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Revista da SPAGESP

versão impressa ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.16 no.2 Ribeirão Preto  2015

 

ARTIGOS

 

Medos e expectativas de usuários de drogas em situação de rua

 

Drug users homeless fears and expectations

 

Temores y expectativas de los usuarios de drogas en las calles

 

 

Rafael De Tilio1; Letícia Trombini Vidotto2; Pâmela Suelen Galego3

Universidade Federal do Triângulo Mineiro, Uberaba-MG, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Para as pessoas em situação de rua, drogas psicoativas surgem como adicionais à vulnerabilidade social. Foram coligidos sete relatos de um documentário sobre a vida de pessoas em situação de rua, cujo objetivo foi identificar os medos e expectativas de pessoas em situação de rua que fazem uso abusivo de drogas em uma cidade do Triângulo Mineiro. Os dados foram analisados a partir da técnica do Discurso do Sujeito Coletivo. O principal medo é perder o contato com a família e a principal expectativa é a de sair daquelas condições de vida com auxílio do CR. Ressalta-se a importância de conhecer as demandas (incluindo medos e expectativas) dessa população para melhor implementar ações interdisciplinares de saúde.

Palavras-chave: droga (abuso); promoção da saúde; exclusão social.


ABSTRACT

For people on the streets, psychoactive drugs emerge in addition to social vulnerability. Thus, seven reports were collected in a documentary about the lives of people on the streets who abuse drugs in a city of the Triângulo Mineiro region (Brazil), aimed at identifying their main fears and expectations. Data were analyzed using the technique of the Collective Subject Discourse. The main fear is losing touch with family and the main expectation was that one day they would be able to "leave this life" (homeless and drugs) with the help of the CR. It is highlighted the importance to know this population's demands in order to better implement multidisciplinary actions in healthcare.

Keywords: drug abuse; health promotion; social exclusion.


RESUMEN

Para la gente en la calle las drogas aumentan la vulnerabilidad social. Así, siete informes fueron recogidos en un documental sobre la vida de la gente en las calles con el objetivo de identificar sus principales temores y expectativas de la gente en las calles que abusan de las drogas en una ciudad de la región del Triángulo Minero (Brasil). Los datos se analizaron mediante la técnica del Discurso del Sujeto Colectivo. El principal temor es perder el contacto con la familia y la expectativa principal es que algún día podrían dejar "esta vida" (calle y drogas). La importancia de este estudio es conocer las demandas (incluyendo los temores y expectativas) de esta población para aplicar mejor las acciones de salud.

Palabras clave: abuso de drogas; promoción de la salud; exclusión social.


 

 

Para a Organização Mundial da Saúde e para os principais documentos que orientam políticas públicas e sociais no Brasil, as drogas psicoativas são definidas como sendo quaisquer substâncias que (fumadas, inaladas, ingeridas ou injetadas) alteram o funcionamento do organismo, resultando em mudanças fisiológicas, psíquicas e comportamentais (Brasil, 2011). O uso de drogas psicoativas é complexo, envolvendo aspectos biológicos (atuação no sistema nervoso central), psicológicos (efeitos e sensações nos usuários) e sociais (padrões de consumo, de aceitação e de proibição).

O consumo de álcool e outras drogas psicoativas e as consequências sanitárias e sociais tanto para a comunidade como para os usuários chamam a atenção de diversos segmentos da sociedade, pois não raro relaciona-se à dependência destas substâncias e à vulnerabilidade social (Brasil, 2010a, 2011). Algumas pesquisas alegam que o (aumento do) consumo dessas substâncias é reflexo de uma sociedade que estimula o consumo imediato de objetos (incluindo as drogas psicoativas) como uma alternativa para aliviar os sofrimentos (Tondin, Neta, & Passos, 2013).

Neste cenário incluem-se os usuários de drogas em situação de rua, pessoas em situação de pobreza, com nenhum ou pouco acesso ao sistema formal de saúde e educação, que vivem em situação de risco pessoal e social. Desemprego, rompimento de laços afetivos e familiares, violência de todas as formas, são alguns dos motivos mais citados que conduzem essas pessoas à situação de rua, espaço público precarizado por elas utilizado como moradia ou provedor do sustento. O fato de utilizarem este ambiente para diversos objetivos e em diferentes momentos dificulta a caracterização de um perfil típico daqueles que vivem na rua (sejam crianças, adolescentes ou adultos), sendo mais adequada a expressão em situação de rua para descrever esta condição (Brasil, 2010a; Brito, 1999; Santana, Doninelli, Frosi, & Koller, 2004; Paludo & Koller, 2005).

