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Revista da SPAGESP

Print version ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.17 no.1 Ribeirão Preto  2016

 

ARTIGOS

 

Direitos da criança e do adolescente e maus-tratos: epidemiologia e notificação

 

Children's and adolescents' rights and abuse: epidemiology and notification

 

Derechos de los niños y del adolescente y malos tratos: epidemiología y notificación

 

 

Tiago Zanatta Calza1; Débora Dalbosco Dell'Aglio2; Jorge Castellá Sarriera3

Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre-RS, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste estudo é discutir criticamente estudos brasileiros sobre a temática dos maus-tratos, buscando-se melhor compreender as características da violência perpetrada contra crianças e adolescentes, assim como os desafios para sua notificação. Embora a legislação estabeleça a obrigatoriedade da proteção e garantia de direitos dessa população, dados epidemiológicos indicam altos índices de maus-tratos contra crianças e adolescentes brasileiros, especialmente relacionados à negligência e agressões físicas. Quanto às dificuldades para a notificação, os resultados evidenciam o despreparo de profissionais, receios de retaliação e desconhecimento do processo de notificação. Destaca-se a importância de investimentos em ações de prevenção à violência e de capacitação de profissionais, bem como a necessidade de uma maior articulação da rede de proteção.

Palavras-chave: maus-tratos; infância; adolescência; estatuto da criança e do adolescente


ABSTRACT

The aim of this paper is to critically discuss Brazilian studies on child and adolescent maltreatment to better understand the characteristics of this violence and the challenges involved in its notification. Although legislation establishes the obligation of protection and guarantee of rights of this population, epidemiological data indicate high levels of maltreatment against Brazilian children and adolescents, especially related to neglect and physical abuse. Regarding difficulties in notification, results show professionals' unpreparedness, fears of reprisal and unawareness of notification process. The importance of investments in violence prevention and professional qualification is highlighted, as well as the need of better articulation of the protection network.

Keywords: maltreatment; childhood; adolescence; children and adolescent code.


RESUMEN

El objetivo de este trabajo es discutir críticamente estudios brasileños sobre el tema de los malos tratos, buscando mejor entender las característica de la violencia contra niños y adolescentes, así como los retos a su notificación. Aunque la ley establece la obligación de la protección y garantía de los derechos de esta población, los datos epidemiológicos indican altos niveles de malos tratos contra niños y adolescentes brasileños, sobre todo relacionados con la negligencia y el maltrato físico. Acerca de las dificultades en la notificación, los resultados muestran la falta de preparación de los profesionales, el temor a las represalias y el desconocimiento del proceso de notificación. Se destaca la importancia de inverciones en acciones de prevención de la violencia y la formación de profesionales, así como la necesidad de una mayor coordinación de la red de protección.

Palabras-claves: malos tratos; infancia; adolescencia; estatuto del niño y del adolescente.


 

 

A temática referente aos Direitos da Criança é pauta cada vez mais constante na comunidade e na literatura científica internacional. Embora atos de violência contra crianças e adolescentes existam desde a antiguidade (Martins & Jorge, 2009), o reconhecimento desses enquanto um problema é relativamente recente. Ou seja, ainda que atos violentos contra crianças e adolescentes tenham ocorrido ao longo da história, o conceito de maus-tratos deve ser entendido enquanto construído socialmente, fundado a partir de crenças, valores, padrões e permissões de determinada época e cultura (Baptista, França, Costa, & Brito, 2008).

A definição de maus-tratos utilizada nesse trabalho é descrita pela Organização Mundial de Saúde (OMS, 2002, p. 59), compreendida enquanto:

Toda forma de maus-tratos físicos e/ou emocionais, abuso sexual, abandono ou trato negligente, exploração comercial ou outro tipo, da qual resulte um dano real ou potencial para a saúde, sobrevivência, desenvolvimento ou dignidade da criança, no contexto de uma relação de responsabilidade, confiança ou poder.

