Avaliação Psicológica: breve histórico rumo à justiça social
Ao realizar um recorte histórico que permite a demarcação da análise trazida no presente estudo, é necessário elucidar a mudança de entendimento sobre o que é uma Avaliação Psicológica (AP). Atualmente AP é concebida, e deve ser praticada, como um processo que envolve diferentes e várias formas de coleta das informações e uma leitura desses dados considerando aspectos sociais, históricos, psicológicos, biológicos e relacionais. Essa compreensão atual é bem diferente do que já se teve de conhecimento e prática fundamentados, por exemplo, em apenas o resultado de um teste. Por essa razão, Faiad et al. (2019) distinguem que a AP precisou ser compreendida dentro de sua complexidade e que não poderia ser concebida a partir de uma noção de testagem psicológica. Enquanto a AP se definiu como processo, a testagem se definiu como a aplicação pontual de testes psicológicos para objetivos estritamente definidos, sendo um material de possível utilização da AP.
Por anos a AP foi reduzida a uma prática de aplicação de testes, desconsiderando que ela é um processo composto por diferentes etapas e a aplicação dos testes pode ou não ser uma dessas etapas. Apesar de, hoje em dia, ocorrer maior discernimento da diferenciação de teste e avaliação, é importante destacar que se chegou nessa compreensão da necessidade de um processo de avaliação a partir do desenvolvimento e uso dos testes psicológicos. A avaliação se iniciou por meio de tarefas, testes para que se pudessem ser tomadas decisões com as informações do avaliando (Urbina, 2007). Assim, a constituição da AP como campo foi influenciada por estudos desenvolvidos por renomados pesquisadores estrangeiros (Galton, Cattell, Binet e Spearman, dentre outros), que baseavam seus dados em modelos psicométricos (como também acontece nos dias de hoje) e muitas vezes em uma concepção eugenista do propósito da aplicabilidade (Faiad et al., 2019).
Diferente do que estava ocorrendo em países norte-americanos ou europeus desde o século XIX, com desenvolvimento da avaliação por meio dos testes, no Brasil não havia a preocupação em demonstrar, cientificamente, a qualidade dos testes e se refletir sobre o conceito da avaliação. Uma das explicações é que somente em 1967 a psicologia foi reconhecida como profissão no Brasil e os primeiros cursos se iniciaram. Durante décadas, o Brasil apenas importou os instrumentos desenvolvidos no exterior e os profissionais os utilizaram sem evidências de validade ou outras propriedades psicométricas estabelecidas com normas nacionais (Faiad et al., 2019).
Somente na década de 1990 houve mudanças significativas no Brasil, que testemunhou a criação da Sociedade Brasileira de Rorschach e Métodos Projetivos (ASBro) (1993), do Instituto Brasileiro de Avaliação Psicológica (1997) e do Grupo de Trabalho Pesquisa em Avaliação Psicológica (1998) vinculado à Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia (ANPEPP) (Oliveira & Faiad, 2021). Importante ressaltar que essas associações e grupo foram propostos por pesquisadores em AP, dos quais muitos foram frutos do grupo de trabalho da ANPEPP de 1989, voltado para a temática ‘Perspectivas de avaliação e diagnóstico em Psicologia’. Além disso, muitos pesquisadores eram em alguma medida vinculados aos primeiros laboratórios de AP: Centro de Pesquisas em Psicodiagnóstico (CPP) no campus de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, sob a responsabilidade do Prof. Dr. André Jacquemin em 1975; Laboratório de Pesquisa em Avaliação e Medida (LABPAM), na Universidade de Brasília, tendo o Prof. Dr. Luiz Pasquali como fundador e o Laboratório de Mensuração (LM), na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, implementado pelo Prof. Dr. Claudio Hutz, ambos em 1988; e Laboratório de Avaliação e Medidas Psicológicas (LAMP) da Pontifícia Universidade Católica, na cidade de Campinas, aos cuidados da Prof.ª Dr.ª Solange Wechsler desde 1994 (Bueno & Peixoto, 2018; Noronha et al., 2022).
