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Psicologia Hospitalar

versão On-line ISSN 2175-3547

Psicol. hosp. (São Paulo) v.4 n.2 São Paulo ago. 2006

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Vivências paternas em UTI neonatal

 

Paternal experiences in a neonatal intensive core unit

 

 

Sibelle Maria Martins de Barros; Paulo Rogério Meira Menandro; Zeidi Araujo Trindade

Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal do Espírito Santo - Brasil

 

 


RESUMO

Considerando-se a escassez de estudos sobre o papel do pai em situações do âmbito da saúde, investigou-se a experiência paterna durante o período de internação de recém-nascido prematuro na Unidade de Terapia Intensiva Neonatal (UTIN), entrevistando-se 5 pais com filhos internados em UTIN de hospital público. Os relatos foram submetidos a análise de conteúdo. Ficaram evidentes manifestações de interesse e envolvimento dos pais em relação à situação de seus recém-nascidos. Ter o filho internado em UTIN pela primeira vez traz sofrimento para os pais que buscam se adaptar à nova situação, reorganizando ativamente suas atividades cotidianas. Os dados indicaram ser necessário considerar transformações nos papéis parentais, admitindo a eqüidade de gênero nos setores de saúde reprodutiva e neonatologia/pediatria. Estudos adicionais sobre o pai em tal contexto e em contextos similares poderão respaldar novas práticas, acrescentando inovações à tradição de enfatizar apenas relações mães-bebês, atribuindo cuidados e responsabilidades exclusivamente às mães.

Palavras-chave: Paternidade, UTI Neonatal, Recém-nascido prematuro.


ABSTRACT

Considering few studies on the role of the father in healthcare situations, the paternal experience during the period of treatment of a premature, newborn child in a Neonatal Intensive Care Unit (NICU) was investigated. Five fathers with children undergoing treatment in a NICU of a public hospital were interviewed. The reports were submitted to content analysis. Manifestation of interest and paternal involvement in relation to the situation of their newborn infants were evident. Having the child treated in a NICU for the first time brings suffering for the fathers who are trying to adapt to the new situation, actively reorganizing their daily activities. The data indicated the need to consider transformations in the parental roles, admitting the gender equity in reproductive health and neonatology/pediatrics. Additional studies of fathers in such a contexts might reinforce new practices and bring innovations to the tradition of emphasizing only mother-baby relationships and of attributing care and responsibility exclusively to mothers.

Keywords: Paternity, Neonatal UCI, Premature newborn infant.


 

 

INTRODUÇÃO

A profusão de novos e variados arranjos familiares e conjugais não alterou de forma notável o fato de que gerar filhos ainda parece ser indispensável para muitos casais. A maternidade e a paternidade ainda continuam sendo desejadas, inclusive para as famílias pobres que, como sublinha Sarti (1996), não dissociam o ter filhos do casamento, já que filhos concretizam e dão sentido à união.

As transformações na esfera privada que refletiram interesses políticos e econômicos foram delineando os papéis de homem e de mulher, de marido e esposa, de pai e mãe, circunscrevendo a mulher ao espaço privado e o homem ao espaço público. Embora hoje exista maior reconhecimento dos processos psicossociais envolvidos na construção e transformação dos papéis parentais, os resquícios do determinismo biológico ainda estão presentes no pensamento social orientando as práticas em relação à maternidade e à paternidade. À mulher cabe cuidar do filho, pois se acredita que, por gerá-lo, possui com ele ligação mais estreita. Ao homem, geralmente, cabe a manutenção de condições favoráveis à díade mãe-filho, principalmente no que se refere às condições financeiras.

