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Psicologia Hospitalar
versión On-line ISSN 2175-3547
Psicol. hosp. (São Paulo) v.4 n.2 São Paulo ago. 2006
ARTIGOS ORIGINAIS
Hiperemese gravídica: estudo de caso dos aspectos psicológicos presentes na gestante
Hyperemesis gravidarum: a case study of the psychological issues present in pregnant women
Miriam TachibanaI,1; Claudia Aparecida Marchetti DuarteII,2; Laíse Potério SantosII,3; Marina Herdeiro LopesII,4
I Pontifícia Universidade Católica de Campinas
II Centro de Atenção Interdisciplinar à Saúde da Mulher (CAISM)
RESUMO
A hiperemese gravídica consiste em náuseas e vômitos intensos, que persistem ao longo da gestação. Objetivamos realizar um estudo que focasse os aspectos psicológicos associados ao seu desenvolvimento, à luz da teoria psicanalítica. Assim, a metodologia utilizada foi o estudo de caso de uma gestante hiperemética, paciente de um hospital-maternidade, que foi acompanhada pela psicóloga por um período de 5 meses. A análise do material clínico deu-se com os relatos das sessões sendo discutidos entre o grupo de psicólogas da instituição. Percebemos o quanto a escuta analítica e a nomeação dos sentimentos da paciente permitiram que ela passasse de um estado, no qual culpabilizava o seu marido pela falta de apoio, para de maior introspecção, no qual pôde reconhecer autenticamente o seu lado do não querer a gravidez, o que lhe permitiu viver a gestação de maneira espontânea e real e, não, idealizada.
Palavras-chave: Hiperemese gravídica, Maternidade, Vômitos gestacionais, Psicanálise.
ABSTRACT
Hyperemesis gravidica is symptomized by nausea and intense vomiting that persist over the long run of pregnancy. Our purpose was to carry out a study which would focus on the psychological aspects associated with its manifestation from the psychoanalytic perspective. Thus, the methodology brought to bear involved studying the case of a hyperemetic pregnant woman, a patient in a maternity hospital, who was cared for by a psychologist for a five month period. An analysis of the clinical material was carried out from the session notes. The discussion took place among a group of psychologists from the hospital. We saw how much psychoanalytical listening and recognition of the patient's feelings allowed her to pass from a state in which she blamed her husband for the lack of support to a state of greater introspection in which she was able to authentically recognize the side of her that didn't want the pregnancy. This allowed her to experience the pregnancy in a real and spontaneous way, and not simply in an idealized way.
Keywords: Hyperemesis gravidarum, Maternity, Vomiting, Psychoanalysis.
INTRODUÇÃO
São diversos os estudos que trazem uma definição bastante precisa do que se trata a hiperemese gravídica. Della Nina (1997) define o quadro de hiperemese quando a gestante apresenta vômitos freqüentes após a décima segunda semana de gestação, o que lhe traria uma possível alteração do equilíbrio hidroeletrolítico e da nutrição. Sipiora, Murtaugh, Gregoire e Duffy (2000) descrevem a gestante hiperemética como aquela que apresenta náuseas e vômitos intensos, o que poderia prejudicar o desenvolvimento fetal, além de acarretar perda de peso materno. Neme (1994) aponta que tal perda de peso pode dar-se de forma tão rápida que a gestante pode chegar a perder de 300 a 500 gramas por dia.
Apesar do conceito de hiperemese gravídica ser muito claro, percebe-se, entretanto, que a literatura sobre o assunto ainda é escassa. A própria realização do levantamento bibliográfico para a elaboração deste trabalho serve para ilustrar-nos esta escassez da literatura específica. Foram encontrados poucos estudos sobre o tema, sendo estes, em sua maioria, pertencentes à literatura internacional e voltados aos aspectos biológicos e psiquiátricos da hiperemese gravídica.
Pode-se lucubrar que, talvez, esta pouca atenção que a comunidade científica confira à patologia deva-se ao fato de que, conforme Moss e Bontekoe (1997), é uma pequena parcela de gestantes que desenvolve a hiperemese (dentre 1000 gestações, cerca de 1 a 5 são acompanhadas de hiperemese). Ou, ainda, de acordo com Della Nina (1997), pode-se compreender esta pobreza de estudos sobre a hiperemese pois, nas últimas décadas, a doença não gera mais a mesma preocupação que no início do século XX, tanto que antigamente, em alguns casos, até mesmo interrompia-se a gravidez.
Munch (2002) reforça a diéia ao ressaltar que a hiperemese gravídica era caracterizada como uma doença cujo diagnóstico e tratamento eram tidos como um enigma ao obstetra. O autor reflete que os trabalhos voltados a esta temática carregam o status enigmático que acompanha a doença, uma vez que suas causas e curas são praticamente desconhecidas.
No que se refere à questão etiológica da hiperemese, de acordo com Della Nina (1997), dentre os fatores de natureza mecânica, endócrina, alérgica e metabólica, os fatores psicológicos vêm ganhando maior destaque. Munch (2002) complementa afirmando que a crescente integração entre a medicina e os conhecimentos advindos das ciências humanas vem permitindo um tratamento que atenda às questões biológicas, sociais e psicológicas.
Neste trabalho, a hiperemese gravídica será discutida sob o enfoque dos fatores psicológicos que estariam associados ao seu desenvolvimento. Não pretendemos, contudo, ignorar a importância de se compreender a hiperemese como uma patologia de etiologia multivariada, mas, apenas, aprofundar num dos vértices que estariam associados.
