A Avaliação Psicológica, enquanto área de conhecimento da Psicologia e enquanto especialidade profissional da Psicologia, deve ser uma ferramenta fundamental no entendimento e apoio às pessoas com diferentes orientações sexuais e identidades de gênero. Para tanto, pesquisadores(as) e profissionais devem se guiar pelos princípios éticos que garantam a justiça social e os direitos humanos de todos os indivíduos tanto no processo de elaboração de instrumentos como na utilização de testes psicológicos e realização de avaliações psicológicas. No código de ética, fica claro que, em hipótese alguma, pesquisador(a) e profissional da Psicologia devem reforçar preconceitos ou discriminações. O primeiro princípio fundamental do código de ética afirma que: “O psicólogo baseará o seu trabalho no respeito e na promoção da liberdade, da dignidade, da igualdade e da integridade do ser humano, apoiado nos valores que embasam a Declaração Universal dos Direitos Humanos” (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2005, p.7). Mais ainda, no contexto da diversidade sexual e de gênero, levando em conta as resoluções do CFP 001/1999 (CFP, 1999), 001/2018 (CFP, 2018) e 008/2022 (CFP, 2022 b), fica explicito que qualquer discriminação relacionada a diversidade sexual e de gênero vai contra aos princípios éticos da profissão.
Assim com qualquer área da Psicologia, a avaliação psicológica também deve estar associada à promoção dos direitos humanos e da justiça social. Isso implica que profissionais da psicologia devem conhecer as dimensões sociais e políticas que afetam as pessoas com diferentes orientações sexuais e identidades de gênero, e devem trabalhar ativamente para combater o preconceito, a discriminação e a marginalização. Ao realizar avaliações psicológicas, os(as) profissionais devem garantir que os direitos fundamentais das pessoas sejam protegidos, incluindo o direito à privacidade e confidencialidade. Isso significa que as informações relacionadas à diversidade sexual e de gênero devem ser tratadas com sensibilidade e respeito, e nunca utilizadas para perpetuar estereótipos ou prejudicar o indivíduo de alguma forma.
O presente artigo tem por objetivo discutir a avaliação psicológica, enquanto área científica da Psicologia e especialidade profissional da Psicologia, em relação à temática da diversidade sexual e de gênero, articulando com os princípios dos direitos humanos e da justiça social. Para tanto, inicialmente discutiremos alguns conceitos fundamentais relacionados ao tema da diversidade, de modo a possibilitar um entendimento contemporâneo acerca dos termos utilizados nessa temática. Em seguida, apresentaremos o percurso histórico de patologização da orientação sexual e da identidade de gênero. Desse ponto, seguiremos para o debate acerca dos processos psicológicos associados à diversidade na contemporaneidade, incluindo nessa discussão os fatores sociais e culturais que circundam o tema. Por fim, faremos uma apresentação e delimitação da avaliação psicológica enquanto área científica da Psicologia e enquanto prática profissional da Psicologia, articulando essa delimitação à visão contemporânea da diversidade sexual e de gênero. Assim, são feitas discussões técnico-científicas e técnico-profissionais acerca da promoção de uma avaliação psicológica ética e promotora da justiça social com relação à diversidade de orientação sexual e de identidade de gênero.
Definições e Conceitos Fundamentais Relacionados à Diversidade Sexual
O panorama da diversidade sexual e de gênero na atualidade se configura como um domínio em constante transformação, onde as categorias de identificação são intrinsecamente ligadas a contextos culturais e não mais confinadas às definições unívocas de pesquisadores(as), resultando em sua natureza influenciada pela cultura e pela sociedade. Nesse sentido, a mudança da sigla LGBT+ (e suas variações) para SOGIESC representa uma busca por maior abrangência e precisão: enquanto LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgênero) foca em identidades específicas, que são fluidas e podem evoluir com o tempo e o reconhecimento social de novas experiências (como o surgimento de identidades não binárias ou assexuais, etc.), SOGIESC (tradução do inglês: Orientação Sexual, Identidade e Expressão de Gênero e Características Sexuais) expande o olhar para incluir tanto a identidade quanto outras características inerentes a cada indivíduo (Ziegler & Bagi, 2024). Detalhando a sigla SOGIESC, Orientação Sexual (SO - sexual orientation) atua como um termo guarda-chuva que engloba a atração emocional, romântica ou sexual (por quem se sente atração, incluindo termos como por exemplo, heterossexualidade, homossexualidade, bissexualidade, assexualidade). Por sua vez, Identidade e Expressão de Gênero (GIE - gender identity and expression) se referem ao senso interno e pessoal de ser homem, mulher, ambos, nenhum ou outro gênero (por exemplo, cisgênero, transgênero, não binário), caracterizando a dimensão identitária de gênero, e a forma como uma pessoa manifesta externamente seu gênero, através de vestimentas, comportamento, aparência e outros meios, caracterizando a dimensão expressiva do gênero. Por exemplo, uma pessoa pode ter uma identidade de gênero masculina, mas uma expressão de gênero considerada feminina. Por fim, Características Sexuais (SC - sex characteristics) englobam os atributos biológicos relacionados ao sexo, como cromossomos, hormônios, genitais e outras características físicas (por exemplo, uma pessoa intersexo pode nascer com variações nessas características que não se enquadram nas definições típicas de masculino ou feminino).