Com interesse de saber qual a importância da paternidade para homens que procuravam tratamento para a esterilidade, Costa (2002) verificou que a paternidade era considerada fundamental para os homens casados, pois comprovava sua masculinidade. Contudo, para os pais entrevistados, a paternidade não se resumia à capacidade de gerar filhos, mas também à capacidade de sustentá-los e educá-los, sendo indispensável engajamento em trabalho remunerado, responsabilidade masculina e referência fundamental no exercício da paternidade. Com base em suas pesquisas, essa autora constatou que a paternidade era concebida como desejo que vem de acordo com o tempo, um projeto futuro, diferentemente da maternidade, que para as mulheres parece um “plano desde sempre elaborado no passado feminino” (p.344), ou seja, um plano construído desde a infância.

Em pesquisa realizada com homens-pais usuários de uma unidade básica de saúde em Florianópolis (SC), Resende e Alonso (1995) constataram que, de um modo geral, os pais demonstraram interesse e prazer no cuidado com seus bebês. Por outro lado, também foi observado que as mulheres, assim como os profissionais de saúde, muitas vezes não compreendem e nem estimulam os cuidados paternos, sendo o pai, muitas vezes afastado do processo de cuidar da criança.

Algumas mães parecem não saber lidar com o novo pai que surge, um pai afetuoso e preocupado, que cada vez mais tem demonstrado suas emoções. Em estudo que tinha como objetivo principal identificar os elementos das representações de maternidade e paternidade entre mães com filhos internados em uma UTIN de um hospital público de Vitória – ES (Barros, Trindade, Menandro e Bonomo, 2002), observou-se que a maioria das mães assumia quase total responsabilidade pelo filho, sobrecarregando-se principalmente no período de internação. Corroborando os dados de Resende e Alonso (1995), constatou-se que algumas delas optavam por deixar os pais afastados da UTIN e dos cuidados com os filhos, ainda que estes se mostrassem interessados em uma ligação mais próxima com o bebê. Paradoxalmente, elas se queixavam da ausência do pai e da pouca preocupação dele em relação ao filho.

A partir de entrevistas com homens-pais que perderam seus filhos antes do nascimento (Samuelssom, Radestad e Segesten, 2001), foi constatado o sofrimento paterno traduzido pelo sentimento de vazio, de profunda dor e paralisação, diante da notícia da morte do filho. Esses pais apontaram a necessidade de maior suporte profissional dirigido a eles no intuito de fazê-los compreender melhor o que estava acontecendo, para então poderem apoiar suas companheiras. Em alguns momentos, como discute Druon (1999) o pai é encarregado de dar a má notícia para a mãe. Parece haver a crença de que pai é sinônimo de força, de distanciamento afetivo, ou no mínimo, de ligação afetiva com o filho menos intensa que a da mãe. Contudo, pautar-se por tais crenças significa desconsiderar os sentimentos paternos e reforçar os modelos de cuidados atuais, geralmente direcionados apenas à mãe.

O nascimento de uma criança prematura de alto-risco

Glat e Duque (2003) assinalam que ter um filho com alguma necessidade especial exige maior cuidado e uma reestruturação da organização familiar, no sentido de maior compartilhamento de responsabilidades. Quando os pais convivem juntos, a participação do pai nesse processo é de extrema importância para o enfrentamento da situação. Ter um filho prematuro com alto risco de vida (às vezes apresentando alguma má-formação congênita) é experiência dolorosa e estressante para os homens-pais, embora o foco mais freqüente em diversos estudos (tal como arrolados em Alfaya e Shermann, 2001) envolva sentimentos da mãe, como culpa, tristeza e percepção de inferioridade.