Uma vez que grande parte dos maus-tratos ocorre no âmbito intrafamiliar, por muito tempo foram considerados aspectos a serem decididos na intimidade deste, cabendo unicamente aos cuidadores avaliar e decidir sobre os métodos de como criar seus filhos (Day et al., 2003). Foi somente no fim do século XIX que se iniciou um movimento em prol dos direitos das crianças e dos adolescentes. O marco do início dessa luta foi o Caso Mary Ellen, nos Estados Unidos, primeiro caso documentado de condenação por maus-tratos contra a criança que se tem notícia. Na ocasião, seus cuidadores foram condenados através de uma lei que proibia maus-tratos a animais, uma vez que as crianças não tinham uma legislação própria que garantisse sua proteção. Após o caso Mary Ellen surgiu, em Nova Iorque, a Sociedade de Prevenção da Crueldade contra Criança, em 1874 (Day et al., 2003).

Assim, considera-se o século XX como o século da infância, devido ao surgimento de uma maior preocupação quanto aos direitos das crianças, trazendo à tona a problemática da violência (Delfino, Biasoli-Alves, Sagim, & Venturini, 2005). Esse movimento culminou, em 1959, na "Declaração Universal dos Direitos da Criança", proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas (Martins & Jorge, 2009). Esta objetivou ir além da Declaração Universal dos Direitos Humanos, buscando dar espaço de destaque para crianças e adolescentes, ao considerá-los uma população com direitos e peculiaridades, que deveriam ter uma legislação à parte. Logo após, em 1962, foi publicado o trabalho de Silverman e Kempe, tratando da Síndrome da Criança Espancada, evidenciando – inicialmente na comunidade médica e, após, em diversas áreas afins – a questão relativa à violência física contra essa população (Delfino et al., 2005).

O primeiro documento legal sobre infância e adolescência desamparadas no Brasil foi o Código de Menores (1927), revisado em 1979, mas que ainda não reconhecia os mesmos como sujeitos de direitos e deveres. Com a aprovação da Convenção pelos Direitos da Criança – CDC (ONU, 1989), que propôs uma nova concepção social da infância, acordada e assinada por 193 países membros da Organização das Nações Unidas (ONU), houve uma série de iniciativas em vários países na busca dos direitos das crianças e adolescentes.

No contexto brasileiro, foi proposto o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA amparado sob a Lei Nº 8.069 de 13 de Julho de 1990), que passou a assegurar em lei a proteção integral de crianças e adolescentes brasileiros (Brasil, 1990). Após, a Lei Nº 12.010 de 03 de Agosto de 2009 (Brasil, 2009) reformulou algumas diretrizes, a fim de melhor esclarecê-las e garantir que tais normativas fossem ao encontro dos avanços da sociedade.

Para Rolim, Moreira, Corrêa e Vieira (2014), a criação do ECA representou um marco no enfrentamento dos maus-tratos contra crianças e adolescentes, ao mesmo tempo em que impulsionou a entrada dessa temática na agenda dos debates políticos e sociais. Desse modo, também o meio acadêmico brasileiro passou a dar maior ênfase a pesquisas envolvendo os direitos das crianças, havendo um crescimento no número de trabalhos sobre o tema em diversas áreas relacionadas, especialmente nas áreas da saúde.

O objetivo deste estudo é discutir criticamente estudos brasileiros sobre a temática dos maus-tratos, buscando-se melhor compreender as características da violência perpetrada contra crianças e adolescentes, assim como os desafios para sua notificação. A seguir, serão descritos e discutidos alguns tópicos referentes ao ECA e a resultados de artigos brasileiros, divididos em dois blocos de análise: ECA e Dados Epidemiológicos e Notificação dos Casos.

 

O ECA E DADOS EPIDEMIOLÓGICOS SOBRE OS MAUS-TRATOS

A criação do ECA foi o marco da política de proteção a crianças e adolescentes no Brasil, sendo somente a partir dele que "a infância e adolescência adquiriram status de sujeitos de direitos" (Perez & Passone, 2010, p.651). Assim, diversas são as diretrizes para garantia de desenvolvimento saudável e proteção para essa população, representadas a seguir em alguns artigos-chave do Estatuto. O Artigo 5º trata das diversas tipologias de violência e opressão contra essa população, veiculando que "nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punindo na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais" (Brasil, 1990). Já o artigo 3º assegura a garantia de oportunidades, a fim de garantir seus direitos:

A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade (Brasil, 1990).

