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Revista da SPAGESP
versão impressa ISSN 1677-2970
Rev. SPAGESP vol.11 no.1 Ribeirão Preto jun. 2010
ARTIGOS
Encontros para a construção coletiva de reflexões: uma possibilidade de lidar com o sofrimento mental para além da consulta
Meetings for the construction of collective reflections: a possibility of dealing with mental distress in addition to consultation
Reuniones para la construcción de la reflexión colectiva: la posibilidad de hacer frente a los transtornos mentales, además de la consulta
Isabela Bergier Dietrichkeit 1
Centro de Atenção Psicossocial de Serra Negra, SP
RESUMO
Este trabalho descreve uma maneira de ampliar as possibilidades de participação de pessoas com sofrimento mental no entendimento e consequente melhora de suas queixas. Percebeu-se durante os atendimentos em consultas psiquiátricas que, sob os sintomas de parte dos pacientes, ocultavam-se dificuldades existenciais humanas, como, por exemplo, intolerância aos períodos de tristeza que podem fazer parte da vida. Tais dificuldades permaneciam inconscientes, como se os sintomas fossem algo que surgisse do nada, causando passividade e exagerada expectativa no efeito exclusivo dos medicamentos. Criamos encontros abertos à população baseados nessas percepções, com a intenção de, por meio de temas e de formas de apresentação provocativas, convidar os participantes a uma reflexão ativa e conjunta. Tais encontros tiveram por objetivo favorecer o surgimento de novos olhares e atitudes frente aos sintomas, colocando o "doente/sofredor" no papel de cocriador de novas possibilidades frente ao sofrimento e à própria vida e, por fim, favorecendo a transformação dos sintomas em possibilidade de cura.
Palavras-chave: Sofrimento mental; Sintomas; Transformação; Cura.
ABSTRACT
This study describes a way to expand the opportunities for people with mental distress to understand their complaints and, in consequence, to improve. It was noticed during the psychiatric consultations that behind the symptoms of the patients, human existential difficulties were hidden, such as intolerance to periods of sadness that can be part of life. Such difficulties remained unconscious, as if the symptoms were something that arose from nowhere, causing exaggerated expectations and passivity in the exclusive effect of drugs. We created meetings open to the population, with the intention to invite, through themes and provocative presentations, participants to join an active and conjoint reflection. These meetings were intended to encourage the emergence of new perspectives and attitudes towards symptoms, positioning the "patient / sufferer" in the role of co-creator of new possibilities in response to suffering and life itself, and finally, promoting the transformation of symptom into the possibility of cure.
Keywords: Mental distress; Symptoms; Transformation; Healing.
RESUMEN
Este estudio describe una forma de ampliar las oportunidades de participación de las personas con trastornos mentales en la comprensión y la consiguiente mejora de sus quejas. Se observó durante las visitas en las consultas psiquiátricas que, debajo de los síntomas de los pacientes, se ocultaron humanos dificultades existenciales, como la intolerancia a los períodos de tristeza que puede ser parte de la vida. Estas dificultades se mantuvieron inconscientes, como si los síntomas fueron algo que surgió de la nada, haciendo que las expectativas exageradas y la pasividad en el efecto único de los medicamentos. Sobre la base de estas percepciones se crearon las reuniones abiertas a la población, con la intención, a través de temas y presentaciones de provocación, de invitar a los participantes a una reflexión conjunta y activa. Estas reuniones tenían por objeto favorecer la emergencia de nuevas perspectivas y actitudes de los síntomas, haciendo que el "paciente / víctima" en el papel de co-creador de nuevas posibilidades en respuesta al sufrimiento y la vida misma, y, por último, promover la transformación de los síntomas en posibilidad de cura.
Palabras clave: Trastornos mentales; Síntomas; Transformación; Curación.
Um serviço de saúde mental costuma atender pessoas em sofrimento. Este sofrimento vem sob várias formas, física e mental, ou só mental; individual ou de família; antigo ou recente; pontual ou repetitivo e de qualquer maneira, causando desconforto e desejo de dar fim ao mesmo.
