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Revista da SPAGESP
Print version ISSN 1677-2970
Rev. SPAGESP vol.18 no.2 Ribeirão Preto 2017
ARTIGOS
Autonomia e voluntariedade na pesquisa com adolescentes em medida socioeducativa de internação
Autonomy and voluntariness in research with adolescents under social-educative measures of confinement
Autonomía y voluntariedad en la investigación con adolescentes en medidas socioeducativas de internación
Vinicius Coscioni1, I; Ana Cristina Garcia Dias2, I; Edinete Maria Rosa3, II; Silvia Helena Koller4, I
IUniversidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre-RS, Brasil
IIUniversidade Federal do Espírito Santo, Vitória-ES, Brasil
RESUMO
O objetivo deste estudo é apresentar as medidas adotadas para a garantia da autonomia e da voluntariedade de participantes em uma pesquisa conduzida com adolescentes em medida socioeducativa de internação. As medidas relatadas foram embasadas na resolução nº 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde e se referem: à garantia de um local de coleta de dados sem interferência dos agentes socioeducativos; ao emprego de vocabulário acessível aos participantes; ao estabelecimento de compromisso entre pesquisadores e participantes sobre o sigilo das informações; e à realização de diferentes modalidades de encontros individuais entre pesquisadores e participantes. Garantir a autonomia e a voluntariedade dos adolescentes em medida socioeducativa demanda a tomada de medidas inovadoras que, ainda que fundamentadas nas resoluções éticas em vigor, devem ir além destas.
Palavras-chave: adolescente em conflito com a lei; medidas socioeducativas; ética; autonomia; voluntariedade.
ABSTRACT
This study presents measures adopted to guarantee autonomy and voluntariness of participants in a research conducted with adolescents under social-educative measure of confinement. The measures reported were based on Resolution 510/2016, from the National Health Council, and refer to: guaranteeing a place for collecting data without interference from social-educative agents; use of vocabulary accessible to participants; establishment of a compromise between researchers and participants about the confidentiality of information; and the realization of different modalities of individual meetings between researchers and participants. Guaranteeing the autonomy and voluntariness of adolescents under a social-educative measure demands the adoption of innovative measures that, although based on the ethical resolutions in force, must go beyond these.
Keywords: adolescents in conflict with the law; social-educative measures; ethics; autonomy; voluntariness.
RESUMEN
El objetivo de este estudio es presentar las medidas adoptadas para la garantía de la autonomía y de la voluntariedad de participantes en una investigación conducida con adolescentes en medida socioeducativa de internación. Las medidas relatadas se basaron en la resolución 510/2016 del Consejo Nacional de Salud y se refieren a: la garantía de un lugar de recolección de datos sin interferencia de los agentes socioeducativos; el empleo de vocabulario accesible a los participantes; el establecimiento de compromiso entre investigadores y participantes sobre la confidencialidad de las informaciones; y la realización de diferentes modalidades de encuentros individuales entre investigadores y participantes. Garantizar la autonomía y la voluntariedad de los adolescentes en medida socioeducativa demanda la toma de medidas innovadoras que, aunque fundamentadas en las resoluciones éticas en vigor, deben ir más allá de éstas.
Palabras-clave: adolescentes en conflicto con la ley; medidas socioeducativas; ética; autonomía; voluntariedad.
O objetivo do presente estudo é apresentar as medidas adotadas para a garantia da autonomia e da voluntariedade de participantes em uma pesquisa conduzida com adolescentes em medida socioeducativa de internação. Durante a realização da pesquisa, foram observados entraves e dificuldades que se relacionavam a desafios éticos, alguns previstos no planejamento da pesquisa, outros emergentes durante a condução do estudo. Esses impasses implicaram na adoção de estratégias especiais de atuação investigativa como forma de garantir a autonomia e a voluntariedade dos participantes. Considera-se fundamental compartilhar esse processo reflexivo de construção de estratégias, a fim de auxiliar pesquisadores da área no planejamento de pesquisas futuras com populações que apresentam características similares.
