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Revista da SPAGESP
Print version ISSN 1677-2970
Rev. SPAGESP vol.16 no.1 Ribeirão Preto 2015
ARTIGOS
A homoparentalidade em cena: a vivência cotidiana de mulheres lésbicas com seus filhos
The LGB parenting in the scene: the everyday lives of lesbian women with their children
La homoparentalidad en escena: la vivencia cotidiana de las mujeres lesbianas con sus hijos
Aline Nogueira de Lira1; Normanda Araújo de Morais2; Georges Daniel Janja Bloc Boris3
Universidade de Fortaleza, Fortaleza-CE, Brasil
RESUMO
Esse artigo investigou a vivência cotidiana de quatro mulheres lésbicas com seus filhos. A entrevista aberta foi o instrumento utilizado para colher os dados. A análise de conteúdo das entrevistas evidenciou que: 1) as mães lésbicas tendem a desempenhar os papéis parentais de forma cooperativa, embora a estratégia adotada para constituírem suas famílias e conceberem os seus filhos possa interferir no modo como gerenciam as tarefas parentais; e 2) a conduta das mães lésbicas que dialogam com seus filhos sobre sua orientação sexual parece fortalecê-los no enfrentamento da estigmatização homofóbica. Conclui-se ressaltando que o vínculo social e afetivo é o fundamento que rege as relações familiares das mulheres lésbicas e seus filhos, mostrando que a parentalidade vai além da orientação sexual.
Palavras-chave: família; homoparentalidade; lésbica; homossexualidade.
ABSTRACT
This article investigated the everyday lives of four lesbian women and their children. An open interview was used to collect data. The interview analysis identified the following: 1) lesbian mothers tend to develop parenting roles in a cooperative way, however, it was observed that the strategy used by them to form their families and have their children may interfere in how they manage their parenting tasks and 2) the conduct of lesbian mothers that discuss sexual orientation with their children seems to contribute to the reduction of homophobic stigmatization in their lives. We conclude highlighting that social and emotional bonding is the basis of family relationships, showing that parenting goes beyond sexual orientation.
Keywords: family; lgbt parenting; lesbian; homosexuality.
RESUMEN
Este artículo investigó la vivencia cotidiana de cuatro mujeres lesbianas con sus hijos. La entrevista abierta ha sido la herramienta utilizada para recolectar datos. El análisis de contenido de las entrevistas dejó en evidencia que:1) las madres lesbianas tienden a desempeñar roles parentales de forma cooperativa, aunque la estrategia adoptada para constituir sus familias y concebir a sus hijos pueda interferir en la manera en que organizan sus tareas parentales; y 2) la conducta de las madres lesbianas que dialogan con sus hijos sobre su orientación sexual parece fortalecerlos al enfrentar el estigma homofóbico.Se concluye que el vínculo social y afectivo es el fundamento que rige las relaciones familiares de las mujeres lesbianas y sus hijos, señalando que el ejercicio del rol parental va más allá de la orientación sexual.
Palabras clave: familia; homoparentalidad; lesbiana; homosexualidad.
Ao longo das últimas décadas, tem-se acompanhado uma crescente visibilidade no cenário nacional e internacional acerca das vivências familiares relacionadas à população de lésbicas, gays e bissexuais (LGB). Esta maior notoriedade apresenta-se, especialmente, diante do contexto de transformações sociais, culturais, jurídicas e legais ao debaterem e reconhecerem a pluralidade de formações familiares. Neste cenário, se destaca a família homoparental, que é um modelo familiar que abrange as relações parentais entre lésbicas ou gays e seus possíveis filhos – concebidos biologicamente, por adoção, por inseminação artificial ou mesmo por barriga de aluguel (Santos, Scorsolini-Comin, & Santos, 2013; Uziel, 2007).
Os estudos sobre as famílias homoparentais femininas, foco do presente artigo, podem ser examinados a partir de três ondas (Johnson, 2012): a primeira onda, iniciada na década de 1970, época na qual as pesquisas focavam principalmente as mulheres lésbicas que tinham se tornado mães a partir de relacionamentos heterossexuais, anterior à sua "saída do armário" (Cohen & Savin-Willians, 2014). Preocupações sobre a custódia das crianças, após as separações, era uma das questões mais debatidas. Nas décadas de 1980, até o início da década de 1990, aconteceu a segunda onda, e passou-se a investigar as mulheres que haviam se tornado mães no contexto das próprias relações lésbicas. Neste tempo histórico, a motivação maior era analisar a saúde mental dessas mães e o impacto potencialmente negativo dos filhos crescerem em lares liderados por lésbicas, em um esforço para determinar se as crianças estavam em risco quanto ao seu desenvolvimento psicossexual. Na terceira onda, a partir de meados da década de 1990, passou-se a examinar o funcionamento e a dinâmica familiar de mulheres lésbicas que concebiam seus filhos nas próprias relações do mesmo sexo, especialmente por meio da parentalidade planejada: adoção e reprodução assistida. Além disso, os pontos fortes das relações parentais e conjugais constituídas por mulheres do mesmo sexo começaram a ser destacadas pela literatura.
A seguir, serão discutidos temas relacionados aos aspectos da vida familiar de mulheres lésbicas e seus filhos, explicitando um panorama geral dos estudos científicos acerca da parentalidade lésbica, especialmente no que se refere ao desempenho dos papéis parentais e ao tema da orientação sexual das mães e os filhos.