Klaus, Kennel e Klaus (2000), fazem comentários interessantes, embora a maioria de seus estudos tenha o viés tradicional de responsabilização da mãe pelos cuidados e pela saúde do bebê. Para esses autores, é fato comum mães terem dificuldades para serem calorosas com seus bebês prematuros, pois precisam de um tempo para se adaptar àquele novo bebê; para compreender o diagnóstico e para se acostumar ao ritmo de uma Unidade de Terapia Intensiva Neonatal. Embora tais sentimentos e necessidade de adaptação possam estar presentes nas mães, não é razoável ignorar a possibilidade de o pai vivenciar um processo semelhante. Devido à escassez de estudos sobre o pai neste contexto, faltam informações sobre a sua experiência de ter um filho prematuro. Embora várias pesquisas tenham sido realizadas sobre a criança deficiente ou debilitada e sua família (Pereira e Martins, 1998; Telford e Sawrey, 1988; Amaral e Magna, 1999, Pelchat, Ricard, Bouchard, Perreault e Saucier, 1999), pouco se sabe sobre a família do recém-nascido prematuro, principalmente sobre o pai.

Nos estudos sobre hospitalização infantil também pouco se tem falado do pai, tanto no que concerne à sua importância, quanto a respeito de suas vivências pessoais. Geralmente, encontramos pesquisas de que levam em consideração os pais (mães e pais), mas dificilmente o pai é o centro do estudo.

Outro ponto que merece reflexão é o da qualidade do atendimento ao pai nos setores de saúde, seja no período pré-natal ou no pós-natal. Estudos revelam a inexistência de atendimentos que permitam aos pais maior interação, de forma a poderem acompanhar os procedimentos médicos ao lado de sua parceira. Nos setores de saúde reprodutiva e na clínica pediátrica, mesmo considerando as precárias condições físicas do nosso sistema de saúde, em geral as mães ainda têm privilégio. Como discutem Siqueira, Mendes, Finkler, Guedes e Gonçalves (2002) com base em pesquisa realizada em quatro programas públicos de atendimento pré-natal em Florianópolis (SC) os pais “não são convidados pelos programas, não fazem parte da rotina de suas atividades e, aqueles poucos que aguardavam na sala de espera, não foram convidados sequer para adentrarem a sala de consulta” (p.71).

Diante dessa problemática em torno da figura paterna, a presente pesquisa teve como proposta investigar aspectos da experiência paterna no período de internação do recém-nascido na Unidade de Terapia Intensiva Neonatal de um hospital público de uma capital estadual, visando contribuir também para o preenchimento da lacuna existente sobre os estudos acerca da paternidade no contexto hospitalar. O projeto foi avaliado e aprovado por Comitê específico quanto a eventuais questões éticas implicadas.

 

ESTRATÉGIAS METODOLÓGICAS

• Sujeitos

Participaram da pesquisa cinco pais com filhos internados na UTIN de um hospital público em Vitória – ES. Vale esclarecer que três crianças se encontravam UTIN intensiva enquanto duas estavam internadas na UTIN semi-intensiva. Apenas um pai havia passado anteriormente pela experiência de ter um filho prematuro internado em UTIN, sendo ele o único que não comparecia ao hospital todos os dias.

As idades dos pais eram diversificadas: P1, 48; P2, 27; P3, 17; P4, 23; P5, 27.

Na época das entrevistas, todos trabalhavam, sendo que dois deles tinham seu próprio negócio. Todos também estavam casados, legalmente ou não.

A dificuldade de ampliar o número de participantes decorreu da pequena disponibilidade de participação dos pais, que permanecem pouco tempo no hospital em virtude de compromissos profissionais e das obrigações com o restante da família (o que também inviabiliza a realização das entrevistas em outros locais), e das próprias características do hospital que força visitas por períodos limitados, com o que, obviamente, o contato com a esposa e filho é privilegiado em detrimento de eventual concessão de entrevista.

• Instrumentos

Foram realizadas entrevistas individuais apoiadas em roteiro semi-estruturado. As entrevistas, todas realizadas no hospital, foram gravadas em áudio, com o consentimento dos participantes e em seguida foram integralmente transcritas, assegurando o anonimato do sujeito. O roteiro, inicialmente captava informações de natureza sócio-demográfica relativas ao entrevistado e em seguida explorava os temas que resultaram nas categorias temáticas adotadas na análise e especificadas adiante.

