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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.23 no.1 Belo Horizonte jan./abr. 2017

https://doi.org/10.5752/P.1678-9563.2017v23n1p81-105 

ARTIGOS

 

 

TRÁFICO DE MULHERES E DIREITOS HUMANOS: ANÁLISE DOS DISCURSOS VEICULADOS NA TELENOVELA "SALVE JORGE"

 

WOMEN TRAFFICKING AND HUMAN RIGHTS: ANALYSIS OF DISCOURSES CONVEYED IN THE "SALVE JORGE" SOAP OPERA

 

TRÁFICO DE MUJERES Y DERECHOS HUMANOS: ANÁLISIS DE LOS DISCURSOS DIFUNDIDOS EN LA TELENOVELA "SALVE JORGE"

 

 

Rosiane Alves de Albuquerque*; Aluísio Ferreira de Lima**

 

 


Resumo

Este artigo se propõe, por meio do recorte do tráfico de mulheres, abordar a questão do tráfico de pessoas no Brasil, tomando como objeto de análise a telenovela "Salve Jorge". Para a análise dos discursos veiculados na telenovela, mapeou-se todos os 179 capítulos e localizaram-se as cenas relacionadas à discussão sobre o tráfico de mulheres, transcreveram-se os diálogos mais significativos e se discutiu seu conteúdo. As análises das transcrições elucidaram os conteúdos que focalizaram a construção de uma identidade para a mulher traficada que, além de produzir uma imagem fetichizada dessas mulheres, tratou de apresentar-se como um espelho da realidade, acabando por reduzir toda a complexidade da questão do tráfico de mulheres a uma fórmula pronta, na qual o final feliz seria somente questão de tempo.

Palavras-chave: Tráfico de mulheres. Direitos humanos. Psicologia social. Mídia. Discurso.


Abstract

This paper proposes, through the profile of women trafficking, addressing the issue of Human Trafficking in Brazil, taken as object of analysis in the Salve Jorge soap opera. For the analysis of discourses conveyed in the soap opera, we mapped all 179 chapters and located scenes related to discussions on trafficking of women, transcribed the most meaningful dialogues and discuss the contents. The analysis of the transcripts elucidated the content that focused on building an identity for the trafficked woman. Which, in addition to producing a fetishist image of these women tried to present itself as a mirror of reality, eventually reducing the complexity of the issue of trafficking in women to a formula where the "happy ending" would only be a matter of time.

Keywords: Women trafficking. Human rights. Social Psychology. Media. Discourse.


Resumen

Este artículo se propone abordar la cuestión del tráfico de personas en Brasil, tomando como objeto de análisis la telenovela Salve Jorge. Para el análisis de los discursos difundidos en la telenovela, se observaron los 179 capítulos, se localizaron las escenas relacionadas con la discusión sobre tráfico de mujeres, se transcribieron los diálogos más significativos y se discutió su contenido. Los análisis de las transcripciones elucidaron que los contenidos que se centraban en la construcción de una identidad para la mujer traficada producían una imagen fetichizada de esas mujeres y trataban de presentarse como espejo de la realidad, reduciendo toda la complejidad de la cuestión del tráfico de mujeres a una fórmula prefabricada donde el final feliz sería solamente cuestión de tiempo.

Palabras clave: Tráfico de mujeres. Derechos humanos. Psicología social. Medios de comunicación. Discurso.


 

 

Os espelhos apresentam a afortunada coincidência de também serem janelas (Butler, 2009, p. 61, tradução nossa).1

 

 

1. IMAGENS DO TRÁFICO DE MULHERES NO BRASIL

A relevância da discussão sobre o tráfico de mulheres se dá pela escassez de trabalhos que abordam esse assunto, em sua maioria desenvolvidos na área do Direito e das Ciências Sociais e praticamente inexistentes na área da Psicologia. As primeiras investidas a título de políticas públicas voltadas para o tráfico de pessoas no Brasil podem ser consideradas recentes, tendo como marco a "Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas", aprovada em 2006 (Brasil, 2008b), com o lançamento do "Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas", em 2008 (Brasil, 2008a).

O Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas utiliza a definição de tráfico de pessoas estabelecida pelo "Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças", que o entende como

O recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos (Brasil, 2008b, p. 6).

Ao debruçarmo-nos na compreensão dos discursos que permeiam o tráfico de mulheres, verificamos que eles tanto produzem os sujeitos de direito quanto produzem indivíduos que sequer são reconhecidos como humanos, tratados por conta disso como mercadorias, ou ainda, como responsáveis pela própria condição de exploração e dominação.

Curioso notar como ainda hoje as condições de (re)existência próprias da história de mulheres traficadas soam como da ordem do absurdo e, por assim soarem, povoam o imaginário fantástico, porém um fantástico que, de tão remoto, parece inalcançável. Não é incomum ouvir e ver pessoas chocadas e, ao mesmo tempo, incrédulas ao tomarem conhecimento de tráfico de pessoas em pleno século XXI. Segundo dados da Organização Internacional do Trabalho,

Quase 1 milhão de pessoas são traficadas no mundo anualmente com a finalidade de exploração sexual, sendo que 98% são mulheres. O tráfico chega a movimentar 32 bilhões de dólares por ano, sendo apontado como uma das atividades criminosas mais lucrativas (Brasil, 2008a, p. 5).

Somando-se a esses dados, temos a "Pesquisa sobre tráfico de mulheres, crianças e adolescentes para fins de exploração sexual comercial no Brasil – Pestraf " (Leal & Leal, 2002) e o "I Diagnóstico sobre o tráfico de seres humanos: São Paulo, Rio de Janeiro, Goiás e Ceará" (Colares, 2004), que foram fundamentais para que tenhamos um panorama de como os brasileiros e o Brasil são afetados por esse comércio ilegal e imoral, assim como trouxeram à cena a realidade emoldurada como um problema grave e emergencial. Resultados da Pestraf indicam que, em relação ao tráfico de mulheres e adolescentes em níveis nacional e internacional, as regiões Norte e Nordeste apresentam o maior número de rotas, acompanhadas pelas regiões Sudeste, Centro-Oeste e Sul, nessa ordem, verificando assim um forte conteúdo social de desigualdade e pobreza. Dados da Organização Internacional da Migração apontam que aproximadamente 4 milhões de pessoas são traficadas por ano através de fronteiras internacionais e internas. Em relação ao tráfico para fins sexuais, foi constatada a predominância de mulheres, adolescentes e afrodescendentes, entre 15 e 25 anos, vítimas de algum tipo de violência doméstica ou extrafamiliar.

Mulheres adultas são, preferencialmente, traficadas para outros países (Espanha, Holanda, Venezuela, Itália, Portugal, Paraguai, Suíça, Estados Unidos, Alemanha e Suriname), enquanto as adolescentes, mais do que crianças, são traficadas através das rotas intermunicipais e interestaduais, com conexão para as fronteiras da América do Sul (Venezuela, Guiana Francesa, Paraguai, Bolívia, Peru, Argentina e Suriname) (Leal & Leal, 2002, p. 60).

Apesar de a maioria dos aliciadores corresponder ao gênero masculino (59%), o número de mulheres envolvidas nessa prática é grande, contando 41%, sendo a maior parte de origem estrangeira. No que se refere aos aliciadores de origem brasileira, a maioria é formada por homens entre 20 e 50 anos, alguns pertencentes às elites econômicas que atuam na rede, como proprietários ou funcionários de boates ou outros estabelecimentos associados. Há também aqueles envolvidos com funções públicas e de destaque, seja nas cidades de origem ou de destino.