Neste artigo, adotamos o termo "diversidade sexual e de gênero", buscando refletir essa complexidade e a inclusão de todas as pessoas, considerando não apenas suas identidades em constante evolução, mas também as diversas dimensões que compõem a experiência humana em relação ao corpo, sexo, gênero e sexualidade. Nesse sentido, reforçamos a necessidade de profissionais da área em compreender essa variabilidade e permanecer em constante atualização sobretudo dado o histórico da área que, por décadas, privilegiou um olhar patologizador da diversidade sexual e de gênero.
Um Breve Histórico da (Des)Patologização da Diversidade Sexual e de Gênero
A diversidade sexual e de gênero foi considerada patológica e incluída em sistemas de classificação de transtornos mentais por longos anos. A definição do que é normal ou patológico é um processo complexo e precisa ser criticamente contextualizado, considerando que a tomada de decisão do que é patológico está no poder de um grupo restrito de pessoas. Entretanto, independente de quem tem esse poder, cabe ao(à) profissional da psicologia que trabalha em interface com a psicopatologia romper com discriminações, preconceitos e violências que possam ocorrer nesse contexto.
O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) e a Classificação Internacional de Doenças (CID), que são os principais sistemas de classificação de transtornos mentais no mundo, passaram por inúmeras revisões no que diz respeito à classificação e diagnóstico da diversidade sexual e de gênero ao longo da história. Essas mudanças refletem a evolução da compreensão científica, das atitudes culturais e das considerações de justiça social. A homossexualidade, inicialmente classificada como um transtorno mental, foi listada pela primeira vez na primeira edição do DSM (American Psychiatric Association [APA], 1952) como um distúrbio de personalidade sociopática. Permaneceu assim até que uma mudança significativa ocorreu em 1973 com a sétima impressão do DSM-II, onde a homossexualidade foi removida após uma resolução da APA (Drescher, 2015). Contudo, esse diagnóstico foi mantido na CID-9 (World Health Organization [WHO], 1977) e posteriormente removido na CID-10 (WHO, 1992; Robles et al., 2021). Cabe destacar que a manutenção na CID-9 dessa categoria diagnóstica foi justificada pelo caráter global do sistema, que inclui diferentes sociedades e culturas ao redor do mundo, sem um consenso acerca de seu status (Robles et al., 2021).
A remoção da homossexualidade como categoria diagnóstica do DSM e da CID não foi plenamente contemplada, tendo em vista que foi incluída a categoria de Homossexualidade Ego-Distônica no DSM-III (APA, 1980) e na CID-10 (WHO, 1992). Essa categoria constituiu um compromisso político entre aqueles que acreditavam que a homossexualidade era uma condição patológica e aqueles que defendiam que era uma variante normal da sexualidade (Drescher, 2015). Esse diagnóstico foi removido no DSM-III-R (APA, 1987), tendo em vista o entendimento de ser comum que pessoas com orientação homossexual experimentem desejos de serem heterossexuais como um processo natural do desenvolvimento da própria identidade. Na CID-11, esse diagnóstico foi removido, assim como outros que pudessem sinalizar a patologização da diversidade de orientação sexual (Cochran et al., 2014, 2020; Reed et al., 2016).
Vale destacar que a remoção da categoria de Homossexualidade Ego-Distônica também não foi plenamente realizada nos manuais de classificação de transtornos mentais. Em seu lugar, na categoria residual de Transtorno Sexual Sem Outra Especificação do DSM-III-R (APA, 1987), foi incluído um texto, para exemplificar a aplicação dessa categoria, que indicava a experiência de angústia intensa e persistente em relação à orientação sexual (Mayes & Horwitz, 2005). Esse texto permaneceu no DSM-IV (APA, 1994) e no DSMIV-TR (APA, 2000), mas foi excluído do DSM-5 (APA, 2013; Robles et al., 2021).