As resoluções que instituem as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos no Brasil (Brasil, 2012; 2016) exigem a autonomia e a voluntariedade dos participantes enquanto um dos princípios fundamentais que perpassam a atividade investigativa. A resolução nº 510/2016, do Conselho Nacional de Saúde (Brasil, 2016), assegura que a produção científica não é uma atividade neutra, uma vez que possui determinantes históricos, políticos e culturais. Dessa forma, devem apresentar compromisso com a produção de benefícios atuais e potenciais para o ser humano e a sociedade. Neiva-Silva, Lisboa e Koller (2005) defendem que a pesquisa científica com populações vulneráveis pode ser um instrumento de fortalecimento e de melhoria de condições de enfrentamento dessas populações, desde que bem conduzidas ético e metodologicamente. No entanto, esses mesmos autores reconhecem que o desenvolvimento de pesquisa com populações vulneráveis apresenta uma série de desafios e questionamentos aos pesquisadores.
Rogers e Ballantyne (2008) consideram que toda pesquisa apresenta riscos potenciais de causar danos aos indivíduos. Para essas autoras, todo participante é potencialmente vulnerável na medida em que o processo de fazer pesquisa envolve relações de saber e poder. Os participantes do estudo têm menor poder quando comparados aos pesquisadores. Além disso, algumas práticas antiéticas ainda hoje estão presentes no contexto acadêmico, como: o uso de coerção, a realização de um processo de consentimento livre e esclarecido inadequado, a ausência de esclarecimentos, a presença de exploração e do engano (Tengan, Venancio, Marcondes, & Rosalen, 2005). A comunidade científica deve, assim, prover um esforço a fim de que sejam extintas as práticas de pesquisa que aumentem os riscos e não possibilitem o exercício da autonomia de seus participantes.
A autonomia e a voluntariedade dos participantes manifestam-se a partir da livre tomada de decisão em fazer parte da atividade investigativa, após tomar conhecimento sobre seus objetivos, justificativa, procedimentos, benefícios, riscos potenciais e critérios éticos – tais como as medidas para se evitar e reparar danos, o direito em se retirar da pesquisa, em qualquer momento, sem represálias, entre outros. A formalização desses princípios dá-se sobretudo por meio da assinatura dos termos de assentimento livre e esclarecido (para participantes juridicamente incapazes ou parcialmente capazes) e/ou de consentimento livre e esclarecido (para participantes juridicamente capazes). Esses termos devem traduzir, em linguagem acessível, todas as informações necessárias para a garantia da autonomia e voluntariedade dos participantes (Oliveira, Carlotto, & Dias, 2016). A assinatura desses termos não é mera formalidade, mas um processo de esclarecimento importante, fruto de uma relação de confiança que deve ser construída e dialogada ao longo da atividade de pesquisa. Pode-se considerar que a resolução nº 510/2016 avança sobre essa questão ao reconhecer que esse processo comunicacional de esclarecimento é complexo, implicando em uma série de dispositivos e procedimentos (escritos ou não) que devem considerar as características individuais, sociais, econômicas, históricas e culturais dos participantes e contextos envolvidos (Kehl, 2016). Essa resolução reconhece que o processo de esclarecimento e obtenção do assentimento ou consentimento deve ser acessível, transparente, além de ser colaborativo e contextual. O pesquisador, nesse sentido, é responsável por proporcionar as condições adequadas para uma tomada de decisão informada, o que inclui um ambiente isento de obrigações de participação (Freitas & Silveira, 2008).
Ainda que aparentemente simples, a garantia da autonomia e voluntariedade dos participantes exige particular atenção, tendo em vista as relações simbólicas de poder estabelecidas entre pesquisador e participantes. Martins Filho e Narvai (2013) descrevem que a posição simbólica de poder, usualmente vinculada à imagem do pesquisador, pode tanto se manifestar através da crença que há uma suposta obrigação em se participar da atividade investigativa, como na tentativa em burlar os procedimentos de coleta de dados. Isto pode se dar por meio de respostas que os participantes julgam serem melhor aceitas pelo pesquisador – fenômeno conhecido como amabilidade/desejabilidade social (Randall & Fernandes, 1991). Os métodos científicos tradicionalmente utilizados em pesquisas na área de ciências humanas e sociais foram por muito tempo cúmplices de uma lógica principialista e universalizante, que recorrentemente negligenciavam aspectos subjetivos dos participantes que poderiam interferir nos procedimentos de participação e coleta de informações (Diniz & Guilhem, 2008). Influenciados por princípios metodológicos das ciências naturais, esses métodos compreendiam as relações entre pesquisador e participantes como uma interação monológica sujeito-objeto (Freitas, 2002). Nesse contexto, a colaboração dos participantes se dava, sobretudo a partir das respostas a questionários fechados ou da participação em experimentos, sem a devida atenção aos aspectos interpessoais estabelecidos durante a pesquisa.