O perfil do aliciador está relacionado às exigências do mercado de tráfico para fins sexuais, isto é, quem define o perfil do aliciador e da pessoa explorada pelo mercado do sexo é a demanda, que se configura através de critérios que estão relacionados a classes sociais, faixa etária, idade, sexo e cor (Leal & Leal, 2002, p. 64).

A rede de tráfico para fins de exploração sexual conta com aliciadores, proprietários, empregados e outros intermediários que ficam infiltrados em empresas comerciais de fachada, tanto legais quanto ilegais. A tecnologia é um aliado que os ajuda a desmobilizar-se e reestruturar-se com agilidade, camuflando-os das investidas policiais e jurídicas. São mantidas ligações com o crime organizado internacional, as conhecidas máfias, e com pessoas de dentro das instituições policiais.

A rede é bem estruturada e conta com agentes estratégicos que são especializados em atrair as vítimas por meio de propostas, contratos e a conquista da confiança de suas famílias. Passaportes falsos são emitidos e arrancados das mãos das traficadas assim que elas chegam ao destino de exploração, e elas passam a carregar uma dívida que é acumulada a cada dia, tornando-se impossível de saná-la. O trânsito no local de destino depende da organização, podendo ir da privação total até a circulação estritamente vigiada e controlada. As ameaças são constantes, sendo principalmente de morte ou de violência física, havendo casos de estupro e violência psicológica, fora as condições precárias de habitação, alimentação e trabalho.

No rol dos sonhos, despontam: o desejo de uma vida melhor; a vontade de ter melhores salários e de ganhar em dólares; a oportunidade de morar e trabalhar no exterior, de ajudar a família, de comprar moradia, de investir no próprio visual, de romper com a vida de insatisfação, pobreza, e de adquirir novo status social (Leal & Leal, 2002, p. 109).

Essas mulheres que são capturadas em seus sonhos, ao vê-los tornarem-se pesadelos, decidem, de formas diferentes, como sobreviver em meio a condições nunca imaginadas e até insustentáveis. Algumas desacreditam que possam fazer algo, vão acatando as ordens e levando como podem a rotina à qual são submetidas. Elas temem que atentem mais do que já atentam diariamente contra suas vidas ou contra a de alguém querido. Outras mulheres resistem, seja procurando algum ponto cego ou distração dos traficantes e empregados, seja pedindo ajuda a algum cliente ou de alguém da polícia.

As tentativas costumam ter formas diversas e são inúmeras, entretanto o sucesso é uma exceção, já que os esquemas de tráfico são muito bem articulados e as punições são severas, indo desde a violência física e psicológica até o isolamento e, ou, a morte. Há ainda mulheres que acreditam que, procurando ser submissas e agradáveis, podem firmar alianças ou minimamente ter algum tipo de benefício que as façam se sentir (mais) humanas. Se conseguirem, a elas resta assumir alguma função como parte do outro lado do tráfico e a prisão, caso forem descobertas a tempo.

Os depoimentos elencados no relatório da Pestraf elencam dois tipos de mulheres aliciadas pela rede de prostituição internacional:

a) ingênua e pobre que é iludida; e
b) aquela esclarecida sobre a situação e que se dispõe a correr os riscos. Verificou-se também que há algum nível de proximidade entre o intermediário e a vítima, seja geográfica, social ou pela rede de contatos.

A questão do consentimento é um ponto que gera polêmica. Aqueles que o defendem deslocam a mulher traficada da posição de vítima para a de coparticipante, banalizando a prática e sua ilegalidade. Já aqueles que são contrários reforçam a posição de vítima da mulher, o que pode potencializar uma condição de gênero sustentada por discursos patriarcais e machistas que a tomam como incapaz, indefesa e frágil.

O "I diagnóstico sobre o tráfico de seres humanos: São Paulo, Rio de Janeiro, Goiás e Ceará" traz para a discussão a questão da desconstrução do outro, apontando que

Os efeitos dessa naturalização de crimes cometidos contra os "não iguais" são a impunidade, em primeiro lugar, e a dificuldade de reinserção social encontrada pelas vítimas, em segundo. Os altos índices de mulheres traficadas e de trabalhadores rurais escravos que voltam a cair em poder das redes depois de "libertados" são prova disso (Colares, 2004, p. 9).

Ao trazer tal questionamento, reinsere o mal-estar causado pela tensão em torno das opiniões quanto ao consentimento da vítima, fazendo-nos pensar se é possível uma mulher adulta concordar em estar em regime de cárcere privado e, ou, escravidão. Em meio às interrogações, o Direito aparece em sua não neutralidade como uma manifestação cultural que reflete o pensamento social dominante e sustenta tal mal-estar.

Constatou-se que, entre os anos que serviram como base (2000 a 2003), o último corresponde a um aumento significativo dos feitos instaurados. A maioria dos casos apurados deu-se por meio de denúncia anônima ou depoimento das vítimas ou parentes, apontando apenas 30,56% por parte de investigação sob responsabilidade da Polícia Federal, por flagrante de delito ou requisição do Ministério Público. Entre os 36 casos que compõe a amostra, foi encontrado apenas um envolvendo homem. Um dos fatores apontados pelo diagnóstico para tal achado é a abordagem do tráfico de forma específica às mulheres, adolescentes e crianças, no tocante a legislação brasileira, demarcando assim uma questão de gênero.

Alguns dados encontrados pelo diagnóstico reafirmam os apurados pela Pestraf. As ocupações verificadas entre as mulheres traficadas (empregada doméstica, cobradora, manicure, vendedora, estudante, desempregada, profissional liberal, comerciária, etc.) reforçam seu desejo de melhorar de vida. A maioria tem baixa escolaridade ou ensino fundamental e médio completos. Boa parte das vítimas não era assistida por advogados e confirmou a situação de exploração sexual.

Como aponta o diagnóstico da Pestraf, a tomada de conhecimento por parte da vítima antes dos fatos não descaracteriza a ação de tráfico. Por mais que, em alguns casos, a prostituição não seja a finalidade do acordo, ela acaba sendo a alternativa mais emergencial para uma possível saída da condição de traficada.

Diante da recente elaboração das bases para as políticas públicas no que concerne ao tráfico de pessoas no Brasil e da restrita produção referente ao tema, sobretudo no âmbito das Ciências Humanas, faz-se necessário desenvolver trabalhos de cunho acadêmico, mas que não estejam restritos a esse âmbito, para que as discussões não fiquem limitadas à militância e possam ecoar de modo mais amplo nos meios nos quais circulamos e principalmente nos meios que circulam os sujeitos-alvo dessa armadilha perversa.

O tráfico de pessoas com problema para os Direitos Humanos (DH) fere direitos básicos e coloca em xeque a própria concepção de humanidade. Pautados nessa constatação propomos, a seguir, uma discussão sobre direitos humanos e cidadanias negadas, com o intuito de clarificar a produção da mulher traficada como inumana em sua subjetividade marginal.

2. QUAIS DIREITOS PARA QUAIS HUMANOS?

Um dos incômodos que os discursos utilizados pelas políticas em prol dos direitos humanos causa é sua naturalização. Os DH, inseridos na lógica do capitalismo, avançam sobre o perigo de ser reduzidos a mera regulação do capital. Isso implica na redução da discussão universalista apregoada pelos DH na luta pelo reconhecimento de direitos de determinados sujeitos/consumidores de ocupar a esfera pública.