A literatura científica nacional avançou bastante no que diz respeito a investigações acerca de denúncias de situações de maus-tratos, em especial negligência, abuso físico e abuso sexual (ver definições em WHO, 2002), e dos efeitos dessas formas de violência no desenvolvimento das crianças e adolescentes vítimas. Entretanto, os registros acerca de situações de violência no Brasil ainda não são suficientes para podermos falar em dados epidemiológicos (Pfeiffer, Rosário, & Cat, 2011), havendo apenas registros de serviços ou pesquisadores isolados, que não conseguem ainda traduzir a realidade atual (Weber, Viezzer, Brandenburg, & Zocche, 2002).

Dados do Mapa da violência contra crianças e adolescentes no Brasil indicaram que as mortes por causas externas (por acidentes e violência, geralmente, homicídios) têm aumentado se comparadas com as mortes por causas naturais (doenças, por exemplo). Por exemplo, em 2011, mais de um milhão de jovens foram vítimas de homicídios, sendo a incidência de homicídios na adolescência mais elevada do que no restante da população (Waiselfisz, 2014).

Em um trabalho referente aos registros de 798 casos de maus-tratos no Conselho Tutelar de Caruaru (PE), a negligência foi o tipo mais detectado (49,2%), seguido de violência psicológica (28,9%), violência física (17,6%) e violência sexual (4,7%). Destes, todos ocorreram de forma mais frequente contra crianças do sexo masculino, com exceção de violência sexual (83,8% para o sexo feminino) (Granville-Garcia, Menezes, Torres Filho, Araújo, & Silva, 2006). Em outra investigação, junto ao Programa Saúde da Família, no município de Niterói (RJ), foi identificada violência psicológica em 96,7% dos domicílios, e castigo corporal foi referido por 93,8% das crianças respondentes (N=278). Dados de violência física grave, por sua vez, foram encontrados em 19,8% dos pesquisados. A mãe destacou-se enquanto a principal autora de todos os tipos de maus-tratos relatados (Rocha & Moraes, 2011).

Moura, Moraes e Reichenheim (2008) realizaram 524 entrevistas com cuidadores em serviços de emergência do Estado do Rio de Janeiro. Os resultados do estudo demonstraram ser frequente por parte dos cuidadores a opção por castigo corporal e violência física, entendidos enquanto forma legítima de resolução de conflitos. Entre os cuidadores que haviam perpetrado violência contra os filhos, violência psicológica (96,5%), castigo corporal (94%) e negligência (60,3%) foram as formas mais recorrentes. Outro trabalho mais recente, dessa vez buscando investigar diferentes níveis de gravidade de 1536 casos de violência notificados contra crianças e adolescentes na cidade de Curitiba (PR), os resultados indicaram que a mãe foi o agressor em 44,6% (para o ano de 2003) e em 59,5% dos casos (para o ano de 2004). O pai foi o segundo que mais agrediu, com índices de 58,6% (2003) e 23,4% (2004). A maioria dos casos foi classificada como leve ou moderada, sendo o tipo mais comum a negligência, seguida por violência física, sexual e psicológica. Não foram encontradas diferenças significativas quanto ao sexo da vítima (Pfeiffer et al., 2011).

Weber et al. (2002) analisaram 400 formulários de denúncias verificadas e comprovadas junto ao Serviço SOS Criança de Curitiba (PR).As agressões físicas somaram 51% das denúncias, incluindo violência física (38,5%) e agressão sem lesão aparente (12,5%). Denúncias de negligência (34,4%), abandono (7,3%) e violência sexual (7,3%) também foram encontradas. Outro estudo em Curitiba, desta vez junto a todos os casos notificados, revelou que a maioria das crianças vítimas tinha idades entre cinco e nove anos. Novamente a natureza da violência mais encontrada foi a negligência, seguida por violência física, violência psicológica e abandono. Os resultados também apontaram um aumento constante no número de notificações entre os anos de 2004 (N=2231) e 2008 (N= 5003) (Apostólico, Nóbrega, Guedes, Fonseca, & Egry, 2012).