As dificuldades de implementação da real autonomia e voluntariedade dos participantes tornam-se ainda mais sensíveis quando a pesquisa é desenvolvida com crianças e adolescentes. Isto porque, para além das relações simbólicas de poder entre pesquisador e participantes, estão em jogo também as relações simbólicas de poder entre adultos e crianças/adolescentes (Sarmento, 2005). Convidados por intermédio de seus pais, diretores de escolas, enfermeiros de hospitais, gerentes de unidades socioeducativas ou dos próprios pesquisadores, os participantes podem encarar a colaboração na pesquisa como uma obrigação. Ademais, a participação na pesquisa pode evocar sentimentos de desvalia, quando os mesmos não compreendem os "esclarecimentos" do pesquisador responsável (Dias, Leme, & Koller, 2009).
As respostas contaminadas pela amabilidade social, neste contexto, são ainda mais críticas, tendo em vista o medo da represália por pessoas que tradicionalmente lhes embutem normas e/ou detêm sua guarda, sua tutela. Os métodos científicos utilizados em atividades investigativas realizadas com crianças e adolescentes durante muito tempo reforçaram tal lógica, a partir da condução de pesquisas adultocêntricas que negligenciavam o interesse e a motivação de seus participantes (Dias et al., 2009; Silva, Barbosa, & Kramer, 2005). A autonomia e a voluntariedade das crianças e adolescentes eram garantidas a partir da mera formalidade da assinatura dos termos de consentimento pelos pais ou responsáveis – sendo incluso, por vezes, a assinatura de um termo de assentimento pelos próprios participantes.
Revoluções paradigmáticas no seio da comunidade científica da segunda metade do século passado significaram, contudo, mudanças na perspectiva metodológica de pesquisas na área de ciências humanas e sociais. Um novo paradigma científico erigiu-se, reconhecendo métodos científicos que consideravam a percepção dos participantes – coletadas a partir de medidas de primeira pessoa – como fontes de dado legítimas (Giorgi, 2006). Com relação ao processo de coleta de dados, compreendeu-se a relação entre pesquisador e participantes como uma relação dialógica entre sujeitos (Freitas, 2002), assumindo-se a importância de considerar aspectos subjetivos inerentes à coleta de dados – como o interesse e a motivação dos participantes (Dias et al., 2009). A Sociologia da Infância, por sua vez, significou avanços metodológicos que descentravam a interpretação dos resultados de uma perspectiva adultocêntrica para outra em que os fenômenos estudados eram compreendidos a partir de uma lógica infanto-juvenil, diferenciada da ótica adulta (Kehl, 2016; Silva et al., 2005).
Oliveira et al. (2016) observam que a pesquisa com crianças e adolescentes tem sido foco de divergências quando se trata a adoção de alguns aspectos metodológicos e jurídicos. Os pesquisadores interessados em realizar pesquisas com esse público não sabem como agir em razão da falta de clareza dos documentos e legislações disponíveis sobre a possibilidade de autonomia e voluntariedade dessa população. Há situações complexas nas quais aqueles que devem proteger essa população não cumprem sua função (Neiva-Silva et al., 2005). Essa ausência de definições tem dificultado a inclusão dessa população em determinadas pesquisas, pois não está claro se podem consentir sozinhos ou se são necessárias a autorização e a assinatura de um responsável legal no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (Guariglia, Bento, & Hardy, 2006).
