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Revista da SPAGESP

versão impressa ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.21 no.1 Ribeirão Preto jan./jun. 2020

 

ARTIGOS

 

Relação entre pai e filho adolescente em famílias que vivenciaram a violência conjugal

 

Father and adolescent children relationship in families that experienced domestic violence between parents

 

Relación entre padre e hijo adolescente en familias que experimentaron la violencia conyugal

 

 

Yara Alves Costa Justino1; Célia Regina Rangel Nascimento2

Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória-ES, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Investigou-se, em contexto de famílias que vivenciaram a violência conjugal, como os filhos adolescentes avaliavam seu relacionamento com o pai. Foram entrevistados 11 adolescentes de 12 a 16 anos, de ambos os sexos. Os resultados foram analisados e organizados com o método de Análise de Conteúdo. A maioria dos adolescentes considerou o pai distante e pouco disponível. Alguns filhos consideraram que o pai tinha comportamentos agressivos e fazia uso abusivo de bebidas alcoólicas, impactando a relação. Os aspectos positivos da relação relatados foram o suporte material, momentos de cuidado e de expressão de afeto. Os resultados reforçam a importância dos estudos sobre o impacto da violência conjugal na parentalidade e a necessidade de ampliação da rede de apoio também aos filhos.

Palavras-chave: Violência conjugal; Adolescente; Relações parentais.


ABSTRACT

It was investigated in the context of families that experienced marital violence, how adolescents evaluated their relationship with their father. Eleven adolescents of 12 to 16 years old, of both sexes, were interviewed. The results were analyzed and organized using the Content Analysis Method. Most of the adolescents considered their father distant and little available. Some participants reported that their father had aggressive behavior and abusive use of alcoholic beverages, impacting their relationship. The positive aspects of the relationship reported were material support, moments of care and expression of affection. The results reinforce the importance of studies about the impact of conjugal violence on parenting and the need to expand the support network for children as well.

Keywords: Conjugal violence; Adolescent; Parental relations.


RESUMEN

Se investigó, en el contexto de familias que experimentaron la violencia conyugal, como los hijos adolescentes evaluaban su relación con el padre. Se entrevistaron 11 adolescentes de 12 a 16 años, de ambos sexos. Los resultados fueron analizados y organizados con el método de análisis de contenido. La mayoría de los adolescentes consideró al padre lejano y poco disponible. Algunos hijos consideraron que los padres tenían comportamientos agresivos y hacían uso abusivo de bebidas alcohólicas, impactando la relación. Los aspectos positivos de la relación relatada fueron el soporte material, momentos de cuidado y de expresión de afecto. Los resultados refuerzan la importancia de la ampliación de estudios sobre el impacto de la violencia conyugal en la parentalidad y la necesidad de ampliación de la red de apoyo también a los hijos.

Palabras clave: Violencia conyugal; Adolescente; Relaciones parentales.


 

 

Pode-se considerar que as transformações nos modos de vida e na sociedade também resultam em mudanças na compreensão a respeito do desenvolvimento ao longo do ciclo vital e, consequentemente, a respeito da infância e da adolescência (Bock, 2007; Ferronato, 2015; Senna & Dessen, 2012). Na Psicologia do Desenvolvimento, as primeiras formulações teóricas a respeito da adolescência foram pautadas em uma perspectiva biológica do desenvolvimento humano, associando o ingresso na adolescência à puberdade, envolvendo diferentes mudanças biológicas, como a maturação física e alterações hormonais, que se associaram a uma concepção de que este era um momento da vida determinado por instabilidades e crises emocionais e nas relações.

Posteriormente, os estudos sobre o desenvolvimento na adolescência passaram a dar mais atenção aos aspectos socioculturais implicados nesse período, considerando ainda que, como fato psicossociológico, a adolescência não é vivenciada nem identificada da mesma forma em todas as culturas e nem por todos os sujeitos. Assim, têm-se destacado o papel da história e da cultura na avaliação sobre a adolescência e que é preciso considerar a inserção do adolescente em diferentes contextos para compreender as vivências nesse momento da vida (Bock, 2007; Franzi & Araújo, 2018, Ozella & Aguiar, 2008).

Contudo, destaca-se que, mesmo levando em conta a análise sobre os aspectos socioculturais, nos documentos que orientam as práticas e políticas para os adolescentes, o critério cronológico é um dos parâmetros para situar a adolescência. Para a Organização Mundial de Saúde - OMS, a adolescência se situa entre os 10 e 19 anos de idade (OMS, 1986); já o Estatuto da Criança e do Adolescente define esse período entre 12 e 18 anos de idade (Brasil, 1990).

No contexto brasileiro, o grupo situado nessas faixas de idade concentra uma expressiva parcela da população. De acordo com o levantamento do Censo 2010 (IBGE, 2011), no período do levantamento o Brasil possuía 34.157.631 pessoas na faixa de 10 a 19 anos, o que, na época, correspondia algo em torno de 18% da população do país. Mais especificamente, no Espírito Santo, região na qual o trabalho aqui descrito foi realizado, esse grupo totalizava, no período, 603.835 pessoas, o que correspondia a 17,2% da população. Em 2014, de acordo com dados do relatório CADE? Brasil - Crianças e Adolescentes em Dados e Estatísticas (IMAS, 2016), os indivíduos entre 10 a 17 anos do Espírito Santo somavam 414.352 pessoas. Verifica-se, portanto, quando é utilizado um parâmetro cronológico, que boa parte da população do país se encontra na faixa de idade que compreende o período considerado para a adolescência. Sendo o Brasil um país com muitas diversidades, é importante conhecer em que contextos estão inseridas as pessoas desse grupo, além de conhecer suas perspectivas sobre as condições em que vivem.