Na década seguinte, marcos históricos como os encaminhamentos produzidos pelos pesquisadores da área de AP no I Fórum Nacional de Avaliação Psicológica (2000), culminaram em deliberações produzidas no IV Congresso Nacional de Psicologia (2001), resultando na publicação da Resolução CFP nº 25/2001 (CFP, 2001), um marco importante para a investida na regulação dos testes psicológicos, na época. Posteriormente houve a publicação da Resolução CFP nº 02/2003 (CFP, 2003) que revogou a Resolução nº 25/2001 e estabeleceu diretrizes para o uso e comercialização dos testes psicológicos e avançou regulamentando a implantação do Sistema de Avaliação dos Testes Psicológicos - SATEPSI, mais uma conquista decisiva para a AP brasileira.
As Resoluções CFP nº 25/2001 e 02/2003 foram marcos importantes para a atuação do psicólogo no processo da avaliação psicológica, pois regulamentaram o uso, a comercialização, a fiscalização, a orientação, a construção dos testes psicológicos, ferramenta muito utilizada nas avaliações psicológicas. No entanto, é preciso retomar a história da AP que é imbricada com a dos testes psicológicos, uma vez que o início da avaliação antes mesmo do século XIX, ocorreu por meio de tarefas e testes para se avaliar diversas questões (Urbina, 2007). Na década de 1930 os primeiros instrumentos foram publicados no Brasil em especial para uso na área educacional, seleção de pessoas e orientação profissional. A partir de então, diversos outros testes foram surgindo, praticamente todos estrangeiros e sem estudos sobre as qualidades psicométricas para a população brasileira (Noronha et al., 2022).
Com a regulamentação da profissão de psicólogo e com os primeiros cursos de psicologia surgindo e formando profissionais psicólogos brasileiros, na década de 1970, houve uma enxurrada de críticas relacionadas aos testes psicológicos. Consequentemente, tais críticas eram generalizadas para a Avaliação Psicológica, afinal, o entendimento era que teste psicológico e avaliação psicológica eram sinônimos. Assim, uma das primeiras atividades do CFP em prol da AP foi reunir pesquisadores da área para debater sobre a temática e pensar em melhorias (Noronha et al., 2022).
Diante disso, podemos compreender que as Resoluções CFP nºs 25/2001 e 02/2003, foram de extrema importância para a qualificação dos testes psicológicos. Com essas Resoluções, a área da AP restabeleceu seu devido prestígio e papel na sociedade brasileira, pois os profissionais passaram a fazer uso de testes psicológicos com qualidades psicométricas adequadas para a população brasileira e a sociedade voltou a confiar nos testes psicológicos. Porém, após mais de três décadas dedicadas em especial à qualificação dos testes psicológicos e do seu uso ético, técnico e científico, as reflexões sobre a necessidade de melhor definir a diferença de teste e avaliação, bem como elucidar a especificidade de cada um para a sociedade se tornou imperativo.
A partir dessas novas discussões, e após quase duas décadas perdurando a Resolução CFP nº 02/2003, derivada da Resolução CFP nº 25/2001, que eram focadas no teste psicológico, surgiu a Resolução CFP nº 09/2018, considerada a primeira resolução sobre a Avaliação Psicológica, na qual há artigos específicos sobre o processo de AP e sua realização. Além desse cuidado com o processo de AP, foi com a publicação da Resolução CFP nº 09/2018 que dispositivos que assumiam o compromisso da AP com os direitos humanos foram publicizados na resolução por meio dos artigos 31, 32 e 33.
Com o avanço das Tecnologias para o Desenvolvimento das Informações - TDICS e com o advento da Pandemia do COVID-19, houve a necessidade de atualizar as diretrizes da Resolução CFP nº 09/2018. Essa resolução foi substituída pela publicação da Resolução CFP nº 031/2022 e, novamente, o compromisso com os direitos humanos foi renovado nos artigos 39, 40, 41 e 42 (discutidos em breve no texto).
A história da AP brasileira foi marcada, predominantemente, por modelos experimentais, métricos e com forte influência da área médica para a concepção de saúde/doença. Era uma época na qual esses modelos pouco consideravam a materialidade histórica dos sujeitos e tampouco se voltavam para buscar formas de compreensão menos regulatórias dos corpos para se produzir um diagnóstico. A qualificação dos testes psicológicos, a elucidação quanto à diferenciação de teste e AP somados a maior quantidade de profissionais brasileiros mais competentes em AP, propiciou o desenvolvimento exponencial da AP e aumentou e diversificou os lugares para sua realização.
