As doenças cardiovasculares (DCV) são aquelas que atingem coração e/ou vasos sanguíneos. Frequentemente seu surgimento ocorre de forma aguda, como nas Síndromes Coronarianas Agudas (SCA) e no Acidente Vascular Cerebral (AVC), e levam a quadros crônicos, que podem impactar, permanentemente, a qualidade de vida do paciente. De acordo com Oliveira et al. (2022) , as doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) representam 72% das mortes no Brasil e destas, 30% são oriundas de DCV.
Artigo derivado da Dissertação de mestrado de Aline Cristina Antonechen com orientação da Profa. Dra. Sonia Regina Pasian, defendida em 2019 no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.
As doenças cardíacas, em específico, são aquelas que atingem exclusivamente o coração e são consideradas a principal causa de morte no Brasil desde o ano 2000 até atualmente. Neste período, houve um aumento expressivo na manifestação das cardiopatias na população brasileira, sendo que a incidência dessas doenças passou de 1,48 milhão em 1990 para mais de quatro milhões em 2019 ( Oliveira et al., 2022 ). O desenvolvimento destas patologias é considerado multifatorial, sendo associado a alguns fatores, como as doenças prévias (pressão alta, colesterol e diabetes) e a comportamentos de risco (tabagismo, inatividade física, dieta e sobrepeso) ( American Heart Association, 2022 ).
As variáveis psicológicas podem apresentar impacto nas doenças cardíacas, bem como em seus fatores de risco. Fatores psicossociais como a ansiedade, estresse, vivência de lutos, depressão, isolamento social, hostilidade, tabagismo e status socioeconômico podem impactar no desencadeamento, enfrentamento após o evento e na eventual adesão ao tratamento das cardiopatias ( Hutz et al., 2019 ; Lloyd-Jones et al., 2022 ). Alguns comportamentos associados ao adoecimento cardíaco, como tabagismo e sobrepeso, já são comumente associados à fatores psicossociais ( de-Matos et al., 2020 ; Melo et al., 2020 ).
Na literatura cientifica da área de cardiologia, são apontados diversos instrumentos avaliativos para mensuração destes fatores psicossociais. Grande parte dos estudos faz uso de escalas e questionários de autorrela-to, que solicitam do paciente respostas objetivas sobre seus sintomas. Os indicadores de depressão e ansiedade e suas correlações são os construtos mais avaliados nessa área, evidenciando a relevância destes sintomas nessa população, uma vez que tendem a apresentar indicadores mais elevados que a população em geral ( Costa et al., 2020 ). Uma pesquisa realizada na Palestina com 1.022 pacientes com cardiopatia (73,4% homens, idade média de 58,9±10,1 anos), apontou que 54% dos participantes apresentavam indicadores de depressão severa e 19,2% tinham ansiedade clínica. Alguns fatores foram associados ao aumento destes sintomas, como ser do sexo feminino, baixa escolaridade, reduzido suporte social, baixa autoestima, tabagismo e sedentarismo ( Allabadi et al., 2019 ). Em revisão de literatura científica sobre ansiedade em cardiologia, identificou-se que quando a ansiedade é vivenciada em níveis saudáveis, pode ser considerada fator protetivo para os cuidados em saúde, porém quando considerada clínica, torna-se prejudicial, podendo comprometer a adesão ao tratamento ( Pimentel & Antonechen, 2024 ).
Além disso, um dos construtos associados ao desenvolvimento de doenças cardíacas trata-se da personalidade tipo D, caracterizada por intensa vivência de afetos negativos e inibição social. Diversos estudos relatam a prevalência destes traços em pacientes cardiopatas, associando-os às dificuldades de adaptação social neste grupo ( Dritto et al., 2015 ; Habibovic et al., 2020 ; Liang et al., 2023 ).
Apesar da importância destes achados, poucos estudos focalizam a compreensão de aspectos globais da psicodinâmica destes pacientes, com o uso de técnicas psicológicas diversificadas, como os métodos projetivos. Estes se caracterizam pela apresentação de estímulo ambíguo e pouco estruturado, sendo solicitado que o indivíduo forneça respostas relacionadas a essa estimulação a partir de sua percepção. O modo como a tarefa é executada fornece indicadores do funcionamento psíquico do respondente, considerando suas condutas, autopercepção, articulações e potencialidades ( Anzieu, 1986 ; Chabert, 2019 ; Villemor-Amaral & Pasian, 2022 ).