O Estatuto da Criança e do Adolescente, lei que trata da proteção das crianças e adolescentes no Brasil, parte do entendimento de que as pessoas compreendidas nesses grupos estão em uma condição especial, por estarem em processo de desenvolvimento, necessitando, assim, do amparo da família, da comunidade e da sociedade para que seus direitos sejam garantidos e resultem em um desenvolvimento positivo (Brasil, 1990). Contudo, as condições de vida no Brasil impõem uma série de dificuldades para boa parte dos brasileiros, especialmente crianças e adolescentes.

Um fator que afeta os adolescentes e jovens no Brasil é a violência. Análise dos dados de 2014 do inquérito da Vigilância de Acidentes e Violências envolvendo adolescentes, com 815 casos das capitais brasileiras, revelou que os eventos de violência, que envolvem predominantemente agressão física e agressão com arma de fogo e objeto cortante, ocorrem principalmente entre os adolescentes do sexo masculino, na via pública. Com as meninas, os episódios de violência ocorrem especialmente no contexto de residência, e em segundo lugar na via pública, enquanto com os meninos ocorre o contrário, especialmente quando estão entre 15 e 19 anos. Em terceiro lugar, para os dois, aparece o contexto da escola, que é o ambiente de predomínio de episódios de violência quando os adolescentes são mais novos, entre 10 e 14 anos. Constata-se, portanto, que espaços nos quais crianças e adolescentes deveriam estar cuidados e protegidos também podem ser contextos de risco no que se refere à violência, e que, nesse caso, grande parte das vezes, o agressor é conhecido ou próximo (Malta et al., 2017; Nunes & Sales, 2016).

Verifica-se que o contexto familiar também pode ser um ambiente de risco quando se considera a violência doméstica e familiar, mesmo quando o adolescente não é identificado como a principal vítima (por exemplo, num ambiente no qual há o predomínio da violência entre os cuidadores principais). Verifica-se que, no Brasil e no mundo, o conflito familiar que resulta em violência doméstica e familiar é frequente, particularmente resultando em violência contra a mulher. Segundo um relatório da Organização Mundial da Saúde, uma em cada três mulheres já sofreu violência física e/ou sexual por parte de seus parceiros (World Health Organization, 2013). Estima-se que no país, cinco mulheres são espancadas a cada dois minutos, verificando-se que em 80% dos casos notificados o responsável pela violência é o parceiro ou ex-parceiro (Venturi & Godinho, 2013). O mapa da violência de 2015 (Waiselfisz, 2015) aponta ainda que, no Brasil, se contabilizam, em média, 4,8 assassinatos para cada 100 mil mulheres e que 27% desses casos aconteceram no âmbito doméstico, sendo 33,2% dos assassinatos cometidos por parceiro ou ex-parceiro. O Espírito Santo ocupa a segunda posição no ranking de homicídios contra a mulher dentre os estados brasileiros, e, Vitória, nesse período, aparece como a primeira entre as capitais. Nessa realidade, o ambiente doméstico e familiar no qual o conflito e a violência estão presentes se torna um ambiente que afeta negativamente todos os seus membros.

A família é definida na política de proteção à criança e ao adolescente como "um grupo de pessoas que são unidas por laços de consanguinidade, de aliança e de afinidade. Esses laços são constituídos por representações, práticas e relações que implicam obrigações mútuas" (Brasil, 2006, p. 24). Verifica-se, assim, um conceito que pode abarcar diferentes arranjos familiares, mas que pressupõem vinculação entre as pessoas e práticas de cuidado, o que, como demonstram os dados citados, nem sempre ocorre numa perspectiva protetiva.

Para os adolescentes a família permanece como um dos principais contextos de referência e desenvolvimento, podendo contribuir para que este compreenda valores éticos e morais básicos à vida em sociedade, se engaje na realização de tarefas e papéis sociais cada vez mais diversificados e complexos, desenvolva competências sociais, autoestima e capacidade de enfrentamento das adversidades (Assis & Avanci, 2004; Ferronato, 2015, Navas, 2010; Ribeiro, 2010; Rozemberg, Avanci, Schenker, & Pires, 2014).

Na avaliação sobre aspectos relevantes para a qualidade da relação familiar entre pais e filhos, WeberWeber, Salvador e Brandemburg (2006) destacam a expresão do afeto, a disponibilidade e o envolvimento dos pais na vida dos filhos, o monitoramento e estabelecimento de regras, o estabelecimento de comunicação positiva, na qual haja diálogo e compatilhamento de informações e opiniões. Considera-se que um ambiente familiar positivo favorece a proximidade com os pais e mães, o que têm relação com aspectos positivos do desenvolvimento, como níveis mais altos de autoestima para os adolescentes e de resiliência (Birkeland, Breivik, & Wold, 2014, Rozemberg et al., 2014).