Mesmo com os avanços metodológicos na pesquisa com crianças e adolescentes, a garantia da autonomia e voluntariedade de participantes adolescentes em medida socioeducativa de internação é ainda um grande desafio para pesquisadores da área. A situação de privação de liberdade leva os adolescentes à crença de serem frequentemente vigiados pelos funcionários que os circundam (Malvasi, 2011), o que pode implicar na obrigação em participar da pesquisa por receio da recusa significar o aumento do tempo de cumprimento da MSE. A participação em um processo de autuação por ato infracional, por sua vez, pode levar os adolescentes ao receio de que determinadas informações poderiam significar o agravo de sua situação legal (Zappe, Santos, Ferrão, & Dias, 2013).
Com um contexto organizacional que deslegitima a subjetividade de seus atendidos, critérios éticos devem ser pensados ao conduzir pesquisas com essas populações, observando medidas que busquem a garantia da autonomia e da voluntariedade de seus participantes. Um estudo realizado com adolescentes em medida socioeducativa de internação no interior do Rio Grande do Sul (Zappe et al., 2013) partiu de problemática semelhante ao apresentar as medidas especiais adotadas com vistas a garantir a autonomia e a voluntariedade de seus participantes. O trabalho relatou um conjunto de oficinas implementadas pela equipe de pesquisa com os participantes em potencial, anteriormente aos procedimentos formais de coleta de dados. Nessas oficinas, eram discutidos os aspectos éticos da pesquisa com seres humanos, bem como as particularidades dos critérios éticos da pesquisa à qual estavam sendo convidados a colaborar. A partir da participação em tais oficinas, os adolescentes obtiveram conhecimento suficiente para a tomada de decisão quanto à colaboração na pesquisa, considerando-se, assim, ter se garantido a real autonomia e voluntariedade dos participantes.
Para além das medidas adotadas no estudo mencionado (Zappe et al., 2013), outras poderiam ser pensadas como forma de promover os critérios éticos de autonomia e voluntariedade na pesquisa com adolescentes em medida socioeducativa de internação. O compartilhamento de outras medidas adotadas para a garantia desses princípios, poderia otimizar o planejamento e desenvolvimento de pesquisas futuras que tenham esta população como participantes. Nesse sentido, o presente artigo configura-se como um relato de experiência de outra pesquisa que pensou novas medidas para a garantia da autonomia e voluntariedade de seus participantes. A pesquisa em questão foi conduzida com 25 adolescentes em medida socioeducativa de internação nas regiões metropolitanas do Espírito Santo e Rio Grande do Sul (Coscioni, 2017). O estudo empírico teve por objetivo geral compreender de que maneira as relações interpessoais estabelecidas por adolescentes em medida socioeducativa de internação contribuem para a elaboração de seus projetos de vida, tendo sido conduzido a partir de quatro grupos focais. Os resultados da pesquisa não serão discutidos neste estudo, cujo objetivo é apresentar as medidas adotadas para a garantia da autonomia e da voluntariedade de participantes em uma pesquisa conduzida com adolescentes em medida socioeducativa de internação.
MEDIDAS ESPECIAIS PARA A GARANTIA DA AUTONOMIA E VOLUNTARIEDADE DOS PARTICIPANTES
Antes da condução dos grupos focais que se configuravam como procedimentos formais de coleta de dados, a equipe de pesquisa esteve individualmente com cada um dos participantes. Esses encontros tinham a finalidade de lhes transmitir informações sobre os objetivos, justificativa, procedimentos, benefícios, riscos potenciais e critérios éticos. Tiveram simultaneamente o objetivo de transmitir as informações necessárias para a garantia da autonomia e da voluntariedade dos participantes, bem como favorecer o estabelecimento do rapport e o desenvolvimento de uma relação de confiança entre os integrantes da equipe de pesquisa e os participantes. A resolução nº 510/2016, em seus artigos n. 6º e 7º, descreve que o pesquisador deve sempre buscar o momento, as condições e locais mais adequados para que os esclarecimentos sobre a pesquisa sejam efetuados, assegurando um espaço para que o participante possa expressar seus receios e dúvidas durante o processo de pesquisa. Ao final dos encontros, foram assinados os termos de assentimento ou consentimento (a depender da idade do participante), que deixaram de ser apenas uma formalidade da atividade investigativa, tornando-se um acordo escrito entre equipe de pesquisa e participantes. Apenas dois adolescentes optaram por não participar da pesquisa. Um por estar envolvido em outra atividade no momento de recrutamento. Outro, que revelou não se sentir confortável em participar de uma atividade em grupo, por estar a pouco tempo interno na unidade socioeducativa. Com esta medida, deu-se a devida atenção para que os adolescentes estivessem cientes das informações necessárias para a participação na pesquisa, sendo incentivados a participar da atividade investigativa como verdadeiros parceiros no processo. Essa perspectiva reivindicatória favoreceu não apenas a garantia da autonomia e da voluntariedade dos participantes, mas aumentou a validade dos dados coletados.