O uso de métodos projetivos para investigação de indicadores psicológicos diminui significativamente as variáveis de confusão, como a influência das percepções e crenças prévias do respondente sobre o tema avaliado em sua produção de respostas ( Bornstein, 2011 ). A desejabilidade social também pode ser considerada uma variável confundidora, pois, os indivíduos tendem a respondem como é esperado e não como ele age a determinadas situações, quando as identifica nos instrumentos avaliativos ( Borsa et al., 2022 ). Nos métodos projetivos, a frequência de respostas que refletem a desejabilidade social é menor, tendo o indivíduo que recorrer a recursos mais inconscientes para responder às atividades propostas. Dessa maneira, torna-se possível identificar traços de seu modo de pensar e agir com menos interferências de tais variáveis externas ( Villemor-Amaral & Pasian, 2022 ).
Dentre os instrumentos que utilizam a metodologia projetiva, destaca-se o Teste das Pirâmides Coloridas de Pfister (TPC), pela sua rápida aplicação. Criado em 1948 por Max Pfister, este instrumento preconiza a avaliação do funcionamento psíquico a partir das escolhas cromáticas e modo de construção de pirâmides com uso de quadrículos coloridos ( Villemor-Amaral, 2017 ). Os estudos sobre a relação entre cores e indicadores psíquicos são antigos, sendo o primeiro deles datado em 1894. Tais trabalhos levam em consideração a influência do psiquismo nas escolhas cromáticas e, em contrapartida, como as cores podem influenciar no estado emocional ( Villemor-Amaral & Yazigi, 2022 ). Em revisão sistemática da literatura sobre o uso do TPC em estudos publicados entre 2009 e 2021, foram encontrados 21 artigos com amostras diversificadas, apontando a versatilidade desta técnica expressiva Destaca-se a relevância deste instrumento para investigação de evidências clínicas e compreensão da psicodinâmica dos participantes em diferentes fases do desenvolvimento ( Scortegagna et al., 2023 ). Estudos que utilizaram o TPC com crianças, adolescentes, adultos e idosos obtiveram resultados relevantes para suas áreas de estudo, corroborando esta conclusão ( Bastos-Formighieri & Pasian, 2012 ; Mulle & Pasian, 2021 ; Oliveira-Cardoso & Santos, 2014 ; Villemor-Amaral et al., 2012 ).
Em investigação da literatura científica recente da área de avaliação psicológica em cardiologia, não foram encontrados artigos que descrevam o uso do TPC nesse perfil de paciente. No entanto, mesmo que pouco frequentes, os estudos com uso de métodos projetivos na área da cardiologia apontam indicadores relevantes para a compreensão do funcionamento psíquico desses pacientes. Abduch (1990) realizou estudo com 40 pacientes com Doença Arterial Coronariana (50% homens e idade entre 30 e 50 anos), utilizando dentre os instrumento, o Método de Rorschach (Escola de Paris). Em síntese, os resultados apontaram para tendência a bloqueio das manifestações afetivas e vivências de afeto, com uso de mecanismos defensivos, tais como a estereotipia, modo de se relacionar mais formal e a racionalização, como uma tentativa de repressão desses afetos ( Abduch, 1990 ). Dritto et al. (2015) também utilizaram o Método de Rorschach (Escola de Paris) para identificação de indicadores de funcionamento psíquico em 40 pacientes com cardiopatia (32% mulheres, com idade média de 64,0±8,9 anos), visando os traços de personalidade tipo D. As variáveis significativas indicavam preocupação excessiva com a saúde física, predomínio do tipo vivencial introversivo (em que há dificuldade na expressão dos afetos, com tendência a sublimação das emoções) e traços de inibição social no grupo avaliado ( Dritto et al., 2015 ).
Tendo em vista a relevância dos fatores comportamentais no tratamento das doenças cardíacas, o funcionamento psíquico desses pacientes deve ser considerado uma variável importante na assistência ofertada pela equipe de saúde. A história pessoal do indivíduo e a maneira como ele a interpreta, influenciam em seu processo de manifestação afetiva, podendo favorecer movimentos de desorganização intrapsíquica. De acordo com a Escola Psicossomática de Paris ( Marty, 1976 ), quando o trabalho de elaboração psíquica é insuficiente, a sobrecarga psíquica pode levar a várias expressões somáticas ( Belot, 2014 ). Dessa maneira, é necessário observar a natureza do trabalho psíquico que os pacientes com doenças cardíacas podem realizar após o evento cardíaco, pois a organização psíquica é um fator protetivo para a restauração de sua saúde. A capacidade do indivíduo em tolerar, negociar e manejar seus conflitos psíquicos auxilia em seu enfrentamento do adoecimento ( Marty, 1991 ; Phelpin, 2019 ).