Contudo, certamente estes aspectos ficam prejudicados quando a família tem um padrão de relação no qual a violência está presente. Neste caso, os laços podem tornar-se mais frágeis, implicando sentimentos de insegurança e medo, que, de acordo com Hernándes e Gras (2005), podem ser ainda mais intensos quando envolvem as figuras parentais, como nos casos de violência interparental. Considera-se que os conflitos conjugais são intrínsecos ao convívio dos casais e, muitas vezes, necessários, tornando possível solucionar determinados aspectos da vida a dois, não implicando necessariamente afetos negativos e resoluções com violência (Goulart & Wagner, 2013; Paixão et al., 2014). Conforme Ribeiro (2010) os conflitos mais prováveis de resultarem em problemas de ajustamento referem-se aqueles mais frequentes, intensos, com conteúdos relacionados aos filhos e com tentativas de resolução violentas.

Autores de diferentes campos buscam investigar os efeitos da violência envolvendo figuras parentais sobre o desenvolvimento dos filhos. Observa-se que esta pode afetar aspectos psicológicos e emocionais dos filhos, o desempenho acadêmico, resultar em problemas comportamentais, além de impactar a aceitação e perpetuação da violência em outros relacionamentos (Faermann & Silva, 2014; Lopes, 2014; Melo & Mota, 2014; Murga, 2017; Patias, Heine, & Dell'Aglio 2017; Ruel, Lavoie, Hébert, & Blais, 2017).

Cunningham e Baker (2007) explicitaram as consequências mais prováveis da vivência dessa situação durante diferentes perídos do desenvolvimento. No que tange aos adolescentes, os resultados indicaram que, os efeitos da exposição à violência estavam relacionados à dificuldade em manter a comunicação dentro da família de origem e estabelecer relações saudáveis com outras pessoas e, por conseguinte, maior risco de desenvolvinto de relacionamentos abusivos. Algumas estratégias utilizadas pelos adolescentes para cessar os episódios de violência ou deles se esquivar, foram: intervenção direta ante os eventos de violência, afastamento do lar durante longos períodos e o uso de drogas lícitas e ilícitas.

Pesquisas indicam que tanto os filhos vivenciam sentimentos de insegurança, de ambivalência e dificuldades para enfrentar as relações dentro de um ambiente familiar permeado pela violência (Cunningham e Baker, 2007; Hameister, Barbosa & Wagner, 2015), quanto os pais podem ter dificuldades para separar as experiências negativas do relacionamento conjugal ao se relacionarem com os filhos, podendo ficar pouco disponíveis ou mais agressivos na relação com estes, extravasando as dificuldades da relação conjugal para o exercício da parentalidade (D'Affonseca, 2013; Hameister, Barbosa & Wagner, 2015; Sani & Cunha, 2011). Entretanto, verifica-se que a literatura a respeito do relacionamento entre pais e filhos nessas condições, sobretudo no Brasil, ainda é escassa (Hameister, Barbosa, & Wagner, 2015), especialmente se houver refinamento dos estudos nesse contexto, por exemplo, considerando o ponto de vista dos filhos, o que foi o propósito do trabalho aqui apresentado.

O estudo foi realizado tendo como referência para a análise a Teoria Bioecológica do Desenvolvimento, que enfoca a importância de se compreender a inserção da pessoa em diferentes contextos e os múltiplos fatores que participam de seu desenvolvimento, especialmente focalizando as interações como aspecto relevante para que o desenvolvimento aconteça. Para essa Teoria, o que promove o desenvolvimento ao longo do ciclo da vida são os processos proximais, que consistem em interações com pessoas, símbolos e objetos, que se tornam progressivamente mais complexas ao longo do tempo e que para serem significativas para o desenvolvimento devem ter reciprocidade e ocorrer com regularidade ao longo do tempo. Essas interações e seu efeito no desenvolvimento ocorrem em função de outros componentes que também participam do desenvolvimento. O componente "pessoa" envolve as características biopsicossociais das pessoas em desenvolvimento que encorajam ou dificultam as interações. O componente "contexto" é compreendido considerando-se tanto os ambientes mais próximos, nos quais ocorrem as relações face a face, quanto o contexto mais amplo, no qual a cultura, as crenças e os valores se situam. Já o componente "tempo" é definido em função das mudanças e continuidades tanto nas interações ao longo do ciclo de vida quanto no tempo histórico (Bronfenbrenner & Evans, 2000; Bronfenbrenner & Morris, 2006).

De acordo com essa perspectiva, a família constitui um importante microssistema para o desenvolvimento da criança, pois é entendido como o primeiro ambiente onde se espera que ocorram interações com continuidade, regularidade, reciprocidade e afeto. Considera-se que na infância os processos proximais com os pais possibilitam que a criança desenvolva motivação e habilidades para se engajar nas interações e se tornar cada vez mais agente de seu próprio desenvolvimento (Bronfenbrenner & Morris, 2006; Rosa & Tudge, 2016).

Considera-se, ainda, que os resultados desenvolvimentais podem resultar em competência ou disfunção, dependendo dos contextos em que as interações ocorrem, sendo que os resultados de disfunção se tornam mais prováveis de acontecer em ambientes desfavoráveis ou desorganizados, nos quais os processos proximais ficam prejudicados, ao passo que os de competência são mais possíveis em ambientes favoráveis e estáveis (Bronfenbrenner & Evans, 2000, Bronfenbrenner & Morris, 2006). Assim um contexto familiar no qual há a exposição dos filhos à violência do pai contra a mãe, a presença de muitos conflitos sem resolução positiva, a ausência de afeto e diálogo, os resultados de disfunção, descritos como manifestações de dificuldades da pessoa em desenvolvimento em sustentar o controle e a integração do comportamento, são mais prováveis de ocorrer, o que tem sido verificado pela literatura (Murga, 2017; Patias, Heine & Dell'Aglio 2017; Ruel, Lavoie, Hébert, & Blais, 2017). Acrescenta-se que nessa teoria é importante considerar os aspectos subjetivos das experiências, levando em consideração a perspectiva do indivíduo em desenvolvimento.

