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Revista da SPAGESP
Print version ISSN 1677-2970
Rev. SPAGESP vol.17 no.1 Ribeirão Preto 2016
ARTIGOS
Duas nômades e inúmeras rotas: cartografias de um processo em acompanhamento terapêutico
Two nomads and numerous routes: cartography of a process in therapeutic accompaniment
Dos nómadas y numerosas rutas: la cartografía de un proceso en acompañamiento terapéutico
Luana Rodrigues de Oliveira Tosta1, I; Thaysa Brinck Fernandes Silva2, II
IUniversidade Federal do Triângulo Mineiro, Uberaba-MG, Brasil
IIUniversidade de São Paulo, Ribeirão Preto-SP, Brasil
RESUMO
Trata-se de um relato de experiência com o objetivo de apresentar um processo de desinstitucionalização de uma estudante de Psicologia por meio de uma vivência em Acompanhamento Terapêutico (AT). As participantes foram a acompanhada e a acompanhante do processo e utilizou-se como instrumento o diário de campo, com registros de 42 encontros. As vivências e o procedimento de análise se basearam no método cartográfico. Perceberam-se mudanças no entendimento de conceitos no campo da desinstitucionalização e da saúde mental, ressignificados por meio da experiência. Conclui-se que, ao se cartografar tal processo, reflexões e problematizações foram realizadas, exigindo disponibilidade ética e política da acompanhante para desinstitucionalizar posicionamentos enraizados na relação.
Palavras-chave: acompanhamento terapêutico; desinstitucionalização; psicologia; cartografia.
ABSTRACT
This is an experience report, aiming to introduce a process of deinstitutionalization, that has been experienced by a psychology student through therapeutic accompaniment (TA) practice. Participants were the accompanied and the companion of the process and the field diary was used as instrument, with records of 42 meetings. The experiences and the data analysis procedure were based on the cartographic method. Changes in the understanding of concepts in the field of deinstitutionalization and mental health were evidenced, reinterpreted through the experience. It was concluded that, by mapping this process, reflections and problematizations were performed, demanding the accompanied's ethical and political availability to deinstitutionalize positions settled in the relationship.
Keywords: therapeutical accompaniment; deinstitutionalization; psychology; cartography.
RESUMEN
Se trata de un relato de experiencia con el fin de presentar un proceso de desinstitucionalización de una estudiante de psicología a través de una experiencia en Acompañamiento Terapéutico (AT). Las participantes fueron la acompañada y la acompañante del proceso y fue utilizado como instrumento el diario de campo con registros de 42 encuentros. Las experiencias y el procedimiento de análisis se basaron en el método cartográfico. Fueron percibidos cambios en la comprensión de los conceptos en el campo de la desinstitucionalización y de la salud mental, reinterpretados a través de la experiencia. Se concluye que mediante la cartografía de este proceso, se llevaron a cabo reflexiones y problematizaciones, que requirió la disponibilidad ética y política de la acompañante, para desinstitucionalizar posiciones arraigadas en la relación.
Palabras-claves: Acompañamiento Terapéutico (AT); desinstitucionalización; psicología; cartografía.
A Reforma Psiquiátrica representa um processo de transformações sociais no campo de saúde mental, movimento que, no Brasil, tem historicamente herança italiana (Lima & Brasil, 2014). A Reforma Psiquiátrica, por meio da Luta Antimanicomial e da desinstitucionalização, visa reduzir os leitos psiquiátricos, com base em um atendimento comunitário, multiprofissional e descentralizado, de modo a priorizar modelos substitutivos de atendimento em saúde mental, como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), em contraposição ao modelo hospitalocêntrico, que se caracteriza por internações longas e medicalizações excessivas (Lobosque, 2003; Oliveira, 2013)
Nesse contexto, os modelos substitutivos, como os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) têm função de operacionalizar os discursos da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial. A desinstitucionalização, por sua vez, representa um movimento discursivo que guia ações práticas e de onde derivam outros discursos como o da Reabilitação Psicossocial, cujo objetivo é que o sujeito articule o máximo de autonomia e cidadania dentro de sua comunidade (Pinto & Ferreira, 2010).Tais movimentos têm como cerne o objetivo da desinstitucionalização, no sentido de desconstruir os espaços físicos e simbólicos do manicômio (Vasconcelos & Mendonça Filho, 2013).
Tendo em vista essas afirmações, é preciso diferenciar a desospitalização da desinstitucionalização, pois a primeira apresenta um sentido mais restrito, relacionado à saída da pessoa com transtorno mental da instituição psiquiátrica, enquanto a segunda representa uma dimensão mais ampla do cuidado, tendo como foco as atitudes, posturas e pensamentos cotidianos que ainda podem estar baseados na lógica manicomial, de modo a sustentá-la na rotina dos serviços em saúde mental (Lima & Brasil, 2014). Esse olhar ampliado representa também um desafio na prática, pois já não basta que os CAPS se mostrem abertos apenas na aparência, sendo necessário o rompimento com as práticas manicomiais implícitas, ainda sustentadas nos atendimentos (Vasconcelos & Mendonça Filho, 2013).
Com base nessas mudanças de posturas e pensamentos cotidianos, ainda cristalizados na lógica hospitalocêntrica e asilar, entende-se que a desospitalização já não é suficiente para concretizar os discursos da Reforma Psiquiátrica. Exige-se, nesse sentido, transformações nos campos teóricos, culturais, epistemológicos, jurídicos e cotidianos, a fim de romper com muros e manicômios invisíveis, e modificar a forma de vivência e pensamento da loucura e com a loucura (Loudero & Paulon, 2012; Vasconcelos & Mendonça Filho, 2013).