Esse movimento da AP como um processo e o teste como uma ferramenta que pode ou não ser utilizada nesse processo, potencializa a realização de uma AP ética, justa, pautada nos direitos humanos. O uso do teste ou de qualquer outra ferramenta, técnica ou método, deve ser compreendido analisando demais informações e considerando aspectos sociais, históricos, psicológicos, biológicos e relacionais da pessoa avaliada.Dessa forma, o avanço ainda que tardio para a AP, com a publicação da Resolução CFP nº 09/2018 (atualizada pela Resolução CFP nº 031/2022), implicando uma avaliação processual e com cuidados éticos, assegurou práticas de justiça social e apontou novas perspectivas para a AP brasileira, as quais serão discutidas na sequência.
Avaliação Psicológica com foco na sustentabilidade social
A psicologia apresenta em sua história um percurso que problematiza a questão saúde/doença e, por muitas vezes, a prática profissional do psicólogo foi pautada em bases que produzem ações psicologizantes da vida. Historicamente, a avaliação psicológica sempre foi rotulada como aquela que de fato produzia um sintoma social, por meio do ‘rótulo diagnóstico’. Por essa via, muitas vezes ainda perdura esse preconceito em relação à AP, mas esse é um entendimento equivocado e limitado sobre a atuação em AP e os benefícios que ela pode proporcionar (Muniz et al., 2021).
Sim, reconhecemos que muitas práticas não adequadas e não éticas ocorreram em grande quantidade, causando malefícios para pessoas e sociedade (Anache & Reppold, 2010). Essas práticas foram realizadas, em sua maioria, a partir de desconhecimento dos profissionais pela falta de informações e de formações qualificadas no Brasil, afinal, apenas em 1967 é que se reconheceu a profissão de psicólogo e os primeiros cursos inciaram (Brasil, 1964). Com certeza os cursos de psicologia no Brasil foram essenciais para a formação de profissionais com maior conhecimento da psicologia e para o desenvolvimento da ciência e prática psicológica em nossa cultura, com a nossa população. No entanto, há mais de duas décadas, é nítido um intenso movimento de pesquisadores e profissionais da AP debatendo, propondo e implementando ações para o desenvolvimento da área, pautado na ética, na técnica, na ciência e nos direitos humanos.
A AP tem buscado cada vez mais avançar na pauta de promover a justiça social em seus processos de atuação. Por muitas vezes se questiona que ações afirmativas podem contribuir para uma prática mais inclusiva e menos psicologizante do ser humano. Nesse contexto, há um compromisso social forte com os direitos humanos de forma mais presente na última década, especialmente com a publicação dos dispositivos integrantes da Resolução CFP nº 09/2018 em seus artigos 31, 32 e 33. Neles são reafirmadas ações que visam fortalecer a justiça social por meio de um pacto em que o processo de AP e as fontes fundamentais (entrevistas, testes psicológicos e protocolos de observação) e complementares (relatórios multiprofissionais ou ferramentas de outra ciência) empregadas não possam produzir injustiças de quaisquer naturezas (CFP, 2018a).
Sob essa perspectiva, em 2022, o compromisso com os direitos humanos foi renovado com a publicação da Resolução CFP nº 31/2022, que institui as diretrizes para a realização de AP no exercício profissional do psicólogo, regulamenta o Sistema de Avaliação de Testes Psicológicos - SATEPSI e revoga a Resolução CFP nº 09/2018. A Resolução CFP nº 031/2022 em seu Capítulo VI intitula esse capítulo como Justiça e proteção dos direitos humanos na AP. Posto isto, os artigos 39, 40, 41 e 42 preconizam que:
Art. 39. Na Avaliação Psicológica, a psicóloga e o psicólogo deverão considerar os princípios e artigos previstos no Código de Ética Profissional do Psicólogo e atender aos requisitos técnicos e científicos definidos nesta Resolução.
Art. 40. À psicóloga ou ao psicólogo, na produção, validação, tradução, adaptação, normatização, comercialização e aplicação de testes psicológicos, é vedado:
I - realizar atividades que caracterizem negligência, preconceito, exploração, violência, crueldade ou opressão; II - induzir a convicções políticas, filosóficas, morais, ideológicas, religiosas, raciais, de orientação sexual e identidade de gênero;
III - favorecer o uso de conhecimento da ciência psicológica e normatizar a utilização de práticas psicológicas como instrumentos de castigo, tortura ou qualquer forma de violência.