Com essas ponderações, esse trabalho teve por objetivo investigar como os filhos adolescentes descrevem e avaliam seu relacionamento com a figura paterna, em contexto de famílias que vivenciam a violência doméstica e familiar contra a mulher, na qual o pai é o agressor. Considera-se que acessar a perspectiva dos filhos pode contribuir para que se obtenha um conhecimento mais amplo a respeito da dinâmica familiar, nos casos em que a violência conjugal está presente, e do impacto dessa vivência no desenvolvimento dos filhos. Avalia-se ainda que estes resultados podem dar subsídios para os serviços de atendimento às famílias.

 

MÉTODO

PARTICIPANTES

Participaram 11 adolescentes, com idades entre 12 e 16 anos (7 meninas e 4 meninos), membros de famílias nas quais a situação de violência doméstica e familiar contra a mulher, física e psicológica (produzida pelo pai do adolescente) foi identificada, por meio de dois serviços de atendimento a vítimas de violência doméstica, nos quais as mães estavam sendo atendidas. Em 8 das 11 famílias entrevistadas, o pai residia com a mãe e os filhos. A renda das famílias variou de um a quatro salários mínimos. Todos os adolescentes frequentavam a escola regular de ensino público, cursando da sexta série do ensino fundamental ao segundo ano do ensino médio, e tinham, pelo menos, um irmão. Os participantes foram acessados mediante a colaboração das instituições e contato inicial com as mães. Os dados compõem parte de uma dissertação de mestrado concluída.

INSTRUMENTOS E PROCEDIMENTOS DE COLETA

Para a coleta de dados, foi utilizado um roteiro de entrevista semiestruturada que teve como inspiração a Escala de Qualidade da Interação Familiar (EQIF) (Weber, Salvador, & Brandeburg, 2009), abordando a percepção dos filhos a respeito do relacionamento com os pais na infância e na adolescencia, do monitoramento e acompanhamento das atividades dos filhos pelos pais e sobre aspectos negativos e positivos do relacionamento. Os adolescentes foram entrevistados individualmente, por cerca de 40 a 60 minutos, no espaço das instituições nas quais as mães estavam sendo atendidas.

ASPECTOS ÉTICOS

Salienta-se que este tra balho foi aprovado por um Comitê de Ética e Pesquisa (CAEE 55434216.9.0000.5542) e seguiu as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. As entrevistas foram realizadas após a assinatura do Termo de Assentimento Livre e Escl arecido e do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido pelos responsáveis. Os nomes apresentados nos trechos de entrevista são fictícios para preservar o anonimato. Em razão dos conteúdos abordados na entrevista, a pesquisadora reforçou para os participantes a disposição para interromper a entrevista a qualquer momento e, quando considerado necessário, foi sugerido, posteriormente, o acompanhamento psicológico e discutida tal possibilidade com o responsável.

ANÁLISE DOS DADOS

As entrevistas foram transcritas e seu conteúdo organizado com base nos pressupostos da Análise de Conteúdo (Bardin, 1977). Realizou-se uma pré-análise do material com base na leitura de todas as entrevistas transcritas e, posteriormente, uma análise mais detalhada incluindo a codificação e a categorização. Na codificação, os dados brutos foram agrupados em unidades temáticas que expressavam as características do conteúdo coletado. Os dados foram interpretados e discutidos à luz da perspectiva teórica da Bioecologia do Desenvolvimento Humano e da literatura científica.

 

RESULTADOS

RELACIONAMENTO ENTRE O PAI E O FILHO NA INFÂNCIA E NA ADOLESCÊNCIA

Seis adolescentes descreveram que tinham poucos momentos de interação com o pai quando eram crianças, caracterizando essa relação como "distante". Avaliaram alguns aspectos que contribuíram para esse distanciamento, como desinteresse do pai em estabelecer contato com o filho, o uso de bebidas alcoólicas e carga horária de trabalho intensa.

"Eu não lembro muito do meu relacionamento com meu pai na infância porque ele quase nunca tava presente. Sempre brigando. Aí eu não lembro muito não" (Íris).

"É, a gente era bem distante, porque... Igual, era bem difícil a gente pegar ele bom [...] Aí ele ia, fazia tratamento, ficava no máximo dois meses sem beber" (Cristal).

Outros quatro jovens avaliaram que a relação com o pai era positiva, descrevendo momentos de interações agradáveis com o genitor, como assistir a filmes juntos, passeios e momentos de brincadeiras.

"Era bom também, ele brincava comigo, eu brincava com ele. [...] quando eu não queria ir para creche, ele me levava no colo, para mim parar de chorar." (Jasmim).