Em contrapartida, considerando o sentido atribuído ao conceito de instituição, observa-se que este se amplia para além do que o senso comum denomina como organização ou estabelecimento físico (Guirado, 2004). Para pensar sobre a desinstitucionalização, portanto, é importante discorrer sobre como o termo "instituição" será abordado no presente estudo, significando "o conjunto do que está instituído e, enquanto jurisdição e política, pauta toda e qualquer relação" (Guirado, 2004, p. 29). A instituição significa, nesse sentido, um "conjunto de práticas ou de relações sociais que se repetem e se legitimam enquanto se repetem" (Galvão & Serrano, 2007, p. 23). Desse modo, é preciso pensar os sujeitos constituídos nas e constitutivos das relações institucionais (Galvão & Serrano, 2007).
Ao se pensar nesse conceito, é necessário ressaltar que a desinstitucionalização se concretiza nos aspectos sutis do cuidado em saúde, muitas vezes ignorados e pouco problematizados. Tal ideia se resume no fato de que rompimento com o espaço físico do manicômio deu lugar a práticas de controles, que têm se mostrado ainda mais cruéis, por se efetivarem no regime das vivências cotidianas, institucionalizando a própria Reforma Psiquiátrica e impossibilitando a autonomia e liberdade, necessárias no cuidado de pessoas no campo da saúde (Lima & Brasil, 2014; Vasconcelos & Mendonça Filho, 2013).
Com base no que já foi abordado sobre a desinstitucionalização, percebe-se que o Acompanhamento Terapêutico (AT) é uma modalidade clínica referenciada historicamente pelo movimento da Reforma Psiquiátrica. A prática do AT pode ser realizada por qualquer profissional da saúde, e se iniciou com a proposta de concretizar as diretrizes da Reforma Psiquiátrica, consolidando a reinserção social dos pacientes mais graves no espaço urbano, prejudicados pelas internações longas nas instituições psiquiátricas (Palombini, 2008).
Essa compreensão do AT tem se ampliado, pois entende-se que qualquer pessoa pode se beneficiar desse dispositivo de cuidado, já que seu objetivo principal é colocar as pessoas acompanhadas em contato direto com a vida em sociedade, de onde se entende que a cidade é também um espaço clínico, possibilitando a combinação das instâncias ambiente, relações sociais e subjetividade no cuidado construído (Araújo, 2007; Vasconcelos & Mendonça Filho, 2013). Pelo conceito de instituição destacado neste estudo também entende-se que o AT não se resume ao acompanhamento de uma pessoa na rua, mas se amplia para o acompanhamento das dinâmicas institucionais e históricas que cercam tal relação (Bezerra & Dimenstein, 2009; Pacheco & Menezes, 2014).
Vale destacar que a saída para a rua não é suficiente para favorecer a desinstitucionalização. Tal processo demanda uma postura ética e política do acompanhante, alguém que esteja sempre questionando a própria prática e problematizando as instituições que cercam e constituem as relações (Araújo, 2007; Palombini, 2006; Silva & Silveira, 2013). Tendo em vista os desafios dessa prática, o AT é uma forma de cuidado que possibilita muitos aprendizados, principalmente para o acompanhante, pois rompe com o espaço fechado da clínica e com sua "neutralidade", exigindo que técnicas e teorias não sejam priorizadas em detrimento da relação e do contato entre pessoas; problematizações e vivências fundamentais durante a formação acadêmica, com destaque para a Psicologia (Araújo, 2007; Chauí-Berlinck, 2010; Palombini, 2006).
Nesse contexto, Bonadiman e Silva (2011) destacam a relevância das pesquisas de caráter prático em saúde mental no contexto nacional, enquanto Lima e Brasil (2014) ressaltam a importância de trabalhos que ampliem a visão sobre a desinstitucionalização, apontando a necessidade de problematizar o cotidiano das práticas em saúde mental. Ainda, Araújo (2007, p. 33) ressalta a falta de trabalhos de caráter prático sobre o AT, principalmente aqueles que se referem aos casos mais complexos, pois, conforme o próprio autor, "são esses casos extremos que colocam para a clínica problemas antes impensados". Sendo assim, o objetivo deste relato de experiência é apresentar um processo de desinstitucionalização de uma estudante de Psicologia por meio de uma vivência em Acompanhamento Terapêutico (AT).
MÉTODO
TIPO DE ESTUDO
Trata-se de um relato de experiência, com delineamento qualitativo. Segundo Bonadiman e Silva (2011, p. 125), o relato de experiência "tem objetivo de dizer sobre um conhecimento obtido com a vivência e, portanto, repleto de impressões pessoais". Ressalta-se, sob esse viés, uma compreensão singular do objeto de estudo por meio da percepção do pesquisador que vivencia uma situação particular, o que exige a "suspensão", distanciamento da prática, para que haja criticidade sobre a própria experiência. O relato de experiência, portanto, se ancora na prática, a fim de produzir reflexões teóricas, de modo a apresentar o percurso profissional, consistente com o conhecimento em pauta (Perrotta, 2004). Considerando que a experiência foi vivenciada pela acompanhante, o relato foi escrito em primeira pessoa, denotando o caráter particular e pessoal do processo.