Art. 41. As psicólogas e os psicólogos não poderão elaborar, validar, traduzir, adaptar, normatizar, comercializar e fomentar instrumentos ou técnicas psicológicas, para criar, manter ou reforçar preconceitos, estigmas ou estereótipos.
Art. 42. A psicóloga e o psicólogo, na realização de estudos, pesquisas e atividades voltadas para a produção de conhecimento e desenvolvimento de tecnologias, atuarão considerando os processos de desenvolvimento humano, configurações familiares, conjugalidade, sexualidade, orientação sexual, identidade de gênero, identidade étnico-racial (Resolução CFP nº 031/2022, s/p).
Os dispositivos da Resolução CFP nº 031/2022 sob uma especificidade da prática do psicólogo em AP remetem a ações afirmativas que visam o bem-estar das pessoas, comunidades e da sociedade em geral. Ao estabelecer valores de não violência e não exclusão, ações que preservam a dignidade, a individualidade, a liberdade, a aceitação da diversidade e outras práticas que promovem a sustentabilidade social, inclusive nos processos de AP e na elaboração de seus instrumentais técnicos, a AP mostra que caminha sob uma ótica na qual esse fazer técnico preserva os direitos humanos e se afina com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável - ODS.
Ao trazer para a discussão os ODS há que se rememorar que em 2015 a Assembleia Geral das Nações Unidas - ONU (2024) aprovou um conjunto de 17 objetivos que visam ações globais para atingir um desenvolvimento sustentável das nações. Os ODS visam melhores condições de vida para a humanidade e em uma visão global de uma agenda para um futuro sustentável, pode-se dizer que a AP ao adotar práticas antirracistas, não preconceituosas ou injustas coaduna com esses objetivos de 193 países. Dentre os ODS há os que se afinam com ações contemplando a eliminação das disparidades de gênero, promoção da igualdade de acesso, especialmente, em relação aos mais vulneráveis, como pessoas com deficiência, minorias étnicas ou outras pessoas em condição de vulnerabilidade. Com essas ações afirmativas pode-se promover o desenvolvimento sustentável, visando uma cultura de paz e de não violência e a construção de uma cidadania global.
Face ao exposto, reflexões que sustentam a prática em AP devem ser construídas de um ponto de vista macro que, por um lado, envolve o alinhamento com ações humanitárias afirmativas mundiais (ODS) e, por outro lado, também, deve contemplar um ponto de vista micro, que deve se debruçar nas legislações construídas para a especificidade da AP em âmbito nacional (Resolução CFP nº 031/2022) e internacional, por meio das diretrizes de entidades reconhecidas pelo compromisso com os direitos humanos na prática profissional do psicólogo.
A esse respeito, desde a década de 1950, a American Psychologial Association - APA, produz parâmetros éticos que orientam as práticas da psicologia. Com a publicação do ‘Éthical principles of psychologists and code of conduct’, em 2017, houve uma importante sinalização dos princípios de beneficência e maleficência no fazer do psicólogo que fortaleceu o compromisso com a justiça social, uma vez que cabe ao psicólogo resguardar os direitos de seus atendidos, visando o seu bem-estar e a minimização de possíveis danos. Desse modo, os profissionais da psicologia devem ter responsabilidade com a sociedade e a comunidade em que atua, por isso deve apresentar um fazer ilibado e íntegro socialmente na prática, na pesquisa e no ensino da psicologia. Um importante pilar trazido é o princípio da justiça e garantia de direitos das pessoas atendidas (direito à privacidade e dignidade). Assim, o psicólogo não pode realizar práticas injustas que contribuam para a desigualdade e interfiram na qualidade dos serviços prestados. Por meio desses princípios não há tolerância para práticas excludentes, racistas, intolerantes, desiguais ou quaisquer outras práticas que levam a pessoa à exclusão e à humilhação (APA, 2017).