Os indicadores associados às cardiopatias podem ser agravados pelo contexto de urgência cardiológica. As internações nestas urgências são relacionadas a situações agudas, seja o primeiro evento cardíaco ou a agudização de em quadro crônico. Um dos sintomas mais atendidos em Unidades de Emergência (UE) é a dor torácica, que representa 10% dos atendimentos não relacionados a traumatismos. De acordo com a Sociedade Brasileira de Cardiologia, a cada 1.000 pessoas atendidas em UE, de 9 a 19 apresentam este sintoma e cerca de 25% destas são diagnosticadas com Síndrome Coronariana Aguda – SCA ( Nicolau et al., 2021 ). A vivência de um quadro agudo e inesperado de saúde é frequentemente considerada um momento de crise para o paciente e sua família, no qual há ruptura brusca com a vida em curso até então ( Franco, 2015 ). Neste cenário, as manifestações subjetivas também podem ser intensificadas e os sentimentos e características de personalidade acentuadas, interferindo em fatores como a percepção da doença, a hospitalização e a relação com a equipe de saúde ( Almeida & Ribeiro, 2008 ; Borges Junior et al., 2020 ).
Dado o exposto, o objetivo deste artigo é caracterizar e comparar indicadores de vivência afetiva e funcionamento psicodinâmico de pacientes com cardiopatia atendidos em contexto de emergência hospitalar em relação a um grupo de não pacientes. Tendo em vista a literatura científica da área, levanta-se hipótese de que os pacientes cardíacos apresentam indícios de sofrimento psíquico acentuados, tais como componentes ansiogênicos, depressivos e de inibição social. Tais indicadores foram obtidos por meio da aplicação do Teste de Pirâmides Coloridas de Pfister (TPC), que permite a avaliação de aspectos cognitivos e emocionais dos participantes por meio de técnica expressiva. A escolha pela apresentação de resultados obtidos apenas por este instrumento tem por finalidade ressaltar a riqueza avaliativa deste método expressivo. Verificou-se, ainda, se havia diferenças entre os indicadores em função do sexo dos participantes.
Método
O presente trabalho foi elaborado a partir de pesquisa quantitativa, com delineamento transversal, descritivo-comparativo e interpretativo a partir de instrumento de avaliação psicológica ( Cohen et al., 2014 ).
Participantes
Foram recrutados para participação no estudo 80 voluntários divididos em dois grupos, a saber: Grupo Clínico (G1), composto por 40 indivíduos com cardiopatia internado em Unidade Coronariana de um hospital público de urgência e emergência do interior do Estado de São Paulo e; Grupo de Comparação (G2), constituído de 40 participantes com sexo, idade e escolaridade semelhantes ao do G1, com a finalidade de tornar os grupos balanceados. O segundo grupo foi recrutado conforme o G1 foi formado, a fim de que os grupos fossem equiparáveis.
Cada grupo foi constituído por 70% de participantes do sexo masculino ( n = 28). No G1, os participantes tiveram idade média de 62,7(±5,5) anos e escolaridade média de 6,6(±4,1) anos. E em G2, a idade média dos participantes foi de 62,4(±5,3) anos e escolaridade média de 8,6(±3,4) anos. Prevaleceu o estado civil casado, que constituiu mais de 77% nos dois grupos e as faixas econômicas predominantes, de acordo com o Critério de Classificação Econômica Brasil ( ABEP, 2019 ), foram entre A e B2, ou seja, com condições materiais de subsistência adequadas. Outras patologias crônicas foram mensuradas em ambos os grupos, porém não foram consideradas enquanto critério de exclusão. Em nenhum dos grupos prevaleceram outras doenças crônicas, exceto a Hipertensão Arterial, que esteve presente em 67,5% (n=27) dos participantes do G1. Quanto ao uso de medicamentos psicotrópicos, cinco (12,5%) participantes do G1 relataram fazerem uso de Sertralina (antidepressivo), enquanto no G2 não houve relatos de uso destas medicações.