PARTICIPANTES
Esta experiência em AT compreende uma relação constituída por duas pessoas e, por isso, entende-se que a acompanhada e eu somos participantes do presente estudo. A acompanhada, Rosa (nome fictício), no período em que foi iniciado o AT tinha 40 anos e era usuária de um CAPS, localizado no interior de Minas Gerais (MG). Seu histórico de vida denota sucessivas experiências de institucionalização, sendo que a primeira aconteceu aos 14 anos de idade, quando foi internada em uma instituição psiquiátrica de longa permanência da mesma região. Vários episódios de internações se repetiram nesse local até seus 23 anos. No período do acompanhamento,era moradora de uma residência terapêutica. Seu prontuário no CAPS indicava o diagnóstico de Esquizofrenia e as informações sobre sua família eram escassas, embora Rosa sempre mencionasse o irmão, o pai e a mãe em nossas conversas.
Eu observei que a acompanhada apresentava comportamentos que incomodavam os usuários e profissionais do CAPS, como o hábito frequente do fumo, que favorecia que pedisse cigarros de forma insistente às pessoas, gritos e xingamentos que surgiam quando não era atendida em suas demandas ou quando ia descer as escadas da instituição pelo medo que demonstrava sentir. Sua fala se mostrava desconexa e desorganizada, o que favorecia a descredibilidade das pessoas em lhe ouvir, além de se vestir e a agir de modo infantilizado. Eu percebia que essa infantilização era sustentada nas relações que construiu na instituição, por meio do modo como profissionais e usuários conversavam com ela, como a vestiam e como lhe davam alguns privilégios em detrimento das outras pessoas que eram atendidas no local, como, por exemplo, mais cigarros além do número limitado no dia para os usuários.
Eu, acompanhante e primeira autora deste estudo, tinha 19 anos no momento em que iniciei o AT, e cursava o 3º período do curso de Psicologia da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM). A busca pelo estágio no PET (Programa de Educação para o Trabalho) Atenção Psicossocial se justificou pelo meu interesse no campo da saúde mental, embora ainda houvesse um contato superficial da prática nessa área, de modo que a organização e funcionamento do programa não eram conhecidos de forma específica e profunda por mim. O AT, até aquele momento, era uma prática desconhecida, pois seu início, na minha vivência, também aconteceu de uma forma imprevista, por meio da coincidência da minha disponibilidade de horários e da necessidade do CAPS de alguém que pudesse realizar o AT. A área da saúde mental se mostrou um desafio, misturado com medos, receios e fantasias do desconhecido, do que poderia encontrar no decorrer do estágio. Por estar iniciando o curso, eu tinha muitos ideais e discursos que, muitas vezes, defendia com fascinação, porém com pouca problematização baseada na realidade concreta. Dessa forma, a compreensão do AT foi construída ao longo da minha prática, assim como era construído o saber acerca da Psicologia e minha atuação no campo de saúde mental.
MATERIAL PARA ANÁLISE
Utilizou-se o diário de campo, que é o registro de todas as informações, especulações, perplexidades e observações durante a experiência profissional. No diário, descrevem-se os encontros e seus contextos, assim como sentimentos e reflexões do profissional, sem aportes teóricos acerca das anotações (Scorsolini-Comin, Nedel, & Santos, 2011; Stake, 2011). Com relação ao processo de AT,eu registrei, no total,42 encontros com duração de duas horas semanais, total que representa um ano de prática.
CONTEXTUALIZAÇÃO DA EXPERIÊNCIA
O Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), localizado no interior de Minas Gerais (MG), onde o AT foi realizado, atende aproximadamente 400 pessoas por mês, acima de 18 anos, com transtornos mentais graves. A instituição funciona das 8h às 15h, abrangendo diferentes oficinas e atividades, como arte, geração de renda e grupos terapêuticos.A equipe da instituição é composta por médicos psiquiatras, enfermeiros, psicólogos, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais e funcionários responsáveis pela limpeza e pela cozinha. Além disso, é um espaço aberto à comunidade e aos projetos universitários das instituições de ensino da cidade.
A prática do AT compôs as atividades de extensão desenvolvidas no Programa de Educação para o Trabalho (PET) Atenção Psicossocial, vinculado ao Programa Pró-Saúde do Ministério da Saúde. Esse Programa teve início em agosto de 2012 e foi finalizado em dezembro de 2014, sendo que a prática do AT foi iniciada em novembro de 2012 e finalizada em novembro de 2013. O AT teve início quando eu cursava o 3º período de Psicologia da UFTM (2º ano), finalizando-o no quinto período (3º ano) e, portanto, este relato demonstra uma experiência construída junto ao meu crescimento no decorrer acadêmico.
Os passeios e os caminhos, ao longo do processo de AT, eram sugeridos por Rosa, que apenas direcionava com o corpo o percurso a trilhar, muitas vezes apontava com a mão a próxima esquina, ou me puxava pelo braço. Dessa forma, os encontros do AT não tinham objetivos pré-estabelecidos, mas eram construídos a cada dia de passeio, em que Rosa mostrada interesses diversos, de conhecer novas ruas, de fazer piqui-niques na praça e até mesmo de permanecer no CAPS e não sair para a rua, o que foi respeitado. Destaca-se que a determinação de duas horas por encontro na realização dos passeios não era um acordo meu e de Rosa, mas sim uma exigência do CAPS, em função dos horários em que o transporte buscava os usuários moradores da residência terapêutica.