Quando se observa o Capítulo VI da Resolução CFP nº 031/2022 sobre justiça e proteção dos direitos humanos na AP, fica explícito que a AP brasileira adotou uma agenda de ações afirmativas que estão em conformidade com agendas mundiais (ONU, APA) de combate à exclusão e também com entidades que estabelecem diretrizes internacionais para a prática da AP com destaque para o Guidelines do International Test Commission e os Standards for Educational and Psychological Testing da AERA et al. (2014). Autoras como Wechsler (2019) também destacam a atuação de organizações como a International Test Commission, a International Association of Applied Psychology, a American Educational Reserarch Association, o National Council on Measurement an Education e a International Union of Psychological Science. Essas entidades apresentam ações que buscam assegurar o compromisso com os direitos humanos nas práticas psicológicas, incluindo a AP.
A psicologia brasileira, após a Lei nº 4.119/62, a qual institui a psicologia como profissão e permitiu a abertura de cursos de psicologia, se expandiu geometricamente, e mantém uma luta permanente para que a ciência e a prática psicológica estejam respaldadas nos direitos humanos. As entidades internacionais supracitadas e as ODS propostas pela ONU, propiciam reflexões e pautam ações a serem enfrentadas na psicologia, incluindo a brasileira. Com a AP não é diferente, pois o seu desenvolvimento é reflexo dos novos conhecimentos da ciência e prática psicológica (que caminham juntas) e demandas sociais da e para a psicologia. Posto isso, podemos afirmar, sim, que a AP brasileira comunga das práticas éticas advindas das entidades supracitadas, bem como está alinhada com diversos ODS e se faz presente para a realização destes.
A AP brasileira avançou muito, em especial nos últimos 30 anos, para entregar à sociedade uma prática que a beneficie. Para isso, diversas ações foram realizadas, a saber, debates para a melhoria da qualificação profissional em AP; implementação de cursos para tal qualificação; fundação de entidades da área que aprimoram e mantêm os debates constantes e atuais, em especial por meio de Congressos anuais; criação de laboratórios de AP em diversas universidades das cinco regiões geográficas do país; publicações de revistas científicas, artigos, capítulos de livro, livros de autores brasileiros e pesquisas brasileiras; resoluções do CFP para diferentes áreas e temáticas de atuação da AP, todas tendo como base a Resolução CPF nº 31/2022 e suas antecessoras (25/2001, 02/2003 e 09/2018); entre outras diversas ações (Noronha et al., 2022).
No entanto, como apontado por Zanini et al. (2022, p. 408) “apesar da avaliação psicológica estar em franco avanço em diversas áreas, inclusive em termos do desenvolvimento de novas tecnologias avaliativas, ainda há contextos de aplicação pouco explorados”. Sob esse aspecto, é possível afirmar que no contexto nacional há diferenças culturais e sociais, os quais convocam uma reflexão sobre o quanto a AP ainda precisa avançar para garantir e promover os direitos humanos, oferecer uma prática eticamente consoante com as demandas atuais da sociedade e contribuir com os ODS.
Há inúmeras questões a serem enfrentadas para termos uma prática e ciência da AP condizentes com as demandas sociais. Dentre os desafios estão justamente os relacionados a como oferecer uma AP que realmente considere e pratique o respeito e o conhecimento necessário para se fazer uma análise e ter uma melhor compreensão das pessoas ao avaliar grupos específicos, como
pessoas com deficiência, populações originárias, população de rua, pessoas LGBTQIA+, comunidades empobrecidas, dentre outras especificidades. Ainda, se soma a esses enfrentamentos, a urgência de se ter um corpo teórico e de experiências práticas a partir da realidade da nossa cultura latino-americana. Sabemos que os conhecimentos praticados pela psicologia se derivam em sua maioria, de uma cultura estadunidense, canadense e de países da Europa ocidental. Apesar da AP brasileira ter um arcabouço de produções teóricas de pesquisadores brasileiros e relatos de práticas realizadas com a população brasileira, nas análises, nas argumentações, nas fundamentações teóricas, nas propostas de modelos teóricos, muito se pauta no conhecimento produzido em países norte-americanos já citados e do ocidente europeu.