Em uma investigação de 60 casos de violência sexual junto ao programa Sentinela na cidade de Campina Grande (PB), os resultados apontaram que a maior incidência de abuso ocorria com maior frequência em famílias com características de baixa escolaridade e baixa renda. A maioria dos casos ocorreu com pessoas com idades entre 12 e 14 anos, sendo que 85% dos casos notificados ocorreram junto a crianças e adolescentes do sexo feminino. Das notificações, 68% foram feitas pelo Conselho Tutelar, 20% pela delegacia, 7% pela própria família e 5% pela polícia civil (Baptista et al., 2008). Já em um trabalho com 390 adolescentes da cidade de Araçatuba (SP), 72,3% dos participantes relataram ter sofrido algum tipo de violência durante a infância. Dentre os tipos de violência, violência psicológica foi a que mais teve relatos (61,3%), seguida de negligência física (44,6%), negligência emocional (38,7%), violência física (37,2%), e violência sexual (22,3%) (Garbin, Queiroz, Rovida, & Saliba, 2012).

Pelisoli, Pires, Almeida e Dell'Aglio (2010), ao levantarem 4294 fichas de atendimento em um centro de referência em acolhimento a crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, da cidade de Porto Alegre (RS), constataram um perfil predominante de meninas (75%). Quando comparadas as idades, mais de 50% dos atendimentos envolviam a faixa etária entre 5 e 12 anos. Os encaminhamentos foram predominantemente feitos pelas redes de proteção e assistência social (cerca de 77%), seguidos das redes de saúde (11%) e escola (1%). Dentre os locais que mais fizeram encaminhamentos, destacaram-se as delegacias e os conselhos tutelares.Outra investigação realizada em Porto Alegre,que investigou 674 laudos psicológicos e psiquiátricos de crianças e adolescentes violentados sexualmente, identificou o abuso intrafamiliar como o mais prevalente (66,9% dos casos). Quando comparadas as vítimas por sexo, 82,8% eram do sexo feminino. Quanto à idade, 43,7% tinham entre 11 e 14 anos, seguidos por 38,3% entre sete e 10 anos, e 17,9% entre 15 e 19 anos (Gava, Silva, & Dell'Aglio, 2013).

Em um estudo realizado a partir das informações do banco de dados do Sistema Informação de Agravos de Notificação (SINAN), das fichas de notificação de violência da cidade de Belém (PA), de 2009 a 2011, foram sistematizadas 3.267 notificações, sendo que 87,5% delas eram contra jovens de 0 a 19 anos de idade. Em relação ao sexo das vítimas, 83,2% dos casos atingiram as mulheres e a violência sexual foi o mais presente com 41,8%; seguida da violência psicológica com 26,3% e da violência física com 24,0% (Veloso, Magalhães, Dell'Aglio, Cabral, & Gomes,2013). Por fim, Pasian, Bazon, Pazian e Lacharite (2015), com a utilização do Child Neglect Index para identificar casos de crianças negligenciadas por seus pais/cuidadores no contexto brasileiro, investigaram 90 díades de crianças/pais em grupos de pais notificados e com suspeita de negligência, em uma cidade do interior de São Paulo. Os autores identificaram altos escores de negligência relacionados à falta de supervisão parental, referentes a cuidados com alimentação, vestimenta, higiene, saúde física, saúde mental e educação.

De forma geral, destaca-se a prevalência da negligência, enquanto principal tipo de maus-tratos notificados, além das violências física e psicológica, encontradas com bastante frequência nos estudos. Quanto às idades, a maioria dos casos ocorrem entre 5 e 12 anos. Por sua vez, a violência física parece ser mais frequente em meninos, enquanto a violência sexual tem sido mais notificada junto às meninas brasileiras.

Embora impactantes, esses resultados devem ser ainda considerados com bastante cautela, uma vez que as estatísticas podem estar sendo atenuadas devido ao caráter ainda oculto da violência familiar em nossa sociedade (Garbin et al., 2012). Ou seja, algumas faixas etárias e/ou tipologias de maus-tratos podem estar sendo mais visíveis e, consequentemente, mais notificadas que outras, podendo estes dados não refletir a real configuração da violência em nosso contexto social. Além disso, muitos dos estudos apresentam limitações, tendo em vista a dificuldade de acesso a essa população e dificuldades técnicas para registros de ocorrências (Moura et al., 2008).