Para definição do número de participantes de cada grupo, foi realizado cálculo amostral, sendo verificado que seria necessária amostra de 34 participantes por grupo, para identificar diferenças entre os grupos de tamanho de efeito maior ou igual a 0,7 ( Espírito-Santo & Daniel, 2017 ), considerando um grau de significância estatística de 95% (α=0,5) e poder estatístico (β) de 0,8. Dessa forma, a amostra constituída de 40 participantes por grupo permitiu avaliar possíveis diferenças entre os grupos cujo tamanho de efeito fosse moderado a alto.
Foram considerados critérios de inclusão estar consciente, ter idade entre 55 e 75 anos (faixa etária de maior prevalência de cardiopatia, segundo DATASUS, 2022 ) e demonstrar compreender a proposta do estudo e as instruções dos instrumentos. Como critérios de exclusão, considerou-se não estar consciente, fazer uso de dispositivo de comunicação alternativo ao verbal, deficiências sensoriais, estar sob o efeito de substâncias psicoativas que pudessem alterar a percepção da realidade ou apresentar desempenho abaixo do esperado no Mini Exame de Estado Mental (MEEM). Além disso, os participantes do G2 não poderiam ter diagnóstico cardíaco autorrelatado.
Instrumentos
Mini Exame de Estado Mental (MEEM) – Brucki et al. (2003) . Instrumento constituído de 19 itens com objetivo de examinar orientação temporal e espacial, memória de curto prazo e evocação, cálculo, linguagem-nomeação, repetição, compreensão, escrita e cópia de desenho. Como referencial teórico, foi utilizado o estudo de Brucki et al. (2003) , em que foi realizada análise de variância, considerando variáveis de sexo, idade e escolaridade, sendo encontrada diferença significativa entre grupos apenas nesta última variável, considerando F (4,425) = 100.45, p <0,0001. O MEEM foi utilizado como instrumento de triagem do estado mental, sendo que os participantes que apresentassem pontuação inferior ao esperado de acordo com a escolaridade eram eliminados da amostra, por identificação de possíveis alterações neurológicas. Os escores medianos esperados, apontados pelos autores são: 20 pontos para analfabetos; 25 pontos para indivíduos com um a quatro anos de estudo; 26,5 pontos para aqueles com cinco a oito anos de estudo; 28 pontos para indivíduos com nove a 11 anos de estudo; 29 pontos para ensino superior ( Brucki et al., 2003 ).
Questionário sociodemográfico e clínico. Questionário elaborado pelas pesquisadoras para identificar dados demográficos, sociais, de hábitos de vida e, no caso do Grupo Clínico, questões referentes ao adoecimento e tratamento. Também foram inseridos indicadores do Critério de Classificação Econômica Brasil ( ABEP, 2019 ), para identificação do nível econômico dos participantes.
Teste das Pirâmides Coloridas de Pfister (TPC) – Villemor-Amaral (2017) . método expressivo de avaliação psicológica, utilizado para investigação de indicadores de dinâmica afetiva e aspectos cognitivos. Neste trabalho, serão apresentadas e analisadas variáveis referentes à frequência no uso de cores e síndromes cromáticas, dada sua relevância para compreensão dos indicadores psicodinâmicos mais significativos. O referencial teórico utilizado consta no manual do instrumento ( Villemor-Amaral, 2017 ). No entanto, foram utilizados parâmetros psicométricos referenciados nas normas atualizadas do TPC ( Villemor-Amaral, 2020 ).
Procedimentos
A pesquisa foi aprovada por Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Faculdade de Filosofia, Ciências e letras e Ribeirão Preto – Universidade de São Paulo (CAAE nº 74133317.0.0000.5407) e respeitou princípios de bioética em pesquisas envolvendo seres humanos. A coleta de dados foi realizada pela primeira autora (na época, psicóloga mestranda em psicologia), com aplicação de protocolo de avaliação psicológica em uma única sessão, com duração de aproximadamente 50 minutos. Os instrumentos selecionados para este trabalho foram aplicados na seguinte ordem: Mini Exame de Estado Mental, Questionário sociodemográfico e clínico e Teste das Pirâmides Coloridas de Pfister (TPC). A coleta de dados do G1 foi realizada na Unidade Coronariana (UCo), com os pacientes sentados em poltronas ao lado do seu leito hospitalar. As cortinas de isolamento foram fechadas, a fim de garantir a privacidade no momento da avaliação. A pesquisadora permaneceu sentada à direita do paciente, utilizando uma mesa para auxiliar na aplicação dos instrumentos, favorecendo a manipulação das peças do TPC pelo paciente. Antes da abordagem, a pesquisadora verificava a agenda de procedimentos e medicamentos do paciente e solicitava à equipe que não houvesse interrupções durante o período de aplicação, exceto em casos de urgência. A coleta de dados também não foi realizada próxima ao horário de visita da unidade, a fim de evitar interrupções e maior fluxo de pessoas no ambiente. Optou-se por avaliação em leito hospitalar pela necessidade de monitorização contínua dos pacientes após evento cardíaco agudo recente. Já o G2 foi avaliado em ambiente adequado à avaliação psicológica, ou seja, em local privado, com boa iluminação, sem riscos de interrupções e com o mínimo de interferência externa possível.