Separar essas palavras de ordem é ir de encontro a duas categorias importantes: direito e humano. Duas palavras que, pensadas separadamente, podem nos leva a pensar os DH com base na adaptação da sentença "diga-me com quem anda e lhe direi quem é", ou seja, "diz-me o quanto humano tu és que eu te direi de quais direitos tu gozarás". Sentença que aponta para a produção dos DH por determinado grupo que decide quem pode usufruir de seus privilégios. Mas a que(m) servem os DH? Que homem produz esses DH e que homem é produzido por eles? Quem é sujeito e quem está sujeito aos DH?

Antes de propomos uma discussão em torno desses questionamentos, é preciso retomar o processo de criação dos DH e pensá-lo como um ato político. Segundo Coimbra, Lobo e Nascimento (2008, p. 91), os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, tão caros à burguesia revolucionária francesa, que mais tarde tornaram-se o fundamento dos DH, fizeram destes um dado natural, coroados pelo capitalismo como direitos inalienáveis da essência do que constitui o homem.

Nota-se que, longe de ser uma preocupação humanitária, os DH, em sua gênese, parecem antes de tudo um mecanismo arquitetado sob uma lógica perversa de controle travestido de apadrinhamento social, para gerar uma falsa ilusão de participação e uma esperança cansada de vítima. O que pretendemos argumentar com esse breve resgate histórico é afirmar que a produção dos DH não está isenta de interesses políticos e desnaturalizar sua aparente pureza, para que possamos entender de que forma ela tem produzido cidadanias negadas, assujeitamentos e inumanidades.

Sendo um produtor de políticas de identidade (Lima, 2010), o discurso dos DH é veiculado e diluído em nosso cotidiano, produzindo, juntamente com o sujeito de direitos, um sujeito matável, o homo sacer (Agamben, 2007), um tipo de indivíduo que, ao ser capturado politicamente, é despolitizado e reduzido à sua condição de apenas (sobre) vivente. É esse homem periférico, não universal, excluído-incluído, inumano que move nossos interesses.

Os direitos humanos não são universais na sua aplicação. Actualmente são consensualmente identificados quatro regimes internacionais de aplicação de direitos humanos: o europeu, o interamericano, o africano e o asiático. Mas serão os direitos humanos universais enquanto artefato cultural, um tipo de invariante cultural, parte significativa de uma cultura global? Todas as culturas tendem a considerar os seus valores máximos como os mais abrangentes, mas apenas a cultura ocidental tende a formulá-los como universais (Santos, 1997, p. 112).

Boaventura de Souza Santos situa culturalmente os direitos humanos, colocando em questão sua universalidade, quando localiza regimes diversos de aplicação para tais e constata que essa universalidade é um valor ocidental. As fronteiras são borradas de modo que passamos a viver numa zona de indefinições de antigas dicotomias: exclusão/inclusão, direita/esquerda, democracia / totalitarismo, etc. Como assinala Agamben (2007, p. 16):

Aquilo que caracteriza a política moderna não é tanto a inclusão da zoé na pólis, em si antiguíssima, nem simplesmente o fato de que a vida como tal venha a ser um objeto eminente dos cálculos e das previsões do poder estatal; decisivo é, sobretudo, o fato de que, lado a lado com o processo pelo qual a exceção se torna em todos os lugares a regra, o espaço da vida nua, situado originalmente à margem do ordenamento, vem progressivamente a coincidir com o espaço político: exclusão e inclusão, externo e interno, bíos e zoé, direito e fato entram em uma zona de irredutível indistinção.

Trabalhando com base no terreno da biopolítica, Agamben vai problematizar a vida por meio dos termos utilizados pelos gregos para defini-la distintamente. Zoé refere-se ao simples viver comum a todos aqueles seres dotados de vida e bíos representa uma forma singular de viver atribuída a um indivíduo ou grupo. A dimensão política seria atribuída à bíos que, por excelência, é o modo de viver da pólis. A forma de captura da zoé se dá pela exclusão-inclusiva que, como exceção, passa a virar regra e opera no cerne da política ocidental.

A dupla categoria fundamental da política ocidental não é aquela amigo-inimigo, mas vida nua-existência política, zoé-bíos, exclusão-inclusão. A política existe porque o homem é o vivente que, na linguagem, separa e opõe a si a própria vida nua e, ao mesmo tempo, se mantém em relação com ela numa exclusão inclusiva (Agamben, 2007, p. 16).

Em outras palavras, a política contemporânea identifica o excluído e certificase de incluí-lo, mantendo curiosamente sua condição de diferente/outro. De modo inverso ao que se apregoa, é preciso excluir para incluir e, mais que isso, nomear, em geral de forma negativa, o excluído para justificar sua inclusão. O homem universal nada mais seria do que um delírio ocidental para capturar os infinitos localismos e diferenças, e dar a ilusão de que fazemos parte de algo maior, que não estamos abandonados. "Esses direitos humanos têm apontado para quais direitos devem ser garantidos e para quem eles devem ser estendidos" (Coimbra, 2001, p. 141, grifo do autor). Coimbra (2001), de forma radical, afirma que os DH apresentam um claro conteúdo de classe, o que pode justificar sua não representatividade e desnaturalização.

De fato, uma figura viva fora das normas da vida não só se converte em um problema de gestão da normatividade, ela também parece ser aquilo que a mesma normatividade está obrigada a reproduzir: está viva, mas não é uma vida (Butler, 2010, p. 22, tradução nossa).2

É com violência que os atos normativos combatem aquilo que reproduzem, o marginal, e o combatem naquilo que lhe resta e que deveria pertencê-lo, a vida. Esse indivíduo que rasteja enquanto é iludido a pensar que flutua é farejável, conhecido ao longe pelo aparato biopolítico, contudo, entre os sujeitos de direito e os marginais, não é concebível qualquer nível de reconhecimento, uma vez que Butler (2010) defende que reconhecer implica conhecer, mas não o contrário.

A cidadania negada também é consequência da política dos DH, que, travestida de boas intenções e preocupação humanitária, é atravessada pela perversão do politicamente correto. Operando por essa lógica, os DH reforçam a condição de vítima daqueles aos quais seu discurso se dirige, pintando de mal todo aquele que tentar se opor a esse processo de "humanização". Parece humanamente inaceitável que alguém se volte contra uma causa tão nobre e justa pregoada fervorosamente por "humanos direitos". Segundo Coimbra (2001, p. 92):

[…] "todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos". Entretanto, sempre estiveram fora desses direitos à vida e à dignidade os segmentos pauperizados e percebidos como "marginais": os "deficientes" de todos os tipos, os "desviantes", os miseráveis, dentre muitos outros. A estes, efetivamente, os direitos, assim como a dimensão humana, sempre foram – e continuam sendo – negados, pois tais parcelas foram produzidas para serem vistas como "subalternas" ou como não pertencentes ao gênero humano. Não há dúvida, portanto, que esses direitos – proclamados pelas diferentes revoluções burguesas, contidos nas mais variadas declarações – tenham construído subjetividades que definem para quais humanos os direitos devem se dirigir.

Quando tomamos contato com as críticas direcionadas aos DH, temos a impressão de que estes não passam de uma falácia, de uma forma de reproduzir os benefícios de classe enquanto milhões de pessoas se ancoram em condições de possibilidade líquidas, tão frágeis quanto sua própria condição inumana. Desse modo, os DH não são os direitos do homem universal, do diferente, do outro, das "minorias", tampouco dos anormais, das mulheres, dos deficientes, das crianças, dos adolescentes e idosos. Os DH são os direitos daqueles que o capitalismo define como humanos, segundo sua concepção de direito. Enquanto o capitalismo coroa seus eleitos, os inumanos são sacrificados cotidianamente naquilo que lhes resta de humano: a vida.