É importante destacarmos que, apesar de os estudos dos aspectos psicológicos das pacientes hipereméticas terem avançado nos últimos anos, durante muito tempo houve uma certa compreensão estereotipada dos sentimentos destas gestantes. Della Nina (1997, p. 155) afirma: (...) os fatores psicológicos existentes devem ser cuidadosamente considerados, não se devendo cair na explicação fácil e enganosa, em que o sintoma seria o selo de uma pouco compreendida, porém famosa, rejeição do feto.
Esta concepção praticamente universal de que o vômito equivale necessariamente à rejeição do feto advém da leitura generalizada e precipitada dos trabalhos escritos por Deutsch (1960). A autora realizou diversos estudos com gestantes que sofriam de vômitos incoercíveis, visando apreender as suas fantasias e pôde, no caso daquelas mulheres, fazer uma associação entre os impulsos agressivos contra a situação gravídica e as fantasias infantis da fecundação por via oral.
É claro que, em determinados casos, de fato, o ato de vomitar pode ser, para a gestante, uma forma de expressar a sua rejeição. Tsoi, Chin e Chang (1988) realizaram um estudo através do qual dez pacientes com hiperemese gravídica foram acompanhadas pela psiquiatria durante o período de suas gestações. A conclusão a que os autores chegaram foi a de que, em comum, estas mulheres demonstravam sentimentos de rejeição perante a gestação, além de vivenciarem um período estressante, o que lhes permitiu compreender coerentemente que os vômitos destas mulheres representavam um chamado de ajuda, uma forma de atrair a atenção dos outros para o seu sofrimento psíquico.
Assim, o que se observa é que, em alguns casos, os vômitos efetivamente consistirão em somatizações, por parte da gestante, quanto aos seus sentimentos em relação ao feto. Entretanto, deve-se tomar a cautela de não se estereotipar esta equação. Della Nina (1997) reflete que, assim como a gestante que vomita freqüentemente pode não estar expressar rejeição pelo feto, a grávida que não apresenta nenhuma náusea ou vômito em toda a sua gestação não seria, necessariamente, alguém que estivesse isenta de conflitos intrapsíquicos gestacionais. A própria psicanalista Deutsch (1960) afirmava que, muitas vezes, a ausência destes sintomas poderia ser compreendida como uma forte expressão inconsciente da negação da condição de grávida, mesmo que a gestante não apresentasse, conscientemente, nenhum repúdio quanto a ela.
Della Nina (1997) afirma que esta questão da rejeição associada aos vômitos merece uma re-leitura por parte dos estudiosos da área. Ao invés de concebermos simplesmente o vômito como uma tentativa da gestante de livrar-se inconscientemente do feto, poderia-se pensar que o que ela está tentando, de fato, é livrar-se do desagradável conflito intrapsíquico que a gravidez pode ter desencadeado. Langer (1986) explica esta diferença com muita clareza:
(...) a aparição de transtornos significa, geralmente, uma rejeição. Esta rejeição pela criança pode ser provocada amiúde por circunstâncias econômicas adversas, sociais, por desamor ao marido, etc. Por exemplo, três autores norte-americanos realizaram um estudo estatístico durante a última guerra, investigando, num ambiente social e econômico sumamente pobre, as ansiedades provocadas pela gravidez e parto em 27 primíparas. Parte das mulheres grávidas eram solteiras, outras haviam sido abandonadas por seus esposos, outras viviam separadas de seus maridos porque estes estavam na frente de batalha. Quase nenhuma dispunha de um lar próprio e de certa segurança econômica para si e o futuro filho. Estas circunstâncias influíam visivelmente nos transtornos e ansiedades da gravidez. (p. 193)
Mediante o exposto, este artigo teve, como objetivo, descrever o acompanhamento de uma paciente hiperemética, bem como compreender o fenômeno da hiperemese gravídica à luz da psicanálise.
MÉTODO
Para a realização deste estudo, optou-se pela metodologia estudo de caso. Apesar de muitos autores, segundo Yin (2003), criticarem arduamente esta escolha metodológica, atribuindo-lhe características como a falta de rigor, a influência do investigador, as visões enviesadas, a impossibilidade de generalizações, dentre outras, considera-se que este caminho seria o mais pertinente para cumprir com a investigação proposta.
Primeiramente, no que se refere à crítica predominante de que, na metodologia estudo de caso, o olhar do investigador é subjetivo e enviesante, deve-se refletir que qualquer recurso metodológico em ciências humanas é sempre subjetivo, uma vez que o ser humano nunca é captado em sua essência, mas, sim, a partir do olhar de outra pessoa, neste caso, o cientista. Esta visão idealizada de que a ciência seria capaz de apreender o fenômeno de maneira objetiva e verdadeira descende da ciência positivista, ciência esta que não pode ser transposta às pesquisas em psicologia e, especificamente, em psicanálise.
De acordo com Lino da Silva (1993), nas pesquisas psicanalíticas, faz-se necessário, ao contrário do que o pensamento positivista prega, que a figura do pesquisador assuma as proporções devidas em seu encontro com o outro sujeito da pesquisa, até porque é o pesquisador, com seus sentimentos de contra-transferência, sua capacidade de atenção flutuante, sua memória seletiva, suas associações, dentre outras, que constituirá no principal instrumento da investigação.
Ademais, quanto à crítica de que o estudo de caso não permitiria a generalização dos resultados por se tratar do estudo de um único caso, deve-se compreender que a lógica que aqui reside é outra. Os resultados aqui encontrados não tiveram o objetivo de serem transpostos de maneira replicada a outras pacientes com hiperemese gravídica, mas, sim, como aponta Toledo (2003), o de proporcionar insight sobre um resultado ou, até mesmo, um refinamento na teoria a respeito.