Neste desejo de eliminar o sofrimento, surge a frequente fantasia de que os remédios prescritos pelo psiquiatra promoverão a resolução de tudo, a "cura", ao dar fim aos sintomas que são identificados como seus causadores. Tal ideia contribui para uma postura comum a diversos pacientes em consulta psiquiátrica, que é a de passividade e de atribuição ao profissional e sua prescrição, a total responsabilidade por sua melhora. Muitas vezes, a responsabilidade atribuída ao profissional estende-se à felicidade e à alegria permanente do paciente, alimentando uma ideia fantasiosa da dupla psiquiatra-medicamento como mágica e milagrosa.
Uma das bases dessa fantasia parece estar na confusão existente atualmente na medicina e no imaginário das pessoas, que toma o sintoma como sinônimo de doença, e sua eliminação como cura. Crer nesta equação simplista é como vender a ilusão de que os remédios são como pílulas mágicas, capazes de livrar a pessoa de qualquer sofrimento, ao simplesmente ingeri-los.
No entanto, na prática clínica, essa ilusão cai por terra, como quando os sintomas melhoram, ou são eliminados, e outros surgem em seu lugar. Ou ainda, quando se vão os sintomas e permanecem, seja um vazio, seja uma perda de sentido ou outras modalidades de desconforto e conflito que continuam gerando sofrimento.
Diante dessas constatações, precisamos de novos olhares diante dos sintomas. Um deles, nas palavras de Rudger Dahlke:
(...) a doença é um estado do ser humano que indica que, na sua consciência, ela não está mais em ordem, ou seja, sua consciência registra que não há harmonia. Esta perda de equilíbrio interior se manifesta no corpo como sintoma. Sendo assim, o sintoma é um sinal e um transmissor de informação, pois com seu aparecimento, ele interrompe o fluxo da nossa vida e nos obriga a prestar-lhes atenção (DAHLKE, 2007, p. 17, destaques em itálico do autor).
Ou seja, os sintomas são parte do sofrimento, mas também são luzes e setas apontando para necessidades de reflexões e mudanças. Como quando a luz vermelha acende no painel do carro e o levamos ao mecânico para descobrir o problema. A luz-sintoma não é o problema, e sim o aviso essencial de que há algo desajustado do todo.
É necessário transmitir aos usuários dos serviços de saúde mental, bem como às pessoas não usuárias, possibilidades de apreender os significados subjacentes aos sintomas. Podem assim ser trazidos à consciência questões e conflitos humanos. Com isso, há possibilidade de transformações e de integração de aspectos outrora dissociados da personalidade, o que amplia a saúde e reduz a necessidade do sintoma. Nas palavras de Denise Gimenez Ramos, analista junguiana:
Toda e qualquer doença é um símbolo (...). A compreensão dos sentidos do símbolo aponta a correção a ser feita (mecanismo de compensação). (...) O sintoma-símbolo compensa o "erro", e aponta sincronicamente a ‘correção' a ser feita, isto é, o conteúdo inconsciente que precisa ser integrado à consciência (RAMOS, 2006, p. 77).
Mas como provocar nas pessoas essa "curiosidade" sobre si, sua vida e escolhas quando diante de sintomas e sofrimento? Mais do que isso, como favorecer espaços de discussões e trocas de ideias sobre questões humanas fundamentais? Afinal, é com tais questões que nos deparamos quando nos aprofundamos nos significados dos sintomas. Havendo o hábito de pensar juntos sobre essas questões, seria possível reduzir a formação dos sintomas psíquicos?
O consultório pode ser o espaço inicial para esse tipo de abordagem, em consultas psiquiátricas ou em sessões de psicoterapia. Porém, é certamente insuficiente devido à alta demanda de pacientes e pelo tempo limitado disponível individualmente. Há grupos de psicoterapia que também apresentam demanda excessiva, embora atendam a um maior número de pessoas. No entanto, nenhuma dessas alternativas possibilita um trabalho preventivo, com indivíduos ainda sem doença mental.
Pensamos, então, na possibilidade de ampliar a área de atuação em relação à saúde mental, sem necessariamente falarmos de doença ou tratamento, e podendo receber e ouvir pacientes e "não pacientes". Assim, criamos encontros abertos à população em Serra Negra. A ideia central destes encontros era promover, por meio de temas provocativos, convites à reflexão dos presentes, em uma construção coletiva de ideias.