• Procedimentos

O contato foi feito diretamente com alguns pais ou por intermédio de algumas mães presentes no hospital. Uma vez concordando em participar, o pai foi solicitado a assinar um termo de consentimento livre e esclarecido que descrevia a proposta de pesquisa e os procedimentos a serem adotados.

• Análise dos dados

O material resultante das entrevistas foi examinado seguindo-se as etapas da análise de conteúdo clássica, privilegiando-se a análise temática (Minayo, 1996). As respostas fornecidas pelos pais, em associação com características do roteiro utilizado nas entrevistas, permitiram destacar algumas categorias temáticas que interessavam à investigação. São elas: planejamento da gravidez; impactos da notícia da internação; compreensão do diagnóstico do recém-nascido; futuro do filho; dificuldades vividas pela mãe e pelo pai, visitas ao hospital e avaliação do atendimento na UTIN.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Apenas dois entre os cinco pais entrevistados afirmaram que a gravidez tinha sido planejada, tendo a decisão pela gravidez sido tomada pelo casal em um caso e pelo pai no outro (portanto, em ambos os casos houve participação do pai na decisão pela gravidez). Entre os demais três pais, dois receberam com alegria a notícia da gravidez, enquanto para um desses pais (P3, 17 anos) a notícia foi chocante.

A notícia da internação e o primeiro contato com o filho e com a UTIN causavam choque, susto e medo para a maioria dos pais. Apenas um pai que já havia passado pela experiência de ter filho prematuro mostrou-se mais tranqüilo em relação à internação.

“Então eu já vim pra cá sabendo que ia ter que ficar na incubadeira. Só que eu não sabia o que era incubadeira. Aí depois eu fui lá ver ele. Foi quando eu vi ele na incubadeira. Fiquei muito assustado na primeira vez. Muito pequenininho....Fiquei com medo dele não agüentar” (P.3).
“Você toma um choque, mas é muito bom. O que choca mais? De ver o neném na incubadora. Mas hoje em dia já me acostumei. No começo era terrível” (P.2).
“Aí eu não agüentei, fiquei nervoso. Eu disse: ‘perdi meu filho” (P.5)
.

As dúvidas dos pais em relação à sobrevivência da criança e à sua normalidade, associadas ao desconhecimento do funcionamento da UTIN e à representação imaginada deste ambiente, resultam em sofrimento, principalmente nos primeiros dias de internação. Segundo Druon (1999, p.37), “quando se trata de um nascimento prematuro, é uma ‘tempestade psíquica’ que se abate sobre o casal, onde a realidade se junta à fantasia, na qual o bebê idealizado da gravidez não corresponde em nada ao bebê da incubadora”. A autora sugere intervenção apoio e suporte aos pais para que possam exercer seus papéis e enfrentar da melhor maneira possível a situação.

Por outro lado, evidenciando a variabilidade das estratégias de enfretamento e dos sentimentos parentais, um pai comenta sobre o alívio do primeiro contato, já que se podia constatar que mesmo sendo prematuro, o recém-nascido estava bem.

“Eu larguei aquele momento ruim que eu estava umas 4 horas antes, aí eu senti alegria de ver minha filha ali viva. Teve um momento que eu pensei assim, sei lá... olhar pra ela. Eu pensei em tocar ela para ver se ela estava bem” (P.5).