Os adolescentes, de modo geral, apresentaram dúvidas sobre o sigilo da pesquisa, sendo-lhes explanados que as informações transmitidas não seriam repassadas a funcionários do sistema socioeducativo e judiciário, ou para qualquer outra pessoa que não membros da equipe de pesquisa. Foi enfatizado e explicado que o uso de nomes fictícios garantiriam seu anonimato. Da mesma forma, foi pactuado com e entre os participantes, no início das atividades grupais, que as informações veiculadas nos grupos focais não seriam transmitidas a pessoas ausentes do recinto. Os acordos escritos e verbais entre equipe de pesquisa e participantes com relação ao sigilo provavelmente relacionaram-se à confiança demonstrada pelos adolescentes, que foi verbalizada por um dos participantes ao final dos encontros: "o senhor transmitiu confiança para a gente e a gente acabou expressando coisas que a gente não falava para outras pessoas" (Eduardo [nome fictício], 18 anos).
O cuidado com as informações veiculadas durante a realização dos grupos focais relacionava-se também a um pacto de silêncio usualmente comum em unidades socioeducativas. Este pacto existente entre os adolescentes, relatado também em outros trabalhos (Toledo, 2009), refere-se à instituição do silêncio com relação a determinados assuntos. Era compactuado entre os adolescentes internos que alguns assuntos não deveriam ser compartilhados com outras pessoas, que não adolescentes também internos no sistema socioeducativo. Por tal razão, respeitaram-se os silêncios que algumas perguntas provocavam durante as atividades grupais, em geral sobre a convivência com seus pares e funcionários e normas criadas entre os próprios adolescentes internos. Como forma de contornar tais silêncios, foram oferecidos aos adolescentes encontros individuais posteriores às atividades grupais, em que os mesmos tinham a oportunidade de revelar informações que não se sentiam confortáveis em transmitir em grupo. Nesses encontros, verificavam-se com os participantes também os sentimentos suscitados pelas atividades, no sentido de se averiguar possíveis riscos advindos pela colaboração na atividade de pesquisa. Os participantes, de modo geral, transmitiram bons sentimentos com relação à pesquisa, disponibilizando-se para atividades futuras.
Nesse estudo, buscou-se adotar uma perspectiva mais processual da obtenção do consentimento e/ou assentimento livre e esclarecido. Nesse sentido, o estabelecimento de uma relação de confiança entre pesquisador e participante está continuamente em diálogo e reflexão, pois há diferentes condicionantes culturais, sociais, históricos e econômicos envolvidos nesse processo (Brasil, 2016). Desta forma, o estabelecimento de diferentes momentos de canais de comunicação é importante no desenvolvimento do estudo.