As mudanças no DSM e na CID foram impulsionadas por evidências e defesas crescentes que argumentavam que a homossexualidade não era uma doença mental, mas uma variação natural da sexualidade humana (Drescher, 2010). A luta pela despatologização da homossexualidade foi um processo longo e difícil, tendo sido liderada por ativistas pelos direitos de pessoas em diversidade sexual e de gênero e pela crescente compreensão científica da diversidade sexual e de gênero. As tentativas de tratar e “curar” a homossexualidade se mostraram prejudiciais, se configurando como práticas agressivas contra a dignidade humana (Cochran et al., 2020).
No Brasil, a “cura gay” é ainda um tema em discussão, incluindo profissionais da psicologia com forte influência fundamentalista religiosa (Silva et al., 2021). Em 2019, a ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal (STF), concedeu uma liminar proibindo a terapia de reversão sexual (“cura gay”), voltando a fazer valer o entendimento do CFP que proíbe, desde 1999, profissionais da psicologia a oferecerem serviços de tratamento da homossexualidade CFP, 1999). Essa decisão do STF ocorre devido a conclusão do juiz federal Waldemar Claudio de Carvalho, da 14ª Vara Federal no Distrito Federal, autorizando profissionais da psicologia a tratarem pessoas em diversidade sexual com terapias de reversão sexual. Esses eventos sinalizam a persistente ideia equivocada de que a diversidade sexual é um desvio da normalidade e pode ser tratada. Na prática da avaliação psicológica, principalmente naquelas com fins diagnósticos, é importante cuidar para que não haja a patologização da diversidade sexual e de gênero. Nesse sentido, pela resolução 001/1999 (CFP, 1999) fica claro que a diversidade sexual é um aspecto normal da diversidade humana e tratá-la como algo a ser curado ou removido se configura em uma violação ética profissional.
Cabe destacar que a “cura” da diversidade sexual pode estar acontecendo por meio de outra categoria diagnóstica, a saber, a de Transtorno de Desejo Sexual Hipoativo. Críticos dessa categoria diagnóstica a entendem como assexualidade ego-distônica em alguns casos, apontando que ela patologiza a falta de desejo sexual (Margolin, 2023). Um indivíduo pode sentir angústia por não cumprir a norma de sentir atração sexual e isso poderia preencher a condição de angústia necessária para ser diagnosticado com essa categoria (Brotto et al., 2015). Nota-se, assim, a necessidade de cautela na avaliação psicológica de pessoas que apresentam temas relacionados a comportamentos e experiências sexuais.
A patologização da diversidade de identidade de gênero teve uma trajetória mais complexa. No DSMIII (APA, 1980) foi incluída, no capítulo de Transtornos Psicossexuais, uma classe de transtornos intitulada Transtornos de Identidade de Gênero (TIG), contemplando as categorias diagnósticas de Transsexualismo e de Transtorno de Identidade de Gênero na Infância (TIGI). Essas inclusões foram controversas e geraram debates sobre se o TIG seria um substituto secreto para o diagnóstico de homossexualidade recentemente removido (Zucker & Spitzer, 2005). O TIG foi usado apenas para o diagnóstico infantil, sendo que adolescentes e adultos recebiam o diagnóstico de transexualismo do tipo homossexual, heterossexual ou assexuado. Na revisão da terceira edição do DSM (DSM-III-R; APA, 1987), foi adicionada a categoria de Transtorno de Identidade de Gênero da Adolescência e da Idade Adulta, Tipo Não-Transsexual. Esse diagnóstico foi mantido no DSM-IV (APA, 1994), mas no DSM-5 (APA, 2013) foi feita uma mudança fundamental: o TIG foi renomeado como Disforia de Gênero para reduzir o estigma e refletir melhor o sofrimento experimentado por alguns indivíduos transexuais devido à incongruência entre seu gênero experimentado e gênero atribuído no nascimento (Drescher, 2014). A CID-11 (WHO, 2022) avançou ainda mais ao retirar o TIG do capítulo da saúde mental, reclassificando-o em condições relacionadas com a saúde sexual com a nova nomenclatura de “Incongruência de Gênero” (Robles et al., 2016).
No campo da identidade de gênero, outra categoria patologizadora é o transtorno transvéstico, o qual foi originalmente denominado transvestismo. Esse diagnóstico faz parte do DSM desde sua terceira edição (DSM-III; APA, 1980), sendo definido como um transtorno parafílico caracterizado pela excitação sexual pelo transvestismo. Com relação às outras categorias diagnósticas, essa foi a que apresentou menos alterações ao longo dos anos. Essa categoria é mantida na versão mais atual do DSM (DSM-5-TR; APA, 2022), no grupo de transtornos parafílicos, e, com isso, fomenta o debate contínuo sobre as fronteiras entre patologia e expressão pessoal (Blanchard, 2010). Na CID-11 (WHO, 2022) esse transtorno não é mais citado.