Retomando os enfrentamentos da AP referente a grupos específicos, iremos trabalhar uma das diversas questões - o teste psicológico. Na sequência serão tecidas considerações sobre um paradoxo, qual seja: Produzir normas específicas para grupos vulnerabilizados seria uma ação beneficente ou maleficente? Produziria equidade ou segregação? Esse é um tema que suscita debates importantes no campo da Avaliação Psicológica. Por um lado, tais normas podem promover maior equidade, ao reconhecer as desigualdades estruturais que impactam o desempenho em testes e, assim, possibilitar interpretações mais contextualizadas e justas dos resultados (Pasquali, 2010; Urbina, 2007). Por outro lado, corre-se o risco de reforçar processos de segregação ou de cristalização de estigmas, especialmente se essas normas forem utilizadas de maneira acrítica, sem considerar que as diferenças observadas não são atributos fixos dos grupos, mas sim, reflexos de desigualdades históricas e sociais (Borges & Hutz, 2009; Lefèvre et al., 2014). Portanto, o uso de normas diferenciadas deve estar ancorado em uma perspectiva crítica e ética, comprometida com a promoção da justiça social e com a transformação das condições que produzem disparidades no acesso a oportunidades de desenvolvimento e bem-estar psicológico (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2018b).
Também há que se problematizar a necessidade da produção de normas para atender especificidades de mobilidades na tarefa, ou seja, acessibilidade para a realização da tarefa em pessoas surdas, cegas, dentre outras deficiências, que necessitam de estudos normativos. Essa discussão se faz necessária, especialmente, quando se debruça na publicação da AERA (2014) que traz como proposta de acessibilidade o desenho universal que imprime uma compreensão mais globalizada da forma de pensar a construção dos testes psicológicos, que é uma tecnologia profissional do psicólogo, devendo-se considerar no processo de construção características sociais e diversas que atravessam o funcionamento do ser humano em suas mais variadas expressões.
Justiça Social na Construção das Tecnologias Profissionais do Psicólogo - o Teste Psicológico
O primeiro ponto a se pensar é o motivo para o qual será construída tal ferramenta, ou seja, como essa nova tecnologia profissional do psicólogo, que são os testes psicológicos, será socialmente útil. Um teste pode ter sido muito bem construído, seguindo todos os padrões de qualidade psicométrica, mas isso não o torna útil. Por exemplo, qual a justificativa social para se ter mais um teste que avalia inteligência? A resposta poderá abranger que é um formato diferente de teste, que irá mensurar uma capacidade da inteligência diferente das encontradas em outros testes, que será para uma população específica ou que apresentará algumas particularidades necessárias para essa população.
Vencida a etapa dessa justificativa, na qual já se saberá o que se quer avaliar, qual será o público-alvo e qual será a contribuição para a sociedade, o passo seguinte é escolher um modelo teórico que fundamentará a construção dos itens, das tarefas ou dos estímulos e as interpretações a serem realizadas com os dados que serão coletados através da nova tecnologia profissional do psicólogo. Relembrando o que foi mencionado anteriormente, sobre ter teorias que deem conta das especificidades de uma cultura, como a que nós brasileiros, latino-americanos, estamos inseridos, é a primeira barreira que enfrentamos por estarmos pautados em uma psicologia baseada em outras culturas.
Nesse momento, o leitor pode se questionar se essa barreira não é transponível quando estudos de evidências de validade, estimativa de precisão, e elaboração de normas são realizados com e para a população brasileira. Sim, avançamos demais nos últimos 20 anos em relação a essa questão de ter instrumentos adaptados ou construídos especificamente para a nossa população, mas é fundamental darmos um passo a mais, que será a base para esses estudos. O passo é a construção permanente de uma psicologia teórica e cientificamente brasileira e/ou latino-americana. Ao analisarmos os testes psicológicos hoje disponíveis para a prática do profissional da psicóloga e do psicólogo, as fundamentações teóricas utilizadas são massivamente não inclusivas da nossa cultura.
De maneira geral, os dois grandes construtos psicológicos avaliados por meio dos testes disponíveis são a inteligência e a personalidade. As sustentações empíricas de diversos modelos desses construtos têm populações não brasileiras, não latino-americanas como base para a compreensão do funcionamento, do desenvolvimento, dos fatores desses construtos. Nesse contexto é inegável que precisamos evoluir muito para que realmente ocorra uma justiça social na construção dos testes. Por isso, é que apesar de sabermos dessa necessidade, também nos orgulhamos das conquistas para que hoje em dia no Brasil, qualquer teste psicológico utilizado tenha demonstrado empiricamente suas qualidades psicométricas e faça uso de referências normativas a partir da população brasileira. Esse cuidado é garantido pela Resolução CFP nº 31/2022 e suas resoluções antecessoras.