A importância do sigilo das informações traduziu-se também na preocupação com o ambiente de realização da pesquisa. Buscaram-se, assim, locais livres da presença de funcionários e onde as falas dos adolescentes não pudessem ser escutadas por outras pessoas não participantes da atividade investigativa. Este foi um verdadeiro entrave para a condução da pesquisa, tendo em vista que as unidades socioeducativas apresentaram sérios problemas com relação à sua estrutura física, carecendo de locais até mesmo para a realização dos atendimentos técnicos. A saída foi improvisar, utilizando espaços como o refeitório, a biblioteca e, até mesmo, um cômodo em reforma para a condução das atividades do estudo. Ainda assim, foi preciso estar atento e solicitar, quando necessário, aos funcionários que se afastassem dos arredores dos locais, a fim de garantir aos adolescentes a possibilidade de falar sem serem escutados por outros. Em alguns momentos, foi preciso interromper as atividades com a finalidade de afastar outras pessoas – outros adolescentes ou funcionários – que adentravam ou passavam próximos ao local em que estavam ocorrendo as atividades da pesquisa. Para além das dificuldades estruturais das unidades socioeducativas, a equipe de pesquisa deparou-se também com a resistência de alguns agentes socioeducativos com relação à realização das atividades, reivindicando a necessidade de estarem presentes durante os encontros do estudo. Foi preciso debater com os mesmos que o projeto havia sido aprovado pela gerência da unidade socioeducativa e que as atividades precisavam ocorrer sem sua presença, como forma de garantir o sigilo das informações. Silva e Pereira (2016) ressaltam que as pesquisas em ciências humanas são sempre repletas de negociações e construção de sentidos. Elas se desenvolvem em um contexto relacional, que apresenta características únicas que devem ser observadas pelos envolvidos. Desta forma, não há uma universalização ou padronização de procedimentos universais.
As normas institucionais eram transmitidas não apenas pelos agentes socioeducativos do local, mas também pela equipe técnica, o que gerou, em alguns momentos, uma situação indesejada e violadora do direito à voluntariedade durante a realização da pesquisa. Um dos grupos focais ocorreu simultaneamente a uma atividade planejada na unidade socioeducativa, destinada à parte dos adolescentes internos – aqueles que se encontravam em fases mais avançadas do programa e que, por tal razão, tinham o direito de assistir a um filme exibido no auditório do local. Ao saber da atividade pedagógica planejada, a equipe de pesquisa ofereceu aos adolescentes, que já se encontravam na sala onde aconteceria o grupo focal, a possibilidade de deixarem de participar da pesquisa, para assistirem ao filme exibido. Um dos adolescentes interessou-se em assistir ao filme e pediu para que deixasse o local, o que foi bem recebido pela equipe de pesquisa. A pedagoga do local, no entanto, informou que a recusa em participar da pesquisa poderia significar represálias ao adolescente, tendo em vista que ele estaria violando a rotina pedagógica planejada para ele. Ainda que a equipe de pesquisa tenha argumentado que o adolescente tinha o direito de deixar de participar da pesquisa sem nenhum tipo de represália ou prejuízo, a pedagoga do local manteve seu posicionamento com rigidez. O adolescente voltou ao grupo insatisfeito e manteve-se em silêncio durante toda a execução da atividade. À equipe de pesquisa somente restou desculpar-se ao adolescente, além de respeitar seu silêncio como sinal de insatisfação perante o fato ocorrido. O relato da situação malsucedida é importante a fim de realçar a necessidade de se verificar a rotina pedagógica dos adolescentes antes do planejamento das atividades investigativas, bem como enfatizar acordos mais sólidos entre a equipe de pesquisa e os funcionários das unidades socioeducativas.
A despeito da situação ilustrada, as equipes técnicas dos locais foram verdadeiros parceiros na condução da pesquisa, tendo auxiliado, por exemplo, na escolha dos adolescentes que participariam da pesquisa. Nesse sentido, buscou-se selecionar adolescentes que demonstravam interesse em atividades grupais e que não possuíam histórico de conflitos interpessoais com os demais adolescentes internos. Verificou-se também se os adolescentes selecionados não possuíam desavenças motivadas por conflitos anteriores. Essa medida visava garantir a segurança dos participantes e, até mesmo, da equipe de pesquisa, evitando-se possíveis conflitos motivados por rivalidades existentes. Ao se evitar que adolescentes rivais dividissem o mesmo espaço, não se estava garantindo apenas a segurança dos presentes, mas também incentivando a autonomia dos participantes durante as atividades, que poderiam se sentir mais confortáveis em revelar suas opiniões sobre os temas debatidos.