Os movimentos ativistas dos direitos de pessoas em diversidade sexual e de gênero têm argumentado fortemente contra a classificação da identidade de gênero como um transtorno mental. Essa classificação contribui para a estigmatização e discriminação das pessoas trans e de gênero diverso, perpetuando o preconceito e a marginalização. Por exemplo, em muitas situações pessoas trans foram desempregadas ou aposentadas compulsoriamente por estarem “incapacitadas” por terem um “transtorno mental”, ou seja, o diagnóstico usado com fins discriminatórios (França, 2024). Além disso, houve o reconhecimento no campo empírico de que o sofrimento mental experienciado é relativo mais ao preconceito do que a algum atributo intrínseco à identidade de gênero, portanto, não fazendo sentido a conceitualização em torno de uma psicopatologia (Lobato et al., 2019). Assim, a diversidade de gênero deve ser reconhecida como uma parte fundamental da diversidade humana e que o acesso a cuidados de saúde adequados, apoio social e direitos legais são essenciais para garantir o bem-estar e a igualdade para pessoas trans e de gênero diverso. A remoção da disforia de gênero do capítulo de transtornos mentais na CID-11 é vista como um passo importante nessa direção (Drescher et al., 2016).
A evolução histórica de diagnósticos relacionados à diversidade sexual e de gênero destaca uma tendência mais ampla para a despatologização e uma compreensão mais matizada da sexualidade e do gênero. Profissionais da psicologia devem se abster de realizar psicodiagnósticos que tratem a diversidade sexual e de gênero como psicopatologias. Tal prática é anacrônica, considerando a evolução histórica da compreensão desses temas, que superou a visão patologizante. Abordagens que visem "curar" ou "tratar" a diversidade sexual e de gênero como desvios constituem violações éticas, conforme explicitado nas resoluções 001/1999 (CFP, 1999, 001/2018 (CFP, 2018) e 008/2022 (CFP, 2022 a), que reafirmam a diversidade sexual e de gênero como um aspecto normal da experiência humana. Apesar dessas diretrizes do CFP, um estudo revelou que 29,48% dos(as) profissionais de psicologia no Brasil concordavam em algum nível em ajudar uma pessoa a mudar sua orientação sexual caso fosse solicitado, enquanto 12,43% concordavam em fazê-lo mesmo sem a solicitação do indivíduo (Vezzosi et al., 2019).
É crucial reconhecer que ainda existe a necessidade de diagnóstico de diversas condições que afetam pessoas em diversidade sexual e de gênero. Contudo, é fundamental ressaltar que, no contexto da avaliação psicológica, esse diagnóstico deve evitar a associação de transtornos a aspectos intrínsecos à diversidade sexual e de gênero, evitando repetir o histórico processo de patologização. A avaliação psicológica deve ser realizada com sensibilidade e respeito, levando em consideração as particularidades de cada indivíduo e seu contexto social e cultural. O objetivo principal deve ser o bem-estar e a promoção da saúde mental, e não a estigmatização ou a discriminação. O desafio continua a ser a aplicação de quadros diagnósticos que respeitem as identidades e experiências individuais sem as patologizar (Drescher et al., 2012). A reflexão crítica e a investigação contínua são essenciais para garantir que as práticas de diagnóstico evoluam em consonância com as necessidades das pessoas.
Dimensões Psicossociais da Diversidade Sexual e de Gênero
Uma série de dimensões interagem com a saúde mental e bem-estar de indivíduos pertencentes aos grupos de pessoas com diversidade sexual e de gênero. Pesquisas mostram que essas pessoas tendem a apresentar taxas mais elevadas de problemas de saúde mental em comparação com os seus homólogos cisgênero ou heterossexuais, sendo que essa alta prevalência pode ser atribuída ao estresse associado ao estigma e à discriminação social que elas sofrem (Bränström et al., 2024; Matsick et al., 2024).