Quatro dos recém-nascidos não apresentavam mal-formações ou complicações fora do quadro clínico da prematuridade. Apenas um bebê nasceu com sopro no coração, tendo sido submetido à cirurgia. O pai dessa criança relatou ter se assustado no primeiro contato com seu filho, principalmente pelo seu tamanho, já que nascera com vinte e três semanas de gestação. Assim, constatou-se que as reações dos pais variavam de acordo com a história clínica do recém-nascido. Estudando três grupos de pais de crianças com seis meses de idade apresentando debilidades como: síndrome de Down; doença coronária congênita e lábio e/ou palato leporino, Pelchat, Ricard, Bouchard, Perreault e Saucier (1999) constataram algumas diferenças em relação à adaptação destes pais. Pais de crianças com síndrome de Down e de crianças com doença coronária congênita mostraram-se mais temerosos com a situação de seus filhos, sentindo a situação incontrolável e apresentaram maior sofrimento psicológico do que os pais de crianças com lábio e/ou palato leporino. Talvez porque estas últimas crianças não apresentassem risco de vida nem gerassem preocupações incontornáveis quanto ao seu desenvolvimento. Voltando ao presente estudo, destaca-se o caso do jovem pai do bebê com cardiopatia, que nunca havia passado por experiência similar e que, como forma de enfrentar a situação da patologia cardíaca de seu filho, buscava suporte na equipe médica e na religião:

“Depois do sopro, da cirurgia, nós fomos falar com o doutor, marcamos uma consulta com o doutor onde ele tem consultório, ele explicou a gente. Do jeito que ele fez nenhum nenê morreu. Deus não vai deixar este morrer” (P.3)

Apesar de terem buscado informações sobre o quadro clínico do recém-nascido, as explicações de alguns pais não eram claras ou expressavam incerteza quanto ao que relatavam, denunciando falta de compreensão global dos diagnósticos dos filhos.

Ao falarem sobre suas atividades durante as visitas, os pais citaram conversas com os filhos, garantindo que eles correspondiam aos estímulos paternos.

“Converso com ele e ele responde, igual a uma criança normal ele responde” (P.3).
“Ele entende porque, por exemplo, ele tá dormindo, aí eu chego lá, começo a brincar com ele. Daí a pouco ele olha pra mim como tá entendendo alguma coisa. Acho que está entendendo, é claro” (P.4).

Alguns estudos (Ferreira, 2001; Cavalcante, 2001) enfatizam a atividade dialógica na relação mãe-bebê sublinhando sua necessidade para o desenvolvimento emocional da criança. Durante tal diálogo muitas vezes a mãe se coloca no lugar da criança e fala por ela através do “manhês” – forma de falar caracterizada, sobretudo, por um tom infantilizado. É imprescindível nesta interação a interpretação materna em relação ao comportamento corporal e vocal do bebê (Cavalcante, 2001). Considerando as contribuições reconhecidas nos estudos que enfatizam a linguagem na interação mãe-bebê, as práticas paternas equivalentes mereceriam maior atenção, uma vez que os pais também exercitam o “manhês” (“paiês”?). Estudos acerca das práticas parentais e desenvolvimento infantil ainda têm enfatizado a figura materna, negligenciando o pai ou considerando-o um coadjuvante. Observar as práticas paternas durante o período de internação de recém-nascido e escutar o que os pais têm a dizer poderia levar à adoção de uma nova postura de pesquisa e compreensão do universo parental.

Observou-se que com a internação dos filhos, a rotina dos pais foi modificada em graus diferentes. Todos os pais tiveram que se adaptar à chegada dos filhos, assumindo tarefas “próprias” da esposa como cuidar dos outros filhos. Geralmente tentavam conciliar o trabalho com as visitas à UTIN, o que de certa forma, tornava o período mais penoso para eles. Apenas dois pais deixaram seus trabalhos ficando à disposição da esposa e do filho, exatamente aqueles cujos negócios permitiam se ausentarem temporariamente.

O trabalho significava para os pais um dever que visava o bem-estar e o futuro do filho, pois se sentiam os principais responsáveis pela manutenção financeira do lar, em acordo com o modelo tradicional de paternidade. “Mas o pai tem aquele problema que tem que trabalhar, pra manter as coisas. É muito gasto que tem, é muito gasto” (P.4).