A coleta de dados ocorreu em um período de 10 meses, de janeiro a outubro de 2018. Neste intervalo, foram identificados 53 casos elegíveis para a participação na pesquisa em G1, porém sete recusaram-se a participar e seis foram eliminados por pontuação abaixo da esperada no MEEM, totalizando 40 protocolos válidos. No G2, foram abordadas 84 pessoas, porém 52,4% ( n =44) foram eliminadas por não possuírem similaridades com as pessoas recrutadas no G1, em termos de sexo, idade ou escolaridade.
Análise de dados
Após a coleta de dados, foram realizadas análises descritivas e teste de distribuição, comprovando-se tendência à normalidade. Apesar do TPC ser uma técnica expressiva e por isso ser sugerida análise de confiabilidade dos protocolos, com avaliação de juízes independentes, este processo não foi realizado para o presente artigo. Como as variáveis selecionadas para análise tratam-se de indicadores objetivos deste instrumento (frequência de cores e síndromes cromáticas) acredita-se que este tratamento de dados seja dispensável.
Para a análise estatística, foram realizados testes estatísticos paramétricos para comparação de resultados médios de G1 e G2, utilizando-se o Teste t de Student para amostras independentes. Para comparação dos resultados em função do sexo dos participantes, em que foram comparados quatro grupos, foi utilizada a ANOVA para amostras independentes e, quando identificadas diferenças estatisticamente significativas, recorreu-se ao Teste de Bonferroni para verificar as especificidades dos grupos. O tamanho de efeito foi calculado por meio do d de Cohen (d) para o Teste t de Student e eta (η2) no caso da ANOVA. Em todas as análises utilizou-se o nível de significância de 95% ( p ≤0,05), com intervalo de confiança de 95%.
Resultados
Foram selecionadas, para análise, as variáveis de frequência cromática e consequente formação de Síndromes Cromáticas no Teste das Pirâmides Coloridas de Pfister (TPC), tendo em vista a relevância de tais indicadores para identificação da vivência afetiva e do funcionamento psicodinâmico ( Villemor-Amaral & Yazigi, 2022 ). Na Tabela 1 são apresentados os resultados médios no uso das cores e nas síndromes cromáticas em G1 e G2 e a comparação estatística entre estes grupos.
Tabela 1 Análise Descritiva e Comparativa das Frequências Cromáticas do TPC de G1 e G2.
Cores e Síndromes Cromáticas | G1 ( n =40) | G2 ( n =40) | Comparação estatística | ||
---|---|---|---|---|---|
Média( DP ) | Média( DP ) | t | p | d | |
Azul | 15,5(14,4) | 17,1(10,2) | −0,557 | 0,579 | −0,125 |
Vermelho | 16,1(8,7) | 14,9(9,7) | 0,561 | 0,577 | 0,125 |
Verde | 21,7(13,7) | 19,0(9,0) | 1,042 | 0,301 | 0,233 |
Violeta | 9,21(7,4) | 7,5(5,4) | 1,137 | 0,259 | 0,254 |
Laranja | 7,7(6,3) | 7,0(6,9) | 0,476 | 0,635 | 0,106 |
Amarelo | 11,2(9,9) | 13,0(9,5) | −0,826 | 0,411 | −0,185 |
Marrom | 6,7(7,2) | 7,2(11,9) | −0,203 | 0,840 | −0,045 |
Preto | 3,2(4,7) | 3,6(6,2) | −0,322 | 0,756 | 0,070 |
Branco | 4,6(10,7) | 6,6(7,3) | -0,974 | 0,008 | 0,607 |
Cinza | 2,1(2,5) | 3,8(6,0) | −1,613 | 0,112 | −0,360 |
Normal | 53,3(16,1) | 51,0(12,7) | 0717 | 0,476 | 0,160 |
Estímulo | 34,4(15,7) | 35,0(11,7) | −0,205 | 0,838 | −0,046 |
Fria | 47,2(17,5) | 46,6(15,4) | 0,983 | 0,329 | 0,220 |
Incolor | 8,5(6,4) | 13,6(12,2) | −2,300 | 0,024 | −0,514 |
Nota. G1=Grupo Clínico; G2=Grupo de Comparação; DP =Desvio Padrão; t =Teste t de Student; p =Nível de Significância; d = d de Cohen
Foram encontradas diferenças estatisticamente significativas entre os grupos na frequência de utilização da cor branca, que foi menor em G1 (4,6±10,7) do que em G2 (6,6±7,3). A Síndrome Incolor, constituída das cores branco, preto e cinza também foi menos frequente em G1 (8,5±6,4) em relação ao G2 (13,6±12,).