Desempenho dos papéis parentais das mães lésbicas
Pesquisas apontam que casais de lésbicas apresentam altos níveis de cooperação na divisão de tarefas domésticas, nos processos educativos e participação em atividades com os filhos e na remuneração financeira (Gartrell, Deck, Rodas, Peyser, & Banks, 2006; Meletti & Scorsolini-Comin, 2015). Em estudo longitudinal, qualitativo, por exemplo, Gartrell et al. (2006) entrevistaram 137 mães lésbicas com filhos de 10 anos de idade, concebidos através da inseminação artificial. Os autores investigaram, dentre outras questões, como as mulheres gerenciavam com as suas parceiras (ou ex-parceiras) a educação dos filhos. Como resultado encontrou-se que: 1) apesar das preocupações quanto ao impacto da homofobia na vida dos filhos, as mães lésbicas mostraram-se entusiasmadas em acompanhar o desenvolvimento deles; 2) as mães lésbicas partilhavam de forma mais equitativa as responsabilidades educativas dos filhos, as tarefas domésticas e a geração de renda familiar, sendo que, inclusive, a indisposição para o compartilhamento do desempenho da parentalidade foi um indicador relevante para a separação conjugal; 3) as mães que, desde o nascimento da criança estavam casadas, mostravam-se igualmente vinculadas aos filhos; já em relação às mães que haviam se separado de suas companheiras, o envolvimento da co-mãe (não biológica) no desempenho do exercício parental era mais evidenciado quando o processo de adoção desta tinha sido finalizado antes da separação.
A partir destes resultados, duas considerações merecem ser ressaltadas: a primeira é o indicativo de que as mães lésbicas tendem a buscar conjuntamente proporcionar ambientes saudáveis e de proximidade com as crianças, desempenhando os papéis parentais com satisfação e de forma cooperativa; porém, outro aspecto pouco investigado pela literatura é a compreensão de que a estratégia adotada pelas mulheres lésbicas para constituírem suas famílias e conceberem os seus filhos (no contexto das relações heterossexuais, através da adoção, da inseminação artificial, ou da coparentalidade) pode interferir no modo como as mães gerenciam as tarefas parentais. A saber, a força dos laços consaguíneos (especialmente das mães biológicas), o aspecto jurídico (que oferece o estatuto de legalidade na adoção, por exemplo) e a presença ou não de um pai biológico (conhecido ou desconhecido) podem influenciar no modo como essas famílias administram e desempenham os papéis parentais (Biblarz & Savci, 2010).
Outra questão acerca do desempenho da parentalidade lésbica refere-se à qualidade das relações parentais. Extensas revisões de literatura colecionam resultados de estudos que evidenciam que o envolvimento emocional, a qualidade das relações parentais e os níveis de segurança na vinculação entre as mães lésbicas e seus filhos, no geral, não diferiam das famílias heterossexuais (Biblarz & Stacey, 2010; Goldberg & Gartrell, 2014). Desse modo, não seria a orientação sexual da mãe ou mesmo a estrutura familiar em si, o aspecto determinante para avaliar a capacidade parental ou o desenvolvimento psicossocial dos filhos, mas, sobretudo, a qualidade das relações entre eles, bem como a disposição dessas mães para gerirem os conflitos que possam ocorrer frente à evolução dos arranjos familiares (Uziel, 2007; Vecho & Schneider, 2005).
Os filhos, a orientação sexual das mães e a estigmatização homofóbica
Diversas crenças giram em torno da homoparentalidade, como por exemplo, o receio de que os filhos que têm pais/mães gays/lésbicas terão problemas em seu desenvolvimento social, acadêmico e psicológico, ou ainda a preocupação de que a orientação sexual dos pais possa influenciar na identidade sexual e de gênero dos filhos/as (Gartrell, Bos, & Goldberg, 2011).
As evidências científicas dos últimos 40 anos informam, consistentemente, que a orientação sexual não é em si um fator de risco e que possa comprometer – socialmente, cognitivamente e emocionalmente – a vida destes filhos (Bos & Gartrell, 2010a; Gartrell & Bos, 2010; Gartrell, Bos, Peyser, Deck, & Rodas, 2012). Crianças e adolescentes criados por pais/mães do mesmo sexo apresentam elevadas competências sociais, ajustamento psicológico positivo (Gartrell & Bos, 2010), e são bem sucedidas academicamente (Gartrell et al., 2012), quando comparados aos filhos de pais heterossexuais. Contudo, ao serem expostas à estigmatização homofóbica, sendo desaprovadas pela orientação sexual das mães lésbicas, os filhos podem ser afetados negativamente em relação ao seu bem-estar psicológico, perdendo a sua autoconfiança (Bos & Gartrell, 2010b; Robitaille & Saint-Jacques, 2009; Van Gelderen, Gartrell, Bos, Van Rooij, & Hermanns, 2012).
Com o objetivo de investigar o impacto do estigma sexual na adolescência, Kuvalanka, Leslie e Radina (2013), por exemplo, realizaram um estudo qualitativo com trinta adultos jovens (18-25 anos) que tinham mães lésbicas. Nesta pesquisa, os autores sugerem que os adolescentes que foram alvo de assédio pela orientação sexual da mães, expressaram várias formas de reação: medo - tentando tornar-se "invisível" entre os amigos para esconder que a mãe é lésbica; outros adolescentes viram a discriminação como uma situação desafiante e lutaram contra o estigma sofrido; e outros participantes ignoram, contornando positivamente os efeitos negativos do estigma sexual. No entanto, percebeu-se que os adolescentes utilizaram diferentes estratégias de enfrentamento em relação à estigmatização homofóbica: a conexão buscada com outras famílias LGB levou-os a serem mais abertos sobre as suas próprias experiências; além disso, as mães mais liberais e menos heterossexistsa favoreciam o melhor enfrentamento dos filhos. Como se percebe, a rede de apoio (seja por parte das mães ou mesmo da comunidade LGB) é um importante aspecto que pode amortecer o impacto do estigma sexual e de seus efeitos danosos à vida dos filhos de casais do mesmo sexo.