Dois adolescentes, contudo, descreveram sua relação com o pai na infância com avaliações e sentimentos negativos, sendo que uma menina explicitou que a relação com o pai era permeada pela violência:

"Eu descrevo... Assim... Medo. Medo, porque eu aceitava as coisas por medo. [...] É, e raiva também. [...]. Quando eu era pequena, ele me batia, tipo assim, não era porque eu merecia. Uma vez eu 'tava dormindo... ele me acordou. [...]. Minha mãe 'tava trabalhando... Aí ele me acordou me dando uma cintada, sendo que eu não tinha ouvido ele me chamar. [...] outra vez eu estava no chuveiro, aí a energia caiu. Aí ele me bateu de caneco. Meu irmão tentou entrar na frente, mas não deu..." (Agatha).

Dos dez adolescentes entrevistados, sete descreveram que o relacionamento com o pai sofreu mudanças da infância para a adolescência. Os aspectos descritos pelos adolescentes foram maior distanciamento do genitor ante a rotina do adolescente, aumento da agressividade do genitor na relação com o adolescente e uso de bebidas alcoólicas com maior frequência por parte do pai. Além desses fatores, duas adolescentes avaliaram que o fato de terem crescido e não serem mais crianças tinha relação com as mudanças na interação com o pai. Segundo as jovens:

"Eu não sei ao certo. Hum... Não sei [...]. É próximo também, mas antigamente era mais. Antigamente a gente assistia muitos filmes juntos. [...] Não é tão afeiçoado como era antes, mas... Ainda é bom. Porque antigamente eu era criancinha, entende? Hoje não. Hoje tem um certo detalhe que faz eu ficar mais para mim e ele ficar mais para ele." (Flor de Lis).

"Eu acho que mudou porque agora ele percebeu que eu cresci. Ele percebeu que comigo ele não tem mais essa… Essa posição que ele tem em cima da minha mãe, de poder... de querer o que ele quer. Se ele falar que é B, de você aceitar que é B. Eu não aceito. [...] Muitas vezes ele aceita, mas tem vezes que não, aí que gera nossas brigas" (Agatha).

Os outros quatro adolescentes avaliaram que o relacionamento com o pai naquele momento era tão distante quanto na infância. Dois participantes pontuaram ainda que o pai buscava aproximação em relação a eles, mas, em razão da história de interação vivida com o pai na infância, os adolescentes mantinham o distanciamento.

"[...] Porque antes, quando eu era pequeno, eu queria a companhia dele, e ele não tinha tempo. Mas agora eu não ligo. [...]" (Apolo).

"[...] Agora ele tem mais tempo, só que... Eu meio que estou refletindo a minha infância, quando ele não era tão próximo. Meio que tô refletindo isso, não deixando ele se aproximar [...] (Tomás).

ASPECTOS POSITIVOS, SENTIMENTO DE APOIO E DEMONSTRAÇÕES DE AFETO

No que se refere à avaliação dos aspectos positivos no relacionamento com o pai, os adolescentes entrevistados relataram algumas características, como suporte material, cuidado, afinidades entre o pai e o filho, momentos de passeio, momentos em que o pai não fazia ingestão de bebidas alcoólicas e momentos em que se comportava de forma carinhosa, oferecendo atenção e verbalizando palavras afetivas, conforme destacado em alguns relatos:

"Ele é bom. Sempre que eu preciso de alguma coisa assim, ele me dá. [...] Tipo, quando eu preciso de roupa. [...] Se eu falo: 'Pai, me dá um dinheiro para eu comprar isso, isso assim e aquilo', ele sempre me dá. Quando ele não pode, ele fala: 'Agora eu não posso, mas, quando eu puder, eu te dou'. E ele é certo assim [...] ele é sempre certinho para pagar as coisas" (Jade).

"[...] eu gosto das comidas dele. [...] Tipo, ele faz umas comidas diferentes, eu amo a moqueca dele. E aí é bom assim, a gente é parecido com relação aos cachorros, a gente gosta bastante [...]" (Flor de Lis).

Entretanto, três jovens avaliaram que não havia características positivas da relação entre eles e o pai a serem relatadas, justificando que não confiavam no pai em virtude de suas ações e de "promessas" feitas por ele que não foram cumpridas:

"[...] eu não confio no meu pai [...] É... Várias promessas que ele não cumpriu [...]. Quando eu era criança, ele falava que a gente ia pescar no sábado... Isso era segunda... Chegava no sábado, a gente não ia. Isso era sempre" (Apolo).

"Ele fala... "Eu gosto muito de você, tal, num sei que... Eu amo minha família, tal", mas eu não acredito. Ele não demonstra" (Aghata).

Ao serem questionados sobre o sentimento de apoio ante o relacionamento com o pai, cinco adolescentes responderam a essa pergunta de forma negativa, ressaltando alguns aspectos – o uso abusivo de bebidas alcoólicas, a falta de confiança e a ausência do pai – como fatores que dificultavam a percepção de que eram apoiados na relação com o genitor.

"Às vezes não [...]. Porque ele não é muito presente e como... Como que eu posso contar com uma pessoa que geralmente não está lá. [...]". (Tomás).

"Não. Só vou acreditar nele, quando ele parar de beber. [...] Hum... Esse é o problema. Se ele não bebesse, nada disso... Oh! Ele teria um emprego bom, minha mãe não se estressaria, tudo ia mudar, ia mudar muita coisa" (Lucca).