Em relação ao futuro do filho, os pais mostraram preocupação com as condições financeiras para dar o melhor possível para suas crianças, como estudo e atendimento médico. Também houve referência ao caráter moral e pessoal do filho ao citarem elementos como boa idoneidade, bondade, felicidade. O pai cujo filho era o prematuro com cardiopatia mencionou que seu filho seria inteligente uma vez que, para ele, a inteligência está associada com a internação na incubadora: “Eu espero com certeza, se Deus quiser, ele vai ser uma pessoa inteligente, que a maioria dessas crianças que fica na incubadeira são muito inteligente, muito esperta, e que ele estude e o futuro dele seja bem” (P.3).

A partir da fala deste pai percebe-se a necessidade de se considerar os saberes do senso comum para compreender experiências e práticas adotadas pelos sujeitos no campo da saúde, como, por exemplo, as estratégias de enfrentamento que são utilizadas por eles.

Questionados sobre a eqüidade no atendimento a eles e às suas companheiras, os pais afirmavam que o atendimento era igual para ambos. Constata-se que alguns, embora percebam que a atenção é mais direcionada para a mãe, encaram tal fato com naturalidade, pois se pautam nos modelos tradicionais de maternidade e paternidade, assim como também o fazem vários profissionais de saúde. Isso não pode ser confundido com desinteresse, devendo mesmo ser registrado que alguns ressaltam seu envolvimento mais direto nos cuidados com os filhos.

“Eles são mais atenciosos com a mãe. Até eu acho natural porque eu acho 99% da equipe são mulheres” (P.1).
“Eles tentam por a mãe sabendo o que está acontecendo, explica mais a ela porque a gente fica muito pouco aqui dentro, tem que trabalhar porque alguém tem que segurar a barra em casa. Elas estão aqui, passa mais a experiência deles para ela e vai tranqüilo. Ela está tranqüila demais pro meu gosto” (P.5).
“Eu sou aquele famoso pai coruja. Eu quero saber tudo direitinho para ter uma base porque se eles fazem o balanço aqui eu faço o balanço fora também. É tanto que até o peso dele eu acompanho. Mesmo tando no meu serviço, ele tá com tantos quilos assim” (P.4).

Assim, como discute Siqueira (1990), percebemos que os modelos tradicionais de maternidade e paternidade permanecem no pensamento social e coexistem com outros repertórios forjados mais recentemente, engendrando novos modelos e valores que interagem com os modelos arcaicos já consolidados, gerando hábitos e costumes contraditórios, mas também construindo novas formas de ser.

A avaliação de três pais sobre o atendimento oferecido pela UTIN foi positiva, apesar de um dos pais salientar que nem sempre a equipe pode dar conta rapidamente de todas as necessidades das crianças, embora tente.

“Mas, às vezes, eu vejo algumas situações ali que a gente não pode se envolver. São filhos de outras pessoas, mas a criança sei lá, isso eu falo dentro de uma, sendo leigo no assunto, não que acho que as pessoas sejam frias em relação ao atendimento de A, B ou C, eu acho que eles são todos anjinhos ali dentro, mas, sei lá, parece que, às vezes, o neném está incomodado e gente se sente incomodado. Dá vontade de ir lá pegar. Alguns parece que o pai e a mãe, parece que ta meio abandonadinho. É lógico que as enfermeiras dentro do possível delas, a equipe toda, mas tem várias crianças para olhar” (P.1).

O atendimento não realizado prontamente também foi comentado por um pai que avaliou como “mais ou menos” o atendimento da UTIN:

“Eu vou ser sincero. Mais ou menos, porque ficam umas enfermeiras dispostas, querem dar de si. Mas tem umas que sei lá, inclusive tava a neném, tinha uns dois nenéns com aquela venda nos olhos. Aquela venda sai e aquela luz tá refletindo ali e elas passam perto e não observam aquilo. Aí eu acho que me incomoda. Eu tive que lavar a mão, abrir lá para poder acertar a venda, tanto da minha filha como do neném que estava do lado. Mas tem umas que dá atenção, fica ali direto” (P.5).