Sobre a influência da orientação sexual das mães lésbicas na construção da identidade sexual dos filhos, os resultados apontados pela literatura nos últimos anos ainda se mostram controversos e não conclusivos. Tasker e Golombok (1997), por exemplo, ao realizarem estudo comparativo entre jovens adultos filhos de mães lésbicas e mães solteiras heterossexuais, não encontraram diferenças significativas entre esses grupos quanto à sua autoidentificação como gays/lésbicas. Já os resultados do estudo longitudinal realizado por Gartrell et al. (2011), com adolescentes de 17 anos, apontaram que 1/5 das jovens, filhas de mães lésbicas, se identificaram como bissexual quando comparadas com filhos/as de mães heterossexuais. O que a literatura não explica é se essas adolescentes são mais propensas a vivenciarem relações do mesmo sexo influenciadas pela orientação sexual das mães, ou pela possibilidade de que os filhos de casais do mesmo sexo podem demonstrar noções mais expansivas sobre comportamentos sexuais e de gênero e discutir temáticas acerca da sexualidade, dada a sua própria experiência no seio de uma família homoparental (Cohen & Kuvalanka, 2011; Kuvalanka & Goldberg, 2009).
Apesar das evidências científicas discutidas anteriormente, de que casais de lésbicas tendem a lidar de forma mais equitativa quanto ao desempenho dos papéis parentais e, ainda, que a orientação sexual não é um fator que possa prejudicar as habilidades parentais destas mães,ressalta-se que ainda é pequeno o número de estudos empíricos, sobretudo os de abordagem qualitativa,que tem investigado as experiências e funcionamentos cotidianos da vida das mães lésbicas(Goldberg & Gartrell, 2014). Para preencher esta lacuna, a presente pesquisa tem como objetivo compreender as experiências da vida diária das mulheres lésbicas que têm filhos, mais especificamente compreender como estas mulheres desempenham os papéis parentais (qualidade das relações parentais, compartilhamento das tarefas domésticas, cuidado dos filhos e geração de renda familiar) e como elas abordam o tema da sua orientação sexual com os filhos e a influência desta vivência na vida deles. Mesmo que as investigações científicas nacionais e internacionais incidam mais sobre as experiências de mães lésbicas do que as vivências familiares de pais gays, optou-se por investigar a vida das mulheres por colaborar para uma maior visibilidade desta temática no cenário teórico, social e político brasileiro.
Método
Participantes
Foram entrevistadas quatro mulheres lésbicas com idades entre 33 e 46 anos, residentes em Fortaleza. Os critérios de inclusão foram: se assumir como lésbica e ter filho(s).
Maria e Joana
Maria (33 anos, profissional liberal) e Joana (37 anos, funcionária pública), formam um casal e vivem em união estável há, aproximadamente, seis anos. Adotaram Pedro, ainda recém-nascido. No momento da entrevista, Pedro tinha seis meses de vida e Maria e Joana não tinham qualquer contato com a mãe biológica dele. O processo de adoção havia sido oficializado e na certidão de nascimento da criança constava o sobrenome das duas mães.
Simone
Simone, 34 anos é analista de produção e tem um filho, João (oito anos), fruto de uma relação heterossexual anterior. É casada com Júlia e esta tem dois filhos – José (oito anos) e Joaquim (14 anos), também concebidos em um casamento heterossexual, anterior à relação do mesmo sexo. Este é um exemplo de família recomposta, em que ambas, após finalizarem relações conjugais, passaram a conviver juntas com seus filhos. Simone e Júlia moram juntas há seis anos e efetivaram o contrato de união estável, sendo homologado e tornando-se uma certidão de casamento. Após o contrato de união estável, Júlia passou a ter a Guarda Provisória de João, compartilhando com Simone a parentalidade do filho.
Patrícia
A Patrícia, 46 anos, é profissional da área de saúde, professora, e tem um filho – Ricardo (15 anos). Patrícia viveu em união estável com Lia por cinco anos. Com três anos de relação resolveram ter um filho. Contudo, especialmente Lia tinha o desejo de gerar a criança e, desse modo, resolveram que ela engravidaria do irmão de Patrícia, como uma forma de garantir que as duas seriam mães "legítimas" da criança, ao ter laços consanguíneos com elas. Neste sentido, Patrícia é a mãe (madrinha) e tia biológica de Ricardo. Aos dois anos de idade do filho, elas se separaram e o filho ficou sob os cuidados de Lia. Já Ricardo mantém uma convivência próxima com o pai. Atualmente, Patrícia vive em união estável com Jane e tem uma enteada, Camila (19 anos), que reside com as duas.
Instrumento
A entrevista aberta foi o instrumento utilizado para a coleta de dados, sendo que utilizou-se a seguinte pergunta disparadora: como você tem vivenciado a relação com o(s) filhos(s)? Tal indagação suscitou outras que visavam à compreensão do significado da experiência a ser pesquisada.
Procedimento
COLETA DE DADOS. O projeto de pesquisa foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade de Fortaleza (Parecer 151.678). Foram seguidos, portanto, todos os critérios da ética da pesquisa com Seres Humanos, de acordo com a Resolução n. 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, que vigorava até então. O contato com as participantes aconteceu após a aprovação do projeto de pesquisa. Inicialmente, contatou-se uma mulher pelas redes sociais. Posteriormente, através do método snowball (bola de neve), identificou-se mais duas participantes. Por fim, a quarta colaboradora foi indicada por um Centro de Referência GLBT, existente na cidade de Fortaleza. As entrevistas aconteceram individualmente, sendo que duas destas colaboradoras formavam um casal (Maria e Joana) e participaram de dois encontros, dada a necessidade de aprofundamento dos dados emergidos ao longo da primeira entrevista. As outras duas (Joana e Patrícia) participaram de apenas uma entrevista.