De acordo com Safra (1994), o uso de material clínico na pesquisa psicanalítica faz-se imprescindível, tanto que, para ilustrar, pode-se fazer alusão a Freud, pai da psicanálise, que elaborava e sistematizava seus pensamentos sobre os fenômenos psíquicos mantendo um diálogo contínuo entre a clínica e seus propósitos investigativos. Esta é a única maneira, segundo Safra (1994), de evitar o risco de teorias sem referência clínica alguma, que se aproximaria a teorizações abstratas e, até mesmo, delirantes.
Dessa forma, esta pesquisa foi realizada a partir do estudo de uma única participante, paciente de um hospital público, situado no interior do estado de São Paulo, destinado ao atendimento da saúde reprodutiva da mulher. Esta paciente, que aqui chamaremos de Liríope5, tinha 22 anos de idade, era casada há dois, primigesta e, na ocasião de sua primeira internação na instituição em questão, estava com 22 semanas de idade gestacional.
Este caso foi escolhido, dentre os vários outros casos de pacientes hipereméticas que são internadas no hospital, por ter apresentado algumas particularidades interessantes: a paciente internou-se oito vezes no hospital, vivendo no mesmo praticamente desde as 22 semanas de idade gestacional até a alta do pós-parto; demandou interconsulta psiquiátrica quatro vezes, por apresentação de ideações suicidas; mobilizou toda a equipe do hospital (médicos, enfermeiras, psicólogas, assistentes sociais, dentre outros) por suas internações sucessivas quando já aparentava um quadro físico controlado, dentre outras especificidades que serão melhor abordadas na apresentação de alguns trechos das sessõesI .
No que se refere ao instrumento utilizado, seria incorreto afirmar que foram realizadas apenas entrevistas psicológicas. Na verdade, todo o rico material que será apresentado não se baseou apenas nos atendimentos psicológicos, mas, também, em observações, leituras do prontuário da paciente, discussões com os profissionais da equipe e supervisões do caso com o grupo de psicólogas do hospital. Yin (2003) afirma que a riqueza apresentada quando se realiza o estudo de caso deve-se justamente ao fato de tal método permitir fontes múltiplas de evidências, não consistindo numa metodologia investigativa fechada. Dessa forma, espera-se, de fato, uma grande variedade de instrumentos e estratégias.
Assim, foram realizados atendimentos psicológicos com Liríope, durante o período em que esteve internada no hospital, até as suas consultas no ambulatório de revisão pós-parto, consultas estas que fazem parte da rotina hospitalar de todas as pacientes, independentemente do seu caso clínico. A despeito da questão do setting; bem definido, proposta por Freud e adotada pelos psicanalistas clínicos, não houve rigor nos atendimentos com Liríope, levando em consideração que, em âmbito hospitalar, o setting; assume outras características. Assim, a paciente tinha autonomia de solicitar o atendimento da psicóloga, dentro de seu horário de trabalho, bem como a psicóloga realizava mais ou menos atendimentos na semana, conforme percebia o estado psíquico da paciente.
Desse modo, a seguir, serão apresentados alguns trechos de sessões realizadas com Liríope, no intuito de não apenas descrever o conteúdo por ela trazido, mas, principalmente, o de viabilizar a reflexão analítica do mesmo, bem como o de permitir que o leitor tenha as suas próprias inferências, segundo o seu alcance analítico.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Para facilitar a apresentação dos encontros e a compreensão do leitor, os dados serão discorridos conforme as internações de Liríope no hospital em questão.
- Primeira internação: O início da relação com o hospital
Liríope vem trazida à instituição pelo SAMU, apresentando náusea, vômitos e dificuldades em se alimentar. Na época, estava com 22 semanas de idade gestacional e referia já ter sido internada, outras vezes, pelos mesmos sintomas, num outro hospital da região.
Nesta sua primeira internação, que durou apenas dois dias, a paciente não foi contatada pelo serviço de psicologia do hospital, uma vez que a sua internação deu-se em um fim-de-semana, período no qual não há cobertura do serviço de psicologia.
- Segunda internação: Como tudo começou
Após três semanas, Liríope vem espontaneamente ao Pronto-Atendimento do hospital, referindo vômitos freqüentes, a despeito de estar tomando as medicações receitadas pela equipe. Ela é então internada para a realização de exames e para a aplicação de soro.
Este é o primeiro momento em que se dá o encontro entre a paciente e a psicóloga da instituição. Já no início do primeiro encontro, ao simplesmente perguntar à paciente sobre o que estava ocorrendo, esta, por associação livre, refere ter vômitos de causas emocionais (SIC). Liríope, muito comunicativa, começa a relatar que está tem problemas com seu marido, que este não lhe dá a atenção devida, saindo com os amigos e parentes. A paciente fica durante um bom tempo discorrendo sobre a figura do marido, atribuindo-lhe os motivos pelos quais estaria tendo complicações em sua gravidez.
Ao ser indagada sobre como se deu a sua gravidez, conta que, passado um ano e meio que havia se casado, como sentia muita falta de seus parentes (Liríope é oriunda de Pernambuco e veio a residir no estado de São Paulo devido ao casamento), além da desatenção do marido, decidiu voltar para a cidade natal. Após algum tempo da separação, Liríope relata que seu marido foi até Pernambuco, na tentativa de reconciliação:
Eu ainda tinha dúvidas se era pra gente reatar. Mas como a gente acabou transando e sem nenhum cuidado eu não sei o que aconteceu comigo, porque eu sempre lembrava da camisinha, mas dessa vez eu não lembrei eu acabei engravidando e tive que voltar com ele, né? Eu só fui descobrir da gravidez quando ele já tinha ido embora de Pernambuco, e tive que vir pra cá...