Diante do exposto, é possível dizer que o sujeito do discurso dos DH não é o mesmo sujeito dos DH. O sujeito dos DH é aquele que produz o discurso que, por sua vez, é veiculado e diluído em nosso cotidiano, produzindo um indivíduo que é capturado politicamente para ser despolitizado e reduzido à sua condição de apenas vivente. É esse indivíduo periférico, não universal que emerge como foco deste estudo por meio da mulher traficada.

"Se certas vidas não se qualificam como vidas ou, desde sempre, não são concebíveis como vidas dentro de certos marcos epistêmicos, tais vidas nunca serão consideradas vividas nem perdidas no sentido pleno de ambas as palavras" (Butler, 2010, p. 13, tradução nossa).3

O que seriam vidas nem perdidas nem vividas? Vidas aprisionadas ao nascimento e acovardadas diante da morte? Vidas intocadas e intocáveis? A experiência de ser traficada e explorada dessas mulheres das quais falamos aqui transita por esse não lugar. Elas não vivem a própria vida nem a deixam de viver. Estarem vivas é uma das condições para que o tráfico ocorra, assim como é condição para enfrentá-lo e se libertarem ou serem resgatadas. São vidas que não contam, não compram, não consomem, pelo contrário, são compradas, consumidas e estão fora de cena. São vidas não choradas, tal qual Butler (2010) observa, algo que é vivo, porém distinto da vida.

A abordagem do cenário de exploração pela grande mídia como denúncia causa estranhamento e assombro, como dado gera o sentimento de exceção, de algo que acontece aleatoriamente e com o qual não temos nada a ver. A crueza da realidade não alcança as telas da alienação nossa de cada dia. Escorre lágrima e sangue por elas, mas não sentimos os respingos. Cólera e náusea são expostas à nossa frente, mas fechamos os olhos para não sermos testemunhas.

Os veículos midiáticos transmitem mais que conteúdos de entretenimento e informação, eles veiculam ideias, ideologias. Tais ideologias são diluídas nas aproximações superficiais e estereotipadas que se faz da realidade, fincadas em modelos idealizados e que atendam à lógica do consumo, garantindo a reprodução das formas simbólicas.

A grande mídia, como elemento da indústria cultural, é parte da rede de captura que perverte até as tendências políticas mais revolucionárias, usandoas a seu favor, causando, assim, a ilusão de ser democrática. Ao apreender os particularismos, cria uma atmosfera de universalidade, abrangendo os mais diversos públicos. Inserida nesse contexto, a telenovela, que é o foco deste texto, não escapa a essa lógica e promete uma imitação da vida, colocando-se como arte, imitação que, mesmo distante e destoante da própria vida, apresenta-se como se fosse sua fiel expressão e convida o público para sua encenação.

A atitude do público que, pretensamente e de facto, favorece o sistema da indústria cultural é uma parte do sistema, não sua desculpa. Quando um ramo artístico segue a mesma receita usada por outro muito afastado dele quanto aos recursos e ao conteúdo; quando, finalmente, os conflitos dramáticos das novelas radiofônicas tornam-se o exemplo pedagógico para a solução de dificuldades técnicas, que à maneira do jam, são dominadas do mesmo modo que nos pontos culminantes da vida jazzística; ou quando a "adaptação" deturpadora de um movimento de Beethoven se efectua do mesmo modo que a adaptação de um romance de Tolstoi pelo cinema, o recurso aos desejos espontâneos do público torna-se uma desculpa esfarrapada (Adorno & Horkheimer citados por Duarte, 2004, p. 101).

Adorno e Horkheimer (Duarte, 2004), obviamente, em outro momento do capitalismo, utilizaram as novelas radiofônicas para ilustrar esse movimento de captura do outro pela mídia. Segundo esses autores, há um processo de pedagogização inerente a essas novelas, o que observamos também nas telenovelas contemporâneas, como é o caso de "Salve Jorge", que iremos analisar logo em seguida. Essa pedagogização pode ser constatada em diversos momentos, desde a resolução de conflitos, até a escolha por como tratar os conteúdos informativos e montar os personagens. A ênfase desloca-se dos detalhes para a fantasia, e alguns espectadores arriscam dizer que o início de uma trama entrega seu final. Os absurdos não carecem de véu, dialogam com o interesse cansado dos que param diante da televisão. A plateia é usada como desculpa para o que é veiculado, contudo acaba integrando a engenhoca engenhosa da indústria cultural.

3. O MÉTODO

Preocupados em compreender os diferentes elementos (pessoais, sociais e econômicos) que levaram mulheres a investir no discurso sedutor das propostas lançadas pelos traficantes e quais estratégias utilizadas por elas para sobreviver, recorremos à investigação do que se tem produzido, principalmente pela indústria cultural, sobre o assunto e deparamo-nos com a telenovela global "Salve Jorge", que esteve em exibição entre 22 de outubro de 2012 e 17 de maio de 2013. É com base nos discursos veiculados por essa telenovela que desenvolveremos nossas análises sobre a produção da mulher traficada pela mídia de massa.

Para a realização da pesquisa, fizemos o mapeamento do primeiro ao último episódio, capítulo a capítulo, tomando como dados: número do capítulo; data de exibição; total de cenas; e número, título e tempo de duração das cenas que tematizam o tráfico de mulheres. A escolha por essa forma de organização ocorreu por percebermos que, ao longo da trama, o tráfico de mulheres foi atravessando os outros núcleos temáticos da telenovela, de modo que existiam cenas em que o título não anunciava relação direta com o tema, mas traziam conteúdos importantes para a discussão.

Percebeu-se também que algumas cenas traziam implícito em seu título certo conteúdo relacionado ao tráfico, mas sem diálogos significativos para transcrição, seja pelo discurso esvaziado, seja pela repetição em relação a capítulos e cenas anteriores. Pôde-se observar tal constatação na cena 13 do capítulo 75 (Waleska é obrigada a trabalhar na rua) e na cena 26 do capítulo 78 (Waleska pergunta a Irina sobre seu trabalho na rua), nas quais os diálogos não diferem de forma considerável, sendo escolhida para transcrição apenas uma das duas (neste caso, a primeira), devido a uma questão cronológica.

É importante assinalar que inicialmente todas as cenas inseridas no mapeamento foram transcritas, entretanto, com o passar dos capítulos, começamos a perceber a repetição dos discursos, de forma que diminuímos o número de cenas transcritas por capítulo, dando ênfase às consideradas principais, de acordo com os diálogos travados. Passado mais um tempo, a repetição intensificou-se e, como estratégia, decidimos eleger apenas uma cena por capítulo para a transcrição, escolhendo aquela que continha o discurso considerado mais expressivo e menos ou não repetitivo. Essa estratégia revelou que a repetição ao longo do desenvolvimento da trama chegou a tal intensidade que alguns capítulos tinham grande número de cenas sobre tráfico de mulheres, mas sem diálogos que poderiam ser considerados representativos. Dessa forma, não foi realizada a transcrição de tais capítulos, apenas seu registro no mapeamento.

Entendemos que essa repetição diz do próprio aspecto pedagógico da telenovela, o que contribui para perpetuar uma imagem cristalizada da realidade com base em um recorte midiático e de interpretá-la como um prolongamento de uma vida que não vivemos, mas que passa diante de nossos olhos diariamente. Figura e fundo estão sintonizados de tal forma que o óbvio pode ser questionado a partir do momento em que se identifica uma ideia ao fundo que desloca a figura de acordo com seus interesses.