ANÁLISE DOS DADOS. Realizou-se de forma indutiva, sendo que as categorias emergiram a posteriori, e foram discutidas com base na literatura especializada. A análise dos dados baseou-se no método de Análise de Conteúdo (Bardin, 1977/1995), o qual segue as seguintes etapas: 1) a pré-análise – organização das temáticas através de leitura flutuante, hipóteses, formulação de hipóteses, objetivos e elaboração de indicadores; 2) a exploração do material – os dados são codificados a partir de unidades de registro; e 3) o tratamento dos resultados e interpretação – aqui é realizada a categorização das temáticas a partir de classificações dos dados em acordo com suas semelhanças e por diferenciação. Portanto, trabalha-se as temáticas apresentadas no material do texto, estabelecendo categorias para sua interpretação. Nesta proposta metodológica, o foco recai sobre o conteúdo relatado, entendendo que o texto é um meio de expressão do sujeito, no qual o analista busca categorizar as unidades de texto (palavras, frases, personagens, etc.) que se repetem, inferindo uma expressão que as representem (Caregnato & Mutti, 2006). Após a definição das categorias temáticas, os dados foram discutidos a partir de relações feitas com a literatura específica da referida área de estudo.
Resultados e discussão
Considerando-se os depoimentos das participantes, emergiram duas categorias, com seus respectivos subtemas: 1) Desempenho dos papéis parentais, que se caracteriza por descrever como as mães lésbicas vivenciam os papéis parentais. Para essa caracterização elegeu-se dois subtemas: a) qualidade das relações mãe-filho/os; b) divisão das tarefas domésticas, cuidados com os filhos e geração de renda familiar; 2) Orientação sexual das mães e os filhos, na qual se situa como os filhos e os/a enteados/a lidam com o fato de suas mães se assumirem como lésbicas. Seguem as suas duas subcategorias: a) mães e filhos "saindo do armário"; b) estigmatização homofóbica na vida das mães e dos filhos.
Categoria 1: desempenho dos papéis parentais
1.1 Qualidade das relações mãe-filho/os
Uma questão central que merece destaque na descrição das participantes sobre os seus relacionamentos com os filhos é a importância do convívio diário e da disponibilidade afetiva para cuidar deles, como aspecto crucial para a construção do vínculo parental. O foco recai na afetividade, na dinâmica familiar, e não na orientação sexual das participantes e suas parceiras (Uziel, 2007). As entrevistadas Maria e Joana, por exemplo, adotaram Pedro ainda recém nascido e, desde então, as duas mães adotivas acordaram de dividirem reciprocamente os cuidados do filho, como forma de construir e fortalecer o vínculo afetivo entre ambas, conforme a fala a seguir:
A gente queria fazer tudo, só nós duas. A gente quer esse contato, porque, embora a gente saiba que não tem diferença entre nascer da barriga ou ser adotada, a gente quer formar esse vínculo, da melhor forma possível, entendeu? (Maria)
Como se percebe, o exercício parental, expresso pelas entrevistadas, é norteado por uma ética que privilegia as questões afetivas entre mães e filhos. Os vínculos socioafetivos prevalecem e norteiam as relações familiares destas mulheres, sendo a afetividade o principal instrumento para a manutenção familiar. As crianças e suas mães são mais propensas a se darem bem em um ambiente familiar caracterizado por altos níveis de cooperação, confiança e valorização da expressão de afetos e cuidados entre os seus membros e, ainda, que apresente altos níveis de suporte e conexão social (Bos & Gartrell, 2010b; Uziel, 2007).
É importante destacar também que todas as colaboradoras vivenciavam no momento da entrevista um relacionamento amoroso e, desse modo, a conjugalidade foi um tema recorrente em suas falas, associando-as ao desempenho da parentalidade:
Então, o Pedro com certeza é fruto de amor. De uma comunhão, porque.... Eu não posso afirmar, ninguém pode afirmar que a gente vá ficar junto pelo resto da vida, nem um casal pode afirmar isso, né? Mas embora eu não tenha essa certeza, nem nunca vá ter, sem dúvida nenhuma a Joana é a pessoa que eu queria ter um filho. (Maria).
Fundadas em nome do amor, as relações amorosas, na contemporaneidade, têm a afetividade como eixo balizador dos projetos conjugais e ocupam lugar de centralidade na conjugalidade (Giddens, 1993). A fala acima ressalta, portanto, o que alguns teóricos sobre família vêm sinalizando: que a qualidade da relação conjugal pode colaborar para um exercício saudável da parentalidade (Mosmam, Zordan, & Wagner, 2011). A ênfase, portanto, recai sobre a qualidade relacional estabelecida entre as parceiras, em que o prazer e a satisfação conjugal constituem os parâmetros para sustentar o relacionamento entre as cônjuges e os filhos.
Desse modo, independente da orientação sexual das mães e da forma com que os filhos foram concebidos, tanto a literatura científica quanto a fala das participantes desse estudo sugerem que é o afeto, a disponibilidade afetiva para cuidar e a qualidade da relação entre as figuras parentais e as crianças que se constituem como os aspectos mais importantes para o exercício saudável da parentalidade (Gartrel et al., 2006; Uziel, 2007).
1.2 Divisão das tarefas domésticas, cuidados com os filhos e geração de renda familiar
A leitura global dos estudos científicos acerca do desempenho dos papéis parentais nas famílias homoparentais femininas permite compreender que as mães tendem a compartilhar equitativamente as tarefas do lar, as responsabilidades parentais e as tomadas de decisão familiar (Gartrell et al., 2006; Meletti & Scorsolini-Comin, 2015). Corroborando esses estudos, na presente pesquisa, algumas participantes também descreveram dividir equitativamente entre si o cuidado com os filhos, por exemplo: "As duas vão pra televisão assistir aos filminhos, as duas dão banho, trocam roupa, dão banho de sol, dão mamadeira, ficam brincando, enfim, as duas fazem tudo, o dia a dia é compartilhado". (Joana)
Além disso, as participantes revelaram dividir entre si as responsabilidades financeiras da casa, o que sugere a existência de relações mais igualitárias entre elas no tocante à divisão do trabalho remunerado, corroborando o que a literatura científica já vem apontando (Goldberg & Gartrell, 2014). Vejamos a fala a seguir: "As contas são todas divididas. Ela trabalha, eu trabalho. Água, luz, telefone, internet, TV a cabo, gás, comida, tudo é dividido". (Simone)
Apesar das cônjuges revelarem compartilhar entre si as atividades domésticas, a renda familiar e cuidados com as crianças, não significa que cada parceira realize a tarefa da mesma forma. A entrevistada Simone, por exemplo, revelou que ela e sua companheira dividem tarefas entre si, especialmente de acordo com a disponibilidade e facilidade para a sua execução, conforme aponta o relato a seguir: "Aí eu matriculei o João na escola. Essa parte é minha, essa parte burocrática da família é minha".