Este histórico de como ocorreu a gestação merece maior atenção. É importante refletir o quanto, a despeito de esta gestação não ter sido planejada, foi fruto de um desejo. São diversos os autores psicanalistas que escrevem sobre a questão de toda a gestação, independentemente se planejada ou não, ser desejada. Para ilustrar, pode-se fazer uso das palavras de Chatel (1995, p. 19): Nos seres falantes, a fecundação é uma somatização: ela realiza uma precipitação (no sentido químico) em substância do cruzamento dos desejos inconscientes. Segundo esta autora, os chamados acidentes como o que Liríope refere no caso de sua gravidez seriam atos falhos representantes do discurso inconsciente.
Pode-se até elucubrar, embora jamais afirmar, que esta gravidez de Liríope irrompeu num momento em que estaria associada à sua união com seu marido. Mondardo e Lima (1998) destacam que um filho pode, muitas vezes, representar inconscientemente a tentativa de salvar o casamento, já que consiste literalmente na expressão do amor e união do casal.
Os demais atendimentos que ocorreram nesta segunda internação, que perdurou por uma semana, foram bastante direcionados pela paciente, que não conseguia quebrar o discurso de que sua gravidez era conflituosa devido ao seu conflito conjugal.
- Terceira internação: De quem é a culpa?
No dia seguinte após ter tido alta hospitalar, Liríope retorna à instituição, referindo ter iniciado dispnéia e vômitos, logo após acordar em sua casa. É reinternada para realização de hidratação, permanecendo no hospital por outros 4 dias. Neste período, é retomado o contato com a psicóloga do hospital.
Percebendo que Liríope não conseguia desnudar-se do discurso repetitivo de que seu marido não lhe dava atenção e, por isso, tinha uma gravidez patológica, a psicóloga procurou trabalhar esta temática. É interessante ressaltar que, de tanto a paciente apresentar e enfatizar este discurso vitimizado, alguns profissionais da equipe interdisciplinar passaram a internalizá-lo, chegando a convocar o marido de Liríope (que, de fato, não vinha visitá-la nas internações) ao hospital, para persuadi-lo a ser mais participativo no processo gestacional.
Não se pretende aqui, discutir se a atuação da equipe foi correta ou não. Sabe-se da importância da participação do companheiro, proporcionando a sensação de segurança à gestante, para o bom desenvolvimento da gestação. Sarmento (1999) afirma que as atitudes do marido em relação à mulher irão contribuir para atenuar ou intensificar seus sentimentos de solidão, de desamparo e seu medo da responsabilidade solitária, suscitada pela exclusão masculina das atividades domésticas e da educação dos filhos. Wolkind (1981, citado por Della Nina, 1997), que realizou um estudo controlado com grande número de pacientes hipereméticas, observou o alto nível de isolamento experimentado por estas gestantes: a mulher grávida que se sente externamente privada de amor e não se sente recompensada pelo sacrifício biológico que a gravidez representa, tem a sua boa vontade debilitada.
O que se pretende discutir é que, independentemente da maior ou menor participação do marido de Liríope no processo gestacional, ela falava também falando de sua própria rejeição à gravidez, ao falar do quanto seu marido não a aceitava. Mondardo e Lima (1998) apontam a tendência das pessoas a projetarem questões de natureza extremamente pessoal. Maldonado, Nahoum e Dickstein (1983) destacam que, no que tange à gravidez, dar-se conta da própria rejeição a ela faz-se tão difícil (até porque, na sociedade, a mãe idealizada não pode ter sentimentos de não querer a gestação), que este lado do não querer fica projetado na figura do parceiro, como se este fosse portador de sentimentos maus, enquanto a mulher, dos sentimentos bons.
Dessa maneira, buscou-se trabalhar, junto à Liríope, o quanto ela própria nutria sentimentos hostis quanto à gestação, além de seu marido. Somente ao ser capaz de voltar o olhar e a fala à sua pessoa, o trabalho psicológico com ela poderia avançar. De outro modo, enquanto ela mantivesse um discurso vitimizador, a única atuação que restaria seria aquela adotada pelo restante da equipe hospitalar: o de mudar a sua realidade externa, no caso, a postura de seu marido quanto à gestação.
Quarta internação: Fim de ano
Após cinco dias de Liríope ter tido alta hospitalar, ela reinterna-se na instituição, referindo vômitos e cefaléia. Já tem alta hospitalar no dia seguinte, mas não é por isso que Liríope não é atendida pela psicologia: não é atendida porque, nesta época, após o Natal e antes do Ano Novo, o serviço de psicologia, junto a outras áreas da instituição, estava em recesso trabalhista. É interessante contextualizar que a paciente veio à procura do hospital num momento em que as pacientes evitam ao máximo serem internadas, já que o período de fim de ano tem todo um caráter de união familiar. Assim, pode-se inferir o quanto o ambiente familiar de Liríope deveria ser vivido conflituosamente, já que a paciente optou pela acolhida do hospital, neste período tão familiar.
- Quinta internação: A depressão
Após duas semanas desde a última internação, Liríope vai ao Pronto-Atendimento do hospital, relatando que, além dos vômitos e da dificuldade em ingerir alimentos, tampouco consegue ingerir os medicamentos que, até então, estava tomando. Com a sua reinternação, que perdura por duas semanas, é retomado o processo terapêutico.
Já no primeiro encontro com a paciente, nesta nova internação, nota-se que ela está apática. Esta apatia fica evidente devido ao fato de Liríope, até aquele momento, ter se revelado uma pessoa extremamente comunicativa e expressiva. Apesar do conteúdo trazido por Liríope sempre ter sido trágico, a maneira como ela relatava os mesmos, era, de certa forma, alegre. Nesta nova fase, ela aparece falando pouco, suas falas correspondem a respostas perante indagações da psicóloga de maneira pouco entusiasmada.