Neste sentido, o ambiente de rua pode propiciar/maximizar o uso de drogas psicoativas, inclusive porque tal consumo pode significar uma forma de pertencerem ao grupo da rua, possivelmente compondo estratégias de sobrevivência na medida em que os efeitos do uso dessas substâncias produzem sensações de prazer, euforia e poder contra a dolorosa realidade externa (Botti, Castro, Silva, Oliveira, & Castro, 2010; Brasil, 2010a).

Desse modo, estratégias atuais para o enfrentamento de tal situação são a abordagem e Política Nacional da Redução de Danos (Tondin et al., 2013) e o Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas do Governo Federal (Brasil, 2010b) oficialmente lançado em 2011. O objetivo principal dessas políticas é reduzir o uso de drogas psicoativas por meio da integração social dos usuários visando não a abstinência (interrupção total do uso), mas sim a orientação de uso como a transição do consumo para drogas menos agressivas ao organismo, contribuindo para a preservação da saúde e para a melhora da qualidade de vida dos sujeitos assistidos, além de estimular a participação e o engajamento dos usuários no cuidado da própria saúde e na busca de autonomia (Fefferman & Figueiredo, 2006), e não a simples imposição de restrições.

No Brasil, uma das operacionalizações da política da redução de danos e enfrentamento ao crack e outras drogas é o Consultório na Rua (CR). Este dispositivo de cuidado compõe uma das estratégias do Plano Emergencial de Ampliação do Acesso ao Tratamento e Prevenção em Álcool e outras Drogas no Sistema Único de Saúde (SUS) (Brasil, 2010a; Pacheco, 2014). Em 2010, a política de redução de danos também foi incorporada ao Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas com o objetivo de ampliar o acesso aos serviços assistenciais e qualificar o atendimento oferecido às pessoas que usam álcool e outras drogas (Brasil, 2010b). Assim, com o objetivo de ampliar os recursos da rede de apoio e promover a assistência aos usuários de drogas psicoativas desassistidos e sem vinculação com os serviços de saúde, foi instituído o CR com finalidade de estabelecer ações de prevenção e cuidado no espaço da rua (Brasil, 2010a; Pacheco, 2014).

Especificamente, o CR é uma modalidade interventiva inter e multidisciplinar (envolvendo psicólogos, médicos, assistentes sociais, enfermeiros e outros profissionais da saúde) que consiste em atendimentos psicossociais extramuros que oferece de maneira contínua cuidados e atenção em saúde aos indivíduos que, por razões diversas, não acessam formalmente o SUS. É uma ferramenta clínico-comunitária em saúde para as pessoas em seus próprios contextos de vida, especialmente na rua (Jorge & CorradiWebster, 2012; Londero, Cecim, & Bilibio, 2014).

Nessa modalidade de oferta de atenção e cuidados em saúde é comum deparar-se com os medos (compreendidos como estado afetivo suscitado pela consciência do perigo real ou suposto – Santos, 2003) e as expectativas (compreendidas como crenças em mudanças da realidade imediata – Neiva-Silva, 2003) das pessoas em situação de rua, haja vista as condições marginalizadas e excludentes as quais estão expostas.

Todavia, é importante compreender como tais medos e expectativas são significados e vivenciados por essa população específica, respeitando, portanto, as particularidades dessa condição e agrupamento – proposta consoante com as orientações das estratégias políticas do Governo Federal sobre o assunto (Brasil, 2010a, 2010b). Neste sentido, a Teoria das Representações Sociais (Moscovici, 2012; Rocha, 2014) pode ser referencial teórico interessante para a compreensão destes fenômenos (medos e expectativas), pois pressupõe que as significações da realidade e as ações dos indivíduos surgem a partir das interações e das normas grupais, sendo necessário compreender tais particularidades e localidades. A partir do panorama apresentado, este estudo objetivou identificar os medos e as expectativas de pessoas em situação de rua que fazem uso abusivo de drogas em uma cidade do Triângulo Mineiro.