O conceito de estresse de minorias é bastante pertinente nesse cenário. Trata-se de uma forma específica de tensão psicológica e emocional enfrentada por indivíduos que fazem parte da comunidade de pessoas em diversidade sexual e de gênero devido à discriminação, preconceito e exclusão social relacionados à sua orientação sexual, identidade de gênero ou expressão de gênero (Meyer, 2003). Assim, o simples fato de esses indivíduos se inscreverem no contexto da diversidade sexual ou de gênero é suficiente para fazê-los enfrentar desafios como a falta de aceitação por parte da sociedade, violência baseada na orientação sexual ou identidade de gênero, falta de proteção legal adequada, isolamento social e rejeição familiar que as pessoas heterossexuais e cisgênero não vivenciam em função de sua orientação sexual e identidade de gênero. Cabe destacar a existência de um Protocolo para Avaliar o Estresse de Minoria em Lésbicas, Gays e Bissexuais (PEM-LGB-BR) com boas evidências de validade e fidedignidade para o Brasil (Costa et al., 2020).
Uma das facetas do estresse de minoria é o processo de revelação da identidade sexual e de gênero. Esse é um evento multifacetado que interage com vários fatores, incluindo preconceito, ideologias, experiências pessoais e interações com profissionais de saúde. As ideologias sobre a orientação sexual e a identidade de gênero podem encorajar ou desencorajar os indivíduos de revelarem a sua identidade sexual e/ou de gênero (Ream, 2021). Conforme este autor, indivíduos que compartilham ambientes em que a perspectiva baseada na evidência empírica, de que a diversidade sexual e de gênero é uma condição inerente ao ser humano e não uma psicopatologia, são mais inclinados a fazer a revelação. No entanto, em ambientes cujas ideologias são conservadoras, com alto grau de preconceito, que consideram as variações na sexualidade e no gênero como distúrbios, a hostilidade pode permear as relações e inibir a revelação (Ream, 2021). Por exemplo, existe evidência de que as pessoas podem não revelar sua identidade se não sentirem um ambiente seguro em contexto da saúde. A aceitação, por parte de profissionais da saúde, da orientação sexual e da identidade de gênero de pacientes é crucial para promover a saúde mental e sexual e facilitar a revelação, o que é essencial para cuidados adequados (Taylor & King, 2021). Miller et al. (2019) examinaram a revelação a profissionais da saúde por parte de indivíduos surdos e verificaram que a presença de intérprete (que traduz a língua de sinais para a linguagem oral) não influenciou a revelação, mas a percepção de que profissionais tem propensão a acolherem a diversidade sexual influenciou significativamente a probabilidade de indivíduos revelarem as suas identidades. Ademais, há evidências de que a revelação está associada a melhoria da qualidade de vida (Prabandari & Huwae, 2024).
Nesse cenário, quando se considera a interseccionalidade de cor da pele o quadro tende a se agravar. Por exemplo, as pessoas de cor preta enfrentam desafios únicos devido à dupla discriminação (cor da pele e diversidade sexual e de gênero), o que pode exacerbar os sintomas de saúde mental (Zelaya et al., 2021). Desse modo, é fundamental que o(a) profissional da psicologia tenha conhecimento dos fenômenos sociopolítico-culturais que tendem a acompanhar uma pessoa quando busca um serviço de avaliação psicológica (Ribeiro, 2017). O sentimento de pertença é um fator psicológico crucial que pode promover o bem-estar psicológico e mitigar as disparidades de saúde mental dessa população em comparação às pessoas cisgêneras e heterossexuais (Matsick et al., 2024; McLaren et al., 2008). Sentir-se pertencente e parte integrante de uma sociedade que acolhe e respeita a diversidade sexual e de gênero é um elemento que promove o bem-estar e a saúde mental, incluindo quando se coloca na equação a interseccionalidade racial (Watts & Thrasher, 2024).
As atitudes em relação à diversidade sexual e de gênero podem apoiar ou dificultar a saúde mental de grupos de indivíduos socialmente minorizados (Costa et al, 2018; Ream, 2021). Assim, é essencial que a formação em Psicologia inclua a discussão de gênero e sexualidade nas grades curriculares para que futuros profissionais construam uma prática fundamentada nos conhecimentos científicos, os quais tendem a promover uma postura não opressora e uma atuação afirmativa à diversidade (Bränström et al., 2024; Matsick et al., 2024; Zelaya et al., 2021).
É fundamental que profissionais da psicologia, incluindo quem trabalha com avaliação psicológica, demonstrem uma atitude empática e acolhedora, favorecendo um ambiente seguro para que o indivíduo revele a sua diversidade sexual e de gênero. Com isso, o(a) profissional da psicologia poderá ampliar a compreensão dessa pessoa em suas especificidades e realidades, bem como fazer uma leitura mais acurada dos resultados do estudo psicológico obtidos na avaliação.
