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Psicologia Hospitalar
versión On-line ISSN 2175-3547
Psicol. hosp. (São Paulo) v.6 n.1 São Paulo 2008
ARTIGOS ORIGINAIS
Relação entre depressão e disfunção cognitiva em pacientes após acidente vascular cerebral: um estudo teórico
Relationship between depression and cognitive dysfunction in patients after stroke: a theoretical study
Margareth Pereira de PaulaI,1; Kátia Osternack Pinto2; Mara Cristina Souza de LúciaI,II,3
IDivisão de Psicologia do Instituto Central do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
IICentro de Estudos em Psicologia da Saúde
RESUMO
Este artigo objetivou, através de algumas incursões teóricas, mostrar a importante contribuição da neuropsicologia no curso das desordens cerebrais, especificamente alterações cognitivas associadas ao Acidente Vascular Cerebral (AVC) e a relação existente entre os achados neuropsicológicos e a presença de depressão destes pacientes, permitindo análise mais ampla da necessidade de estudos que levem em conta as relações entre humor e o funcionamento cognitivo.
Palavras-chave: Neuropsicologia; Acidente vascular cerebral (AVC); Cognição; Depressão.
ABSTRACT
This article has the intention of showing, through theoretical incursions, the important contribution of neuropsychology in the course of the cerebral disorders. Specifically, in cognitive alterations associated with cerebral stroke and the existent relationship between neuropsychological discoveries and the presence of depression in these patients; thus allowing wider analysis of the need for studies that take into consideration the relationship between the humor and cognitive functioning.
Keywords: Neuropsychology; Stroke; Cognition; Depression.
Cada vez mais os estudos científicos desenvolvidos para investigação do Sistema Nervoso Central (SNC) vêm considerando, além dos seus substratos neuroanatômicos, os aspectos cognitivos e comportamentais dos quais trata a neuropsicologia.
No caso específico do acidente vascular cerebral (AVC) as alterações cognitivas e afetivas são freqüentes, tanto na fase aguda quanto no período de reabilitação, tornando fundamental sua investigação.
Na prática clínica, as técnicas neuropsicológicas têm contribuído de forma relevante para o tratamento da doença. Realiza análise comparativa e qualitativa dos resultados obtidos, permitindo uma relação entre disfunção neurológica, história e comportamento do paciente. Permite ainda a correlação com as informações advindas de outros exames e o quadro clínico do paciente.
No entanto, sob o ponto de vista científico, ainda não se sabe com clareza quais as funções cognitivas envolvidas, quais os instrumentos neuropsicológicos mais indicados, quais as relações entre cognição e depressão ou mesmo entre cognição e a lesão decorrente do AVC.
O presente estudo objetivou mostrar a relação entre depressão e disfunção cognitiva em pacientes vítimas de AVC através de um estudo teórico.
Os artigos consultados para este estudo foram extraídos do banco de dados MEDLINE (Pub-Med), utilizando as palavras-chave stroke and executive (293 artigos, com 23 analisados na íntegra), depression AND stroke OR “cerebrovascular accident” (286). Destes, foram selecionados 20 artigos dos quais trata o presente estudo. Além disso, foram incluídas nove obras de referência para apresentar dados já estabelecidos sobre o tema, como caracterização do AVC, da depressão e outros.
Funções Cognitivas
Segundo Kandel, Schwartz e Jessell (2000), a localização das funções cognitivas e a integração das informações somáticas com outras modalidades sensoriais e com o planejamento dos movimentos estão relacionadas às áreas de associação do córtex cerebral (pré-frontal parietal-temporal-occipital e áreas de associação límbicas). Porém tais áreas não são as únicas responsáveis pelas funções cognitivas, uma vez que estas últimas envolvem em diversas redes corticais. Ou seja, certas áreas do cérebro estão envolvidas mais diretamente com as funções cognitivas e outras participam menos diretamente.
Collette et al. (2005) referem que as áreas de projeção e de associação formam as áreas funcionais do cérebro, onde as primeiras recebem ou dão origem a fibras relacionadas com a sensibilidade e motricidade e, se lesionadas, podem causar alterações sensitivas ou motoras. Já as áreas de associação são relacionadas às funções cognitivas complexas, inclusive do comportamento emocional, movimento voluntário, linguagem e percepção sensorial.
O córtex pré-frontal se comunica com todo o encéfalo, pois recebe aferências diretas e indiretas de áreas corticais ipsilaterais e contralaterais por meio do corpo caloso e têm como aferências subcorticais o sistema límbico, sistema reticular, hipotálamo e sistemas neurotransmissores (Kemmotsu, Villalobos, Gaffrey, Courchesne & Müller, 2005). Estas vias integram propriedades entre os meios interno e externo, áreas sensoriais posteriores e síntese entre as dimensões sentimento e razão na produção do comportamento (Mesulan, 2000).