 

Método

Em 2013 foi ofertado estágio obrigatório na área de Educação e Saúde Coletiva de um curso de Psicologia de uma universidade federal na região do Triângulo Mineiro junto ao CR do município em que se situa tal universidade. Durante o estágio foi observado que, em muitos momentos da atuação da equipe do CR, os usuários desejavam relatar suas experiências e conversar sobre suas experiências de vida, o que era impossibilitado pela brevidade dos atendimentos.

A fim de responder a essa demanda foi formulado o projeto de extensão universitário "A vida singular de pessoas em situação de rua atrelada ao uso de drogas" (Protocolo de aprovação RAE ProExt nº 430/13 de 18/06/2013, havendo inclusive assinatura por parte dos depoentes em Termo de Uso e Cessão de Imagens) que culminou na produção de um documentário contendo depoimentos de usuários em situação de rua sobre o uso de drogas e a vida na rua.

As entrevistas realizadas para o documentário foram coligidas e serviram de material de análise para a pesquisa aqui relatada que enfatizou os medos e expectativas dessas pessoas, formalizado na modalidade de projeto de pesquisa aprovado pela coordenadora do projeto de extensão e pelo Comitê de Ética de Pesquisa da UFTM (Parecer nº 535.131 de 14/02/2014).

Participantes

Foram convidados a ceder entrevistas para o documentário 30 indivíduos em situação de rua que faziam uso abusivo de drogas psicoativas atendidos pelo CR. Apenas sete convidados optaram espontaneamente em participar do documentário. Foram entrevistados três sujeitos do sexo masculino e quatro do sexo feminino que no momento das entrevistas possuíam idade média de 32 anos (entre 23 e 44 anos). Todos consumiam crack como droga psicoativa prioritária, e as mulheres além do crack faziam uso de álcool e tabaco, enquanto os homens usavam maconha e cocaína. Os entrevistados tinham média de oito anos de consumo de drogas psicoativas (entre dois e 15 anos), e estavam em situação de rua em média há quatro anos (entre dois e 10 anos). Em relação à escolaridade, apenas dois entrevistados tinham o ensino médio completo, o restante não completou o ensino fundamental.

Procedimentos de coleta e de análise dos dados

Com base em um roteiro semiestruturado de perguntas que abordava assuntos como: uso de drogas, problemas vivenciados na rua, medos e expectativas, foram realizadas – após apresentação dos Termos de Consentimento Livre e Esclarecido e de Autorização para Uso de Imagens e assinatura dos entrevistados – sete entrevistas filmadas com usuários de drogas psicoativas em situação de rua. As filmagens das entrevistas ocorreram no próprio espaço da rua. O material de análise consiste, portanto, de sete vídeos-depoimentos de usuários de álcool e outras drogas psicoativas em situação de rua que espontaneamente aceitaram falar de suas experiências de viver naquele ambiente, sendo que cada uma tem duração média de oito minutos.

Depois de assistidos os vídeos, os áudios das entrevistas foram transcritos na íntegra e os dados obtidos a respeito dos principais medos e expectativas receberam tratamento qualitativo por meio da análise do Discurso do Sujeito Coletivo (DSC). O DSC vincula-se teoricamente à tradição da Teoria das Representações Sociais (Lefrèvre, Lefrève, & Marques, 2009); resultado da continua interação entre o indivíduo e seus grupos as representações sociais são formadas por conceitos, afirmações e explicações que significam as vivências e organizam as ações e condutas dos indivíduos e grupos (Moscovici, 2012). Desse modo, podem ser consideradas como forma de comunicação e de compreensão da realidade imediata, influenciando a maneira como os indivíduos agem diante de determinados objetos e situações sociais.