Avaliação Psicológica como Ferramenta de Promoção de Direitos Humanos
A Psicologia, enquanto ciência e profissão, é uma área do conhecimento e um campo prático bastante plural. Dentre as várias ramificações da Psicologia está a Avaliação Psicológica, que se destaca também por sua multiplicidade de saberes e praxis. Não existe uma forma única de se fazer uma avaliação psicológica dada a diversidade de técnicas que delimitam essa área de conhecimento. Mas, o elo que conecta toda essa pluralidade de saberes e fazeres é a finalidade última de promoção da integridade e da dignidade humanas, ou seja, dos direitos fundamentais. Assim, a Avaliação Psicológica deve cuidar para sempre promover a pessoa humana em todas as suas dimensões e nunca reproduzir preconceitos, violências culturalmente veladas ou outras formas de discriminação. Nesse contexto, é importante ressaltar que existem diversos esforços da comunidade de pesquisa e do próprio Sistema Conselhos de Psicologia para estabelecer diretrizes que orientam a área nesta direção (CFP, 2022 a).
A Avaliação Psicológica, enquanto área de conhecimento da Psicologia, contribui significativamente para o avanço dos conhecimentos psicológicos e das formulações teóricas (Primi, 2010). A mensuração de processos psicológicos e as relações entre esses processos e desses com outros desfechos importantes na vida favorecem a construção, refutação e melhoramento de teorias. Bueno e Peixoto (2018), por exemplo, ao relembrar a história da Avaliação Psicológica, destacam o quanto a mensuração de habilidades cognitivas foi capaz de projetar grandes avanços teóricos e práticos no campo da Psicologia da Inteligência. Primi (2003), por sua vez, discutiu o papel da psicometria nos avanços teóricos e metodológicos desse construto, indicando que o principal modelo contemporâneo de inteligência, denominado de modelo CHC (letras iniciais dos nomes de três teóricos da área da inteligência, a saber, Cattell, Horn e Carroll), é fundamentado nos achados empíricos proporcionados pela psicometria.
Com o advento de instrumentos de autorrelato, como um recurso para aferição de construtos psicológicos, a Psicologia começa a avançar em diferentes áreas. Nesse cenário, a área da Avaliação Psicológica impulsionou o campo da Psicologia da Personalidade, destacando as teorias de traços (Kline, 1993). O avanço da psicometria implica no desenvolvimento da área, passando do modelo teórico de Allport, para o empírico de Cattell de 16 traços da personalidade, para o de Eysenck de três traços da personalidade e para o de Costa e McCrae de cinco traços da personalidade (Feist et al., 2014). Esses avanços precisam vir acompanhados também de cuidados em relação à diversidade sexual e de gênero. Costa et al. (2017), por exemplo, faz uma crítica ao modelo de gênero binário à Escala de Personalidade de Comrey, que continha a subescala de Masculinidade e Feminilidade. Assim, não só os conhecimentos técnicos de mensuração, a partir dos conceitos psicométricos de validade, fidedignidade, padronização e normatização, precisam ser considerados no avanço da área da avaliação psicológica, mas também as teorias que fundamentam as medidas psicológicas, de modo a evitar modelos que promovem ou reproduzem preconceitos.
No contexto da diversidade sexual e de gênero, os cuidados técnicos no processo de construção ou adaptação cultural de instrumentos psicológicos precisam ser fundamentados também em uma perspectiva ética. Há algumas situações no Brasil, discutidas na literatura onde isso não foi respeitado. Por exemplo, Costa e Nardi (2013) identificaram vieses discriminatórios na escala de heterossexualidade do Inventário Fatorial de Personalidade (IFP). Essa escala apresentava problemas como viés de omissão (ao ignorar a possibilidade de atração sexual por pessoas do mesmo sexo - apenas heterossexualidade), viés de conotação (ao interpretar a baixa resposta sexual heterossexual como "repressão") e viés de contiguidade (ao associar a heterossexualidade com outras escalas do teste com fins de diagnóstico psicopatológico). Os autores destacam a importância da revisão de instrumentos psicológicos para evitar a perpetuação de discriminações e a necessidade de atualização constante das ferramentas de avaliação. Como exemplo dessa necessidade de revisão, os autores citam que a subescala de heterossexualidade do IFP foi removida em revisões posteriores do teste, demonstrando a evolução da área em direção a práticas mais inclusivas.