Os dados foram também analisados em função do sexo da amostra. O número de participantes em G1 e G2 foi equilibrado, mantendo-se no sexo masculino ( n =28) e no feminino ( n =12). Na Tabela 2 , são apresentados os resultados obtidos, bem como análise comparativa entre estes subgrupos.
Tabela 2 Análise Descritiva e Comparativa das Frequências Cromáticas do TPC do G1 e do G2, em Função do Sexo
Cores e Síndromes Cromáticas | G1 | G2 | Comparação estatística | ||||
---|---|---|---|---|---|---|---|
Masculino ( n =28) | Feminino ( n =12) | Masculino ( n =28) | Feminino ( n =12) | ||||
Média( DP ) | Média( DP ) | Média( DP ) | Média( DP ) | F | p | η2 | |
Azul | 17,7(15,4) | 10,3(9,3) | 15,3(9,5) | 21,4(10,9) | 1,842 | 0,147 | 0,068 |
Vermelho | 15,2(8,8) | 18,1(8,6) | 12,4(9,7) | 20,9(7,0) | 2,963 | 0,037 | 0,105 |
Verde | 19,7(10,2) | 26,2(19,4) | 19,6(9,1) | 17,0(9,2) | 1,431 | 0,240 | 0,053 |
Violeta | 7,5(6,7) | 13,1(7,8) | 6,1(5,4) | 11,2(4,3) | 4,557 | 0,005 | 0,152 |
Laranja | 8,3(6,7) | 6,4(5,3) | 6,7(6,6) | 7,9(7,8) | 0,374 | 0,772 | 0,015 |
Amarelo | 12,1(10,9) | 9,2(6,9) | 14,6(10,5) | 8,7(4,5) | 1,487 | 0,225 | 0,055 |
Marrom | 8,0(7,9) | 3,8(4,3) | 9,2(13,7) | 2,5(2,2) | 1,839 | 0,147 | 0,068 |
Preto | 2,5(3,9) | 4,7(6,3) | 4,2(7,1) | 1,8(2,9) | 1,031 | 0,384 | 0,039 |
Branco | 2,6(3,0) | 9,2(18,7) | 7,6(8,5) | 5,5(3,9) | 2,118 | 0,105 | 0,077 |
Cinza | 2,3(2,6) | 1,6(2,1) | 4,0(6,9) | 2,3(2,2) | 1,042 | 0,379 | 0,040 |
Normal | 52,7(17,3) | 54,7(13,5) | 47,3(12,9) | 59,4(7,2) | 2,284 | 0,086 | 0,083 |
Estímulo | 34,1(16,5) | 34,9(14,4) | 33,8(13,4) | 37,5(6,6) | 0,222 | 0,881 | 0,009 |
Fria | 46,2(18,5) | 49,7(15,4) | 41,1(17,1) | 49,7(8,3) | 1,223 | 0,307 | 0,046 |
Incolor | 7,6(6,3) | 10,7(6,3) | 15,2(13,9) | 9,8(5,4) | 2,981 | 0,037 | 0,105 |
Nota. G1=Grupo Clínico; G2=Grupo de Comparação; DP =Desvio Padrão; F=teste ANOVA; p =Nível de Significância; η2= eta
Foi possível identificar diferença estatisticamente significativa entre os subgrupos no que se refere ao uso das cores vermelho e violeta e na Síndrome Incolor. Ao aplicar o Teste de Bonferroni, foi possível identificar que essas diferenças se deram pelo uso mais frequente de vermelho em mulheres do G2 (20,92±7,0) em comparação aos homens do mesmo grupo (12,41±9,7); uso aumentado da cor violeta em mulheres do G1 (13,13±7,8) em relação aos homens do G2 (6,18±5,4) e; rebaixamento da Síndrome Incolor em homens do G1 (7,67±6,3) em comparação aos homens do G2 (15,29±13,9).