Quanto à frequência de utilização de violência física, Andrade, Nakamura, Paula, Nascimento e Martin (2011) apontam que a punição física no contexto familiar brasileiro é bastante comum, ainda reproduzida enquanto prática cultural. Donoso e Ricas (2009) atentam que o castigo físico ainda permanece no imaginário social como um recurso permitido e apropriado para a educação dos filhos. Tal situação é considerada pelos autores como um problema grave de saúde pública, uma vez que, diversas vezes, o que os pais chamam de "palmadas" pode ser configurado como um espancamento da criança ou do adolescente. Weber, Viezzer e Brandenburg (2004) destacam a difícil delimitação entre "palmada" e "espancamento", uma vez que o critério estaria na pessoa que bate, e não na que apanha. Assim sendo, sugerem que a violência deve ser definida pela sua função (infligir dano a outro) e não pela sua intensidade. As autoras Patias, Siqueira e Dias (2012) citam os efeitos negativos do uso da disciplina coercitiva na educação dos filhos, compreendendo tais estratégias como fatores de risco ao desenvolvimento das crianças e dos adolescentes. Destacam ainda que tais práticas são compartilhadas socialmente e consideradas naturais pelas famílias, não havendo, muitas vezes, o conhecimento de outras formas de educar.

Donoso e Ricas (2009), no entanto, analisam essa cultura do castigo físico como estando em um momento de transição, no qual o processo de não legitimidade inicia-se lentamente, enfraquecendo a tradição da permissão de tais práticas. Indo ao encontro dessa transição, a Lei Nº 13.010, de Junho de 2014 (conhecida como "Lei Menino Bernardo") altera o Estatuto da Criança e do Adolescente, promulgando o direito da criança e do adolescente de serem educados e cuidados sem o uso de castigos físicos ou tratamentos cruéis enquanto forma de disciplina e educação, pelos pais, família ampliada ou qualquer outra pessoa encarregada de cuidar deles.

Já quando os estudos investigam o nível socioeconômico, ocorre maior número de notificações por negligência junto às famílias mais pobres (Bazon, Mello, Bérgamo, & Faleiros, 2010). Problematizando essa questão, Nascimento, Cunha e Vicente (2008) atentam que a problemática da "Criminalização da Pobreza" ainda ocorre, justificando questões complexas de injustiça econômica e social de forma individualizada, como sendo de responsabilidade unicamente familiar. Por outro lado, outros autores ponderam que – embora comportamentos negligentes e as causas destes devam ser entendidos e medidos de forma separada – não significa que cuidadores que não provêm à criança necessidades básicas (por vivenciarem uma situação de extrema pobreza, por exemplo) não estejam constituindo negligência (Straus & Kantor, 2005). Por sua vez, diversos trabalhos atentam para a preocupação de que tais tipos de violência estejam sendo silenciados em classes sociais mais favorecidas economicamente, que teriam mais facilidade em esconder seus comportamentos abusivos (Gallo & Williams, 2005), especialmente no que se refere a abusos sexuais, violência menos denunciada (Baptista et al., 2008).

Bazon (2008), em um trabalho com 7765 notificações para o conselho tutelar do interior de São Paulo durante quatro anos, objetivou traçar possíveis diferenças entre violências intituladas como domésticas (de ‘culpabilização' exclusiva dos cuidadores), estruturais (decorrentes do modelo socioeconômico vigente) e infracionais (atos infracionais praticados pela criança ou adolescente). Destas, os resultados apontaram que 43,4% dos casos poderiam ser considerados de violência estrutural, ressaltando o papel do Estado e corresponsabilizando-o na questão referente à violência contra crianças e adolescentes brasileiros. Segundo a autora, a opção por tal metodologia de classificação agilizaria a análise das situações de violência, problematizando as diferentes instâncias de responsabilização (Estado, família e/ou sociedade) e resgatando o elemento de complexidade que normalmente as caracterizam.