PROCEDIMENTO DE ANÁLISE DA EXPERIÊNCIA
A experiência foi analisada e discutida com base nos referenciais teóricos sobre o acompanhamento terapêutico que abordavam reflexões sobre a desinstitucionalização e a saúde mental, sendo os principais autores utilizados: Araújo (2007), Chauí-Berlink (2010, 2011), Lobosque (2003) e Palombini (2006, 2008).
O método utilizado foi o Método Cartográfico, que, segundo Merhy (2002), considera a responsabilidade do pesquisador no processo que vivencia. Nesse sentido, entende-se que os sujeitos e suas identidades não são determinadas, mas estão sempre em produção. Logo, as situações ou territórios que envolvem o pesquisador e seus participantes, devem sempre produzir novos significados, pois todos são sujeitos da ação. Entende-se que o sujeito cartografa e é cartografado a todo momento pelas experiências que vivencia, de modo que suas interpretações do e no território em que se coloca devem abrir perspectivas para a construção de novos "mapas" e novos sentidos, desenhando cartografias.
Tendo em vista que a análise de tal método se caracteriza por resultados que multiplicam sentidos e fazem emergir novos problemas, considera-se que é uma análise de implicação e intervenção, que se faz por problematização com dimensão participativa, considerando as dinâmicas institucionais e históricas que influenciam e constituem diferentes modos de vida. O centro da análise é a experiência (o acontecimento, o processo), dimensão mais concreta da vida, onde co-emerge o objetivo e o subjetivo, de modo que é necessário ter estado no campo para que haja análise, a fim de gerar articulação e reposicionamento de fronteiras. O objetivo da análise desse método é problematizar a própria pesquisa e sua base é a ação criativa, pois a análise (da) pesquisa não se separa da análise (na) pesquisa (Alvarez e Passos, 2010; Amador & Fonseca, 2009; Barros & Barros, 2013; Pozzana, 2013).
Os registros foram lidos na íntegra e estruturados segundo a ordem cronológica em que foram vivenciados, a fim de se ressaltar os desafios e as transformações ao longo do percurso. Os recortes destacados ao longo do texto foram escolhidos de acordo com a importância para a experiência da acompanhante, pois, de acordo com o Método Cartográfico, é preciso explorar os mapas afetivos e os trajetos dinâmicos da clínica, com relação à intervenção que se tem como foco (Londero & Paulon, 2012). As categorias foram construídas de acordo com as fases de desenvolvimento da prática, direcionadas pelos discursos sobre a desinstitucionalização, que se fizeram presentes na vivência do AT.
Destaca-se que, nesse estudo, como já utilizado por Chauí-Berlinck (2011), o termo "AT" foi utilizado para se referir ao acompanhamento terapêutico e "at" para a acompanhante terapêutica, a fim de diferenciá-los.
CONSIDERAÇÕES ÉTICAS
Este relato de experiência baseia-se em uma prática realizada em um projeto de extensão, aprovado pelo Conselho de Extensão Universitária da Universidade Federal do Triângulo Mineiro - UFTM, conforme o número do Registro de Atividades de Extensão (RAE) 584/13. Do ponto de vista das exigências éticas para pesquisa envolvendo seres humanos, este trabalho está amparado na resolução nº 466 de 12 de dezembro de 2012.
APRESENTAÇÃO, DISCUSSÃO E REFLEXÕES SOBRE A EXPERIÊNCIA
Com base no processo de análise, foram elucidadas quatro categorias de organização do texto: a) Sentindo e pensando o AT: um olhar para a experiência; b) A construção de uma boneca e suas várias repercussões; c) Reabilitação Psicossocial e Cidadania: abertura para mudanças de sentido; d) Algumas reflexões e finalização do AT. Considerando que a experiência foi vivenciada pela acompanhante (primeira autora), o relato foi escrito em primeira pessoa, denotando o caráter particular e pessoal do processo.
SENTINDO E PENSANDO O AT: UM OLHAR PARA A EXPERIÊNCIA
O primeiro contato, para início do AT, foi realizado por mim, orientado e supervisionado pelas profissionais do CAPS. O trabalho com a Rosa foi indicado por essas mesmas profissionais, a partir de uma lista de usuários que poderiam se beneficiar do AT. Esse fato de listar usuários que têm prioridades para o AT em detrimentos dos outros revela, segundo Vasconcelos e Mendonça Filho (2013), a institucionalização do AT em seu fazer clínico, pois se compreende que o cuidado deve ser direcionado, de forma restrita, aos usuários com diagnósticos mais graves, ignorando que qualquer pessoa pode se beneficiar de um processo de acompanhamento.
A minha vivência começou por meio da demanda do CAPS de se trabalhar o medo da acompanhada em descer escadas, sendo que essa demanda atendia mais aos interesses da instituição, do que às próprias necessidades da Rosa, devido ao incômodo que ela causava nos usuários e profissionais do CAPS. Em nossa primeira conversa expus os horários e dias dos encontros, de modo que o AT foi apresentado como uma possibilidade de Rosa passear e sair um pouco do CAPS, ao que ela demonstrou interesse. Porém, minha ansiedade era tanta, que esqueci de me apresentar e explicar o motivo pelo qual estava me aproximando dela. Preocupei-me apenas com o AT e com perguntas sobre a vida de Rosa, o que demonstrou que eu ainda não tinha consciência da importância da relação que envolvia nós duas. Em nosso segundo encontro:
ela desenhou um pouco na varanda, mas logo reclamou de dor de barriga e pediu que eu a levasse ao banheiro. Não guardei os materiais, propositalmente, para depois usar essa 'desculpa' para descermos as escadas.... Ela não queria descer, segurei seus braços e, olhando em seus olhos, pedi que confiasse em mim. Ela concordou e sugeri que descêssemos um degrau de cada vez.