Discussão
Ao comparar vivências afetivas de pacientes com cardiopatia atendidos em contexto de emergência (G1) com um grupo de não pacientes pareados ao G1 (G2) a partir do Teste das Pirâmides de Pfister (TPC), os resultados mostraram que houve semelhanças na frequência do uso de cores e Síndromes Cromáticas, porém há alguns pontos de diferenças importantes. Neste artigo, a discussão focará apenas os indicadores em que houve diferença estatística significativa que envolva o grupo de pacientes com cardiopatia (G1), tendo em vista que o foco do trabalho é funcionamento psíquico de indivíduos com esta patologia.
Foi identificado uso diminuído da cor branca e da Síndrome Incolor em G1, em comparação ao G2. Segundo Villemor-Amaral (2017) , a cor branca representa a diluição de todas as cores e lhe é atribuído o sentido de vazio interior. Seu aumento estaria relacionado à vulnerabilidade ou mesmo perda de contato com a realidade, porém a sua diminuição não pode ser compreendida como positiva, uma vez que esta é uma das cores que compõe a Síndrome Incolor, estabilizadora do funcionamento psíquico ( Bastos-Formighieri & Pasian, 2012 ; Oliveira-Cardoso & Santos, 2014 ; Villemor-Amaral, 2017 ). Esta síndrome, composta pelas cores branca, cinza e preta, está associada à negação, atenuação, inibição ou anulação das angústias e seu rebaixamento pode sinalizar a ausência desses elementos que auxiliam na regulação emocional ( Villemor-Amaral, 2017 ; Vieira et al., 2022 ). Em parte, esta síndrome representa o controle emocional atingido por meio da socialização, como apresentado em outros estudos com uso do TPC ( Villemor-Amaral et al., 2012 ).
O prejuízo no controle emocional relacionado à diminuição da Síndrome Incolor manifesto pelo G1, pode estar associado a traços de inibição social e percepção de isolamento social mais presentes neste perfil de paciente, que afetam a sua socialização ( Habibovic et al., 2020 ; Dritto et al., 2015 ). Além disso, esta diminuição do controle emocional pode ser compensada por comportamentos considerados de risco para o desenvolvimento de doenças cardiovasculares, como tabagismo e obesidade, que também são impactados por fatores de socialização ( Liang et al., 2023 ; de-Matos et al., 2020 ; Melo et al., 2020 ).
Quando comparado os indicadores do TPC em função do sexo dos participantes, verificou-se que essa diminuição da Síndrome Incolor foi acentuada em homens do G1 em comparação a homens do G2. Sendo assim, sinaliza-se a possibilidade de homens com cardiopatia terem mais dificuldade em regular seus afetos, visto faltarem elementos estabilizadores do seu funcionamento psíquico. Tal indicador também pode estar associado ao contexto de emergência cardiológica em que os participantes com cardiopatia se encontravam quando foram avaliados, uma vez que o adoecimento de forma aguda pode suscitar um momento de crise na vida do indivíduo, favorecendo conflitos psíquicos e desestabilização emocional ( Almeida & Ribeiro, 2008 ; Franco, 2015 ). Ao ser acometido por um adoecimento físico e necessitar de cuidados, o paciente pode experimentar a angústia de desamparo, rememorando, do ponto de vista emocional, o período em que era completamente dependente dos cuidados maternos. Esta angústia nem sempre consegue ser identificada de forma consciente e expressa pelo indivíduo, acabando por permanecer em nível de sofrimento psíquico sem possibilidades de elaboração ( Borges Junior et al., 2020 ).