Neste cenário de multiplicidade e de diversas possibilidades que as mulheres lésbicas elegem para constituir suas famílias e ter filhos, problematiza-se a concepção de igualitarismo tradicionalmente destacada na literatura como presente entre as mães lésbicas (Biblarz & Savci, 2010), uma vez que se percebe que o desempenho parental das mulheres entrevistadas foi assumido entre elas de diferentes formas. Dentre os fatores relacionados ao exercício dessa parentalidade citam-se: o contexto familiar em que os filhos foram concebidos (por adoção ou biologicamente), a qualidade da interação mãe-filho, o lugar que a mãe não biológica ocupa na vida da criança (madastra, madrinha, mãe social), a presença do pai e as implicações jurídicas em torno da homoparentalidade.
O exercício parental de Patrícia em relação ao Ricardo, por exemplo, parece não se encaixar no modelo igualitário de compartilhamento da parentalidade, especialmente porque - ao se separar de Lia (a mãe biológica de Ricardo) -, o vínculo consanguíneo falou mais alto e não garantiu legalmente a ela a guarda compartilhada sobre a criança:
Lia ficou com o Ricardo porque ela é a mãe biológica dele. Pra mim foi muito difícil. Eu acabei ficando sem uma guarda compartilhada. Não tive esse direito.... Fiquei sendo mais madrinha e tia do que mesmo mãe, apesar de tudo isso. Mas me mantive ali, criei ele. (Patrícia)
Em relação a essa fala, duas questões merecem ser consideradas: primeiro, de que a naturalização social da maternidade e o estranhamento social daquele que "auxilia" nos cuidados com os filhos – seja o pai ou, no caso da homoparentalidade feminina, a outra mãe que não gerou a criança – reforça a ideia de que quem gera tem um vínculo de maior proximidade, ou mesmo que tem mais responsabilidades e direitos sobre os filhos. Desta forma, a decisão de quem deve engravidar, muitas vezes, é uma situação complexa presente nas famílias lésbicas, uma vez que a mulher que gera parece ter mais direitos sobre a criança (Gartrell et al., 2006). A segunda questão é de ordem legislativa e jurídica. Sob uma perspectiva histórica, há 15 anos (quando o filho de Patrícia nasceu) não havia qualquer legislação ou projeto de lei no Brasil que garantisse direitos institucionais às famílias lésbicas. Ao conceberem os filhos, sejam biológicos, ou por meio de adoção, constaria na certidão de nascimento deles, apenas o nome de uma das mães (sempre o da mãe biológica). Além de mãe biológica, avalizada por leis naturalizadas da Biologia, as leis jurídicas lhe outorgavam o poder sobre as crianças. À outra mãe cabia, então, a tarefa de 'auxiliar' a sua parceira nos cuidados com o filho (Biblarz & Stacey, 2010). Sugere-se, portanto, que o desempenho parental em termos legais pode ter implicações significativas nos relacionamentos mãe-filhos, sobretudo, pós-separação conjugal. Além disso, o pai biológico de Ricardo (irmão da Patrícia) também ocupa um lugar de destaque na vida do filho, se alternando, mesmo que timidamente, no desempenho dos papéis parentais.
Simone, por sua vez, que teve seu filho no contexto das relações heterossexuais, mesmo que em muitos momentos se alternasse com a sua atual companheira nos cuidados com o filho e enteados, ainda assim exercia a parentalidade como a educadora principal de João. Somente após a legalização do casamento, com a posterior assunção da guarda compartilhada do filho, é que ambas passaram a assumir os cuidados do filhos de forma um tanto quanto compartilhada. No entanto, o filho não reconhece a companheira de Simone como mãe, e certamente isto tem implicações na forma como as entrevistadas vivenciam o exercício parental: "O João, meu filho, me chama de mãe, e trata a Júlia como companheira da minha mãe.... Não tem ela como mãe".
A vivência materna de Simone confirma o que outros estudos sugerem, que mulheres que tiveram seus filhos no contexto de uma relação heterossexual, ao assumir uma relação lésbica, a mãe biológica supostamente assumiria esse papel como educadora primária (ao educar, por exemplo sobre a sexualidade), tendo as suas atuais parceiras (referidas muitas vezes como madrastas, madrinhas) assumido papéis secundários e de apoio em relação aos filhos de sua companheira (Cohen & Kuvalanka, 2011).
Uma crítica realizada por Goldberg e Gartrell (2014), em seu estudo de revisão de literatura, é que os pesquisadores das famílias homoparentais tendem, muitas vezes, a minimizar as desigualdades existentes entre os casais do mesmo sexo, por serem uni-gêneros. No entanto, ancorados na ideia de que estes casais tendem a ser mais igualitários que os casais heterossexuais, muitas vezes as suas diferenças são negligenciadas, podendo alienar e trazer algumas dificuldades àqueles casais que não cabem nessa "utopia igualitária", além de carregar consigo a compreensão naturalizada de que essa divisão de tarefas ("livre" de tensão e conflitos) é boa para todas as famílias. Inclusive, nesta compreensão, a busca por um exercício parental mais compartilhado entre casais de lésbicas é apontada pela literatura como um motivador para o divórcio entre as cônjuges do mesmo sexo (Gartrell et al., 2006).