O trecho demonstra um pedido insensível de minha parte, pois é difícil confiar em alguém que você encontra pela segunda vez. Nessa situação, ficou visível que os interesses da instituição eram prioridades para mim em detrimento dos desejos da acompanhada, pois ela me disse sentir dores, embora eu insistisse na atividade. Além disso, minha atitude de segurar em seus braços e pedir sua confiança foi uma reprodução de uma intervenção bem-sucedida, relatada em reunião por uma das profissionais do CAPS, que foi realizada com Rosa, de modo que eu não dei espaço para minha criação singular junto à acompanhada.
Com relação a esse movimento de reprodução de experiências, é possível recorrer às ideias de Araújo (2007),que destaca a dificuldade de se produzir ações atreladas ao desejo quando não há uma ruptura com a repetição. Revelar esse jogo de forças, de acordo com Baremblitt (2002) e Palombini (2008), só é possível quando há uma proposta de ser instituinte, agente de mudança e transformação e, não instituído. Ainda, conforme Chauí-Berlink (2011), a produção de um discurso leva a outros discursos que legitimam as práticas institucionais, já que a instituição se sustenta pela ação dos seus atores.
Em meio a essas situações, embora eu defendesse práticas antimanicomiais e desinstitucionalizantes, muitas vezes percebia que sustentava o contrário. Isso ficou claro quando eu coloquei os interesses da instituição acima dos da acompanhada:
Rosa falou que queria ir para casa. Perguntei se em sua casa tinha escadas. Ela não respondeu. Insisti perguntando se ela gostava de descer escadas. Ela pediu: 'não vamos falar mais disso não...'. Parei de insistir e me senti extremamente cruel, insensível com relação à sua saudade de casa.
Pensando neste trecho do diário de campo, entende-se que não dar espaço para as necessidades de quem se acompanha pode produzir um distanciamento na relação. O relato do que eu senti se aproxima do que expõe Chauí-Berlink (2011, p. 45), pois a dificuldade se mostra quando há um desencontro no próprio encontro, em que a insensibilidade do at e sua surdez perante a fala do acompanhado podem "comprometer o andamento do projeto singular do sujeito e também o andamento do trabalho".
Ao problematizar o impacto da cidade sobre a relação de AT, é válido destacar o seguinte trecho do diário: "precisamos subir alguns degraus da calçada e Rosa se assustou, perguntou se lá era o sanatório. Desconfio que ela tenha muito medo de escadas, por se lembrar das escadarias da instituição, onde ficou por tanto tempo internada". Nesse trecho, mais que entender e interpretar as possíveis causas para seu medo de escadas, era preciso problematizar que Rosa dava sinais que o manicômio ainda estava presente entre nós, no CAPS e em nossa relação. Considerando esse fato, Lobosque (2003) discute como as práticas em saúde mental ainda têm a violenta necessidade do hospital psiquiátrico em seu paradigma, mesmo que de forma implícita. Palombini (2008) também enfatiza que a desinstitucionalização não pode ser pensada somente como a saída do espaço físico da instituição, pois é preciso, primeiramente, que os "manicômios mentais" sejam desconstruídos em nós e em nossas relações. Aos poucos, pude intervir com mais segurança, como fica claro no registro do nosso décimo encontro:
Rosa olhava para baixo. Coloquei a mão em seu queixo, de modo a pressionar sua cabeça para cima. Ela me perguntou o motivo e eu respondi que era para olhar para cima. Ela olhou e disse: 'Nossa! Olha o tamanho do prédio!'. Comentei: 'Viu o tanto de coisa que a gente deixa de ver quando anda olhando só para baixo?'
Há que se considerar que intervenções como essa caminhavam no sentido de desinstitucionalizar modos de vida repetidos. Essas impressões corroboram com o que Raymundo (2008, p. 61) demonstrou ao relatar sua experiência, pois a pessoa por ele acompanhada ia descobrindo a cidade e o que se "apresentava diante dela ia ganhando um certo contorno, diferença, sentido, valor". Além disso, o espaço urbano favorecia a produção de intervenções em nossos encontros, mesmo quando retornávamos ao CAPS:
quando nos aproximamos da escada, ela começou a gritar e eu falei: 'Rosa, quem já andou tanto igual a gente, subiu e desceu morro bem mais pesado, vai ter medo de uma escadinha dessas?'. Ela respondeu que a gente andou muito mesmo e foi descendo comigo para o quintal.
Esse exemplo ilustra a produção de intervenções singulares, de acordo com nossas vivências pessoais na rua, de modo que a criação favorecia o enfrentamento do medo paralisante, que muitas vezes eu demonstrava sentir. Refletindo sobre questões que se aproximam destas,Araújo (2007) ressalta como é possível ver os efeitos clínicos que o espaço urbano, em sua forma de se organizar, produz na pessoa acompanhada. Palombini (2008, p. 82) ainda explica que,quando o AT se desprende das "amarras institucionais e se lança no contexto do cotidiano da vida, pode enriquecer o espaço terapêutico com toda uma nova gama de experiências".