Costa et al. (2017) também ressaltam a importância de critérios éticos na avaliação psicológica, respeitando os direitos humanos, especialmente no que se refere à avaliação de gênero. Tradicionalmente, instrumentos de avaliação de gênero, como a Escala de Personalidade de Comrey (CPS), refletiram concepções binárias e estereotipadas de masculinidade e feminilidade. Instrumentos como esse, muitas vezes, não consideram a diversidade de identidades de gênero e podem reforçar desigualdades e discriminações. Os autores enfatizam a necessidade de uma revisão crítica das práticas psicológicas e dos instrumentos de avaliação, à luz dos conhecimentos contemporâneos sobre gênero e da psicologia feminista, para garantir uma abordagem mais ética e inclusiva.
Recentemente, em um processo de adaptação para o Brasil de um inventário desenvolvido nos Estados Unidos para avaliar comportamentos típicos da timidez, a saber, a Revised Cheek and Buss Shyness Scale ([RCBS]; Cheek, 1983), um item foi substancialmente adaptado. Dentre os itens, existe um que descreve um sentimento de desconforto da pessoa tímida em se aproximar de uma pessoa do “sexo oposto”. A versão em português brasileiro desse item foi adaptada para um sentimento de desconforto em se aproximar de uma pessoa por quem se sente atração. Seguindo as etapas de adaptação descritas em Oliveira e Bandeira (2011), ao enviar os itens adaptados para o Brasil, os quais foram traduzidos de volta para o inglês, para avaliação dos autores originais, foi feita uma menção à adaptação desse item. Na ocasião, o autor original foi informado que o item foi interpretado no Brasil como tendo uma base de comportamento romântico/sexual e que, para ampliar a aplicabilidade do item para diferentes grupos, ele foi mudado trocando a expressão “sexo oposto” por “por quem sente atração”. Em resposta, o autor aprovou a adaptação do item e disse que inclusive a versão original precisaria ser atualizada, tendo em vista que o instrumento foi originalmente escrito na década de 1970, no contexto do Texas. Nota-se que sem um processo reflexivo ético, o instrumento adaptado poderia seguir reproduzindo uma violência, quando uma pessoa não heterossexual respondesse o inventário. Ademais, destaca-se o despertar do autor original da escala para essa questão e o reconhecimento dele acerca da necessidade de modificação desse item. Esse caso ilustra tanto o impacto da cultura e do momento sociopolítico-histórico sobre os instrumentos de medidas psicológicos, quanto a necessidade de constantes revisões e aprimoramentos de mensurações que possam ter inconformidades éticas.
Comumente, instrumentos psicológicos apresentam normas de interpretação de resultados por sexo ou gênero binário (masculino e feminino). Embora essa prática vise a uma avaliação mais equitativa do construto psicológico para homens e mulheres, considerando as influências sociopolíticas, históricas e biológicas que modulam a variável em análise, ela negligencia a diversidade de identidades de gênero. Um exemplo dessa limitação reside na indefinição sobre qual tabela normativa utilizar na avaliação de uma mulher trans: a feminina (gênero com o qual se identifica) ou a masculina (gênero designado ao nascimento). Essa questão suscita debates éticos e técnicos acerca da precisão de comparar os resultados de uma mulher trans com os de um grupo de mulheres cisgênero, pois, embora ambas sejam mulheres, as vivências são significativamente distintas se cis ou trans. Essa dicotomia normativa parece ecoar uma tradição estatística do início do século XX, quando análises bivariadas simplificadas eram mais comuns. Contudo, a aplicação binária na atualidade carece de fundamentação histórica robusta que justifique sua manutenção como regra geral. A escassez de discussões aprofundadas sobre grupos transgênero nos estudos normativos é notável e demanda atenção. Para responder adequadamente a essas complexas questões, são imprescindíveis mais estudos empíricos com metodologias rigorosas, que possam fornecer diretrizes mais seguras sobre quando e como considerar a identidade de gênero na interpretação de resultados (por exemplo, Gobert, 2023). Nesse sentido, torna-se fundamental o desenvolvimento de uma cultura de coleta de dados mais inclusiva, que busque representar as experiências de grupos socialmente minorizados na construção das normas dos testes psicológicos. A definição de normas específicas para pessoas trans ou outras identidades de gênero não binárias, por exemplo, carece de maior investigação e debate dentro da comunidade científica e da sociedade em geral (Trittschuh et al., 2018).