Os conteúdos trazidos por Liríope tinham, como tema central, o sentimento de culpa. Em um dos encontros, ela fala:
Eu fico vendo as outras pacientes do meu quarto, sofrendo, chorando... porque os bebês delas têm algum problema. O meu caso é o contrário: eu estou aqui, chorando porque não queria esta gravidez agora, e o meu bebê não tem nenhum problema (...) Eu não sei se tudo isso o que eu estou sentindo vai passar quando ele nascer... E se não passar? Se eu não conseguir ser aquela mãe toda dedicada, toda mãezona?
Através desta vinheta, fica claro o quanto a paciente estava se sentindo culpada por seus sentimentos de rejeição à gravidez. Apesar de, num primeiro momento, este cenário ser compreendido como um retrocesso, vê-se que, na verdade, ela estava conseguindo desarmar-se de suas defesas. Aqui, ao contrário do que ocorria até então, a paciente consegue voltar o olhar para si mesma, num movimento de introspecção, desejoso num processo psicoterapêutico, e falar de suas angústias sem aludir à figura do marido.
Como conseqüência de conseguir nomear seus sentimentos aversivos à gravidez, Liríope passa a sentir-se culpada e a fantasiar ser uma mãe má. Isto acontece, segundo Grisci (1995), porque o imaginário coletivo a respeito da figura materna, através de histórias romanceadas do papel da mãe, possui uma representação idealizada da mesma: assim a gestante sente que o amor materno é algo de cunho obrigatório, incondicional, sentindo-se culpada por, na verdade, nutrir sentimentos ambivalentes.
Esta questão da culpa aparece, também, porque, conforme Soifer (1992), as hipereméticas costumam apresentar o temor de não nutrirem a criança que carregam dentro de si, por, de fato, elas próprias não estarem se alimentanrem adequadamente. Maldonado (1988) refere ser comum a gestante, independentemente se apresenta alguma patologia ou não na gravidez, temer que sua própria ambivalência venha a destruir o feto, que seria o temor universal de ter um filho mal formado.
Tantos sentimentos de culpa acabaram culminando num estado tal que foi solicitado que a psiquiatria realizasse uma avaliação de Liríope, avaliação esta que resultou na hipótese diagnóstica de episódio depressivo. Dessa maneira, ela passou a ser medicada com antidepressivos e a ser acompanhada pelo serviço de psiquiatria, paralelamente.
A despeito do estado depressivo de Liríope, de suas falas apáticas e de seus intensos sentimentos de culpa, compreende-se que a paciente encontrava-se numa queda característica de uma crise evolutiva. Num paralelo à teoria Kleiniana, vê-se que a paciente consegue passar de um estado em que permanecia numa posição predominantemente esquizo-paranóide, para uma outra, depressiva, em que é capaz de olhar para si mesma e deixar de se projetar no marido.
Araújo (2003), dentro da perspectiva winnicottiana, reflete o quanto se faz imprescindível a mulher ser capaz de desprover-se da formação reativa, deixando de recalcar seus sentimentos de ódio em relação ao bebê. Somente ao conseguir assumir este lado hostil quanto à gestação, a mulher consegue agir com o bebê sem acting-outs, mas de maneira autêntica e espontânea, que é justamente o que o bebê necessita.
Fazendo uma correlação disto com estudos realizados com hipereméticas, Della Nina (1997) relata existirem diversos estudos nos quais observou-se uma maior incidência de depressões durante a gestação de pacientes hipereméticas, em relação às mulheres que não apresentavam o quadro de hiperemese gravídica. Em contrapartida, enquanto o primeiro grupo não apresentava nenhum traço de depressão puerperal, o segundo apresentava um alto índice de depressão pós-parto. Com isto, infere-se o quanto as pacientes hipereméticas, ao longo da gravidez, têm a possibilidade de trabalhar conflitos psíquicos referentes à mesma, o que parece ocorrer apenas no puerpério, com as mulheres não hipereméticas.
Assim, os atendimentos realizados neste período em que Liríope esteve internada visaram promover uma escuta acolhedora e continente dos conteúdos angustiantes por ela trazidos, buscando, através da aceitação incondicional da paciente, permitir que a própria pudesse aceitar-se como uma mãe real, diferente da mãe ideal pregada socialmente.
- Sexta internação: O retorno ao passado
Após algumas horas que Liríope havia recebido alta de sua última internação, retornou ao hospital, referindo ter tido 3 episódios de vômito de conteúdo sanguinolento, ao longo do intervalo em que esteve fora da instituição. Ao ser reinternada na madrugada da primeira noite no hospital, a paciente apresentou ideações suicidas para a equipe de enfermagem, dizendo querer matar-se e sumir.
Ao conversar com a psicóloga, Liríope espontaneamente começa a relatar sobre o episódio ocorrido, chorando muito. Diz que, apesar de seu marido ter melhorado no relacionamento com ela, ainda assim, ao sair do hospital, sente-se sozinha. Ao ser indagada sobre seus familiares, a paciente conta:
Eu tenho muita saudade da minha mãe. Dos meus irmãos, também, mas é mais da minha mãe. Eu acho que se ela estivesse aqui, eu não me sentiria tão sozinha, assim... Até porque ela já teve complicações na gravidez também, então ela saberia me orientar. (...) Que complicações? Ela teve hiperemese na minha gravidez e eu sei que ela já abortou uma vez. Foi na gravidez anterior à minha, mas não sei porque ela quis abortar.