Posto isso, e ciente das limitações teóricas conforme supramencionado, as reflexões seguintes a serem realizadas, caso se queira construir um teste psicológico para uma população específica, é como construir e se realmente será inclusivo. Nesse momento é importante entender se seria possível ter uma ferramenta com o desenho universal.
De forma sucinta, o conceito de desenho universal refere-se à criação de materiais, edificações e ambientes que sejam acessíveis à maior parte da população, independentemente de elas terem ou não deficiências. O objetivo é eliminar a necessidade de adaptações ou de projetos específicos para indivíduos com deficiências, focando em atender à diversidade das características corporais humanas e promovendo a máxima inclusão (Story, et al., 1998).
O desenho universal pode ser implementado tanto na adaptação e desenvolvimento de testes psicológicos quanto na elaboração de processos avaliativos em sua totalidade (Oliveira et al., 2013; Oliveira & Nunes, 2018). No contexto da avaliação psicológica, além de contribuir para a elaboração dos instrumentos, o desenho universal é valioso para o planejamento dos processos avaliativos, levando em consideração o público-alvo e buscando garantir a máxima acessibilidade às estratégias e materiais utilizados. Em relação às pessoas com deficiência, a adaptação dos materiais de avaliação é essencial, porém, nem sempre os profissionais possuem os recursos teóricos e técnicos necessários para conduzir esse processo de maneira eficaz (CFP, 2019a; CFP, 2019b).
A aplicação dos princípios do desenho universal na construção e adaptação de testes psicológicos visa promover a Testagem Universal, que busca avaliar uma população diversificada, proporcionando a máxima acessibilidade possível em relação ao que está sendo avaliado. Essa abordagem permite incluir tanto indivíduos com deficiências, quanto sem, garantindo que todos tenham a oportunidade de participar do processo avaliativo. Além disso, os princípios do desenho universal podem ser adaptados para atender especificamente a um público-alvo, assegurando que as avaliações sejam inclusivas e eficazes. A Testagem Universal utiliza adaptações para garantir que todos os indivíduos, independentemente de suas habilidades, possam ser avaliados adequadamente nos domínios para os quais os testes são destinados (Oliveira et al., 2013; Oliveira & Nunes, 2018).
Considerações Finais
Diante das análises trazidas no texto, cabe elucidar que o presente estudo visou efetivar uma recuperação dos principais marcos que levam a uma mobilidade da AP brasileira no desenvolvimento de ações afirmativas. Tais ações permitem estabelecer formas mais justas de construção de novas tecnologias profissionais (testes), adaptação de instrumentos já existentes tornando-os mais acessíveis e com normas para grupos específicos, bem como, faz com que se repense o processo de AP dentro de uma materialidade histórica e cultural do avaliando. Por essa razão, tão importante quanto discutir a garantia de princípios da beneficência na construção das medidas (desenvolvendo instrumentais com qualidade técnica e acessibilidade), é garantir um processo de AP justo e que respeite a dignidade de pessoas ou grupos, de modo a produzir resultados que assegurem os direitos humanos.
O Instituto Brasileiro de Avaliação Psicológica (IBAP) tem responsabilidade na construção do compromisso com a justiça social na sociedade brasileira, por isso em 2025 o IBAP celebrará esse compromisso social realizando o seu 12º Congresso Brasileiro de Avaliação Psicológica: Justiça, Proteção e Promoção dos Direitos Humanos. Por essa razão a Revista de Avaliação Psicológica, veículo de maior importância para a publicação na área de AP no Brasil, e mantida pelo IBAP, reforça o compromisso da entidade com uma agenda para uma AP sustentável. Em decorrência disso, lançou edital público para aceitar propostas de submissões de artigos que pudessem trazer contribuições acerca dessa temática. Assim sendo, o presente artigo buscou celebrar os direitos humanos traçando um percurso narrativo do qual problematizou a sustentabilidade e a justiça social em AP.