Pode ser que as inquietações destes pais vinculem-se à condição dos serviços públicos de saúde, nos quais muitas vezes faltam profissionais suficientes, com boas condições de trabalho. De qualquer forma a percepção da qualidade dos cuidados ao recém-nascido indica a participação dos pais no processo de internação dos seus filhos. Um deles, por exemplo, comenta as diferentes posições dos profissionais da UTIN em relação ao comportamento dos pais frente ao bebê. Alguns incentivam a participação dos mesmos nas atividades diárias do bebê, embora outros prefiram manter os pais distantes. Tais incongruências dificultam a adaptação dos pais ao ambiente da UTIN.

“Teve alguns profissionais que não quis deixar a gente chegar perto. Por exemplo, na hora de dar de mamar mesmo, eles vinham com a seringa do leite e a gente segurava. Já tem uns que não “não pode segurar”, sei lá o que é. Eu acho errado. São coisas assim que a gente não discute porque fica chato. Então a gente fica um pouco meio inibido. Se a psicóloga passa uma coisa e a outra passa outra, fica difícil” (P.4).

Em outro tópico explorado na entrevista solicitava-se que os pais falassem sobre suas percepções em relação ao enfrentamento da situação por parte de suas companheiras. A maioria dos pais concordou que o período de internação era um período difícil para suas companheiras por várias razões: a situação do recém-nascido; as cirurgias às quais foram submetidas; os outros filhos que também precisavam de cuidados. Apenas o pai de dezessete anos avaliou a experiência como positiva para a esposa, já que oferecia oportunidade para o amadurecimento, considerando que ela tinha dezesseis anos.

“Pra ela ta sendo bem também porque eu acho assim que muitas vezes, eu penso que Deus aconteceu isso pra gente ter amadurecido mais, eu sou novo e ela também, tem 16 anos. Se ele tivesse nascido com nove meses certos, nós não teríamos essa experiência que nós estamos tendo, não íamos saber cuidar dele direito. Aí não. Não estamos aprendendo, vendo como é as enfermeiras trocando as fraldas, o cuidado que tem que ter com ele, quando ele sair daqui o cuidado que ele tem, se for dar leite pra ele não deixar de barriga pra baixo, esses cuidados todinho” (P.3).

Tal fala expressa o uso de estratégia de enfrentamento denominada reestruturação cognitiva que se caracteriza por tentar ver a situação estressante de maneira mais positiva, focalizando aspectos positivos da situação, otimismo, pensamento positivo, minimização da tensão ou de conseqüências negativas (Altman, Edge, Hayley e Skinner, 2003) Vale ressaltar a reação bem distinta de outro pai que, em certa medida, culpava a companheira pelo nascimento prematuro de seu filho.

“Eu pensei que nascer uma criança assim, sabe? Nove meses, normal, sem problemas. E às vezes eu ia colocar até culpa na X, sei lá. Você acha que ela tem alguma culpa? Acho. Eu acho que ela deveria ter se cuidado primeiro. Fazer algum tratamento, saber se tinha problema de pressão alta. Ela estava fazendo acompanhamento pré-natal? Pré-natal ela tava, mas antes de engravidar ela deveria ter procurado se ela tinha algum problema de pressão, sei lá, se ela tinha alguma coisa. Mas ela sabia? Que tinha problemas de pressão? Hum, acho que nem a mãe dela sabia, nem passava pela cabeça dela” (P.5).

Durante a entrevista ele fez questão de salientar o quanto estava sendo doloroso para ele e ao perguntarmos sobre esta experiência para a esposa, primeiramente ele respondeu em relação a ele, e posteriormente, afirmou que para ela também estava sendo difícil, apesar de assinalar que “ela está tranqüila demais pro meu gosto” (P.5).