Outros quatro adolescentes disseram que, a depender da situação, se sentiam seguros para solicitar ajuda do pai, sendo as situações em que necessitavam de auxílio material mais citadas pelos adolescentes. Apenas dois adolescentes afirmaram sentirem-se totalmente apoiados na relação com o pai, descrevendo conforto, confiança e acolhimento nessa relação.

"Dependendo do que for, sim. [...] Tipo assim, se eu precisasse ir a algum lugar e eu não tivesse quem me levar, ele me leva. Ou, eu não tenho dinheiro e peço a ele, às vezes, ele me dá. Aí eu posso contar com ele [...]." (Íris).

Em relação às expressões de afeto entre os adolescentes e o pai, dos 11 jovens entrevistados, cinco disseram que não havia momentos de demonstração de afeto entre eles. Um deles explicou que, nem mesmo em datas comemorativas, como no seu aniversário, costumava haver interações mais afetuosas entre ela e o pai:

"Não, nunca. Nem no meu aniversário […]. Ele me deu o celular mês passado, se não me engano, aí eu peguei e dei um abraço nele. […] Aí ele: 'Ah, cê nunca fez isso!'. Aí minha irmã pegou e falou bem assim: 'Mas, no nosso aniversário, você nunca deu nem um parabéns. Nem um abraço na gente'-" (Jade).

Outros cinco participantes afirmaram haver momentos mais afetuosos entre eles e o genitor, envolvendo gestos físicos, como abraços e "carinhos", palavras afetuosas, realização de atividades conjuntas, como passeios, e momentos compartilhados durante o cuidado com os animais domésticos. Uma das adolescentes, apesar de afirmar a existência de momentos de afetividade, ressaltou a baixa frequência com que essas situações aconteciam. Uma adolescente que relatou ter sofrido agressões por parte do pai, afirmou que ele tinha comportamentos mais afetuosos em relação a ela, contudo, ela não correspondia à sua aproximação.

MONITORAMENTO DO PAI E REALIZAÇÃO DE ATIVIDADES CONJUNTAS

Oito adolescentes descreveram que o pai não acompanhava sua rotina nem conhecia as atividades nas quais eles estavam engajados, ficando essa tarefa direcionada à mãe. Os demais adolescentes ponderaram que o genitor acompanhava pouco sua rotina, tendo conhecimento apenas de atividades mais comuns do seu cotidiano, como a frequência escolar:

"[...] Ele acompanha um pouco. Ele sabe que eu vou para escola, onde eu tô, se eu vou sair. Mas ele sabe assim..." (Azaleia).

Dos onze adolescentes entrevistados, cinco descreveram que o pai não conhecia suas amizades, nem acompanhava quem eram as pessoas com as quais eles costumavam relacionar-se. Outros quatro participantes descreveram que o pai conhecia poucos amigos seus, incluindo primos. Apenas um adolescente relatou que o pai conhecia e acompanhava suas amizades, buscando conhecer a família de seus amigos, procurando saber com quem ele saía e quais eram suas companhias.

Sobre a participação do pai nas regras e limites impostos aos filhos, quatro adolescentes explicaram que as tarefas de corrigir e instruir eram atribuídas à mãe, contudo, os outros sete relataram que o pai também corrigia seus comportamentos e impunha limites. Apenas uma das meninas descreveu que o pai aplicava castigos físicos, para a maioria as correções se efetivavam mediante diálogos e orientações:

"Hum! [...] Ele fala comigo, me puxa de lado para poder conversar, é... Basicamente me fala o que eu deveria ter feito, algumas das minhas ações que eu deveria tomar cuidado... Coisas assim" (Caio).

A respeito de atividades que os adolescentes realizavam com seus pais, oito participantes descreveram que vivenciavam momentos de interação com os pais e participavam juntos de algumas atividades, sobretudo, atividades cotidianas, tais como brincar com os cachorros no próprio domicílio, assistir à televisão, cozinhar e realizar tarefas escolares. Apesar disso, os jovens destacaram a baixa frequência com que esses momentos aconteciam.

"[...] Igual eu te falei, a gente tem canal de filme, canal de... De programa assim. Aí a gente assiste, comenta... Mas... É isso. A gente não faz muita coisa junto. É às vezes" (Lucca).

"[...] Às vezes eu ajudo ele a fazer comida... Mas é bem difícil. Ou vemos televisão [...]" (Jasmim).

Três participantes afirmaram que não realizavam nenhum tipo de atividade com o pai, dois dos quais justificaram que o uso abusivo de bebidas alcoólicas era um fator que dificultava a existência de momentos de lazer compartilhados.

BRIGAS E DESENTENDIMENTOS NA RELAÇÃO COM O PAI

Ao avaliarem a existência de brigas e desentendimentos com o pai, seis adolescentes descreveram que não havia conflito direto deles com o genitor. Os motivos não foram descritos por todos. Entretanto, um dos adolescentes ponderou que ele e o pai "quase não se falam", indicando ser essa uma das razões pelas quais eles não costumavam discutir. Já para outra jovem, o motivo de não vivenciarem momentos de conflito estava relacionado ao fato de que o pai delegava as regras e correções para a mãe.