4. O TRÁFICO DE MULHERES SEGUNDO A TELENOVELA "SALVE JORGE"

A telenovela "Salve Jorge", escrita por Glória Perez, veiculada no horário nobre da Rede Globo de Televisão, foi ao ar pela primeira vez no dia 22 de outubro de 2012 e teve seu último capítulo (179º) exibido em 17 de maio de 2013. Desde o princípio, a trama anunciava o tráfico de pessoas, com ênfase no tráfico de mulheres, como um de seus núcleos temáticos centrais.

A princípio, o ponto forte da rede de tráfico foi uma boate em Madri, Espanha. Após um dos associados ter problemas com a polícia, a boate foi descoberta e a chefia conseguiu transferir a tempo a sede para Istambul, na Turquia. Na trama apresentada pela telenovela, essa rede teria várias boates espalhadas pelo exterior, sendo que uma delas estaria localizada na Itália e seria especializada em prostituição de homossexuais. Os traficados e as traficadas eram mantidos em regime de cárcere privado, num alojamento que pode ser externo ou interno à boate. Eram oferecidos diversos tipos de serviços: delivery, site, boate com bar, quartos, shows de dança, striptease e venda de drogas, prostituição de rua, entre outros. Os traficados e as traficadas eram aliciados em seu país de origem com a proposta de trabalhar no exterior por três meses, ganhando 1.500 dólares ao mês. Os tipos de emprego oferecidos variavam de acordo com o público-alvo, indo da prostituição até o de garçonete. A abordagem contou com o envolvimento do aliciador com a família e, ou, amigos e pessoas próximas do traficado, seja direto (por meio de visitas, conquista da confiança e amizade) e, ou, indireto, por meio de monitoramento intensivo.

A telenovela tomou como foco de atenção o fato de que, além de serem explorados sexualmente, os traficados e as traficadas eram obrigados a realizar a limpeza da boate. Cada dia sem realizar programa era acrescentado à dívida que eles acumulavam com a quadrilha. Essa dívida também incluía as roupas que eles usavam para trabalhar, a comida precária que recebiam, as passagens de ida para o destino de exploração, os gastos pré-viagem, eventuais presentes que a quadrilha comprava para os familiares e próximos dos traficados, prejuízos que eles deram à quadrilha, entre outros. Enfatizou-se que eles eram vigiados 24 horas por seguranças comandados pela personagem Russo, que constantemente os ameaçava, forçava-os a ligar para os parentes e mentir, dizendo que estava tudo bem, enquanto apontava uma arma para suas cabeças, aplicava os castigos e fazia os serviços sujos.

As mercadorias, como eram chamadas (capítulo 143, cena 3: Waleska avisa Almir que novos traficados estão chegando), enfrentavam péssimas condições de alojamento, todos dividiam um mesmo cômodo mal iluminado, com infiltrações, sem acabamento e com escassa e velha mobília. O que os ligava com a vida que deixaram para trás eram as lembranças, o medo de que algo de ruim acontecesse com os seus e os poucos pertences que puderam levar consigo.

Como facilmente observou-se nesses episódios, os discursos tecidos pela trama de "Salve Jorge" foram construindo uma identidade para a mulher traficada. Mas quem seriam essas mulheres? Entre as traficadas, quatro personagens se destacam. Waleska se prostituía numa boate no Rio de Janeiro antes de ser cooptada pela quadrilha, tinha uma amiga que estava ganhando muito dinheiro se prostituindo na Suíça e não pensou duas vezes ao receber a proposta para se prostituir no exterior. Jéssica era uma moça de origem humilde que acreditava que, com a proposta de trabalhar numa pizzaria no exterior, poderia realizar o sonho da casa própria e ajudar sua mãe. Rosângela participou de uma seleção para modelos realizada por um suposto projeto de inclusão social. Foi escolhida e acabou fazendo companhia a Waleska e Jéssica. Morena, a protagonista da trama, morava no Morro do Alemão, e o tráfico chegou até ela em meio a um grande endividamento e ameaças de despejo da casa onde morava com a mãe, a tia e o filho, ambiente propício para aceitar a promessa de ser garçonete em um café no exterior e ganhar 1.500 dólares ao mês, por três meses. A história contada para todas era praticamente a mesma, o que variava era a ocupação e a abordagem.

Waleska preferiu não provocar a quadrilha pelo número de coisas que já viu e ouviu desde que se encontrou na condição de traficada, como ameaça, perseguição, morte (capítulo 3, cena 14: Waleska explica o esquema da boate para Jéssica; capítulo 4, cena 9: Waleska aconselha Jéssica a não enfrentar Irina), ameaças contra familiares, prostituição na rua (capítulo 6, cena 10: Waleska fala para Jéssica se conformar), venda de traficadas para a indústria pornográfica (capítulo 26, cena 3: Waleska conta que foi para um estúdio de filme pornô), aborto e drogadição forçados, morte (capítulo 153, cena 5: Waleska conta detalhes da violência praticada por Russo contra traficadas). Quando confrontada por Jéssica em virtude da sua imobilidade, Waleska deixou bem claro o porquê de sua postura: "Porque eu sei com quem eu tô lidando, cês tão duvidando ainda, só que eu sei. Aqui, minha filha, a escolha é entre morrer ou se dobrar" (capítulo 5, cena 21: Jéssica avisa que tem um plano para escapar dos bandidos).

Jéssica e Morena tentaram, de diversas formas, fugir (capítulo 7, cena 21: Jéssica pede ajuda a um brasileiro; capítulo 50, cena 1: Morena e Jéssica planejam fuga pelo ar-condicionado; capítulo 56, cena 8: Morena e Jéssica abrem buraco na parede para escapar; capítulo 63, cena 20: Jéssica tenta fugir do hotel vestida de camareira; capítulo 67, cena 6: Morena e Jéssica temem pedir socorro no aeroporto), mas sempre eram pegas e recebiam punições exemplares (capítulo 8, cenas 4 - Russo espanca Jéssica - e 5 - Russo ameaça acabar com a vida de Jéssica; capítulo 13, cena 1: Russo abusa de Jéssica; capítulo 43, cena 18: Morena é vendida em um leilão de mulheres; capítulo 60, cena 1: Morena e Jéssica descobrem que vão voltar ao Brasil levando drogas; capítulo 64, cena 18: Jéssica descobre que sua casa no Brasil pegou fogo; capítulo 99, cena 1: Irina manda colocarem Morena no depósito; capítulo 100, cena 13: Irina coloca Morena para trabalhar na rua). O diálogo a seguir ilustra a parceria em meio ao desespero de ambas: "Jéssica: Pensei que cê fosse capaz de qualquer coisa pra escapar deles. Morena: Eu sou, Jéssica, acontece que eu tenho que agir com a cabeça, entendeu? Você não tem um filho, eu tenho" (capítulo 63, cena 20: Jéssica tenta fugir do hotel vestida de camareira).

Rosângela preferiu se aliar aos inimigos (capítulo 73, cena 1: Waleska percebe quando Rosângela a entrega para Irina; capítulo 92, cena 19: Russo fica com Rosângela; capítulo 94, cena 8: Rosângela entrega Morena para Russo) e, em troca, recebeu uma série de benefícios, como quando ganhou um quarto só para si (capítulo 83, cena 11: Rosângela provoca as outras garotas), quando conquistou um produtor de modelos e começou a fazer comerciais (capítulo 91, cena 8: o produtor de modelos fica encantado com Rosângela; capítulo 92, cena 4: Rosângela fotografa para campanha de carro), quando ajudou Irina com o caixa da boate (capítulo 45, cena 7: Jéssica acusa Rosângela de querer o lugar de Irina) ou quando voltou para o Brasil para aliciar mulheres e homossexuais (capítulo 110, cena 19: Rosângela ajuda Wanda a aliciar uma garota; capítulo 129, cena 11: Rosângela alicia um rapaz na praia). Na primeira cena (Morena ajuda Rosângela a fugir) do último capítulo (179), ela resume sua escolha quando confrontada por Morena: "Rosângela: Eu só quis sobreviver, tudo que eu fiz foi pra sair daquele lugar imundo, tudo que eu fiz foi pra deixar de ser escravizada, e a única porta que se abriu pra mim foi essa, de me aliar com eles, eu só me agarrei ao que eu podia me agarrar".