Concluímos que espaços para trocas de ideias deveriam ser abertos à comunidade, podendo incluir pacientes, parentes de pacientes e pessoas sem ligação alguma com serviços de saúde mental, até porque não queríamos criar encontros "viciados", que acabassem por desembocar apenas em questionamentos sobre certas doenças ou medicamentos, ou tornar-se um "muro de lamentações", como uma "consulta médica coletiva". Aliás, a ideia era justamente contrária, a de um espaço de pró-atividade, e não de passividade diante de um único "detentor do saber".
Apesar dessa intenção, a maioria dos participantes presentes aos encontros foram usuários dos serviços de saúde mental. Cremos que isto tenha se dado em consequência das diferentes formas de divulgação. Os convites foram feitos "boca a boca" e entregues pessoalmente aos pacientes dos serviços de saúde mental, após suas consultas ou durante outras atividades nos serviços. Em contrapartida, para a comunidade em geral, foram anexados cartazes divulgando os encontros em estabelecimentos como farmácias, padarias e no clube da cidade. Também foram entregues cartazes e convites individuais aos postos de saúde (de Pronto Atendimento e do Programa de Saúde da Família) para redistribuição aos usuários, além de anúncio em um jornal da cidade e em uma rádio local. Novas maneiras de divulgação, somadas ao estabelecimento de parcerias com escolas, ou setores culturais da cidade podem vir a ser úteis para, de fato, diversificar o público presente.
Foram realizados quatro encontros em 2010, em uma frequência bimestral. Os temas dos encontros foram planejados em conjunto com as equipes de saúde mental, especialmente nossa equipe de trabalho do CAPS de Serra Negra, nas reuniões semanais. Pensa-se em criar listas de emails e grupos na internet, ampliando a participação de pessoas da comunidade nas escolhas dos temas e também de outros aspectos dos encontros, como formatos ou horários. Além disso, a ideia de trazer convidados para as palestras iniciais dos encontros pode enriquecer as discussões.
O primeiro encontro teve como tema: "A tristeza apontando caminhos para as transformações". Este tema foi proposto diante da percepção da existência de visões excessivamente adoecedoras acerca da tristeza e do choro, quer por parte de pacientes ou de profissionais, que encaminham para tratamento psiquiátrico indivíduos em processos de reação normal ao luto, ou a outros tipos de perdas. Muitas vezes, tais pessoas são encaminhadas por colegas médicos de outras especialidades, já por eles medicados com antidepressivos, sem terem uma doença. Diante dessas constatações, pareceu pertinente refletir sobre a tristeza como parte do processo da vida. Com a ajuda de uma palestra inicial, pudemos pensar sobre a tristeza que vez ou outra acomete a todos, sem exceção, saudáveis ou doentes. Tristeza que pode ser "ouvida", decifrada, como a esfinge. Com esse olhar atento, a tristeza pode sinalizar necessidades de mudanças em padrões de vida, escolhas ou posturas frente à vida. O autor do livro Psiquiatria Junguiana discorre sobre os significados possíveis dos sintomas da depressão em um de seus capítulos. Por exemplo, considera que: "As tendências suicidas mostram a necessidade de mudança fundamental. O estado existente de coisas precisa desaparecer para que algo novo possa tomar seu lugar" (FIERZ, 1997, p. 370).
Ou seja, a tristeza, na depressão ou no processo da vida, simbolicamente aponta e sugere renovações, que transcendam ao sofrimento e ao desejo de apenas eliminá-la, o que é tentado muitas vezes com remédios, drogas, compras, euforia fora de contexto, sem sucesso sólido, mas sim fugaz. Novamente citando Fierz, quando relata o sucesso no tratamento de um paciente não apenas eliminando os sintomas, mas abordando os significados pessoais dos mesmos com psicoterapia: "(...) ele encontrara na depressão sua tarefa pessoal para a segunda metade da sua vida, o que deu nova orientação à sua vida" (FIERZ, 1997, p. 387). Tais exemplos validam a sugestão de "conversar" com a tristeza, apreendendo seu significado profundo, ouvindo seus "conselhos." Uma interessante reflexão é feita pela autora Laura Gutman (2010):
(...) sinto necessidade de denunciar a incrível quantidade de mulheres que são diagnosticadas com "depressão puerperal" (ou "depressão pós-parto") e, então, medicadas com remédios psiquiátricos. Todos se assustam com as sensações extremas da mãe que deu à luz, e em vez de acompanhá-la às profundezas de sua alma feminina, apoiada e afetivamente segura, optam por adormecê-la, conseguindo apaziguar o espírito dos demais (...) (GUTMAN, 2010, p. 27).