A área pré-frontal compreende a parte anterior e não motora do lobo frontal. Através dos fascículos de associação do córtex, recebe fibras de todas as demais áreas de associação corticais e límbicas. As conexões entre o córtex pré-frontal e o sistema límbico poderiam ser consideradas responsáveis pela interface entre cognição e emoção, envolvida nas funções chamadas de executivas (Naghavi & Nyberg, 2005). Esta é uma terminologia empregada para delimitar um conjunto de funções complexas que envolvem iniciação, planejamento, levantamento de hipóteses, flexibilidade mental, tomada de decisão, auto-regulação, julgamento, utilização de feedback e auto-percepção. Contribui, assim, para um desempenho efetivo e contextualmente adequado juntamente com a capacidade de alternância entre tarefas (shifting) e a memória operacional (Collette et al, 2005 & Lesak, 1995).
Todo problema necessita de investimento e focalização atencional; análise dos dados do problema, estratégia, ação e avaliação do resultado (Brass, Derffuss, Forstmann e Cramon, 2005). Taylor e Saint-Cyr (1995 citado por Pinto, 2005), afirma que o controle da atividade atencional obedece a dois componentes: um processo automático que controla as ações de rotina e o SAS (Sistema Atencional Supervisor), modelo atencional de Norman e Shallice (1986) que intervém na programação da ação e na tomada de decisão para novas tarefas.
A incapacidade do sujeito lesionado de fazer aprendizagem associativa está correlacionada ao déficit temporal de memória. As lesões frontais perturbariam a memória prospectiva que permite ter acesso a informações ordenadas no tempo e espaço, a fim de acionar as estratégias necessárias à memorização seqüencial das ações e à resolução de problemas (Brass et al, 2005). O lobo frontal teria o papel fundamental neste processo, inibindo a atividade concorrente desnecessária e adaptando o comportamento de escolha às contingências (flexibilidade mental). De fato pacientes com lesão frontal apresentam tendência à imitação e à perseveração/persistência por falhas no controle inibitório, explicado pela incapacidade de modular o comportamento adequado às demandas da tarefa (Shiv, Loewenstein & Bechara, 2005).
As dificuldades de atenção dos sujeitos com lesão frontal podem ser mostradas pela distração e contaminação das tarefas por estímulos vindos do meio ambiente - efeito de “campo”. Assim, a atenção pressupõe orientação e concentração mental dirigidas para uma tarefa e inibição de atividades concorrentes (Naghavi & Nyberg, 2005).
Caracterização do Acidente Vascular Cerebral - AVC
O AVC pode ser definido como o início abrupto ou em forma de crise de sintomas neurológicos focais ou globais causados por isquemia ou hemorragia no cérebro ou à sua volta (Radanovic, 2005) e pode levar a distúrbios incapacitantes, como alterações do campo espacial e visual, fala, sensibilidade, marcha, dificuldades de execução das atividades de vida diária (AVD), alterações do humor entre outras.
O AVC constitui-se numa enfermidade de alta incidência, acompanhada de alta taxa de morbi-mortalidade, sendo a terceira principal causa de morte nos países industrializados (Gagliardi, Raffin & Cabette, 2001; Radanovic, 2005). É considerado causa primária de inabilidades após sua instalação, com prevalência de aproximadamente 900 em cada 100 mil pessoas no ocidente (Gagliardi et al., 2001). Segundo a OMS (Organização Mundial de Saúde), mais de cinco milhões de pessoas morrem todos os anos devido ao AVC, sendo o distúrbio neurológico mais comum em adultos (Radanovic, 2005).
Estudos epidemiológicos demonstram que a incidência do AVC é maior em indivíduos idosos, cuja taxa de sobrevivência declina de acordo com o avanço da idade: 67% dos 75 aos 84 anos e 79% acima dos 85 anos (Neves, Fontes, Fukujima, Matas & Prado, 2004). A partir de 1996 o AVC tem sido considerado uma das principais causas de internações, limitações funcionais e mortalidade, superando até mesmo as doenças cardíacas e o câncer (Bocchi & Angelo, 2005). Segundo os referidos autores, desde a década de 1940, o Brasil vem passando por um processo de inversão das curvas de mortalidade, na qual ocorre um aumento por doenças crônicas não transmissíveis, principalmente o AVC. Os autores referem ainda que, mesmo quando não são fatais, estas enfermidades levam, com freqüência, à dependência parcial ou total do indivíduo, com graves repercussões para ele, sua família e a sociedade.
Após o acidente vascular cerebral (AVC), várias são as queixas neurocognitivas. Tendo-se em conta suas diferentes características e manifestações, a investigação de áreas acometidas pelo AVC vem facilitando a comparação dos resultados dos diferentes estudos sobre os prejuízos cognitivos após o mesmo e ainda como fatores de risco para a depressão.