Outro indicador identificado foi o uso aumentado da cor violeta em mulheres com cardiopatia (G1) em relação a homens sem cardiopatia (G2). A cor violeta é constituída de cores antagônicas (azul e vermelho), sendo seu significado simbólico associado à tensão e ansiedade desencadeada por estas forças opostas ( Villemor-Amaral, 2017 ; Vieira et al., 2022 ). No presente estudo as mulheres de ambos os grupos apresentaram uso elevado da cor violenta em relação aos homens, independente do adoecimento cardíaco, evidenciando a presença de ansiedade associada ao gênero. Esta tendência já é apontada na literatura, descrevendo mulheres com maior prevalência de transtornos de ansiedade do que homens ( Costa et al., 2019 ).
Entre as mulheres com cardiopatia, esta ansiedade pareceu mais relevante, uma vez que estas apresentaram os maiores indicadores (mensurados pela uso da cor violeta) entre os subgrupos. Este achado corrobora com a literatura científica da área, que descreve ansiedade aumentada em mulheres com cardiopatia ( Allabadi et al., 2019 ; Jia et al., 2021 ; Pimentel & Antonechen, 2024 ). Segundo esses autores, as mulheres seriam mais suscetíveis aos traumas gerados pelos eventos cardíacos, principalmente àquelas com baixa escolaridade, como as participantes do presente estudo. Essa relação se daria pelo status social ocupado por essas mulheres, apesar de haver outros estudos que refutam tal hipótese ( Allabadi et al., 2019 ; Pimentel & Antonechen, 2024 ). De acordo com a Escola de Psicossomática de Paris (Claude Smadja, Michel de M’uzan, Pierre Marty, Rosine Debray), a manifestação de sintomas ansiosos não pode ser compreendida apenas como um evento negativo. A capacidade de um paciente sentir e expressar ansiedade e angústia pode sinalizar sua capacidade expressiva de representantes simbólicos, promovendo possibilidades de simbolização, por meio do trabalho psíquico. Quando os afetos são silenciados ou apagados, aumentam a sensação de ansiedade difusa, tornando-a ainda mais difícil ser manejada ( Horn, 2016 ).
Considerações finais
No presente estudo, foi possível verificar alguns indicadores psíquicos que se sobressaíram em pacientes com cardiopatia atendidos em contexto de emergência, por meio de suas escolhas cromáticas no TPC. Dentre eles, uma tendência a desregulação emocional, mais presente entre os homens cardiopatas e vivências mais intensas de tensão e ansiedade em mulheres com a patologia. Tais características apresentaram-se diferentes em função do sexo dos participantes, demonstrando a relevância de considerar essa variável nos cuidados psicológicos voltados a essa população.
Vale ressaltar que o TPC demonstra-se um instrumento eficiente e de rápida aplicação para identificação de indicadores psíquicos nessa população. Dessa forma, pode ser considerado uma ferramenta útil para avaliação psicológica neste contexto, favorecendo intervenções psíquicas mais direcionadas às necessidades psicológicas expressas pelos pacientes. Entretanto, para aplicação em contexto de hospitalização alguns cuidados são necessários, como a possibilidade de proteger o ambiente de avaliação o máximo possível. Para isso, é necessário conferir se há cortinas ou biombos de isolamento (em caso de unidades compartilhadas), bem como verificar previamente com a equipe a possibilidade de evitar interrupções durante o processo de aplicação.
É necessário levar em conta a relevância da sobrecarga psíquica na percepção e manifestação de sintomas, que podem influenciar na vivência das doenças cardíacas. Nesse sentido, o trabalho de elaboração psíquica pode auxiliar em todas as fases do tratamento clínico do paciente, desde a compreensão e aceitação da doença cardíaca até posterior adesão às intervenções terapêuticas propostas. Portanto, o uso do TPC em contexto de emergência cardiológica permite compreensão de vivência afetiva e funcionamento psicodinâmico dos pacientes com cardiopatia, sendo tais aspectos relevantes para um tratamento bem sucedido.
Além das contribuições para compreensão da vivência afetiva e funcionamento psicodinâmico de pacientes com cardiopatia hospitalizados em contexto de emergência, o presente trabalho também oferta subsídios para a área de avaliação psicológica. O presente artigo apresenta dados atualizados da aplicação do TPC pacientes com cardiopatia, não sendo encontrados na literatura estudos atualizados com este grupo. No entanto há limitações importantes a serem consideradas. O tamanho da amostra é considerado pequeno, tendo em vista a prevalência destas patologias e a coleta de dados foi realizada em apenas um hospital, impossibilitando a generalização dos resultados para outros contextos. Em pesquisas futuras, sugere-se ampliação da amostra clínica, bem como realização de pesquisas multicêntricas.