Em resumo, neste primeiro encontro, lançamos um olhar provocativo e investigativo às tristezas que, vez ou outra, fazem-se presentes na vida das pessoas, questionando inclusive sua classificação como um sentimento nocivo a ser simplesmente eliminado, sugerindo possibilidades de transcendê-la.
O segundo encontro teve como tema a pergunta: "Você tem fome de quê?", e o gatilho também ocorreu por meio de uma palestra inicial. Trouxe à tona questões relacionadas ao conflito entre as escolhas sugeridas pela sociedade, e aquelas bem pessoais ou íntimas que, muitas vezes, nem são conscientes, ou se o são, acabam deixadas de lado. As sugestões da mídia de bens "indispensáveis" a todos podem criar falsas necessidades ao indivíduo, que se sacrifica para obter algo sem real valor para si.
(...) As mercadorias consumidas demarcam lugares e status ao consumidor, assim como definem o sentido de bem-estar ou sofrimento, de inclusão ou exclusão no sistema, de acordo com os modelos propagados pela mídia. A homogeneização dos desejos – intrinsecamente ligados ao imaginário consumista - estabelece a padronização do consumo e, a partir da igualdade, são criados os parâmetros com os quais os ideais de bem-estar e felicidade serão mensurados e comparados entre os consumidores. (DANTAS; TOBLER, 2003, p. 2, grifos meus).
Comentou-se sobre o risco do consumismo exagerado na tentativa de "tampar vazios", de desejar o que todos desejam, e que certamente não serve a todos.
A cultura de consumo coloca o sujeito na condição de portador de um sentimento permanente de vazio desesperançado, sentimento este que contribui para a crença de que o "remédio" para a cura de seus males pode ser adquirido, comprado, ingerido, incorporado" (DANTAS; TOBLER, 2003, p. 2).
Abordamos o consumismo exagerado presente nos dias atuais, coincidindo com uma ausência generalizada de rituais e mitos que outrora alimentavam a alma, a qual, hoje, geme destruída. Nas palavras de Joseph Campbell:
As literaturas grega e latina e a Bíblia costumavam fazer parte da educação de toda gente. Tendo sido suprimidas, toda uma tradição de informação mitológica do Ocidente se perdeu. (...) Com a perda disso, perdemos efetivamente algo, porque não possuímos nada semelhante para pôr no lugar. Esses bocados de informação, provenientes dos tempos antigos, que têm a ver com os temas que sempre deram sustentação à vida humana (...) têm a ver com os profundos problemas interiores, com os profundos mistérios, com os profundos limiares da travessia, (...) Mitos são pistas para as potencialidades espirituais da vida humana (...) provêm de todas as culturas, mas com temas atemporais. (...) A mitologia tem muito a ver com os estágios da vida, as cerimônias de iniciação, quando você passa da infância para as responsabilidades do adulto, da condição de solteiro para a de casado. Todos esses rituais são ritos mitológicos. Todos têm a ver com o novo papel que você passa a desempenhar, com o processo de atirar fora o que é velho para voltar com o novo, assumindo uma função responsável (CAMPBELL, 1990, p. 2-3).
Assim, se a fome é da alma, a bolsa cara, o carro novo, o excesso de comida não vão arrefecê-la. Pelo contrário, vão sobrecarregar o corpo, gerar dívidas, e aumentar a desnutrição essencial. Por isso, a sugestão também é de parar e se perguntar: "Que fome é essa? Por que está aí? Como saciá-la?" Porque é preciso construir um "caminho do meio", que diferencie entre as necessidades coletivas e individuais, bem como as do corpo em relação àquelas da alma. Tudo isto porque o alimento de cada uma é diferente, e não sacia a outra.
