e trinta minutos. Considerando que o tempo extenso pode impactar na qualidade das respostas, é recomendado que o avaliador julgue, com base nas características da pessoa que está sendo avaliada, a melhor estratégia de aplicação, se em uma única sessão longa ou se em duas sessões. Atualmente, existem poucas evidências de validade da E-TRAP investigadas. A principal evidência até o momento refere-se à validade de conteúdo, que consiste na verificação do conteúdo das perguntas e qualidade dos itens por juízes especialistas. Outra evidência de validade diz respeito à verificação da adequação da plataforma online , suas especificidades e da adequação e utilidade do relatório gerado com base nas pontuações na E-TRAP.
Dentre as vantagens da E-TRAP destaca-se o sistema informatizado que configura as perguntas automaticamente com base nas características da pessoa avaliada, além da geração de escores e relatórios interpretativos quantitativos e qualitativos. Outra vantagem inclui a interação avaliador-avaliado, permitindo que a percepção do entrevistador faça parte do processo de inferência dos níveis das dimensões patológicas, lidando com os problemas de insight que podem ocorrer em pacientes com TP que podem experimentar os traços patológicos de forma egossintônica.
Ressalta-se que essas ferramentas não fazem parte da lista de instrumentos aprovados pelo Sistema de Avaliação de Testes Psicológicos (SATEPSI) do Conselho Federal de Psicologia (CFP), pois não são instrumentos de uso exclusivo dos psicólogos. O PID-5 é um instrumento de uso livre, disponibilizado pela American Psychiatric Association. A E-TRAP é um instrumento comercializado pela Editora Vetor e pode ser usado por profissionais da saúde mental, em especial, profissionais da psicologia e da psiquiatria.
Em caso de divergências em relação ao diagnóstico a partir do uso dos instrumentos apresentados, é necessário considerar alguns aspectos. Instrumentos de autorrelato, como o PID-5, são mais vulneráveis à tendência do respondente apresentar uma imagem mais favorável socialmente, a chamada desejabilidade social. Esse fenômeno pode acarretar numa descrição mais branda, ou mesmo, falseada, de tendências comportamentais ( Tracey, 2016 ). Além disso, as respostas de autorrelato podem ser influenciadas pela falta de insight ( Vazire, & Carlson, 2010 ). Como recomendações para lidar com essas limitações, Hopwood e Waugh (2019) sugerem que instrumentos de autorrelato avaliam melhor sintomas experienciais, ao passo que entrevistas podem avaliar sintomas comportamentais e identificar os critérios diagnósticos de forma mais sistemática. Mas, de forma geral, uma abordagem multimétodo para a coleta de informações é preferível a um método único ( Samuel et al., 2013 ). Além disso, o relato de informantes (familiares, colegas de trabalho, etc.) pode ser utilizado para compensar respostas de autorrelato potencialmente tendenciosas ( Reardon et al., 2018 ).
Conclusão
A partir dessas breves considerações sobre os instrumentos de avaliação da personalidade PID-5 e E-TRAP, entende-se que o uso de multimétodos na avaliação psicológica é uma prática recomendada, uma vez que isso amplifica os dados obtidos, tanto em termos quantitativos como qualitativos. Lidar com a integração dessas informações é uma competência profissional que precisa ser desenvolvida e aprimorada ( Oliveira e Silva, 2019 ). Clínicos e pesquisadores precisam se familiarizar com os modelos categórico e dimensional/híbrido a partir da literatura da área para que as compreensões e decisões sobre a patologia da personalidade sejam cientificamente embasadas (por exemplo, Oliveira et al., 2020 concluem pela baixa correspondência entre os modelos e recomendam o uso dimensional puro). Faz-se necessário que o profissional conheça a natureza das ferramentas e considere que para a integração de informações opostas ou contraditórias é necessário compreender diferentes fatores que explicam as discrepâncias.