Ao analisar esses trechos do diário de campo, que se referem à experiência inicial apresentada neste tópico, é notável que, mesmo no começo, o AT se fez marcante. Tais evidências demonstraram que o simples fato de sair dos muros institucionais para a rua fez emergir muitas questões e percepções para a dupla, de modo que alguns caminhos na direção da desinstitucionalização puderam ser percebidos. No decorrer de nossos passeios, Rosa se desequilibrava e ria, divertindo-se com os desafios que superávamos.
A CONSTRUÇÃO DE UMA BONECA E SUAS VÁRIAS REPERCUSSÕES
Por meio de nossas andanças, decidimos construir uma boneca de pano, sugestão criativa de Rosa, que eu tentei aproveitar rapidamente:
Eu andava rápido. Ela parou, puxou minha mão e falou: "vamo devagar, minha filha!". Fiquei surpresa, mas contente por ela ter me mostrado que eu não estava respeitando seu ritmo (de fato estava empolgada para retornar e fazer a boneca).
Baseado nesse trecho, é possível fazer relação com as afirmações de Palombini (2008, p. 127), que demonstra a importância de nos atentarmos ao ritmo do acompanhado, abandonando a "tendência neurótica de começarmos as coisas rapidamente para nos livrarmos delas". Dois encontros foram necessários para finalizar a boneca e eu os percebi como momentos potentes e alegres para nós duas.
Após a concretização da boneca, o resultado significou, para mim, um acontecimento digno de comemoração, que refletia um objetivo alcançado. Tendo em vista que eu idealizei muito essa atividade, fiquei frustrada quando encontrei, nos dias seguintes, uma Rosa hostil e agressiva, diferente do que eu esperava. Essa questão se direciona no sentido da problematização apontada por Bezerra e Dimeinstein (2009) acerca das grandes expectativas que depositamos na área de saúde mental e em nosso trabalho, ignorando as particularidades do sujeito que se acompanha. Segundo Palombini (2008, p. 38), "gostamos das coisas ordenadas, do futuro já antevisto no presente, do trabalho dirigido a um fim".
Em meio a essas dificuldades, o silêncio de Rosa me incomodava e eu procurava motivos e causas que explicassem seus novos comportamentos. Ressalta-se, nesse contexto, uma postura de tentar disfarçar o desajeitamento com um excesso de falatório desnecessário e insensível, pouco cauteloso no processo de acompanhar (Araújo, 2007; Silva & Silveira, 2013). Com base nessas reflexões, o seguinte trecho do diário se mostra importante:
Chovia e, mesmo assim, saímos. Mais uma vez poucas palavras. Tentei puxar assunto e nada... Até que, ao passar na calçada entre um poste e um muro, fiquei entalada. Rosa tomou o guarda-chuva da minha mão e resmungou. Continuou andando em silêncio, cobrindo-nos da garoa. Senti que Rosa cuidou de mim, da minha ansiedade.
Tendo como base o cuidado oferecido, nota-se que não é preciso muito para cuidar, de modo que em alguns momentos nossa presença já significa muito (Araújo, 2007). O AT, nesse sentido, pode favorecer a desinstitucionalização das barreiras entre quem cuida e quem é cuidado (Pacheco & Menezes, 2014). Tais afirmações se aproximam do que vivi com Rosa, pois me senti cuidada por ela, por meio do seu acolhimento em silêncio do meu incômodo e desajeito, momento em que nossos papéis se inverteram.
Com relação à agressividade de Rosa, eu me culpei várias vezes por suas atitudes, pois imaginava que sua hostilidade era um reflexo de minhas possível atitudes inadequadas ou de minhas falhas em nossa relação. De acordo com Lobosque (2003) e Pacheco e Menezes (2014), muitas vezes a agressividade pode não ser aceita, pela fantasia de que o acompanhado deve ser "grato" por nossa "ajuda" – atitudes que acabam por revelar a lógica manicomial que impera em nossas relações, ao tratarmos a diferença e a falta como sinônimas, sustentando o estigma secular de que o louco deve se arrepender de suas inadequações e "maldades".
Além disso, eu não conseguia lidar com essa agressividade, porque assumir a parte agressiva que existia em mim também era difícil, quase inaceitável. Ao olhar esse percurso, percebo várias mudanças em mim, que se assemelham ao que Chauí-Berlinck (2011, p. 160) destaca: "o at afetado desde fora pelas paixões de seus acompanhados, tocados pelos sentimentos desses, vê-se modificado em seus próprios sentimentos". A intensidade dessa experiência possibilitou que eu refletisse sobre a diferença entre querer uma mudança a qualquer custo, o que era desgastante para os dois lados, e entre esperar pelo processo e ritmo de mudança do outro, que se diferencia da acomodação com o que se repete e se institui.
As repercussões da construção dessa boneca, que envolveram as minhas expectativas e frustrações, exigiram que eu superasse meus medos e dificuldades, a fim de transformar minhas angústias em intervenções que fortalecessem nossa relação, como registrado no trecho abaixo:
Rosa se distanciava do CAPS e, em função dos horários da instituição, sugeri que retornássemos. Ela não concordou e gritou: 'vamo embora, muié'. Sem me dar conta da situação, comecei a falar alto como ela: 'a gente tem que voltar, muié, vamo!'. Ela, imediatamente, pediu que eu parasse de lhe passar vergonha na rua.