A Avaliação Psicológica, enquanto prática profissional, está histórica e sociopoliticamente vinculada ao processo de transexualização, sendo que era mandatória uma avaliação psicológica para a cirurgia de redesignação sexual. Coacci (2020) reproduz um relato de pessoas trans após a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) do Brasil sobre a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4275) que tratou do direito de pessoas transgênero de alterarem o nome e o gênero no registro civil sem a necessidade de cirurgia de redesignação sexual. Na ocasião, pessoas da comunidade trans protestavam contra a necessidade de laudos psicológicos, demonstrando o descontentamento da comunidade ao papel de profissionais da psicologia. Gallas et al. (2019) relembram o Relatório do Ano Temático de Avaliação Psicológica, entre os anos de 2011 e 2012, do CFP, em que se recomendava a elaboração de uma resolução sobre a atuação de profissionais da psicologia na avaliação psicológica de pessoas em processo transexualizador no Sistema Único de Saúde (SUS). Os autores comentam o lançamento da Resolução 001/2018 (CFP, 2018) e discutem a não aceitação dessa resolução por parte de profissionais da psicologia com uma perspectiva conservadora, que acreditam e defendem a “cura gay”. A partir do exposto, entende-se que o descontentamento da comunidade trans em relação à avaliação psicológica compulsória ao processo transexualizador e a resistência de profissionais conservadores à questão trans demarcam importantes desafios atrelados à avaliação psicológica enquanto prática profissional. Diante disso, defendemos que profissionais da psicologia fundamentem sua prática em avaliação psicológica nos preceitos éticos (CFP, 2005) e nas diretrizes da Psicologia (CFP, 1999, 2018, 2022 a).
A Associação Americana de Psicologia possui documentos que orientam práticas psicológicas com pessoas com diversidade sexual (American Psychological Association, 2021) e com pessoas com diversidade de gênero (American Psychological Association, 2015), inclusive com versão em português do Brasil (American Psychological Association, et al., 2020). Com relação às pessoas com diversidade de orientação sexual, não existem orientações específicas sobre a prática da avaliação psicológica, contudo, ao longo do documento, essa prática profissional é mencionada algumas vezes. Por exemplo, profissionais de psicologia devem evitar presumir em avaliações clínicas que pacientes com infecções sexualmente transmissíveis (IST) são necessariamente homens gays e que pacientes bissexuais têm uma patologia (American Psychological Association, 2021). Por sua vez, no tocante às pessoas trans, existem cinco orientações que englobam conjuntamente a avaliação, a terapia e a intervenção (American Psychological Association, 2015). O documento orienta que profissionais da psicologia: 1. não devem presumir que pessoas trans têm um transtorno mental por causa da identidade de gênero, mas deve considerar os estresses relacionados a isso; 2. devem reconhecer que as pessoas trans têm maior probabilidade de experimentar resultados positivos na vida quando recebem apoio social ou cuidados transafirmativos; 3. devem compreender os efeitos que as mudanças na identidade e expressão de gênero têm nas relações românticas e sexuais das pessoas trans; 4. devem compreender como a parentalidade e a formação familiar entre as pessoas trans assumem diversas formas; e 5. devem reconhecer os benefícios potenciais de uma abordagem interdisciplinar ao prestar cuidados a pessoas trans e devem se esforçar para trabalhar em colaboração com outros prestadores.
Francis e Buscemi (2023) discutem a importância de compreender o impacto do estigma, da discriminação e do estresse de minorias, defendendo práticas inclusivas e respeitosas em ambientes de saúde. Assim, é importante que em avaliações psicológicas de pessoas no contexto da diversidade sexual e de gênero, seja feito um importante estudo das dimensões psicossociais que estão relacionadas a essa comunidade, incluindo experiências negativas vividas em serviços de saúde. Ademais, Francis e Buscemi (2023) sugerem que interações positivas com os prestadores de serviço podem capacitar os indivíduos para navegarem eficazmente no sistema de saúde. Assim, profissionais da psicologia podem se destacar nesse contexto, promovendo ambientes seguros, acolhedores e positivos, incluindo no contexto da avaliação psicológica, atuando como facilitadores para que pessoas, independente (e apesar) da sua diversidade, transitem entre as diferentes especialidades de saúde pertinentes a suas necessidades.
Considerações Finais
No presente texto, foi destacada a condição da diversidade de orientação sexual e de gênero, como um marcador que demanda atenções diferenciadas e especializadas por parte de profissionais da psicologia. Na esfera científica, teorias psicológicas e desenvolvedores de testes psicológicos precisam se atentar para a diversidade sexual e de gênero, de modo a promover a área de forma inclusiva. Assim, espera-se que o presente texto fomente discussões e subsidie boas práticas científicas e profissionais na avaliação psicológica de pessoas com diversidade de orientação sexual e de identidade de gênero.
A Psicologia precisa ser a chave que possibilite a abertura do armário e não o trancamento dele, confinando pessoas em um espaço de esconderijo e repressão.