 

NOTIFICAÇÃO DOS CASOS

O Artigo 4º do ECA convoca toda a sociedade enquanto responsável pela efetivação desses direitos, nas esferas referentes a aspectos como saúde, alimentação, educação, lazer, cultura, dignidade e respeito. Nessa direção, o Artigo 70 ressalta que "é do dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente". Ou seja, para além da garantia legal de proteção, de cuidado e desenvolvimento saudável, o estatuto responsabiliza a sociedade como um todo para garantir a efetivação dessa normativa, não cabendo essa tarefa unicamente a um órgão ou profissão específica.

O ECA também promulga que, uma vez que tais direitos sejam ameaçados ou violados, cabe serem aplicadas medidas de proteção à criança ou ao adolescente em questão (Artigo 98). Por fim, o Artigo 13 preconiza que qualquer caso de suspeita ou confirmação de maus-tratos deve ser obrigatoriamente comunicado ao Conselho Tutelar. Assim, os profissionais e cidadãos são convocados a auxiliarem na proteção dessa população, através de denúncias e, consequentemente, investigações e medidas de proteção à criança ou ao adolescente em risco.

A notificação dos casos de maus-tratos é essencial para o enfrentamento da violência, uma vez que possibilita a interrupção desta e desencadeia medidas de proteção (Deslandes, Mendes, Lima, & Campos, 2011), além de gerar informações para a avaliação da situação local e da necessidade de investimentos públicos. No âmbito legal, a notificação é o primeiro passo para que a situação de violência ingresse no sistema de justiça (Dobke, Santos, & Dell'Aglio, 2010). Outros autores também afirmam sua importância ao dar maior visibilidade à violência, possibilitando um maior dimensionamento epidemiológico e a criação de políticas públicas voltadas à temática (Baptista et al., 2008).

Rolim et al. (2014) ressaltam quem, além da obrigatoriedade legal estabelecida pelo ECA, a notificação de casos suspeitos ou confirmados também está prevista nos códigos de ética das diversas profissões da saúde, não se configurando a notificação em quebra do sigilo profissional. Entretanto, ainda parece haver pouca orientação e esclarecimento aos profissionais de saúde envolvidos. Moura et al. (2008) destacam também a questão da subnotificação dos casos, além da notificação de somente alguns tipos de maus-tratos em detrimento de outros.

Bannwart e Brino (2011) atentam ainda para a deficitária formação profissional frente a esses aspectos, além da reprodução de padrões culturais no não envolvimento em assuntos que seriam do âmbito familiar.Além disso, ocorre a dificuldade do diagnóstico de maus-tratos na infância, uma vez que, em geral, familiares buscam esconder – por medo ou afeto – a causa das lesões, cabendo aos profissionais de saúde uma maior atenção aos detalhes que possam induzir à confirmação de tal violência (Garbin et al., 2012).

Outros estudos apontam para o despreparo de profissionais de saúde tanto no que se refere à identificação de maus-tratos quanto aos encaminhamentos adequados, especialmente por falta de informações técnicas e científicas (Luna, Ferreira, & Vieira, 2010; Pires & Miyazaki, 2005). Habigzang, Azevedo, Koller e Machado (2006) também verificaram a falta de comunicação entre os serviços da rede, assim como a dificuldade de intervenção efetiva junto aos casos de suspeita. Já Deslandes et al. (2011) citam a precária estrutura física e a carência de profissionais capacitados nos Conselhos Tutelares, cuja função é primordial para o manejo desses casos.

Em um estudo com médicos, enfermeiros e cirurgiões-dentistas de Fortaleza (Ceará), sobre o ECA, os médicos e enfermeiros mostraram maior conhecimento que os dentistas. Já com relação às fichas de notificação, os enfermeiros foram os que mais afirmaram conhecer o sistema. A maioria dos profissionais (62,2%) também afirmou ter medo do envolvimento legal que a notificação acarreta (Luna et al., 2010). Em outra investigação, junto a profissionais da atenção básica de três cidades do interior do Ceará, foi constatado que, entre os 40,7% da amostra que já haviam identificado algum caso de violência contra crianças ou adolescentes, 65,2% não notificaram as ocorrências (Moreira et al., 2014).