A partir daí, o tema central dos encontros com Liríope passou a ser a sua relação com a sua própria mãe. É interessante destacar que, apesar das tentativas sucessivas da psicóloga em trabalhar possíveis conflitos psíquicos existentes entre Liríope e a sua mãe, ela permanecia no pensamento lógico de que sua hiperemese gravídica estaria associada à de sua mãe, por razões hereditárias e biológicas, mas, não, psicológicas.
Esta falta de insight por parte da paciente pode ser compreendida através de duas hipóteses: a primeira seria a de que, talvez, de fato, ela não apresentasse nenhuma questão a ser trabalhada em relação à sua mãe. Pode-se pensar, segundo postula Chacham (1991), que a paciente estaria simplesmente repetindo um modelo de gravidez daquele apresentado pelo seu maior exemplo de figura materna, no caso, a própria mãe. Assim, se Liríope desenvolveu-se como mulher ouvindo ativamente como sua mãe vivenciou seu ciclo reprodutivo, não seria inesperado que ela também apresentasse o mesmo tipo de vivência.
A outra hipótese que se pode fazer quanto à falta de insight de Liríope sobre conflitos primitivos com a sua mãe seria a de que, talvez, ela estivesse resistente demais para discutir algo de caráter tão frágil.
Esta dificuldade torna-se ainda maior ao pensarmos que o que seria trabalhado com Liríope, seria algo de caráter essencialmente primitivo. Szejer (1999), que vem realizando estudos sobre psiquismo fetal, relata o quanto o feto, pela gestão progressiva de suas percepções sensoriais pré-natais, é capaz de perceber e memorizar, estocando um certo número de informações. Dentro desta linha teórica, como teriam sido as vivências intra-uterinas de Liríope, numa gestação posterior a um aborto provocado e na qual são vividos náuseas e vômitos?
Apesar de não ser possível afirmar qual destas duas hipóteses corresponderia à realidade psíquica da paciente, para a psicóloga, em termos contra-transferenciais, a questão de um conflito psíquico de Liríope com a mãe fez-se presente em sua mente.
Esta fantasia fez-se mais intensa quando Liríope, mobilizada pelas sessões, passou a referir o seu desejo de que sua mãe viesse, de Pernambuco, para acompanhá-la até o final de sua gestação. A paciente envolveu-se tanto com esta idéia de que só iria melhorar seu estado de saúde caso sua mãe se fizesse presente em sua vida, que, novamente, viu-se toda a equipe do hospital mobilizar-se neste sentido, num processo similar ao ocorrido em relação ao marido da paciente. A esta altura, em que a paciente não conseguia deixar de estar internada no hospital, passou-se a acreditar que se a sua mãe, efetivamente, viesse acompanhá-la, ela teria condições de receber alta hospitalar definitiva.
É válido ressaltar que, apesar de ser um aspecto comum e saudável a gestante demonstrar certa dependência em relação à figura materna, o que se percebe, no caso das gestantes hipereméticas, são dependências exageradas quanto às suas mães. Robertson (1946, citado por Della Nina, 1997) realizou um estudo comparativo com gestantes que sofriam hiperemese gravídica e outras que apresentavam apenas náuseas e vômitos leves e/ou moderados. Pôde observar que, enquanto as últimas apresentavam uma certa dependência em relação à figura materna, baseada numa identificação evolutiva saudável com a mesma, no que concerne ao papel de mãe e o de mulher, as hipereméticas apresentavam uma dependência de natureza patológica, decorrente de conflitos infantis não adequadamente elaborados.
Esta consideração de Robertson estaria condizente à teoria de Langer (1986) de que as náuseas e vômitos da gestante não seriam uma tentativa inconsciente de expulsar o feto, mas o de livrar-se das angústias vivenciadas quando bebê, em relação à figura materna internalizada como pouco provedora e responsável por primitivas frustrações orais. Neste caso, o feto representaria a própria mãe, de quem se quer livrar-se simbolicamente.
De todo modo, estas questões mais primitivas não puderam ser trabalhadas, talvez até pelo fato da psicoterapia realizada com Liríope ter sido muito breve e focal. Conforme a demanda da paciente, de fato, sua mãe veio de Pernambuco para acompanhá-la, sendo que, no exato dia em que sua mãe chegou de viagem, ela obteve alta hospitalar, após duas semanas internada.
- Sétima internação: O hospital continente
No dia seguinte após ter obtido alta hospitalar, Liríope retorna ao hospital, referindo, novamente, náuseas e vômitos. É reinternada na enfermaria, sendo esta internação que mais perdurou, dentre todas as outras.
Após alguns dias de sua internação, a paciente solicita o atendimento da psicologia. Ao encontrar-se com a psicóloga, pede para que o atendimento seja realizado na sala de psicologia (quando, até então, os atendimentos eram realizados no leito hospitalar), solicitação esta que lhe é atendida. Liríope passa a relatar o seguinte episódio:
Eu acho que algumas pessoas do hospital não gostam da minha presença aqui. Eles ficam fazendo comentários, como se estivessem brincando comigo, mas eu sinto que tem um fundo de verdade, sabe? Outro dia, um médico falou pra mim: Quando você quer ter alta? Não, porque não adianta eu te dar alta, enquanto você não quiser ir embora de verdade daqui. Ele falou como se dependesse de mim sair daqui! Mas você sabe que eu estou aqui porque preciso. Eu saio daqui e, não sei, simplesmente começo a vomitar, a ter náusea... Tenho até dor de cabeça só de pensar que um dia vou ter que ir embora daqui.