Com um ano de traficada, Waleska conheceu Jéssica. A próxima a fazer companhia às duas foi Rosângela. Morena foi a última a desembarcar nesse mundo. Jéssica foi tomada por um grande estranhamento quando pisou pela primeira vez na boate, esse capítulo é emblemático pelo conteúdo de identidade presente na fala de Waleska, por isso destacamos duas de suas cenas:

Jéssica: Seu nome não é Waleska?

Waleska: Claro que não, vou ficar me expondo? Vai que tem uma batida aqui dentro e sai meu nome no jornal no Brasil pra todo mundo ver, tá louca? Tiffany. Tiffany. Lola, hum. Ah, sei lá, escolhe um desses nomes fortes, sabe, esses nomes que mexam com a imaginação dos caras (capítulo 5, cena 9: Jéssica tenta pedir ajuda a um cliente).

Para um bom número de pessoas, o tráfico de seres humanos apareceu como algo novo, sendo que, por meio de "Salve Jorge", várias delas puderam entrar pela primeira vez em contato com tal fenômeno, o que, ainda que de uma forma romantizada própria desses veículos midiáticos, ofereceu certa visibilidade para o problema. A telenovela traz dois momentos de incredulidade perante tal assunto que paradoxalmente partem de um advogado, Haroldo e de um militar, o capitão Théo. O desconhecimento por parte desses dois profissionais que deveriam ter clareza sobre o assunto pode levar o espectador a pensar que é perdoável e até comum não saber e, ou, duvidar da existência desse tipo de tráfico.

Alguns depoimentos contando histórias reais de mulheres traficadas foram intercalados entre cenas de capítulos aleatórios da telenovela. Dois desses vídeos correspondem à história da mulher que inspirou a personagem Morena, a brasileira Ana Lúcia Furtado (Porto & Ahmed, 2013). Ana Lúcia foi traficada em 1998 para Tel Aviv, em Israel. Trabalhava como empregada doméstica para sustentar os três filhos e viu na proposta de oito meses no exterior a chance de comprar a casa própria e dar um futuro melhor aos filhos. Ela embarcou com outras meninas, uma delas era sua amiga e não teve a mesma sorte que ela de ser resgatada a tempo, provocaram uma overdose por heroína injetável e jogaram seu corpo enrolado num lençol junto com o passaporte e a passagem de volta em um beco qualquer de Tel Aviv.

Ao passo que os discursos saíam da tela para o papel, uma personagem ia ganhando destaque, o da mulher traficante, que a piori não estava previsto no projeto que deu cabo a esta pesquisa. Essas personagens não despertaram curiosidade e interesse apenas como traficantes e vilãs, mas também por serem mulheres, por uma questão de gênero, já que são mulheres que escravizam outras mulheres.

Da metade ao final da trama, foram apresentados dois dados importantes. O primeiro era de ordem política, um novo membro da quadrilha, chamado Riva (que, ao final, é revelado como agente infiltrado da Interpol), comentou com Irina sobre o aumento do interesse dos governantes no tráfico de pessoas: "Parece que os governos do mundo todo resolveram se preocupar com o tráfico humano. É conferência pra todo lado, é reunião na ONU, é o Obama lançando campanha pra combater. A notícia boa é que tá dando cada vez mais lucro" (capítulo 147, cena 6: Riva afirma que tráfico humano está cada vez mais lucrativo). O segundo corresponde a uma cena na qual Wanda contou para Rosângela o quanto a indústria do tráfico de pessoas lucra:

Rosângela: Mas, Wanda, o que que rende mais, os bebês ou a mulher pra prostituição?

Wanda: O que dá mais é gente, entendeu? Pra tudo, pra prostituição, pra trabalho, pra adoção, seja lá pro que for. Rosângela, esse é o negócio do momento, entendeu. Agora pra gente de segundo, terceiro, quarto ou quinto escalão não, não, não, mas pra chefia.

Rosângela: E quanto que rende mais ou menos?

Wanda: Haha, ai, olha, movimenta trinta e dois bilhões de dólares por ano, tá bom pra você? (Capítulo 151, cena 5: Wanda conta para Rosângela o quanto se ganha com tráfico humano)

O desfecho da telenovela desemboca no seguinte final: assim como a amiga de Ana Lúcia, Jéssica foi morta por overdose provocada ao descobrir que Lívia era a chefe da quadrilha (capítulo 79, cena 21: Lívia é descoberta e aplica uma injeção em Jéssica). Rosângela fez uma boa ação durante sua aliança com os traficantes ao reconhecer como de Morena o corpo encontrado após uma explosão na boate. Morena tinha aproveitado a confusão e fugido (capítulo 106, cena 10: Rosângela mente e afirma a Russo e Irina que Morena morreu). Apesar de Morena a ter deixado escapar ao final (capítulo 179, cena 1: Morena ajuda Rosângela a fugir), ela acabou sendo capturada pela Polícia Federal (capítulo 179, cena 22: pela TV, Haroldo descobre que Rosângela foi presa). Com a ajuda de Morena, Waleska e as demais traficadas foram resgatadas em uma ação da Polícia Federal (capítulo 179, cena 11: Helô e sua equipe invadem a boate).

A telenovela é encerrada, e uma nova é anunciada, o tema do tráfico de mulheres é substituído por um novo: "Amor à vida". E o que ainda poderíamos esboçar sobre "Salve Jorge"? Refletimos, a seguir, sobre alguns elementos discursivos que foram apresentados pela telenovela e que certamente influenciaram diretamente na construção midiática da identidade de mulheres traficadas por meio dos discursos veiculados por ela.

5. OS (DES)CAMINHOS DO DISCURSO MIDIÁTICO PARA A IDENTIDADE DAS MULHERES TRAFICADAS DE "SALVE JORGE"

A cultura, considerada "socialmente necessária" segundo as regras clássicas, ou seja, algo que se reproduz economicamente, restringe-se novamente ao âmbito em que se iniciou, o da mera comunicação. Sua alienação do humano desemboca na absoluta docilidade em relação à uma humanidade metamorfoseada em clientela pelos fornecedores (Adorno, 2009, p. 51-52).

Ao escolhermos uma telenovela transmitida por uma rede televisiva de grande alcance, não podemos ignorar o teor midiático carregado por ambas. A Rede Globo é um dos maiores canais brasileiros, atingindo diariamente milhões de pessoas das mais distintas faixas etárias, posições econômicas e gêneros. O período no qual "Salve Jorge" foi veiculada é considerado o horário nobre entre os outros horários nos quais as demais telenovelas da rede são transmitidas. Adorno (2009) nos ajuda a compreender a lógica industrial e a ideologia por trás da iniciativa de tais veículos trabalharem não somente conteúdos banais, mas assuntos com teor polêmico e de impacto direto na visão de mundo e homem de milhões de pessoas. Devemos nos perguntar: "quais os perigos de consumir acriticamente tais produtos ao ponto de acreditar que eles detêm a verdade?" ou "Será que consumimos acriticamente tais produtos e acreditamos na sua verdade?". Adorno (2009, p. 69-70) já havia nos ensinado:

As pessoas aceitam e consomem o que a indústria cultural lhes oferece para o tempo livre, mas com um tipo de reserva, de forma semelhante à maneira como mesmo os mais ingênuos não consideram reais os episódios oferecidos pelo teatro e pelo cinema. Talvez mais ainda: não se acredita inteiramente neles.