Esta técnica de análise preconiza que diversos depoimentos podem ser sintetizados em discursos-síntese escritos na primeira pessoa do singular, expressando o pensamento e as significações de uma coletividade como se ela fosse o emissor unívoco de um discurso (Duarte, Mamede, & Andrade, 2009; Lefrèvre, Lefrève, & Marques, 2009). Assim, a partir de várias leituras das entrevistas transcritas, foram extraídas as expressões-chave de cada uma delas. Posteriormente, tais expressões foram categorizadas e classificadas de acordo com as ideias centrais e, por fim, construídos os discursos-síntese. Para melhor visualização dos resultados, utilizou-se um modelo de Instrumento de Análise dos Dados (IAD) com o objetivo de organizar as informações obtidas e auxiliar na confecção dos discursos do sujeito coletivo (Duarte et al., 2009). Para a construção dos DSC também foi necessária a utilização de conectivos e de pontuação diferenciada.

 

Resultados e Discussão

Os Discursos do Sujeito Coletivo

Para a apresentação dos resultados, os dados das entrevistas foram organizados em dois conjuntos de Discursos do Sujeito Coletivo: um relativo aos medos (compreendendo dois discursos do sujeito coletivo: DSC1medos que ameaçam o corpo e a vida; DSC2medo do abandono e da solidão) e outro relativo às expectativas (compreendendo quatro discursos do sujeito coletivo: DSC3retomar a vida antes das drogas e da rua; DSC4parar de usar drogas; DSC5resgatar os vínculos familiares; e DSC6dificuldades em morar na rua utilizando drogas).

Discursos do Sujeito Coletivo sobre os Medos

A Tabela 1 ilustra o IAD sobre os medos construídos a partir das ideias centrais e expressões-chave existentes nas entrevistas; os entrevistados são identificados por números a fim de resguardar o sigilo das suas identidades.

 

 

Primeiramente, questionou-se os principais medos existentes no contexto atual de vida dos entrevistados. De acordo com estes, os maiores temores giravam em torno: do ato de dormir profundamente e concomitantemente ser maltratado, espancado e morto; medo de perder o contato e o amor dos familiares; medo da solidão; medo de ficar na rua vendendo o próprio corpo em troca de drogas. Assim, foram construídos dois discursos do sujeito coletivo: DSC 1 – medos que ameaçam o corpo e a vida, e DSC 2 – medo do abandono e da solidão.

De acordo com Santos (2003), o medo pode ser compreendido como uma reação (retração, negação, precaução ou inibição), configurando um conjunto de emoções repleto de diferentes significados considerando o contexto de vulnerabilidade dos indivíduos, como se pode observar no DSC1medos que ameaçam o corpo e a vida:

Medo? O meu principal medo é de dormir, de acordar com fogo na cara porque eu tenho medo de dormir e morrer ali. Medo da pessoa já partir pra ignorância, da polícia bater, porque na rua você não tem como dormir, você cochila. Vira e mexe tem que abrir o olho pra ver como tá o movimento da rua, né... pra ver o que tá acontecendo se ninguém tá passando e fazendo vandalismo e sacanagem com você. Mas medo, medo, medo mesmo, o medo maior que eu tive aqui aconteceu, né. O pior já aconteceu comigo eu virei um lixo, é assim que eu me sinto, tendo que se vender pra fumar pedra.

Assim, evidencia-se que a condição de vulnerabilidade e risco social potencialmente expõe os participantes a perigos que despertam medos relativos ao espaço da rua como, por exemplo, o medo de dormir. A troca do sono pelo cochilo gera uma inquietude e um temor muito grande de sofrer qualquer tipo de violência, o que leva a um estado constante de alerta e tensão.

Mesmo considerando que o medo é sentimento inerente a todos, segundo abordagens históricas da construção da subjetividade (tais como a Teoria das Representações Sociais) suas formas de expressão podem variar em relação a cada sociedade e cultura específica (Bauman, 2008; Santos, 2003), podendo ser classificados em três tipos: os que ameaçam o corpo e as propriedades; os que ameaçam a durabilidade da ordem social (incluindo a segurança e o sustento dos indivíduos); e, por fim, os perigos que ameaçam o lugar da pessoa no mundo.

Com relação aos perigos que ameaçam o corpo, o sujeito em situação de rua teme por uma violência contra seu corpo enquanto dorme. Segundo os entrevistados essas ameaças são causadas: pelos próprios pares devido à posse de drogas psicoativas ou à cobrança de dívidas adquirida por conta do vício; pelos vândalos em geral que só querem fazer o mal; e pelas autoridades policiais responsáveis pela manutenção da ordem e da segurança que muitas vezes os agridem devido ao estigma atribuído ao usuário de drogas – considerados vagabundos e perigosos.