Esse relato ilustra as reflexões de Pacheco e Menezes (2014), que abordam o AT como possibilidade de desinstitucionalizar os papéis socialmente enraizados, como o louco e o normal, o certo e o errado, o profissional e o acompanhado. Contudo, esse trecho também demonstra que a regra era mais importante que o desejo em nossa relação, pois eu e Rosa não podíamos continuar a caminhada, seguindo a demanda que ela apresentou, em função dos horários estipulados pelo CAPS.
Ao longo deste tópico, com foco na construção da boneca e as repercussões que dela surgiram, pode-se afirmar que os processos de desinstitucionalização se fizeram presentes em situações simples, porém que se mostraram complexas. Desse modo, o caminho para desinstitucionalizar não se restringiu ao rompimento com o hospital psiquiátrico, mas se ampliou para o resgate de uma postura de cuidado ético, que pôde ser corporificada por meio de minha abertura em problematizar os fatos que nos envolveram.
REABILITAÇÃO PSICOSSOCIAL E CIDADANIA: ABERTURA PARA MUDANÇAS DE SENTIDO
Em vários momentos, Rosa demonstrou confundir amor e carinho com piedade, o que pode se relacionar com o modo de vida que ela conhecia, pois sempre dependeu de doações e favores para manter o mínimo de suas necessidades. A associação do cuidado com uma atitude assistencialista ou caritativa influenciava nossa relação e me incomodava, conforme ilustra o trecho do diário de campo: "algumas vezes, eu entrava na mesma lógica, pensei em levar-lhe bombons ou balas para que me recebesse melhor ou aceitasse o convite do passeio; algo contrário ao que eu acredito enquanto construção de uma relação".
Ao mesmo tempo, durante nossas saídas, eu me incomodava quando ela pedia dinheiro, comida ou fumo para os circulantes na rua, ou quando me pedia que os comprasse. Eu desejava que ela tivesse um trabalho que lhe possibilitasse maior autonomia, e tantas dúvidas e desejos, na maioria das vezes, estavam ligados ao modo como eu entendia o AT e como alguns profissionais do CAPS, que me supervisionavam, definiam-no: uma prática que tinha como objetivo promover a reabilitação psicossocial e a cidadania.
Com referência a esses discursos, entende-se que a reabilitação psicossocial é um caminho importante nos modos de se pensar a loucura (Pacheco & Menezes, 2014). Contudo, há uma alerta para os riscos do pensamento isolado e limitado desse conceito, pois a reabilitação psicossocial opera em função da cidadania, que, muitas vezes, liga-se à noção de trabalho e de produção no atual sistema capitalista (Pinto & Ferreira, 2010). Nesse ponto, Rocha (2011) acrescenta que pensar a produção, ligada ao lucro, representa uma dimensão contra-produtiva, pois o pressuposto é que o louco deve ser normalizado e adaptado à nossa realidade individual e capitalista. Sendo assim,os usuários podem ser vistos mais por suas limitações do que por suas possibilidades criativas, de modo que se pode produzir relações pautadas na lógica manicomial, disfarçadas, no entanto, por propostas de reinserção social.
Em estudo realizado por Pacheco e Menezes (2014), é ressaltado que o sistema econômico pode produzir loucura e alienação, sendo o processo de reabilitação psicossocial de uma pessoa, muitas vezes, voltado para este mesmo sistema, que antes produziu adoecimento. Considerando essa dinâmica, as práticas reabilitadoras podem ser mais violentas que o próprio manicômio, pois a violência está presente, porém escamoteada pelo discurso da inclusão (Lobosque, 2003; Pinto & Ferreira, 2010).
Vale destacar a mudança relevante que ocorreu em nossa relação após minhas férias de quinze dias, talvez devido ao maior tempo e espaço para reflexão sobre a prática de AT. Voltei para o estágio disposta a experimentar saídas com Rosa em diferentes locais, fomos à sorveteria, ao Mercado Municipal, em alguns bares, e foi interessante ver como essas vivências afetaram a acompanhada e as pessoas que se cruzaram conosco. Nos encontros seguintes, quando eu não tive condições financeiras para sustentar os passeios, Rosa se negou a sair comigo e pude questionar as relações que ela mantinha apenas por interesse, o que possibilitou algum diálogo e improvisações, presentificadas no seguinte trecho:
Ela insistia que queria um 'picolezinho' e eu dizia que não tinha dinheiro, até que ela soltou minha mão e disse: 'vamos ver'. Por um momento a perdi de vista, ela entrou em uma construção e pediu aos pedreiros, que conversavam com o picolezeiro, um cigarro e um picolé. Pensei em intervir, mas me afastei da situação e fiquei observando como ela iria improvisar para conseguir o que queria.
Ao observar as atitudes da acompanhada, pude ressignificar essa experiência e enxergar uma nova Rosa que, sob esse novo olhar, apresentava-se com autonomia para criar formas de atender ao que desejava. Ao pensar nessas novas formas de se compreender situações vividas, os acréscimos de Araújo (2007, p. 46) são válidos, pois o autor esclarece que "quando algo acontece, um sentido se coloca, porém também podemos dizer que, quando um sentido se coloca, algo acontece". Logo, quando eu permiti que essa situação acontecesse para mim e para a acompanhada, pude dar novos sentidos aos conceitos de reabilitação psicossocial e autonomia, pois Rosa me mostrou que não precisava ser "reabilitada", não precisava trabalhar para ser cidadã, mas que já era autônoma à sua maneira.