O terceiro encontro teve como disparador a exibição do filme A vida em preto e branco (PLEASANTVILLE, 1998), e como tema, a pergunta: "Com quais cores você enxerga a vida?" O filme conta a história de um casal de irmãos. No filme, o irmão refugia-se da vida assistindo repetidamente a um seriado sobre uma cidade, Pleasantville (que significa cidade agradável), onde tudo é sempre estável e "morno". Ambos, irmã e irmão, entram acidentalmente na cidade do seriado, o que acaba por transformar as relações e vidas dos personagens da cidade e dos dois irmãos. Com isso, o seriado que era preto e branco, vai tornando-se gradualmente colorido, a depender das emoções verdadeiras sentidas pelos personagens. O filme propiciou uma maneira agradável e criativa de abordar as inúmeras realidades que se pode vivenciar. Dependendo do modo como se enxerga e se relaciona com a vida e com as pessoas, inúmeros ângulos e emoções podem colorir uma mesma experiência. A escolha do filme e do tema teve como inspiração a percepção de que pacientes ou pessoas de nossa convivência lidam com situações semelhantes de perdas, faltas ou possibilidades, de maneiras muito diversas. Com estas diferenças de atitudes, alcançam desfechos variados, mais ou menos saudáveis ou construtivos. O encontro teve como objetivo lançar algumas luzes sobre as possíveis causas dessas diferenças de resultados diante de chances ou faltas semelhantes.
O quarto e último encontro de 2010 teve como tema "Os rótulos que carregamos". Foi exibido o filme Uma lição de amor (I am Sam, 2001), que trata das dificuldades vividas por um homem com retardo mental leve, quando tentam tirar-lhe a guarda da garotinha que ele cria desde bebê. A ideia das pessoas no filme é que, por apresentar limitações, ele não possa cuidar da menina adequadamente. O filme mostra as transformações que ocorrem na vida da bem sucedida advogada que hesita, mas acaba aceitando defender sua causa, na relação com o personagem principal, Sam. Embora algo maniqueísta, o filme, por ser cativante e ter excelentes interpretações, possibilitou ricas discussões. Por exemplo, conversamos sobre as pré-concepções que temos a nosso respeito e a respeito dos outros, e como tais concepções podem ser limitadoras, e precisam ser reavaliadas continuamente por meio dos relacionamentos inter e intrapessoais que estabelecemos ao longo da vida. No trabalho com saúde mental, as percepções das limitações, recursos internos e capacidades dos indivíduos precisam ser sempre reavaliadas. Em um trabalho de supervisão da nossa equipe no CAPS em 2009, foi levantada pela supervisora a pertinente observação de que profissionais de saúde mental acabam "treinados" a enxergar as faltas e limitações, em detrimento das potencialidades dos usuários. Acredito que a escolha do tema teve relação com esta experiência, que foi deveras marcante como deflagradora de novas posturas em nosso trabalho diário no cuidado em saúde mental.
Em cada encontro, distribuímos brindes relacionados ao tema discutido. Por exemplo, no primeiro foram dados saquinhos com sementes de girassol e os dizeres: "que tal plantar um girassol e ver a beleza da flor virar-se para o sol, onde quer que ele esteja?" No segundo, o interessante texto de Rubem Alves, "A arte de produzir fome" foi dado enrolado como pergaminho. Para o terceiro encontro, fizemos óculos de cartolina com lentes de cores diferentes, brincando com a ideia de que as cores que adicionamos ao nosso olhar mudam as experiências vividas. E no último encontro, as pessoas pegavam refrigerantes de uma caixa, sem poder escolher, havendo neles rótulos com uma qualidade ou defeito escrito. Assim, ao final do filme, trocamos percepções sobre os rótulos recebidos e/ou dados por cada um, não só ali, como também em suas vidas.
A criação de um espaço para reflexões e transformações de paradigmas vai ao encontro da necessidade de mudanças no tratamento oferecido em consultas, para aliar-se à terapia medicamentosa. É inegável a utilidade dos medicamentos como ferramentas para redução da gravidade de sintomas, de riscos de incapacitação e até morte dos pacientes em sofrimento psíquico. Porém, a melhora obtida deve estimular a participação ativa do paciente nos processos de cura. Isso tomando como base que a cura transcende ao simples controle ou remissão dos sintomas. O aumento da capacidade de reconhecimento pelo paciente de necessidades de mudanças deveria também ser estimulado durante as consultas, em cada atendimento.