Nota-se que é muito importante aos profissionais que lidam diretamente com esses sujeitos ultrapassarem as barreiras do estigma do usuário de drogas psicoativas em situação de rua, pois, além desse estereótipo, há um sujeito de direitos que deve ser respeitado (Muller, 2013).

Outra ameaça refere-se ao lugar que a pessoa ocupa no mundo, que diz respeito à posição na hierarquia social, à identidade de classe, gênero, étnica e religiosa. "Sentirse um lixo" foi pontuado pelos entrevistados como um dos maiores medos, visto que representa a degradação das próprias condições de existência (Santos, 2003).

Além disso, há o medo da perda – do que resta – da identidade anterior à situação de rua (pois eram pais, mães, filhos, esposos, trabalhadores etc.), nominalmente a perda dos laços familiares anteriores à situação de rua, como é a apresentado no DSC2medo do abandono e da solidão:

Tenho medo de perder meus filhos e não ver mais. Ficar sozinho também é muito difícil. Um usuário ficar sozinho assim, pode ser um cachorro, mas é difícil. Mesmo quem mora na rua tem que ter medo.

Esse discurso do sujeito coletivo destaca a solidão dos entrevistados diante do temor da ruptura total dos laços familiares, sendo esse um sofrimento que denota abandono. Dessa forma, em tempos de violência e competição generalizada que apresentam um quadro social em constante mudança, um mundo de insegurança e de medo constante é gerado, sendo o consumo de drogas psicoativas uma provável resposta ao desamparo dos sujeitos (Santos, 2003; Tondin et al., 2013).

Em suma, os discursos do sujeito coletivo sobre os medos (sofrer ameaças e danos físicos, viver em estado de abandono e solidão) revelam representações sociais dessas pessoas em situação de rua que fazem uso abusivo de drogas, visto que servem de balizas para as significações atribuídas e as ações relacionadas a essa condição (Moscovici, 2012; Rocha, 2014).

Discursos do Sujeito Coletivo sobre as Expectativas

A partir das entrevistas foi possível a construção de quatro DSC, conforme descrito no IAD apresentado na Tabela 2.

 

 

Com relação às expectativas a mais recorrente foi a de que um dia os participantes pudessem sair daquela vida – isto é, que deixassem de ser usuários de drogas psicoativas em situação de rua – com grande esperança depositada na família, mais precisamente, na reconquista do parceiro amoroso e na retomada da confiança de pais e filhos, além de retomarem as atividades (laborais, de lazer, sociais etc.) que exerciam antes do consumo das drogas psicoativas e da situação de rua. Ainda houve relato da esperança de alertar a população em geral de que a vida na rua consumindo drogas psicoativas não é digna e tampouco fácil, além de apelarem por mais respeito e melhor tratamento aos usuários de drogas psicoativas em situação de rua.

Ter expectativas é algo extremamente presente na vida dos sujeitos entrevistados. Planos são elaborados e perspectivas são traçadas sobre os mais diversos temas, principalmente os relacionados à própria existência. Para Neiva-Silva (2003) no caso das pessoas em situação de rua, muitas vezes, por não encontrarem em seu cotidiano oportunidades para estruturar e desenvolver um novo projeto de vida, o papel exercido pelas expectativas – crenças em mudanças da realidade imediata – é fundamental.

O DSC3 retomar a vida antes das drogas e da rua se refere à perspectiva de um futuro melhor, ou seja, de recuperar as atividades exercidas antes do envolvimento com as drogas psicoativas "Eu penso em crescer na vida, ter um futuro melhor pra mim, voltar a ser o que eu era antes. Eu era uma pessoa civilizada, andava limpinha, eu tenho a minha casa, eu tenho os meus filhos, trabalhava."

Verifica-se que a expectativa de uma vida diferente da atual e considerada melhor é partilhada por todos os entrevistados. Entretanto, o meio social em que essa população habita é marcado por valores diferentes de boa parte da sociedade, pois as oportunidades de acesso ao emprego, à saúde, à educação ou a qualquer outro direito do cidadão estão restritas ou são diminuídas àqueles em situação de rua (Neiva-Silva, 2003).