Rosa me mostrou, por meio de suas atitudes, que ela era muito mais do que eu supunha a seu respeito, e um fato muito positivo para nossa relação foi perceber que ela começava a dividir e me oferecer parte dos lanches que ganhava, antes devorados sozinha. No que tange à etimologia do verbo acompanhar, Chauí-Berlinck (2011) destaca a dimensão do "cum panis" que abrange a relação de companheirismo, daquele que divide o pão. O ato de compartilhar reflete, nesse contexto, uma atitude de Rosa em permitir que eu pudesse compor com e no seu mundo, processo que me exigiu disponibilidade para permitir que ela também compusesse comigo. Conclui-se, desse modo, que o AT, em nossa vivência, aconteceu por meio da abertura em somar e compor juntas, criando novas realidades.
ALGUMAS REFLEXÕES E FINALIZAÇÃO DO AT
Apesar de estar vivendo mudanças significativas no processo de AT, eu ainda focava na possibilidade do trabalho como forma de maior autonomia para Rosa, insistindo que ela participasse das oficinas de geração de renda do CAPS ou tentando realizar atividades que pudessem lhe dar algum retorno financeiro. Em determinado trecho do diário de campo, evidenciam-se algumas de suas falas que permitem reflexões:
Sentei-me ao seu lado e ela disse: 'passear não pode não, fia, gente que fuma não pode passear, ando cansadinha, fia, queria puxar a palha'. Segurei sua mão e ela continuou: 'que bonitinha, ela quer brincar comigo, mas não pode brincar comigo não, muié'.
Nessa vinheta, eu pude interpretar a fala de Rosa como alguém que se mostrou sensível, ao compreender os meus limites, de uma acompanhante que ainda não conseguia estar ao lado da loucura sem associá-la à produção ligada ao lucro capitalista. Por mais que haja abertura para o novo, é preciso manter resistência à captura dos poderes instituídos, sustentando conflitos que permitam caminhos desviantes (Bezerra & Dimeinstein, 2009). Ao perceber meus próprios limites, disse a Rosa que permaneceria no CAPS, ao seu lado, quando ela necessitasse de minha companhia, e o fim do AT foi se dando sem contornos definidos.
O AT foi uma experiência rica e inigualável para minha formação. O que se percebe é que a desinstitucionalização está ligada ao AT, bem como este pode se ligar àquela (Marques; 2013; Oliveira, 2013). Ao relatar sua experiência, Marques (2013) demonstra como acompanhar coloca em "xeque" a existência do at, pois favorece outras formas de estar, ser e ver o mundo. Nesse aspecto, a desinstitucionalização não se dá apenas para o acompanhado e para a instituição física, mas, principalmente, para o acompanhante que se vê tensionado a flexibilizar suas crenças e rever seus preconceitos. Em referência a Saramago (1922), viver o AT é como navegar em busca de uma ilha desconhecida, que implica pensar e viver o coletivo, pois é necessário sair da ilha para que ela seja vista, já que não enxergamos o mundo se não saímos de nós mesmos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em vias de conclusão, o que percebi, por meio da vivência, é que caminhei para meu próprio processo de desinstitucionalização. Nesse sentido, não pude conhecer o significado dessa prática para a acompanhada, mas posso falar com propriedade do que a experiência significou e significa para mim, pois reconheço e sinto que Rosa e o AT me acompanham até hoje, durante minha atuação acadêmica e na minha formação para a vida.
Reafirmo que o AT é uma clínica política, que abrange o campo subjetivo, sendo seus limites evidenciados quando a subjetividade do at se mostra adequada à lógica hegemônica, podendo torná-lo menos sensível às possibilidades criativas do cotidiano. Por esse motivo, ressalto que a desinstitucionalização não se caracteriza apenas por um processo grandioso e concreto, mas se faz também nos detalhes da rotina, nas pequenas mudanças de relacionamentos padronizados e nos questionamentos acerca de repetições legitimadas socialmente, de modo que os encontros com a cidade podem favorecer novos posicionamentos.
Todavia, se o at não se permitir sair de si mesmo e adentrar o mundo enlouquecido do acompanhado, não poderá marcar e nem se deixar ser marcado, pois a relação e o encontro não acontecem. O at precisa problematizar, nesse sentido, as instituições que ditam o que é ser louco e o que é ser normal, o que é ser um profissional de psicologia, o que é saúde e o que é doença, o que é ser um pesquisador e, por fim, o que é ser um acompanhante – rompimento que representa um processo complexo, profundo e contínuo.
Desse modo, cartografar um processo de AT já é por si só desinstitucionalizante, no sentido que a cartografia exige que se reveja a prática, pois o pesquisador também intervém no campo. Assim, a realização desse estudo possibilitou reflexões que geraram mais perguntas do que respostas, sendo importantes mais estudos que se baseiem na prática, no fazer associado com a teoria, para que a loucura tenha seu espaço expandido na sociedade.
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Endereço para correspondência
Luana Rodrigues de Oliveira Tosta
E-mail: luana.ro.tosta@hotmail.com
Recebido: 19/01/2016
1ª revisão: 25/02/2016
Aceito: 22/03/2016
1 Luana Rodrigues de Oliveira Tosta é psicóloga pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro.
2 Thaysa Brinck Fernandes Silva atuou como docente do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Triângulo Mineiro e atualmente é doutoranda em Saúde Mental pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.