Segundo Adorno (2009), há uma parcela de criticidade por parte do espectador. Perguntamo-nos: até que ponto essa criticidade alcança ou apreende o outro, nesse caso, a mulher traficada? Será que os espectadores se identificam com os discursos de Théo e Haroldo sobre a pressuposta fantasia em torno da existência do tráfico de pessoas? Ou será que eles se identificam com a vitimização da mulher traficada como enganada, iludida e sofredora? É fato que os discursos produzem personagens e os fazem ser conhecidos como estereótipos, estigmatizando uma produção que, fora da ficção, acontece de forma dinâmica e singular; afinal, há mulheres traficadas e não a mulher traficada.

A tradição hermenêutica chama a nossa atenção para um outro aspecto da interpretação que é relevante aqui: ao interpretar as formas simbólicas, os indivíduos as incorporam na própria compreensão que têm de si mesmos e dos outros. Eles as usam como veículo para reflexão e autorreflexão, como base para refletirem sobre si mesmos, os outros e o mundo a que pertencem. Usarei o termo "apropriação" para me referir a este extenso processo de conhecimento e autoconhecimento. Apropriar-se de uma mensagem é […] adaptar a mensagem à nossa própria vida e aos contextos e circunstâncias em que a vivemos; contextos e circunstâncias que normalmente são bem diferentes daqueles em que a mensagem foi produzida (Thompson, 1998, p. 45).

Thompson (1998), pelo conceito de apropriação, defende que o espectador está em relação com os conteúdos que os meios de comunicação lhe oferecem. A apropriação pode ser entendida como um processo de formação dos indivíduos de forma coletiva, que incide no modo como eles compreendem a si, sua condição, sua localização no tempo e no espaço e suas metamorfoses. É um processo dinâmico, contínuo e silencioso com capacidade tanto de entranhar quanto de evaporar. Esse mecanismo autoformativo conduz os sujeitos em suas visões de homem e mundo, podendo causar inúmeros mal-entendidos e confusões, dado seu viés discursivo.

Parece-nos importante assinalar aqui que entendemos discurso "Como uma prática que forma os objetos dos quais fala, e não como um conjunto de signos remetido a um conteúdo ou a uma representação" (Venson & Pedro, 2011, p. 210). O discurso transborda o enunciado, o dito, ele vai além, produzindo aquele ao qual evoca, assim a personagem mulher traficada passa a povoar o imaginário popular como sujeito real, podendo se tornar a referência para tal categoria. As imagens das traficadas de "Salve Jorge" carregam a potência de se materializar como identidades das quais podemos achar que sabemos tudo, dado o mapeamento realizado no desenrolar de suas histórias no decorrer da telenovela.

Esses discursos estão em movimento e movimentam. O trabalho de Venson e Pedro (2011) testemunha isso, ao constatar que

O tráfico de mulheres se redefine constantemente a partir de diferentes discursos que lhe atribuem determinadas características, investem seus atores de atributos morais, explicamno por meio de referências sociais e culturais, apontam causas e consequências (p. 210).

O tráfico de pessoas, especificamente o de mulheres, é atravessado e atravessa questões políticas, éticas, sociais e discursivas, envolto em uma teia complexa de interesses que deslocam a mulher traficada de vítima para vilã, de criminosa para ludibriada. Estudos feministas, como o de Kempadoo (2005), confirmam uma construção enraizada da vinculação entre tráfico, imigração e prostituição que reforçam esses deslocamentos.

Identificamos que a máxima patriarcal de que "o homem migra e a mulher é traficada" considera, uma vez mais, o homem como livre e autônomo para escolher, circular, etc., e a mulher como vítima (principalmente se migra sozinha) das máfias e redes perversas do mercado internacional do sexo (Mayorga, 2009, p. 83, tradução nossa).4

Além de ficar clara na telenovela a associação entre tráfico de mulheres e prostituição, destacamos a ênfase no tráfico de bebês e mulheres, aproximando essas duas categorias. As políticas públicas, tratados e outros documentos que versam sobre o tráfico de pessoas se restringem a apontar crianças, adolescentes e mulheres como as vítimas desse crime, trabalhando em cima de um conteúdo aparentemente velado de gênero e colocando em pé de igualdade essas três figuras distintas, cercando as mulheres de uma áurea de infantilidade. Podemos aqui arriscar falar de uma sexualização e uma sexuação do tráfico de pessoas, elencando o gênero feminino e a prostituição como os motores dos discursos que o instituem e veiculam.

Mayorga (2009) expõe o quanto esse quadro tem relação com conteúdos sexistas e patriarcais envoltos numa construção sócio-história da mulher e dos papéis desempenhados por estas. A mulher que busca autonomia, que conquista espaços entre os homens, que se empodera, que luta por direitos mais igualitários e galga seu próprio caminho também é a mulher que se lança a atravessar fronteiras estrangeiras com desconhecidos em nome do sonho de uma vida melhor, de dar condições para que seus filhos não reproduzam o círculo vicioso de pobreza, de fugir de uma condição de submissão, de violência e ir em busca de reescrever suas histórias.

A escolha pela forma como abordar o tráfico de mulheres na telenovela em análise incluiu também o âmbito internacional como destaque e algumas alusões à imigração e fronteiras que, na realidade, acabam sendo algo mais grave do que é apresentado.

O que nos parece importante destacar é que, por trás dos discursos em defesa dos direitos humanos, de dignidade das mulheres e do combate ao patriarcado, podem existir discursos que a priori poderiam ser emancipatórios, mas terminam por repetir estratégias hegemônicas de dominação e estigmatização de mulheres, especialmente as do Terceiro Mundo (Mayorga, 2009, p. 82).6

O que Mayorga (2009) assinala vai ao encontro de nossa crítica acerca da excessiva vitimização das mulheres traficadas exercida pelos discursos em prol dos DH, que, ao contrário do que aparentam, podem acabar reforçando os discursos que inferiorizam ou eufemizam as mulheres, incidindo diretamente na autonomia destas e nas suas formas de enfretamento de tais histórias. O aprisionamento dessas mulheres no rótulo de traficadas pode paralisá-las e dificultar a forma como lidam com essa parte de suas histórias, além da sua dificuldade de encarar o olhar do outro que não deixa de ser um olhar de julgamento e até condenação. As traficadas de "Salve Jorge" transitam entre a imobilidade e a inconformidade, ora esperando que alguém as salve, ora arriscando suas vidas para vivê-las. Conseguir fugir ou ser resgatada de tal condição nem sempre é sinônimo de libertação. Além do olhar do outro, há vários discursos que as encurralam e não as deixam esquecer os fantasmas do passado. Algumas, atormentadas, voltam para o tráfico, o que não é o caso da telenovela.

Como Mayorga (2009, p. 94, tradução nossa) escreve: "Não é que estas sejam naturalmente prostitutas, mas sim que são sexualizadas".5 Em "Salve Jorge", Morena, entronizada como a heroína das traficadas e que tantas vezes se arriscou em tentativas de fuga, quando se vê livre, é pega pelo medo do olhar do outro, com seus preconceitos, julgamento e moralismos. Na vida real, reescrever uma história tão marcada requer apoio, e esse apoio não deve se resumir ao seio familiar e ao círculo de amizades, deve ir além, contar com ferramentas sociais especializadas e profissionais sensíveis e capacitados.