A partir deste trecho, observou-se o quanto Liríope estaria projetando na figura do médico suas próprias percepções de que não está consegue dar-se alta hospitalar. Ela irrita-se com o comentário do médico, que é sentido e vivido como persecutório e hostil, porque ele personifica um lado seu que sabe que ela já não mais depende do hospital, a não ser emocionalmente. É até interessante pensar no quanto, nesta sessão, a paciente parece solicitar que a psicóloga personifique, daí, seu outro lado: o lado de Liríope que acredita que deve permanecer no hospital, porque não tem condições de sustentar-se sozinha. Parece que a paciente demanda ouvir, da psicóloga, que ela ainda não estaria preparada para desprender-se da instituição.
É importante ressaltar que, segundo Moss e Bontekoe (1997), no tratamento de pacientes hipereméticas, a admissão hospitalar parece consistir numa estratégia terapêutica por si só. A mera remoção da paciente de todos os estímulos considerados ruins que se apresentam em sua vida diária já traz alguma melhoria ao estado de saúde da mesma.
Entretanto, no caso particular de Liríope, vê-se que sua relação com o hospital ultrapassava a finalidade de isolamento dos estímulos ruins, até porque, a esta altura, a paciente já apresentava melhoras em seu relacionamento conjugal e já tinha a companhia de sua mãe, em sua casa. Aqui, o hospital estaria cumprindo a função de lhe fornecer holding, como uma verdadeira figura materna.
Assim, procurou-se trabalhar junto à Liríope sua capacidade de fornecer holding para si mesma e para o seu bebê, não mais dependendo de um hospital que, no final, exercia-lhe a função de hospital-útero. Da mesma forma como Liríope havia sido capaz de, há alguns anos, cortar o cordão umbilical com sua mãe, mudando-se para longe de Pernambuco, rumo a uma nova relação (o casamento), agora seria o momento dela separar-se do hospital, retornando à realidade externa à instituição, rumo à construção de uma nova relação (díade mãe-bebê).
Apesar dos esforços da psicóloga, Liríope demonstrava-se insegura quanto a sair do hospital. Ao final, como ela não mais demandava todos os cuidados exercidos pela enfermaria, e, além disso, estava ocupando um leito hospitalar que poderia vir a ser ocupado por outra pessoa, a equipe acordou com a paciente que ela receberia alta da enfermaria onde estava, para ser transferida à Casa de Repouso (local onde as pacientes que não demandam atendimento médico, mas que possuem um vínculo com o hospital, ficam internadas).
Após duas semanas que a paciente está internada na Casa de Repouso, dirige-se ao Pronto-Atendimento do hospital, referindo cefaléia e vômitos. É, então, reinternada na enfermaria, onde permanece por dois dias. Neste dia em que retorna à enfermaria, solicita o atendimento da psicologia, no que é atendida.
Liríope novamente traz o tema sobre a sua dificuldade em desvincular-se do hospital, sendo capaz, neste momento, de assumir o quanto a sua dependência em relação à instituição é unicamente emocional, e não mais devido à hiperemese gravídica. Aqui, a paciente já consegue reconhecer o seu lado que a impede de desenvolver-se e sair daquele cenário. Metaforicamente, já que Liríope trazia relatos de que sua mãe havia abortado na gestação anterior à sua o que lhe despertava a fantasia de que, em sua gestação, sua mãe pudesse ter pensado em abortá-la pode-se dizer o quanto ela abortava o seu próprio desenvolvimento, ao não se dar alta hospitalar.
Após este único atendimento da psicologia, neste período breve em que esteve internada na enfermaria, ela conseguiu: teve alta hospitalar, definitivamente. É até interessante pensar no quanto esta sessão, em especial, representaria uma despedida da paciente em relação ao hospital-mãe e, principalmente, em relação à psicóloga, que vinha dando-lhe o seu colo para seu sofrimento, nos últimos meses.
- Oitava internação: O nascimento do bebê e o renascimento de Liríope
Após duas semanas desde a sua última internação, Liríope retorna ao hospital, mas, dessa vez, devido à presença de contrações uterinas. Evolui para o trabalho de parto normal, sem intercorrências, obtendo alta hospitalar após três dias da realização do parto.
Durante este período de internação, a paciente é visitada pelo serviço de psicologia, para que se pudesse avaliar a sua relação com o bebê, até então, tão temido por ela. Ao contrário do que poderíamos esperar, a paciente demonstra estar feliz com o nascimento de seu filho, fazendo questão de mostrá-lo aos outros, como uma mãe orgulhosa.
O mais importante desta colocação é que estes gestos de Liríope ultrapassa o âmbito meramente aparente, revelando o quanto a paciente está verdadeiramente feliz com o nascimento de seu bebê. De nada nos adiantaria se ela aparentasse uma alegria que pouco condissesse com seu estado interno. Não apenas seu bebê havia nascido: havia renascido uma nova Liríope.
Atualmente, Liríope permanece em contato com o hospital, mas, agora, não devido às internações na enfermaria. Seu vínculo deve-se às consultas no ambulatório de revisão pós-parto, ambulatório que atende as mulheres, algumas vezes, após o nascimento do bebê, com a finalidade de um acompanhamento longitudinal.
Nos poucos atendimentos realizados, Liríope mostrou-se extremamente agradecida à psicóloga, pelo período em que foi acompanhada. Os encontros tinham um tom leve, diferente daqueles que ocorriam no período da gestação, com a paciente discorrendo sobre seus planos em relação ao futuro, sobre seu trabalho, seu relacionamento conjugal... Poderíamos entender esta postura de agradecimento e a mudança no tom dos encontros como se a paciente dissesse que aquele período crítico finalizou, tal como se tivesse despertado, após um longo período de sono, e, agora, estivesse retomando a sua vida de forma autônoma e independente.