Conceituar saúde mental não é simples, mas cremos que seja mais do que não apresentar doenças psiquiátricas. Como a própria Organização Mundial de Saúde sugere:
(...) mental health is described as more than the absence of mental disorders or disabilities.(...) Mental health is a state of well-being in which an individual realizes his or her own abilities, can cope with the normal stresses of life, can work productively and is able to make a contribution to his or her community. In this positive sense, mental health is the foundation for individual well-being and the effective functioning of a community (OMS, 2011).
Pensamos, baseados nesta definição e em nossa experiência clínica, que ter saúde mental implique em apresentar algumas características como: flexibilidade diante das mudanças, tolerância às diferenças, estar inserido socialmente sem perder a individualidade, possuir relacionamentos construtivos e saudáveis, bem como atuar criativamente em diversos âmbitos da vida. Com base nessa ideia, as maneiras de trabalharmos objetivando a avanços na saúde mental das pessoas não podem restringir-se ao espaço dos consultórios ou salas de grupos, e nem limitar-se ao tratamento, mas atuar também na prevenção. Nesse sentido, parece essencial a busca por espaços e formas mais abrangentes de "cultivos" da saúde mental, aliando os conceitos psicoterápicos aos educacionais, sociais, culturais, e tantos outros que possam enriquecer os debates sobre novas maneiras de se viver em uma sociedade sempre em construção e transformação.
Além disso, é importante refletirmos até que ponto as maneiras de organização da sociedade podem estar tornando-se adoecedoras. Por exemplo, estamos voltados excessivamente, às realizações externas, em detrimento das necessidades internas.
Um de nossos problemas, hoje em dia, é que não estamos familiarizados com a literatura do espírito. Estamos interessados nas notícias do dia e nos problemas do momento. (...) Antigamente (...) as notícias do dia não se chocavam com a atenção que você dedicava à vida interior (CAMPBELL, 1990, p. 4).
Além disso, nos vemos diante de problemas como a competitividade exagerada, consumismo desenfreado, níveis aterrorizantes de violência, trânsito caótico, poluição, desastres ambientais, individualismo. A falta de intimidade e o difícil relacionamento entre as pessoas e das pessoas com o meio ambiente intensificam uma sensação coletiva de solidão. Este tipo de solidão pode ser fator de risco para doenças como depressão, transtornos de ansiedade, entre outras.
Nesse sentido, a criação de grupos de discussão pode ser uma ferramenta para se pensar coletivamente sobre maneiras mais saudáveis de se viver e relacionar. Além disso, os próprios encontros, por reunirem as pessoas e favorecerem reflexões voltadas a buscas internas, podem ser espaços por si só terapêuticos.
Cremos tratar-se de uma emergência social essa reorganização, ou teremos mais doenças psiquiátricas tomando proporções de pandemias em poucos anos, como já ocorre com os transtornos alimentares, a síndrome do pânico e a depressão. Assim como tais doenças podem sinalizar o que "corrigir" no indivíduo acometido, também podem fazê-lo em relação à sociedade e sua organização. Nós, profissionais da saúde mental, podemos ser desbravadores na escuta e tradução desses sinais, especialmente se contarmos com a participação conjunta das pessoas de fora dessa área de atuação, ou seja, da comunidade. Dessa forma, as possibilidades de transformação ampliam-se em qualidade e quantidade, com possibilidade de benefícios para todos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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DAHLKE, R. A doença como caminho: uma visão nova da cura como ponto de mutação em que um mal se deixa transformar em bem. São Paulo: Cultrix, 2007. 262 p. [ Links ]
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Endereço para correspondência
Isabela Bergier Dietrichkeit
E-mail: isabelakika@gmail.com
Recebido em 03/04/2011.
1ª Revisão em 19/04/2011.
Aceite Final em 06/05/2011.
1 Isabela Bergier Dietrichkeit é médica psiquiatra e psicoterapeuta junguiana. Trabalha como psiquiatra no CAPS de Serra Negra/SP, nos Ambulatórios de Saúde Mental de Serra Negra/SP e de Matão/SP, e também em consultório em Serra Negra e Socorro/SP. Email: isabelakika@gmail.com.