No trabalho de transcrição das cenas de "Salve Jorge", deparamo-nos com fortes conteúdos identitários e que merecem lugar em nossa análise neste artigo. Duas das cenas mais emblemáticas foram citadas aqui, referentes a quando Jéssica iniciou as atividades na boate e Waleska, percebendo que ela não estava à vontade, disse a ela para criar uma personagem que a facilitasse encarar aquela situação. Curioso perceber como a telenovela insere um elemento que geralmente não é comum na construção das tramas: a necessidade ou capacidade de criarmos outras personagens.

Nos estudos contemporâneos sobre a identidade, autores como Lima (2012) assinalam que "a identidade se expressa a partir de várias personagens, isso implica admitir que é impossível viver sem personagens, na medida em que sempre nos apresentamos como representantes de nós mesmos frente aos outros" (p. 12). Tomando as cenas supracitadas, Waleska e Jéssica encenam para sair de cena. A personagem seria a negação do que elas são ou como se identificam, é a personagem que sustenta suas vidas enquanto traficadas, é resistência e (re) existência em meio ao insustentável.

Encarnar uma personagem, mais que isso, aceitar encarná-la é uma forma de reconhecimento entre essas mulheres traficadas. Há aí uma coletividade, um nós, uma espécie de desamparo amparado. Estão todas feridas em seus direitos mais básicos, contudo estão ali compartilhando uma condição que supera o colocar-se no lugar do outro. O outro e o espelho borram-se violentamente.

Essas configurações de identidade evidenciam a metamorfose constituinte desta. O ser traficada não é apenas um fenômeno na vida das mulheres traficadas, ele passa a ser o fenômeno que fragmenta suas histórias em antes, durante e depois. Isso é importante, porque há mulheres que ancoram suas vidas no durante, ainda que, como ex-traficadas, não conseguem se desatar da cristalização desse estigma, deixam de ser mães, mulheres, esposas, namoradas, trabalhadoras e tantas outras quantas para serem evocadas como traficadas. Acerca da cristalização da identidade, Butler (2009, p. 62, tradução nossa) discorre:

A meu ver, a suspensão da demanda de autoidentidade ou, mais particularmente, de completa coerência, contra-ataca certa violência ética, que nos exige manifestar e manter essa identidade com nós mesmos em todas as ocasiões e requer que os demais façam o mesmo.7

Esse é um dos perigos das políticas identitárias e demais serviços e discursos em prol dos direitos humanos, usar da violência ética para com a vítima, a fim de reafirmar a importância de se investir em determinada causa, aqui a de combate ao tráfico de pessoas, aprisionando a pessoa numa identidade dolorida e esmagadora, sem que ela possa dicotomizar sua condição enquanto sofredora, porém guerreira, enganada, porém desconfiada, entre tantas outras. Como observa Lima (2010), aprofundando a análise das políticas identitárias nos trabalhos de Antônio da Costa Ciampa, tais políticas de identidade:

Acabam por expressar um tipo de discurso a favor de uma autodeterminação excludente, o que significa que dentro de tais políticas o indivíduo acaba por se colocar diante do outro de forma estigmatizada a partir da representação, consciente ou não, de uma determinada personagem (p. 170).

À guisa de conclusão, parece oportuno apresentar nossas últimas considerações sobre o que aprendemos com a análise dos episódios da "Salve Jorge". Diante da celebração hegemônica ingênua das diferentes mídias sobre o mérito da autora e da Rede Globo de Televisão em escolherem o tema do tráfico de mulheres, é preciso contrapor um olhar e uma escuta crítica perante os discursos veiculados.

Como foi possível observar, assumir que a telenovela trouxe um conteúdo de alta relevância social e possibilitou que milhares de pessoas percebessem, pela primeira vez, que o tráfico de pessoas é uma realidade e requer medidas estratégicas em profundidade não significa apoiar as distorções alimentadas por ela. Afinal, ao trazer elementos da vida para produzir o enredo da telenovela, "Salve Jorge" tenta apresentar-se como um espelho da realidade, com isso acaba por reduzir toda a complexidade da questão do tráfico de mulheres a uma fórmula pronta, na qual o final feliz é inevitável. Se, por um lado, apresenta as dificuldades do tema, por outro retoma a velha fórmula de culpabilização dos sujeitos, que se colocariam em situações vulneráveis e seriam os únicos responsáveis por seus destinos.

Sendo a novela um produto da indústria cultural, não foi uma novidade encontrar os diferentes elementos assinalados no texto. O que parece ser interessante é o desafio que é apresentado aos pesquisadores do tema, que agora devem estar ainda mais atentos, pois tendem a deparar-se com produtos cada vez mais sofisticados voltados para a administração da sociedade

REFERÊNCIAS

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Texto recebido em 2 de janeiro de 2014 e aprovado para publicação em 29 de junho de 2015.

 

 

* Psicóloga pela Universidade Federal do Ceará (UFC), campus Sobral. Mestre em Psicologia Social pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Possui experiência nas áreas clínica, escolar, social e de docência no ensino superior. Áreas de interesse: Psicologia Social, Psicologia e Maternidade/Parentalidade, Psicologia Humanista e Direitos Humanos. E-mail: rosianeaa@ yahoo.com.br.
** Psicólogo com estágio pós-doutoral, doutorado e mestrado em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), Especialista em Saúde Mental pela Universidade de São Paulo (USP) e Especialista em Psicologia Clínica pelo Conselho Regional de Psicologia (CRP/11). É Professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Ceará/UFC e professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia e do Mestrado Profissional em Saúde da Família UFC/FIOCRUZ/RENASF. É bolsista de Produtividade em Pesquisa (PQ-2) do CNPq, líder do PARALAXE: Grupo Interdisciplinar de Estudos, Pesquisas e Intervenções em Psicologia Social Crítica UFC e co-líder do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa sobre Identidade Humana - NEPIM/PUCSP. E-mail: aluisiolima@hotmail.com.
1"Por lo común los espejos presentan la afortunada coincidencia de ser también ventanas" (Butler, 2009, p. 61).

2"De hecho, una figura viva fuera de las normas de la vida no sólo se convierte en el problema que ha de gestionar la normatividad, sino que parece ser eso mismo lo que la normatividad está obligada a reproducir: está viva, pero no es una vida" (Butler, 2010, p. 22).


3"Si ciertas vidas no se calificam como vidas o, desde el principio, no son concebibles como vidas dentro de ciertos marcos epistemológicos, tales vidas nunca se considerarán vividas ni perdidas en el sentido pleno de ambas palabras" (Butler, 2010, p. 13).


4"Identificamos que la máxima patriarcal de que: el hombre migra y la mujer es traficada; considera, una vez más, el hombre como libre y autónomo para elegir, circular, etc. – y la mujer como víctima – principalmente si migra sola – de las mafias y redes perversas del mercado internacional del sexo" (Mayorga, 2009, p. 83).


5"Lo que nos parece importante destacar es que por detrás de los discursos en defensa de los derechos humanos, de la dignidad de las mujeres y del combate al patriarcado pueden existir discursos que a priori podrían ser emancipatorios, pero terminan por repetir estrategias hegemónicas de dominación, discriminación y estigmatización de mujeres, especialmente las del Tercer Mundo" (Mayorga, 2009, p. 82).


6"No es que estas sean naturalmente prostitutas, sino que son sexualizadas" (Mayorga, 2009, p. 94).


7"A mi parecer, la suspensión de la demanda de auto identidad o, más particularmente, de completa coherencia contrarresta cierta violencia ética, que nos exige manifestar y mantener esa identidad con nosotros mismos en todas las ocasiones y requiere que los demás hagan otro tanto" (Butler, 2009, p. 62).


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