Outra expectativa recorrente nos discursos dos entrevistados refere-se à vontade de deixar as ruas e, consequentemente, interromper o uso de drogas psicoativas como maneira de se reintegrarem socialmente, como se observa no DSC4 – parar de usar drogas, deixando aquelas condições de existência "A minha expectativa seria parar com isso, um dia eu sair dessa vida porque isso daqui não é vida pra ninguém não. Eu não quero morrer no crack, não quero!"

As contingências de suas existências imediatas (ausência de emprego formal, rompimento dos laços afetivos familiares, temores de sofrer violências diversas etc.) fizeram com que aos poucos os entrevistados fossem perdendo a perspectiva de projeto de vida, considerado por eles mais digno, passando a compreender a rua e suas dificuldades como única possibilidade de existência (Muller, 2013). Nota-se que, apesar disso, ainda há a expectativa de cessar o consumo de drogas psicoativas, pois não querem morrer naquelas condições, elencando como meios possíveis para realizá-lo a obtenção de um emprego fixo/formal e maior dedicação à família.

Quando o assunto é família, o diálogo com os entrevistados torna-se complexo – para não dizer complicado –, pois, para eles, o tema é carregado de conteúdos afetivos e suscita as rupturas, decepções e sentimento de abandono – de ter abandonado a família e/ou de ter sido abandonado pela família – que vivenciaram e, que para muitos, são as razões pelas quais estão em situação de rua. De maneira geral, os entrevistados adotaram postura de autoculpabilidade pelo afastamento em relação aos familiares, como se verifica no DSC5resgatar os vínculos familiares:

Meu sonho é voltar a viver com minha família como eu vivia antes, é voltar pra minha casa, tá perto dos meus filhos, chegar a festejar um natal, um ano novo todo mundo junto... abraçar minha mãe e pedir perdão a ela, pedir perdão aos meus filhos porque fui covarde, mesquinha e egoísta demais. Às vezes eu me sinto tão inútil! Eu era uma pessoa mais feliz, porque aqui na rua ninguém é feliz, longe da família não.

Alguns entrevistados relataram que tiveram/tem uma família de origem, mas dela se distanciaram para não causar maiores sofrimentos e transtornos; outros relataram a desestruturação da própria família motivada pela violência – brigas e agressões conjugais etc. – ou pelo envolvimento com o abuso de drogas psicoativas e/ou com o tráfico de drogas.

Nota-se, nesses casos, que a família é compreendida pelos entrevistados como detentora de função ambígua, ou seja, ao mesmo tempo em que ela afasta/expulsa o membro violento e/ou usuário de drogas psicoativas, ela também é vista como uma possibilidade de redenção, reestruturação e apoio ao usuário dessas substâncias (Schenker & Minayo, 2004; Paludo & Koller, 2008). Deste modo, cabe considerar que a rede de apoio desses sujeitos em situação de rua deve necessariamente incluir, mas não se limitar, a rede de apoio familiar, pois os dispositivos sociais de reinserção social organizados pelo Estado são igualmente fundamentais neste processo (Brasil, 2010a, 2010b).

Por fim, a última expectativa identificada nos relatos é a recomendação por parte dos entrevistados usuários de drogas psicoativas em situação de rua para que outras pessoas "não entrem nesta vida" devido ao sofrimento e às dificuldades, conforme ilustrado no DSC6 – dificuldades em morar na rua utilizando drogas:

No futuro, eu penso em ajudar aquelas pessoas que estão na mesma vida que eu. Eu espero que muita gente veja o que a gente passa aí e por ver o que a gente tá passando não caia, porque hoje em dia isso não é fácil! Que a autoridade máxima tenha uma compaixão, um respeito pelo ser humano, por si próprio, pela família e pensem dentro de si, dentro de sua família, pra depois ver o mundo lá fora, pra tratar direito as pessoas!

Esse DSC expressa o argumento de que o uso abusivo de drogas psicoativas possui potencial suficiente para agravar as condições de vida da população em geral, e mais ainda a da população em situação de rua, visto que tal situação pode se somar – e agravar – às demais precariedades e exclusões sociais as quais essa população está submetida (Botti et al., 2010).