Apesar das vivências de Patrícia e Simone evidenciarem que o exercício parental não foi vivido de uma forma equitativa, é importante destacar que as colaboradoras buscaram alternativas singulares para exercer a parentalidade. Desse modo, o contexto familiar e a diversidade de estratégias que as mulheres lésbicas elegeram para ser mães aparecem como importantes aspectos que colaboram para o modo como ela e suas parceiras assumiram e desempenham a parentalidade. Os papéis assumidos por cada uma delas devem ser descritos de forma singular, devendo-se evitar generalizações a esse respeito.
Categoria 2: Orientação sexual das mães e os filhos
2.1 Mães e filhos "saindo do armário"
No universo aqui investigado, as mulheres relataram que se assumem como lésbicas, tanto no âmbito da vida privada – com os filhos e a família de origem – como também na vida social – com os amigos, os colegas de trabalho e a sociedade. Simone, por exemplo, conversa abertamente com o seu filho sobre a sexualidade.
Eu já sentei na praia com o meu filho umas duas vezes para explicar que eu sou lésbica. Uma vez aqueles meninos que vendem bombom me viram com a minha namorada, aí eles perguntaram: Ei, tu é sapatão? Eu disse: não, eu sou lésbica. Aí sentei e expliquei toda a historinha para ele, entende? Foi assim que ele cresceu. E se você sentar com ele hoje, ele vai lhe dizer isso. (Simone)
Na escola, os amigos dos meus filhos, dos dois maiores [Joaquim e João], vão lá para casa e adoram lá em casa. Dizem que acham muito legal ter duas mães... Mas, eles curtem ir lá pra casa, então eu acho bacana isso. (Simone)
Uma vez que as mães começam a "sair do armário" para a sociedade, isso pode facilitar o processo de "saída do armário" dos filhos e contribuir para que eles tenham relações mais positivas com as suas mães, fortalecendo-os no enfrentamento da estigmatização homofóbica (Bos & Gartrell, 2010b; L'Archeveque, & Julie, 2013). Dessa forma, a identidade "assumida" e dialogada de Simone parece favorecer que o seu filho entre em contato com a sua orientação sexual e lide de forma tranquila com essa realidade, conforme expôs em seu relato. Além disso, a vivência de Simone sugere que as mulheres lésbicas que valorizam a comunicação aberta e honesta com os filhos sobre as suas vidas amorosas, pode colaborar para que os filhos tenham noções mais amplas de comportamentos de gênero.
O Lucas fez uma peça na escola onde ele fazia uma lésbica. Se vestiu, botou o salto e ele era a lésbica. Então, ele não tem nenhum problema na escola. Não tinha menina pra fazer a peça, ele disse: eu faço a menina. Dentro da cabeça dele, pra mim, isso fica muito resolvido. (Simone)
Percebe-se, portanto, que o ambiente permeado de apoio e honestidade por parte das mães lésbicas parece favorecer que os filhos/enteados possam demonstrar uma influência exclusivamente positiva em relação ao seu desenvolvimento da identidade sexual e de gênero, contribuindo para o desempenho menos rígido e estereotipado dos repertórios de papéis masculino e feminino (Cohen & Kuvalanka, 2011; Kuvalanka & Goldberg, 2009).
Já as entrevistadas Maria e Joana, mesmo que ainda tenham um filho bebê, expuseram em seus relatos, a intenção de trabalhar com Pedro a ideia de que "o amor não tem sexo, é afeto" (Joana). Inclusive, elas têm comprado livros infantis que ajudam as mães/pais a conversarem com os filhos acerca dos diversos arranjos familiares na contemporaneidade, incluindo o homoparental. Estas colaboradoras acreditam que, como lidam, elas mesmas, tranquilamente com a sua orientação sexual, isso vai facilitar o entendimento de Pedro. E à medida que ele for perguntando, elas irão respondendo com a verdade, tanto em relação à homossexualidade das mães, quanto ao tema da adoção:
Assim que ele for perguntando, a gente sempre vai responder com a verdade. Ao perguntar: "Cadê meu pai?" Digo: "Meu filho, você é um privilegiado, você tem duas mães". E pedindo a intuição divina, aqui em casa, a gente tem muita fé. E isso tranquiliza muito o nosso coração. (Joana)
Patrícia, por sua vez, apesar de se assumir com lésbica socialmente e afirmar que o filho sabe da sua orientação sexual, expressou que nunca conversou de forma explícita sobre este assunto com o filho e sinalizou o desejo de ouvir mais a voz de Ricardo a respeito da sua própria sexualidade:
Eu queria muito saber a voz do Ricardo... Eu converso com ele sobre isso, mas é difícil pra ele, ele não verbaliza muito, ele sai pela tangente... eu queria muito saber o que é sexualidade pra eles, o que é que eles pensam... Será que eles pensam que, por serem filhos de lésbicas, eles vão ser gays? Será que eles têm medo disso? Como é isso pra eles? Eles acham que têm obrigação de serem gays? Ou eles querem ser héteros, não querem ser gays de jeito nenhum [risos]. (Patrícia)
A fala de Patrícia evidencia umas das principais questões discutidas na literatura acerca das famílias constituídas por casais do mesmo sexo: sobre a possibilidade de haver a influência da orientação sexual dos pais/mães LBG no desenvolvimento da própria identidade e comportamento sexual dos seus filhos. Embora ainda não haja consenso científico acerca desta temática, que ora registra não haver diferenças significativas entre filhos de mães lésbicas e filhos de pais heterossexuais, em sua autoidentificação como gays/lésbicas (Tasker & Golombok, 1997), ora evidencia que existe uma maior propensão que as filhas de mães lésbicas se envolvam em relações do mesmo sexo e se identifiquem como bissexuais (Gartrell et al., 2011), para ampliar essa discussão, questiona-se: Se a orientação sexual da mãe lésbica é um importante aspecto para a transferência intergeracional na identidade sexual dos filhos, o que explica que a maioria de pessoas com a orientação sexual homossexal têm pais heterossexuais? (Vecho & Schneider, 2005). Outra interrogação: as filhas de lésbicas não seriam mais propensas a vivenciarem relações do mesmo sexo pela possibilidade de demonstrarem noções mais expansivas e menos categóricas acerca da sexualidade, uma vez que estão inseridas no contexto da homoparentalidade? (por exemplo, Cohen & Kuvalanka, 2011). Essas questões têm provocado discussões científicas e convocado novas investigações acerca da influência da orientação sexual das mães sobre a própria sexualidade dos filhos.