Esse pai é um alerta para a atenção que também deve ser dirigida à qualidade da relação conjugal para casais nesta situação específica. Não podemos ignorar que o nascimento de uma criança, principalmente uma criança que necessita de cuidados especiais, exige um processo de adaptação tanto para a mulher, quanto para o homem, e que, se ignorado pode afetar a qualidade da relação conjugal e da relação entre pais e filhos (McVeigh e Baafi, 2002).

Em relação aos pais entrevistados, considerando as variáveis “escolaridade”, “idade”, e “história clínica do recém-nascido”, vale registrar algumas impressões. Houve maior fluência na entrevista do pai com maior poder aquisitivo, que respondia com facilidade e clareza as perguntas. Outra entrevista a ser destacada é a do pai adolescente, pela dificuldade que relatou em relação à adaptação no período inicial de internação do filho, talvez até pela gravidade dos problemas clínicos do recém-nascido. Assim, a forma encontrada para lidar com a situação foi tentar resgatar sempre algo de positivo daquela experiência. Nesse caso, a história clínica do recém-nascido e/ou outros fatores parecem se sobressair à variável idade paterna, no sentido de determinar a qualidade da relação pai-bebê e estratégias de enfrentamento da situação, confirmando a afirmação de Levandowski e Piccinini (2002):

“a variação na idade parental é um determinante muito menos importante na qualidade do comportamento parental do que uma variedade de fatores sócio-ecológicos e de personalidade que estão freqüentemente correlacionadas com a idade parental, obscurecendo assim as relações envolvidas” (p.5).

 

CONCLUSÃO

Constatou-se que os pais demonstravam carinho e envolvimento com seus filhos, mesmo diante do filho “não esperado”. Diante da situação de internação de seus recém-nascidos, também mostraram sentimentos como tristeza, medo, susto, indicando que passam por processos de adaptação e enfrentamento semelhantes aos de suas companheiras. Já ter passado pela mesma experiência antes amenizou o sofrimento paterno, como evidenciou um pai em seu relato.

Dizer que o pai é mais distante de seu filho, ou que não se preocupa com ele tanto quanto a mãe, não corresponde à realidade. Tal suposição precisa ser reformulada pelas equipes profissionais, e pelos próprios pais (mãe e pai), que ainda consideram natural algumas práticas parentais serem direcionadas principalmente às mães. Relacionada a esse ponto está a importância que atribuem ao trabalho, visto como responsabilidade masculina indispensável e referência fundamental no exercício da paternidade (Costa, 2002).

A valorização do profissional médico, percebido como detentor do poder de mudar a situação, beneficia o processo de adaptação dos pais. Contudo, tal status atribuído ao médico pode trazer intranqüilidade, pois nem sempre é suficientemente esclarecedora a comunicação com a família que busca compreender melhor o diagnóstico e os procedimentos médicos. Não é incomum a comunicação ocorrer em linguagem pouco acessível, não resultando em compreensão insatisfatória, dúvidas e inquietações. O envolvimento de todos os profissionais da equipe em relação ao tema da clareza das informações pode ser procedimento eficiente para desfazer ambigüidades.

Os dados também sugerem a necessidade de atendimento eqüitativo dirigido à díade mãe-pai e de reflexão sobre a exclusão do pai na arena de saúde reprodutiva (Siqueira et al, 2002), que se estende à área pediátrica, na qual também é enfatizada a figura materna.

Não obstante os pais ainda não perceberem que também são merecedores de atenção, como suas companheiras, é imprescindível propor novos modelos de atendimento respaldados por constante reflexão crítica dos profissionais sobre suas próprias representações e práticas no cenário da saúde, evitando direcionar os cuidados e responsabilidades apenas para as mães.

Também se fazem necessários estudos adicionais sobre os pais em tal contexto para respaldar as novas práticas, acrescentando, onde couber, inovações à tradição acadêmica de enfatizar apenas as relações mães-bebês.

 

REFERÊNCIAS

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