Noguchi, Assis e Santos (2004) investigaram 224 fonoaudiólogos do Rio de Janeiro (RJ). Os resultados apontaram que 24,1% dos participantes declararam ter atendido ao menos um caso no qual a criança ou adolescente foi vítima de maus-tratos. Além disso, os autores apontaram como aspectos importantes o temor de sofrer represálias caso notificassem o caso, fazendo com que encaminhassem a outros profissionais, em vez de diretamente ao conselho tutelar.

Em um trabalho com 48 dentistas, médicos e enfermeiros do interior de Pernambuco, 83% dos participantes disseram não saber como documentar um caso de violência contra crianças. Quando perguntados acerca de sua formação acadêmica, 77,3% relataram não ter recebido informações sobre o tema durante a graduação. Entretanto, 93,7% declarou querer ser capacitado junto ao tema, incluindo-se nessa porcentagem a totalidade de dentistas entrevistados (Granville-Garcia, Silva, & Menezes, 2008). Em um estudo junto a 77 graduandos de odontologia e 80 cirurgiões-dentistas de Cuiabá (MT), Matos et al. (2013) concluíram que grande parte dos entrevistados desconhecem aspectos legais e práticos relacionados à identificação e notificação dos maus-tratos contra crianças e adolescentes.

Em um estudo com 97 pediatras de Porto Alegre (RS), Pires et al. (2005) relatam que o medo desses profissionais de envolver-se legalmente, assim como a pouca confiança nas entidades de proteção à criança, aliados à falta de conhecimento e ao trabalho exclusivo no setor privado, estavam associados à não notificação de casos. Em outro trabalho com oito pediatras de uma cidade do interior de São Paulo, Bannwart e Brino (2011) destacaram o medo de envolver-se legalmente, falta de informações para a identificação da violência e a não confiança na resolubilidade dos casos. Também foi observada como prática recorrente a atribuição dessas tarefas a psicólogos e assistentes sociais.

Ainda dentro da temática, Moreira (2012) enfatiza a importância do agente comunitário, uma vez que este é o que tem maior conhecimento sobre o cotidiano das famílias e da comunidade, sendo seu saber constantemente acionado pelas equipes de saúde da família. Também os serviços de saúde foram apontados como locais com um papel importante, uma vez que seriam propícios à revelação dos casos de violência (Moura & Reichnheim, 2005). Nessa direção, Neves, Castro, Hayeck e Cury (2010) discutem a pouca visibilidade dessas situações de violência, uma vez que geralmente são cometidas por pessoas próximas e de confiança da criança ou adolescente. Moura et al. (2008) também destacam a importância da sensibilização das equipes que lidam com essa temática.

Noguchi et al. (2004) ressaltam que há maior dificuldade em lidar com casos de maus-tratos para os profissionais que atuam em consultório ou clínica particular. O trabalho de Weber et al. (2002) também atenta para tais dificuldades, explicando que as moradias nas classes mais favorecidas seriam mais isoladas e protegidas dos vizinhos, os principais denunciantes. Outros autores ainda situam a gravidade da ausência de dados confiáveis sobre o fenômeno, implicando em sua invisibilidade e no não desencadeamento de estratégias adequadas pelo poder público (Rolim et al., 2014).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A criação do ECA avançou muito em relação à proteção das crianças e adolescentes, também ao considerar de forma mais integral o contexto no qual estes estão inseridos. Entretanto, ainda que suas diretrizes apresentem ressalvas quanto a dificuldades econômicas, ainda é nas famílias pobres que ocorre a grande maioria das notificações, sendo estas também as mais sujeitas a sanções legais. Destaca-se que caberia aos profissionais que lidam com a população de crianças e adolescentes uma maior reflexão acerca desse processo. Tal mudança possibilitaria uma maior compreensão sobre as situações vividas por tais famílias,assim como permitiria passar de uma lógica de culpabilização individual para uma maior responsabilização das esferas públicas, cobrando a sua parcela de responsabilização. Ou seja, caberia ao Estado e às políticas públicas um maior auxílio na efetivação desses direitos, uma vez que os cuidadores negligentes também estariam sendo negligenciados pelas políticas públicas de assistência.