No mais, os questionamentos de Patrícia sobre a sexualidade do filho evidenciam também o quanto os adolescentes podem se sentir pressionados a serem heterossexuais, como forma de provar que seus pais/mães do mesmo sexo conseguem ter "bons" resultados no exercício parental, ao não os influenciarem a serem gays/lésbicas. Por trás desta pressão está implícita a concepção de que a homossexualidade seria um indicativo de desajuste na vida das famílias. A literatura científica, porém, tem demonstrado consistentemente que ter pais de mesmo sexo não é em si um fator de risco quanto ao desenvolvimento emocional, cognitivo, social e sexual dos filhos (Bos & Gartrell, 2010a). No entanto, quando as crianças são confrontadas com desaprovação pelos seus colegas sobre a orientação sexual de suas mães lésbicas, eles podem perder a autoconfiança e demonstrar mais problemas comportamentais (Bos & Gartrell, 2010b).
2.2 Estigmatização homofóbica na vida das mães e dos filhos
Nesta pesquisa foi unânime a presença do estigma em relação à orientação sexual das mães, nas diversas esferas da vida social, como registra os relatos a seguir:
Minha mãe não aceitava que eu fosse gay, meu pai muito menos. Só que meu pai ficava na dele e a minha mãe fazia escândalo nos cantos: me ameaçava. (Maria)
Quando o Pedro nasceu, a Tetê [tia] deu um escândalo, que isso não era coisa de Deus, que era um absurdo. Eu fiquei muito mal. (Joana)
Considerável número de estudos apontam que a população LGB sofre marginalização e preconceito como resultado de sua orientação sexual (Goldberg & Gartrell, 2014). As mulheres lésbicas vivem em uma sociedade heterossexista, que define os comportamentos, as normas, os valores morais e éticos a serem seguidos socialmente. Qualquer pessoa que fuja às regras dessa cultura essencialista, desviando-se dos papéis sociossexuais estabelecidos, assume o lugar de diferente e de marginalização, exatamente porque rompe com o sistema conjugal e familiar oqual a sociedade já está acostumada (Uziel, 2007). Entra em cena, portanto a estigmatização homofóbica, que pode ser definida como atitudes sociais negativas de discriminação em direção à população LGB, por conta da sua orientação sexual (Van Gelderen et al., 2012). O impacto da estigmatização homofóbica potencialmente contribui para a redução da conectividade social, e pode ter um efeito negativo sobre a saúde física e mental, e ainda restringe o acesso aos cuidados de saúde das famílias constituídas por pessoas do mesmo sexo (Chapman et al., 2012).
Os filhos de pais/mães gays/lésbicas também podem ser alvos de assédios morais ou de bullying por causa das suas orientações sexuais (Kuvalanka et al., 2013; Van Gelderen et al., 2012). Em relação a essa questão, especialmente o relato de Patrícia assinala alguns desafios impostos ante às dificuldades que o filho e a enteada enfrentam diante da orientação sexual das mães, principalmentepelo enfrentamento da discriminação social:
Quando parte para a coisa do social, eu acho que é um problema que os filhos dos homossexuais têm. É difícil na escola colocar que a mãe é lésbica.... Eu acho que é difícil para as crianças, por causa do bullying, é muito grande. (Patrícia)
Mesmo com a crescente visibilidade em torno das famílias homoparentais, os filhos de lésbicas ainda são intimidados/assediados moralmente por conta da orientação sexual de suas mães, ou mesmo pelo arranjo familiar não tradicional que vivenciam. Essas provocações e intimidações podem ser importantes preditores para o desajuste psicossocial dessas crianças - seja de forma internalizada (em relação a si mesmo, refletindo numa baixa alta-estima, ansiedade ou depressão) ou externalizada (em relação aos outros, como agressividade ou quebras de regras sociais), como informam Van Gelderen, Bos, e Gartrell (2015). No entanto, um importante avanço na literatura científica nos últimos anos tem sido não só apontar o impacto da estigmatização na vida das amantes do mesmo sexo e seus filhos, mas indicar estratégias que podem tamponar os efeitos negativos do estigma na vida de seus filhos (Bos & Gartrell, 2010b; Kuvalanka et al., 2013; Van Gelderen et al., 2012), como por exemplo: terrelacionamento próximo positivo com suas mães; estabelecer contato frequente com outros descendentes de pais de mesmos sexo; frequentar escolas que tenham em seus currículos temas sobre a sexualidade e trabalham o tema da tolerância; e, ainda, as mães que se veem como membros ativos da comunidade lésbica.
Como relatado anteriormente, Patrícia e sua ex-companheira, Lia (a mãe biológica de Ricardo) separaram-se quando o filho tinha dois anos. Após esta separação, Ricardo ficou sob os cuidados de Lia, acontecimento que trouxe sofrimento para Patrícia. Esta experiência parece ter deixado marcas negativas na forma como Patrícia enxerga a homoparentalidade, já que o filho ficou sob os cuidados e mais próximo da mãe biológica, o que pode justificar a sua dificuldade de conversar abertamente com Ricardo sobre esta vivência, conforme a fala a seguir:
Eu hoje questiono se existe um benefício em casar, em viver uniões homoafetivas e ter filhos nessas relações (...). Eu acho que existe um equívoco entre os homossexuais que querem mimetizar uma relação hétero numa relação homoafetiva. Elas são diferentes em todos os sentidos. Eu não sei se deveriam existir crianças dessas uniões, entendeu? (Patrícia).