O engajamento efetivo dos adolescentes nas atividades foi uma premissa importante para o desenvolvimento da pesquisa, tendo em vista seu próprio formato metodológico, em perspectiva reivindicatória (Creswell, 2013). Nesse sentido, os adolescentes foram incentivados a participar dos grupos de maneira colaborativa, sendo suas ideias valorizadas e reforçando-se a importância de se conhecer a maneira como eles pensavam os temas em investigação. Recorrentemente lembrava-se aos participantes que o objetivo do trabalho era transmitir a demais pessoas a percepção dos próprios adolescentes sobre seus projetos de vida e sobre as relações interpessoais estabelecidas durante o tempo de privação de liberdade. Com isto, visava-se a contribuir para a melhor efetivação do serviço socioeducativo no futuro. Ainda que se tenha informado aos adolescentes que essas possíveis melhorias no sistema socioeducativo poderiam tomar bastante tempo – ao ponto de eles provavelmente estarem em liberdade – observou-se o comprometimento com a atividade, havendo participantes que reforçaram o interesse em ter acesso posteriormente aos resultados gerados na pesquisa.
Como forma de garantir que a interpretação dos resultados de fato transmitisse a percepção dos adolescentes sobre os temas tratados, alguns dos participantes foram recontactados meses depois, a fim de opinarem sobre a análise dos dados parcial. A partir de entrevistas individuais e grupais, os adolescentes acessaram as interpretações promovidas pela equipe de pesquisa, tendo concordado com as afirmações realizadas. Esta foi não apenas uma forma de dar maior validade à análise conduzida, mas de reforçar a perspectiva reivindicatória da pesquisa, garantindo-se que as interpretações dos resultados traduzissem a percepção dos adolescentes com relação aos temas pesquisados. Durante esses encontros, os adolescentes mostraram-se novamente colaborativos com a atividade investigativa, demonstrando interesse em seus resultados e nas implicações de seus resultados no sistema socioeducativo, ainda que já estivessem em liberdade.
Essa perspectiva reivindicatória implicou também em um cuidado especial com a linguagem, buscando-se compreender as gírias utilizadas pelos participantes, devidamente explanadas no trabalho escrito. Outros trabalhos (Rolim, 2014; Souza & Costa, 2012) também descrevem que a situação de privação de liberdade promove a formação de uma cultura que se traduz em uma linguagem particular entre os adolescentes encarcerados. A compreensão dessas gírias fez-se importante para a devida compreensão das informações veiculadas, garantindo que a interpretação dos resultados revelasse a percepção dos participantes sobre os temas em destaque. O conhecimento sobre as gírias não necessariamente implicava em sua utilização pelos membros da equipe de pesquisa, tendo em vista que muitas delas traduziam estereótipos que não poderiam ser reforçados. Uma dessas gírias, utilizada pelos participantes internos em unidades gaúchas, era brete, que se refere aos alojamentos em que os adolescentes dormem. A palavra, em seu sentido original, significa "cela para a retenção de animais bovinos e equinos" e, por tal razão, não foi utilizada pela equipe ao descobrir seu real significado.
Ainda no que se refere à linguagem, a equipe de pesquisa esforçou-se no sentido de utilizar um vocabulário acessível aos participantes, o que garantia a compreensão dos conteúdos verbalizados e real engajamento nas atividades. Este cuidado foi motivado, sobretudo ao conhecimento de que esta população é usualmente caracterizada pela baixa escolaridade (Gallo & Williams, 2008), o que pode significar dificuldade de compreensão verbal. Nesse sentido, evitou-se o uso de termos técnicos e rebuscados, sem que a linguagem utilizada fosse infantilizada, ridicularizando os participantes.
As medidas adotadas contribuíram assim para que os adolescentes engajassem nas atividades sugeridas, garantindo sua autonomia e real voluntariedade no processo de coleta de dados da pesquisa. Mas não apenas isso: essas medidas provavelmente relacionam-se também com o caráter inédito dos achados da pesquisa, que trazem informações ausentes em outros trabalhos que investigaram temas semelhantes. A caracterização dos projetos de vida dos participantes, tratada em uma das seções dos grupos focais, permitiu que a equipe de pesquisa acessasse basicamente dois tipos de conteúdo: 1) expectativas de futuro relacionadas à educação, ao trabalho e à família; e 2) projetos de vida vinculados a novas práticas infracionais. As pesquisas brasileiras que investigaram o mesmo tema encontraram, em geral, apenas o primeiro conjunto de achados. Muito provavelmente porque seus participantes encontravam-se receosos de revelar projetos de vida que, se conhecidos por funcionários do sistema socioeducativo ou judiciário, poderiam significar o agravo de sua situação legal.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A preocupação com a ética em pesquisa com seres humanos avançou muito nas últimas décadas e hoje se fundamenta principalmente nas resoluções do Conselho Nacional de Saúde (Brasil, 2012; 2016) que asseguram, dentre outras garantias, a autonomia e a voluntariedade dos participantes. Nos casos de pesquisa com populações infanto-juvenis, o cuidado com os procedimentos éticos deve extrapolar os ditames destas resoluções e deve contar também com a experiência, o compromisso e o bom senso dos pesquisadores.