Destaca-se, ainda, a importância de uma maior inserção dessa temática nas grades curriculares de cursos voltados diretamente ao trabalho com essa população, especialmente no que tange às áreas da educação e da saúde. Ou seja, todos os profissionais que lidam com crianças e adolescentes devem estar capacitados para identificar sinais de alerta (Silva, Lunardi, Silva, & Filho, 2009). Entretanto, tais profissionais muitas vezes não conseguem identificar os sintomas de situações de maus-tratos, desconhecem as leis que os obrigam a notificar suspeitas de maus-tratos, além de ignorarem os caminhos possíveis para as notificações. Apesar das exigências éticas e legais às quais estão sujeitos, o número de notificações ainda é muito pequeno (Silva et al., 2009). Nessa direção, a decisão do profissional fica também diversas vezes mais atrelada ao relato da família que da criança em si (Silva et al., 2009).

Ainda acerca dos profissionais que lidam com a questão, destaca-se a dificuldade da notificação, especialmente nos casos em que este atua exclusivamente no setor privado, como consultórios particulares. Um maior apoio institucional no enfrentamento dos maus-tratos é entendido como fundamental, mesmo nos casos em que o profissional trabalha em uma instituição (Noguchi et al., 2004). Ou seja, ainda se faz necessária uma rede de proteção mais articulada, na qual as diversas instâncias profissionais envolvidas com a criança ou o adolescente possam estar cientes e preparadas para melhor garantir seus direitos. Assim, é esperado que os profissionais, diante da relevância de tais ocorrências, desenvolvam um olhar apurado, bem como competências e habilidades para lidar com esses casos (Aragão, Ferriani, Vendruscollo, Souza, & Gomes, 2013).

Também se destaca como fundamental a ampliação de recursos humanos nos conselhos tutelares e demais serviços de proteção, uma vez que o número desses ainda é bastante reduzido para poder conduzir um efetivo acompanhamento dos casos. A falta de confiança no aparato estatal, aliado à falta de capacitação, faz com que a notificação não seja efetivada (Silva et al., 2009), uma vez que existe a descrença na resolutividade da situação. Bazon e Faleiros (2013) situam as críticas ao sistema de proteção, aliadas ao medo de retaliações ou consequências negativas para a criança, enquanto fatores que diminuem as chances da notificação ocorrer. Por sua vez, Luna et al. (2010) ressaltam que o tempo de formação, possuir pós-graduação, bem como saber para onde encaminhar as suspeitas, influenciam significativamente na notificação.

Faz-se importante, por fim, tratativas de padronização conceitual acerca das diversas modalidades de maus-tratos, a fim de facilitar a comparação entre dados de diferentes estudos, bem como de sistematizações sobre as notificações, no intuito de obterem-se parâmetros mais confiáveis e uniformes entre os diferentes serviços de proteção do país. Além disso, aspectos metodológicos dos estudos devem ser considerados, tendo em vista que as variadas formas de conceituar maus-tratos, as amostras e instrumentos utilizados, bem como os diversificados aportes teóricos que embasam as discussões, dificultam uma visão consensual sobre o fenômeno.

Por outro lado, a implementação do ECA tem possibilitado diversos avanços no combate aos maus-tratos contra crianças e adolescentes brasileiros, tornando cada vez mais expressivo o número de notificações de suspeitas e alavancando investigações sobre índices mais confiáveis sobre epidemiologia e impactos nessa população. Dessa forma, quanto à intervenção em situações de maus-tratos, coloca-se como desafio para os próximos anos um maior enfoque no acompanhamento e tratamento dos casos, a fim de diminuir sequelas e evitar ao máximo reincidências, assegurando a proteção de crianças e adolescentes. Também se faz necessária a implementação de políticas de educação e prevenção, com estratégias que possibilitem que cada vez menos casos necessitem de intervenções e que, quando necessárias, sejam realizadas o mais precocemente possível.

 

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Endereço para correspondência
Tiago Zanatta Calza
E-mail: tiagozcalza@gmail.com

Recebido: 17/09/2015
1ª revisão: 25/11/2015
Aceito: 15/12/2015

 

 

1 Tiago Zanatta Calza é doutorando em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
2 Débora Dalbosco Dell'Aglio é docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
3 Jorge Castellá Sarriera é docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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