Sendo assim, os possíveis riscos e danos a que essas pessoas estão sujeitas, juntamente com seus temores e aspirações, podem se apresentar como estímulos para alterar a importância ocupada pelas drogas psicoativas na vida destes sujeitos. Sabe-se que a dependência das drogas acomete uma população heterogênea, pois afeta as pessoas de diferentes maneiras, por diferentes razões, em diferentes contextos, classes sociais e circunstâncias. Talvez essa heterogeneidade justifique, em parte, as dificuldades de adesão e o abandono destes serviços e dispositivos de atenção à saúde por parte de muitos dos seus usuários (Brasil, 2010a), tornando mais difícil o enfrentamento deste problema social.

Em suma, esses discursos do sujeito coletivo sobre as expectativas (retomar a vida pregressa antes da situação de moradia na rua, cessarem o uso de drogas, resgatarem os vínculos familiares, cessarem as dificuldades ocasionadas pelo uso abusivo de drogas na rua) são reveladores de representações sociais dessas pessoas em situação de rua que fazem uso abusivo de drogas, pois significam a realidade e orientam as ações destes indivíduos na sua realidade imediata (Moscovici, 2012; Rocha, 2014).

 

Considerações Finais

Os principais resultados desta pesquisa destacam que para os entrevistados usuários de drogas psicoativas e em situação de rua os medos e as expectativas devem ser compreendidos e devem servir de orientação para a atuação dos profissionais da saúde e formuladores de políticas públicas.

Isso se justifica porque a compreensão e acolhimento desses sujeitos permitem auxiliar o resgate dos vínculos sociais e afetivos, principalmente os familiares, além de promover o resgate da cidadania, dos direitos e a promoção da autonomia para uma vida mais segura, menos suscetível ao perigo, à vulnerabilidade e riscos. Logo, em condições de existência mais seguras, os medos identificados talvez sejam minimizados e suas expectativas melhor oportunizadas.

As pessoas em condições vulneráveis, tais como as em situação de rua e usuárias de drogas psicoativas, vivenciam e partilham medos e expectativas de acordo com o contexto nos quais estão inseridas. Em suma, os discursos do sujeito coletivo sobre os medos (de sofrer ameaças ou danos físicos, de ser abandonado e ficar em estado de solidão) e/ou sobre as expectativas (de retomar a vida pregressa à condição de rua, de parar o uso de drogas, de resgatar os vínculos familiares, de cessar as dificuldades da vida em situação de rua) revelam algumas das principais representações sociais sobre o morar na rua daqueles que estão nesta situação, haja vista que tais significados orientam suas ações e compreensões sobre sua atual situação.

Também se verificou nesta pesquisa que a família é tema recorrente no discurso das pessoas usuários de drogas em situação de rua, seja nos medos ou nas expectativas. Sendo assim, fica evidente a importância de diversas estratégias interventivas (tal como o trabalho da equipe multiprofissional do CR) no que diz respeito ao resgate dos vínculos e do engajamento familiar nesse processo, bem como a sua preparação para enfrentar e lidar com a situação. Assim, a estratégia interventiva do CR, orientada pela Política Nacional de Redução de Danos, é um instrumento – de acolhimento e de intervenção nas expectativas e dos medos – que visa aumentar a qualidade de vida, desenvolvendo e restabelecendo condições existenciais e sociais mais dignificantes.

Os resultados desta pesquisa podem contribuir para outras investigações sobre o tema e para a ampliação dos processos de formação/qualificação de profissionais da saúde que atuam diretamente com essa população e também para com a construção de uma sociedade menos preconceituosa e produtora de danos para os usuários de droga psicoativas em situação de rua que, para além dessa condição, também são sujeitos de direitos.

 

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Endereço para correspondência

Rafael De Tilio
E-mail: rafaeldetilio.uftm@gmail.com

Recebido: 21/06/2015
1ª revisão: 10/08/2015
Aceito: 10/09/2015

 

 

1 Rafael De Tilio é docente do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Triângulo Mineiro.
2 Letícia Trombini Vidotto é psicóloga pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro.
3 Pâmela Suelen Galego é psicóloga pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro.

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