Os procedimentos de uma pesquisa descrita neste estudo – conduzida a partir da realização de grupos focais com a participação de adolescentes em medida socioeducativa de internação – mostraram-se pertinentes e garantiram o desenvolvimento da pesquisa com êxito. As medidas adotadas pelos pesquisadores, programadas previamente ou tomadas no decorrer da pesquisa, que garantiram a sua execução e a validade dos seus resultados foram: a) o contato individual com cada um dos participantes, antes de iniciar a coleta de dados, estabelecendo um rapport entre equipe de pesquisa e os participantes; b) encontros individuais imediatamente posteriores às atividades grupais, oportunizando um ambiente mais confiável de informações entre a díade pesquisador e participante; c) a garantia de um local de coleta de dados sem interferência dos agentes socioeducativos ou dos técnicos; d) o estabelecimento de compromisso entre pesquisadores e participantes do sigilo das informações; e) os encontros individuais com os participantes meses depois da coleta de dados, a fim de opinarem sobre a análise realizada pela equipe de pesquisa; e f) o emprego de vocabulário simples e acessível aos participantes.
Percalços no decorrer da coleta de dados fizeram, contudo, com que um participante permanecesse durante a coleta de dados sem que tivesse a possibilidade de escolher estar em outra atividade que não a de pesquisa. Isso aconteceu em decorrência do forte poder da instituição, exercido por meio de seus técnicos, sobre a vida dos adolescentes em regime de privação de liberdade. Para não entrar em conflito com a equipe técnica, os pesquisadores acolheram a determinação do técnico da instituição e garantiu que o adolescente permanecesse calado durante todo o tempo de realização do grupo focal, minimizando os prejuízos de sua participação e respeitando, da maneira como competia aos pesquisadores, a sua voluntariedade e individualidade.
Conclui-se que garantir a autonomia e a voluntariedade dos adolescentes em medida socioeducativa de internação não é uma tarefa fácil, ainda que seja de extrema responsabilidade do pesquisador. Isso demanda a tomada de medidas inovadoras e criativas que, ainda que fundamentadas nas prescrições das resoluções, devem ir além destas. Levar em consideração o protagonismo infanto-juvenil (categoria que ainda está em plena construção no campo do fazer pesquisa), e todos os entraves institucionais que possam aparecer no decorrer da coleta de dados (demonstrando o papel coercitivo das instituições de controle dos adolescentes), é imperativo para quem quer fazer pesquisa com adolescentes que estão tutelados pelo Estado.
Sugere-se que sejam realizados encontros individuais também com os técnicos de instituições que tenham a tutela de crianças e adolescentes que participarão da pesquisa. Nesses encontros, os técnicos podem ser esclarecidos sobre os objetivos da pesquisa, podem compartilhar suas perspectivas e tirar dúvidas em uma situação de maior sigilo e confiabilidade.
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Endereço para correspondência
Edinete Maria Rosa
E-mail: edineter@gmail.com
Recebido: 15/07/2017
1ª revisão: 10/11/2017
Aprovado: 18/11/2017
1 Vinicius Coscioni é doutorando em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
2 Ana Cristina Garcia Dias é docente do Departamento de Psicologia do Desenvolvimento e da Personalidade e do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
3 Edinete Maria Rosa é docente do Departamento de Psicologia Social e do Desenvolvimento e do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo.
4 Silvia Helena Koller é docente do Departamento de Psicologia do Desenvolvimento e da Personalidade e do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.