CONCLUSÃO
A partir da experiência clínica compartilhada, pudemos observar o quanto o sofrimento psíquico de Liríope ultrapassava a equação estereotipada vômito = rejeição ao feto. Aquilo que a paciente demandava exteriorizar era algo de cunho muito mais primitivo e complexo que a explicação simplória de rejeição ao bebê.
Podemos até promover uma discussão, aqui, sobre o quanto tal rótulo mãe que rejeita o feto é inadequado, haja visto que, atualmente, trata-se de um consenso, na literatura a respeito, sobre o quanto toda e qualquer gestação é vivida de maneira ambivalente e, como tal, desperta necessariamente sentimentos de satisfação e de aversão. Dessa forma, assumimos que não existiria uma gravidez que fosse vivida de maneira totalmente aversiva como, muitas vezes, fantasia-se erroneamente a respeito da gestante que tem vômitos incoercíveis e, por outro lado, uma gestação vivenciada unicamente por sentimentos de alegria.
Seria possível elucubrarmos que seria justamente o fato de a sociedade continuar pregando esta visão romanceada da figura materna que despertaria o quadro de hiperemese gravídica, dentre outros quadros psicopatológicos em gestações. Isto porque, a partir do momento em que a mulher depara-se com uma exigência externa, que ela própria acabará internalizando, de vir a ser uma mãe ideal, não seria ilógico que uma gestante vivenciasse um conflito interno. Afinal, seria como se ela tivesse que ceder sua vida o que se assemelha à morte em prol de outro ser humano.
No caso específico de Liríope, seus vômitos estariam associados não apenas a este medo de não vir a cumprir com as elevadas expectativas que são depositadas sob a figura materna, mas, também, à sua percepção de que, talvez, sua mãe tivesse vivenciado sentimentos hostis para com ela, na ocasião de sua gestação. É como se Liríope constatasse que sua própria mãe não correspondera ao modelo romanceado e, desta forma, se sentisse como um feto rejeitado, a despeito de, concretamente, já estar na fase adulta. Percebemos, aqui, o quanto é difícil, para o ser humano, vincular o sentimento de rejeição à temática maternidade, apesar desta faceta ser tão reconhecida na literatura específica.
Foi justamente por constatarmos esta questão que, no processo psicoterápico realizado com Liríope, buscou-se trabalhar o quanto ela própria estava em crise pela sua gravidez (e não apenas o seu marido, como ela discursava, no início), ajudando-lhe a nomear seus sentimentos, de tal forma a viver a sua gestação de forma autêntica e espontânea, ao invés de estereotipada e romanceada.
Este é um aspecto imprescindível de ser ressaltado, haja visto que, atualmente, nas instituições de saúde, o conceito de saúde vem sendo confundido com a idéia de ausência de sintomas. Assim, para uma equipe menos atenta à complexidade do sofrimento de Liríope, facilmente veríamos um trabalho voltado ao despertar dos sentimentos positivos pela gestação, além do objetivo de acabar com os vômitos da paciente.
Na perspectiva que se adotamos, neste estudo, defendemos o trabalho contrário: o de fazer emergir os sentimentos tidos como ruins pela gravidez, de tal forma a reconhecê-los como genuínos e humanos. Os vômitos não necessariamente teriam que cessar, já que, no paradigma psicanalítico, eles estariam cumprindo uma finalidade essencial à paciente: o de expressarem o seu conflito e, desta forma, tais atuações não deveriam ser simplesmente curadas e caladas, sem a devida elaboração.
Encerramos este trabalho afirmando paradoxalmente o quanto o mesmo encontra-se não concluído, fazendo-se necessários mais estudos dentro desta temática. Uma vez que esta foi considerada uma limitação deste trabalho, sugerimos, aos leitores interessados, a realização de um estudo longitudinal, que possa apreender a relação entre a mãe que, como gestante, sofreu hiperemese gravídica, com o seu bebê. A demanda por mais pesquisas justifica-se não apenas para que possamos compreender determinados aspectos que nos são desconhecidos, mas, principalmente, para que possamos fundamentar a prática do psicanalista hospitalar, haja visto o quanto esta encontra-se dissociada da teoria. Como afirma Alberti (2000, p. 39): o trabalho do pesquisador só passa a ser reconhecido como um trabalho consistente a partir do momento em que ele fundamenta aquilo o que faz.
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Endereço para correspondência
Miriam Tachibana
R. Ruberlei Boaretto da Silva, 185. Cidade Universitária. Campinas SP - CEP: 13083-705
Telefones: (19) 32895366 / (19) 97424033
E-mail: mirita@uol.com.br / mimi_tachibana@hotmail.com
1 Miriam Tachibana Doutoranda pelo curso de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica de Campinas - Brasil
2 Claudia Aparecida Marchetti Duarte Psicóloga Hospitalar do Centro de Atenção Interdisciplinar à Saúde da Mulher (CAISM) da Universidade Estadual de Campinas - Brasil
3 Laíse Potério Santos Psicóloga Hospitalar do Centro de Atenção Interdisciplinar à Saúde da Mulher (CAISM) da Universidade Estadual de Campinas - Brasil
4 Marina Herdeiro Lopes Aprimoranda do curso de Psicologia Clínica na Saúde Reprodutiva da Mulher do Centro de Atenção Interdisciplinar à Saúde da Mulher (CAISM) da Universidade Estadual de Campinas - Brasil
5 É importante destacar que a paciente assinou o termo livre e esclarecido, autorizando a sua participação no estudo, tal como prevê a Resolução 196/96 sobre pesquisa envolvendo seres humanos.