Os outros cinco participantes afirmaram que existiam momentos de conflitos com o genitor, três dos quais destacaram que eram frequentes. Novamente foi pontuado pelos adolescentes o uso abusivo de bebidas alcoólicas como um fator disparador dos conflitos. Além dessas razões, foram descritas situações em que o adolescente defendia a mãe perante o pai, sentimentos de "revolta" do adolescente a respeito dos comportamentos do pai direcionados à mãe, inflexibilidade e pouca atenção do pai na relação com o adolescente:

"[...] Quando eu defendo a minha mãe, ele não gosta. [...] Sempre, sempre é em relação a minha mãe." (Jade).

"Sempre quando ele está em casa. [...] As brigas entre mim e ele é mais gerada por causa de revolta minha, ... em relação a ele e minha mãe [...]. Eu discuto com ele mais friamente, mais pelo telefone. Quando ele bate na minha mãe, alguma coisa assim, eu falo para ele que ele não é meu pai, que ele nunca vai ser. Que ele é um covarde, que ele nunca vai me ter como filha [...]" (Agatha).

ASPECTOS NEGATIVOS E QUE GOSTARIAM DE MUDAR NA RELAÇÃO COM O PAI

A respeito de características negativas na relação com o pai, dez adolescentes descreveram que os aspectos negativos da relação estavam ligados às características pessoais do genitor que consideravam prejudiciais ao relacionamento parental. Os adolescentes indicaram o uso abusivo de bebidas alcoólicas do pai, bem como comportamentos de impaciência, inflexibilidade, agressividade, desconfiança e a ausência de tempo livre para os filhos. Assim quando foram questionados sobre os aspectos que gostariam de mudar na relação com o pai, esses mesmos aspectos foram indicados. Sete participantes explicaram que gostariam de se sentir mais próximos do pai, que se encontrassem com maior frequência, que houvesse mais comunicação entre eles e essa comunicação fosse menos conflituosa, sem a presença de expressões verbais nem comportamentos agressivos. Quatro adolescentes também indicaram que gostariam que o pai interrompesse o uso de bebidas alcoólicas.

 

DISCUSSÃO

Na família é esperada a ocorrência dos processos proximais, interações contínuas, recíprocas e significativas, consideradas motores do desenvolvimento, especialmente entre os cuidadores principais ou figuras que exercem os papéis parentais e os filhos. Entretanto, embora tradicionalmente o microssistema familiar seja entendido como um ambiente no qual se espera que haja acolhimento, cuidado e proteção para seus membros, nem sempre essa expectativa se efetiva, sobretudo quando discutimos a violência. Isso porque, uma vez presente nesse ambiente, a violência pode descaracterizar as referências positivas associadas à família (Hernándes & Gras, 2005; Navas, 2010; UNICEF, 2009).

Hameister, Barbosa e Wagner (2015) apontam que vários estudos têm demonstrado que a qualidade da relação conjugal tem um impacto na parentalidade. Quando está presente a violência conjugal, como é o caso das famílias dos adolescentes desse estudo, pode ocorrer o transbordamento, ou o efeito spilover, das dificuldades vivenciadas pelo casal para sua relação com os filhos. A menor disponibilidade e responsividade dos pais para a interação, hostilidade e agressividade e menos empatia na relação com os filhos são alguns dos resultados observados em estudos sobre o tema (Hameister, Barbosa, & Wagner, 2015). Pode se dizer que, a partir do relato dos filhos adolescentes, alguns desses aspectos também foram observados na relação com o pai. Tanto o distanciamento como o comportamento agressivo, direcionado a alguns dos filhos, foi descrito pelos adolescentes.

Verificou-se que embora alguns aspectos positivos, como momentos de cuidado, compartilhamento e afeto, tenham sido apontados na relação com o pai, predominaram descrições de situações que podem ser consideradas obstáculos ao relacionamento promotor de desenvolvimento positivo, como: a presença de conflito e violência do pai contra a mãe e na relação com os filhos, a condição de alcoolista de alguns pais, a ausência ou pouca proximidade do pai ao longo do desenvolvimento dos filhos e a falta de monitoramento do pai em relação ao cotidiano dos filhos. Verificou-se, ainda, pelo relato dos adolescentes, que a maior parte dos pais dispendia pouco tempo para os filhos. Mesmo quando foi relatada a realização de atividades conjuntas, a maior parte dos participantes sinalizou sua pouca frequência e alguns demostraram que a qualidade de alguns desses momentos também era comprometida.

Para os processos proximais, o tempo dispendido, considerando a frequência e a continuidade das interações, tem relevância para que uma relação seja significativa para o desenvolvimento, no sentido de produzir resultados de competência, ou seja, resultar em conhecimentos, habilidades e competências que possibilitem ao indivíduo direcionar seus comportamentos de forma a dominar as situações que a vida apresenta numa perspectiva saudável. O tempo, avaliado na disponibilidade para iniciar e manter a interação, com frequência, durabilidade e de forma responsiva, é um importante elemento a considerar quando se discute o relacionamento estabelecido entre pai/filho ao longo do desenvolvimento e seu potencial para produzir competências (Bronfenbrenner & Evans, 2000).

De acordo com Diniz & Koller (2010), a confiança, o cuidado e a atenção estabelecidos na relação com o cuidador durante o processo desenvolvimental, ou seja, efetivos processos proximais, favorecem com que, posteriormente, o adolescente e o adulto retribuam esses sentimentos em outras relações e ainda que permaneçam vinculados à família. Por outro lado, afetos negativos ou de indiferença direcionados à criança, em longo prazo, podem produzir sentimentos negativos que podem permanecer presentes para o adolescente, não apenas com as figuras parentais, mas afetando as relações com outras pessoas com as quais ele interage. Essa avaliação é coerente com a proposição de que a força dos processos proximais na promoção do desenvolvimento depende de vínculos e comprometimento mútuos das pessoas em interação e que persistam no tempo e, até mesmo, ao longo de toda a vida (Bronfenbrenner & Evans, 2000), que é o que geralmente se espera dos vínculos familiares, particularmente dos adultos em relação às crianças e adolescentes.