Através dessa fala, Patrícia apresenta uma compreensão da parentalidade enviesada por uma lente heterossexista, sendo esta compreensão, a visão que a sociedade e, por vezes, a academia, também tem sobre a homoparentalidade. Compreende que cabe ao par homem/mulher ter filho, vinculando a parentalidade à reprodução bissexualizada; no entanto, esta foi a sua experiência, interpelada por uma cultura essencialista que tende a naturalizar o binarismo heterossexual como a norma que rege as relações familiares. Além disso, sua experiência de ser mãe não biológica foi marcada por sofrimento, separação e perda pelo fato de não ter gerado a criança e por isso não ter podido ter a guarda do filho pós-separação. Deste modo, a experiência de Patrícia faz-nos ajuizar, exatamente, o que ela mesma reflete: não se pode utilizar as relações heterossexuais como o único parâmetro, já que os personagens, as responsabilidades, os sentimentos, as ações mútuas, enfim, as vivências familiares são outras. Cada família precisa ser olhada de forma única, mesmo que ela tenha alguns aspectos em comum (Uziel, 2007).
Considerações finais
Este artigo teve como objetivo investigar a vivência cotidiana das famílias homoparentais femininas, com destaque para dois aspectos: o desempenho dos papéis parentais e a relação entre a orientação sexual das mães e os seus filhos. A análise de dados evidenciou alguns aspectos importantes. Primeiramente, a importância do convívio diário e da disponibilidade afetiva como aspectos fundamentais para a o desempenho do papel parental (Uziel, 2007). Outro aspecto que merece destaque é que, apesar de em muitos momentos as entrevistadas revelarem vivenciar a parentalidade de forma cooperativa com as sua cônjuges, registrou-se que os caminhos adotados por elas para constituírem suas famílias e conceberem os seus filhos podem interferir no modo como gerenciam as tarefas parentais (Biblarz & Savci, 2010). O vínculo biológico parece garantir mais direitos legais e oferecer uma relação de maior proximidade com a mãe biológica. Esta pesquisa sugere, portanto, que a ideologia de igualitarismo entre casais de lésbicas seja questionada, e que as diferenças e particularidades de cada família sejam consideradas.
Em relação ao tema orientação sexual das mães e os filhos, percebeu-se que a orientação sexual das mulheres não está associada aos resultados da parentalidade. Ao contrário, esta pesquisa corrobora estudos anteriores ao sinalizar que os processos familiares, como a qualidade das competências parentais e a afetividade, são aspectos mais importantes desses resultados (Gartrell et al., 2006). Percebeu-se, ainda, que a conduta das mães lésbicas que dialogam com os filhos sobre suas orientações sexuais, parece favorecer que eles encarem essa vivência com mais facilidade e colabora para o enfrentamento positivo da estigmatização homofóbica (Bos & Gartrell, 2010b; Kuvalanka et al., 2013). Estes dados oferecerem perspectivas sobre como as mães lidam com o tema da homossexualidade e os seus filhos. Contudo, esta pesquisa sinalizou que ainda existem muitas dúvidas das mães sobre o que os filhos pensam acerca das suas vivências sexuais e de suas próprias sexualidades. Este dado faz-nos considerar a relevância e necessidade de realizar novas pesquisas que abordem, em particular, o ponto de vista dos filhos, especialmente no contexto brasileiro.
Ainda que se tenha encontrado pontos em comum nas vivências parentais das colaboradoras, fica evidenciado as idiossincrasias do percurso familiar que medeiam a relação entre essas mães e seus filhos. Para compreender a vivência cotidiana dessas famílias, é preciso explorar os seus meandros – as ideologias presentes nas concepções familiares, os embates políticos, culturais, legais e as negociações do dia a dia dos sujeitos envolvidos na teia familiar. Exige-se, portanto, que os diversos campos do saber (Psicologia, Medicina, Direito, Antropologia, Sociologia) tenham um olhar atento, minucioso e ético para o tema da parentalidade lésbica.
Não se esgotam as possibilidades de compreensão da vivência cotidiana de mulheres lésbicas e seus filhos neste estudo, visto que a família homoparental, assim como qualquer outro arranjo familiar, é uma realidade complexa e multidimensional e suas relações se desvelam de forma singular para cada membro da família. Nesta pesquisa foram estudadas apenas as mulheres lésbicas que têm filhos e vivem uma conjugalidade. Investigar as mulheres lésbica solteiras e que têm filhos e ainda a vivência parental de gays, bissexuais e transgêneros são possibilidades que se abrem nesse campo. Pesquisas futuras, no entanto, são recomendáveis para que outros aspectos relativos aos modos de viver em famílias homoparentais lésbicas sejam evidenciados (por exemplo, separação conjugal, recasamento, a relação dos pais com os filhos que foram concebidos em relações heterossexuais, dentre outros temas), além de envolver a compreensão de todos os integrantes da família, sobretudo dos filhos.
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Endereço para correspondência
Aline Nogueira de Lira
E-mail: aline.lira09@hotmail.com
Recebido: 27/12/2014
1ª reformulação: 13/03/2015
Aceite: 12/04/2015
1 Aline Nogueira de Lira é doutoranda em Psicologia pela Universidade de Fortaleza.
2 Normanda Araújo de Morais é doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e docente da Universidade de Fortaleza.
3 Georges Daniel Janja Bloc Boris é doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará e professor titular da Universidade de Fortaleza.