O monitoramento parental que se apresenta no esforço para conhecer e estar presente na vida dos filhos, acompanhando suas atividades, conhecendo com quem eles convivem e por onde andam, são considerados fatores protetores para o desenvolvimento, além da proximidade e da boa comunicação na família (Paiva & Ronzani, 2009; Tomé, Camacho, Matos, & Diniz, 2011). Esses aspectos da parentalidade foram avaliados pela maioria dos adolescentes, na relação com o pai, como sendo pouco frequentes e deficitários.

Os processos proximais ocorrem também em função das características das pessoas em interação. Verifica-se que características pessoais dos pais descritas pelos adolescentes, como agressividade, inflexibilidade, pouca disponibilidade para interação e uso abusivo de bebidas alcoólicas, contribuíram para o distanciamento entre filhos e pais na adolescência. Sentimentos como medo, raiva e pouca motivação para incentivar a aproximação do pai também foram descritos pelos adolescentes e são reações que também não favorecem a proximidade entre pais e filhos.

O uso abusivo de álcool foi apontado pelos adolescentes ao relatarem diferentes aspectos da relação, tendo sido descrito como um dos fatores que gostariam que mudasse e identificado como um fator que impacta a qualidade e coloca obstáculo à relação pais-filhos, por favorecer episódios de violência. Têm-se discutido a possível associação entre o uso abusivo de bebidas alcoólicas e maior predisposição do homem a agredir a companheira e/ou filhos, bem como os membros mais vulneráveis, quando se considera a ideia de uma hierarquia doméstica (Paixão et al., 2014; Tondowski et al., 2014). Contudo, discute-se que essa associação é controversa, pois embora o álcool e as drogas sejam fatores de risco, pois reduzem os limiares de inibição do sujeito, a violência é o resultado da interação de fatores individuais, relacionais, sociais, culturais e ambientais (Fonseca, Galduróz, Tondowski, & Noto, 2009).

Acrescenta-se que os estudos que discutem a exposição dos filhos à violência e ao consumo abusivo de bebidas alcoólicas pelos pais/cuidadores indicam que esse contexto pode ainda favorecer uma aprendizagem do comportamento alcoolista e legitimar a violência nas relações. Segundo os autores, essa situação poderia predispor as gerações seguintes a vivenciar o mesmo padrão de relacionamento envolvendo violência e uso abusivo do álcool, seja sofrendo, seja perpetrando atos de violência (Oliveira, Assis, Njaine, & Pires, 2014; Paixão et al., 2015; Tondowski et al., 2014).

No que se refere à abordagem dos adolescentes a respeito dos aspectos positivos no relacionamento com o pai, foram indicados momentos compartilhados e afeto, contudo, a atenção demonstrada pelo suporte material foi um dos aspectos mais apontados. Ao descreverem o sentimento de apoio na relação, mais uma vez o suporte material também foi destacado pelos adolescentes, tendo sido explicado por alguns que, sempre que precisavam de algo, o pai supria essa necessidade. Assim, observa-se a presença do pai pautada mais nos recursos materiais do que na participação na vida dos filhos e no afeto, o que mostra a predominância de um papel tradicional de masculinidade, o que também tem sido verificado como um aspecto associado à violência contra a mulher, quando o homem se posiciona num papel hierárquico e de poder sobre esta (Lobô & Lobô, 2015; Paulino-Pereira, Santos, & Mendes, 2017).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pode-se considerar que os resultados desse estudo reforçam as análises que indicam uma relação entre a qualidade das relações conjugais e as outras dimensões da vida familiar, sobretudo a parentalidade. O relato dos adolescentes a respeito da relação com a figura paterna revelam relações frágeis e em alguns casos permeadas pela violência. Verifica-se, portanto, a importância de que os estudos sobre o tema levem em consideração também a perspectiva dos filhos e que os serviços direcionados a prevenção e cuidado em relação à violência conjugal ampliem a rede de apoio para às crianças e adolescentes das famílias, além de focalizar também os efeitos dessa vivência na parentalidade.

Como limitação desse estudo, pode-se argumentar que as avaliações partem da perspectiva de apenas um membro da família. Assim, acredita-se que que outras análises possam ser realizadas, abarcando a complexidade das relações familiares. Assim, é importante empreender estudos que abordem outros atores envolvidos na dinâmica familiar na qual a violência está presente, bem como obter o conhecimento acerca do ponto de vista dos pais a respeito das relações com seus filhos nesse contexto, além de investigar o tema com uso de metodologias diversificadas.

 

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Endereço para correspondência
Célia Regina Rangel Nascimento
E-mail: celiarrn@gmail.com

Recebido: 08/09/2019
Reformulado: 11/11/2019
Aceito: 22/01/2020

 

 

1 Yara Alves Costa Justino é mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo.
2 Célia Regina Rangel Nascimento é doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo. Docente da Universidade Federal do Espírito Santo.

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