Os tipos de AVC são definidos de acordo com o aspecto patológico, ou seja, isquêmico ou hemorrágico (Evaristo, 2005). Dentre os prováveis mecanismos determinantes do acidente vascular cerebral isquêmico (AVCi) estão: a trombose de grandes e pequenas artérias e embolia de origem cardíaca. Segundo Yamamoto (2005), o acidente vascular hemorrágico (AVCh) possui múltiplos mecanismos como fator etiológico, sendo o principal a hipertensão arterial (HA).
Os AVCs ocorrem quando o suprimento sangüíneo a uma área do Sistema Nervoso Central (SNC) é interrompido, podendo ser devido a aterosclerose, hipertensão arterial, malformação de um vaso sangüíneo, doença cardíaca, entre outras. Seja qual for a causa, as conseqüências se instalam sempre com rapidez, provocando efeitos devastadores no tocante à capacidade física e ao estado emocional do paciente (Neves et al., 2004).
Alterações Cognitivas associadas ao AVC
Shiv et al, (2005) afirmam que as alterações sensoriais mais freqüentes e observáveis nos casos de lesão neurológicas do hemicorpo são os déficits sensoriais superficiais, proprioceptivos e visuais. A diminuição e/ou abolição da sensibilidade superficial (táctil, térmica e dolorosa) contribui para o aparecimento de disfunções perceptivas (alterações da imagem corporal, negligência unilateral) e para o risco de auto-mutilações. A diminuição da sensibilidade proprioceptiva (postural e vibratória) contribui para a perda da capacidade para executar movimentos eficientes e controlados, para a diminuição da sensação e noção de posição e de movimento, impedindo e diminuindo novas aprendizagens motoras no hemicorpo afetado.
Em seu estudo, Haan, Nys e Zandvoort (2006) ressaltam que distúrbios do campo visual são bastante comuns em indivíduos que sofrem um AVC. O distúrbio visual mais comum é a hemianopsia homônima (cegueira da metade nasal de um dos olhos e da metade temporal do outro olho), um déficit visual que contribui para a diminuição do nível de consciência e/ou diminuição da noção do hemicorpo afetado (anosognosia), muito freqüente em pacientes com AVC no hemisfério direito.
Após a ocorrência de AVC poderão estar presentes alguns déficits perceptivos. O seu tipo e extensão vão depender do local da lesão. As lesões do hemisfério não dominante produzem distúrbios da percepção. Os distúrbios podem ser ao nível da figura de fundo, posição no espaço, constância da forma, percepção da profundidade, relações espaciais e orientação topográfica (Desmond, 2004).
A apraxia e a agnosia são também distúrbios freqüentes em indivíduos que sofreram um AVC. A apraxia consiste na incapacidade para programar uma seqüência de movimentos, apesar das funções motora e sensorial estarem aparentemente conservadas. A agnosia consiste na incapacidade de reconhecer objetos familiares de uso pessoal, e de lhe dar função, ainda que os órgãos sensoriais não estejam lesados. Poderão igualmente surgir alterações da imagem e esquema corporais, onde se incluem as negligências unilaterais e falhas na discriminação esquerda-direita (Shiv et al., 2005).
Segundo Brass et al. (2005), os problemas da linguagem são freqüentes nos indivíduos que sofreram um AVC devido à obstrução da artéria cerebral média no hemisfério esquerdo. A afasia é uma perturbação que resulta de lesão cerebral localizada em estruturas que se supõe estarem envolvidas nos processos da linguagem. Pode incluir alteração da capacidade de expressão ou compreensão da fala e da escrita. O paciente pode também apresentar alterações da fala resultantes de comprometimento do aparelho fonador. As mais comuns são disartria (dificuldade para articular a palavra) e a disfonia (alteração ou enfraquecimento da voz) (Nys et al., 2005).
Segundo Terroni, Leite, Tinone e Junior (2003), tais limitações nem sempre se devem ao déficit neurológico em si. Complicações psiquiátricas têm sido indicadas como fatores determinantes da incapacidade do paciente após o AVC. Entre essas, a depressão é a mais prevalente e a que mais tem sido associada a um pior prognóstico.
Depressão
A depressão não é uma doença da atualidade. Andrew Solomon (2002), em seu livro “O Demônio do meio-dia - uma anatomia da depressão”, fala que há grande ligação entre a história do pensamento ocidental e a depressão. Estabelece uma divisão da depressão em períodos da história desde a antiguidade até a atualidade. Segundo o autor, durante muito tempo o entendimento dos processos depressivos era influenciado pelas crenças religiosas da Idade Média, não dando lugar aos conhecimentos adquiridos pela ciência moderna.
Carl Zimmer (2004) também apresenta um interessante percurso das relações entre cérebro e as emoções em seu livro “A fantástica História do Cérebro - O Funcionamento do Cérebro Humano”. Ressalta as idéias aristotélicas sobre as faculdades da alma racional coordenadas pelo cérebro e que supria o corpo de calor vital e apresenta as diferentes correntes científicas em seus conflitos com os dogmas da igreja.
Em oposição às idéias hipocráticas, a visão de Aristóteles sobre a depressão considerava que as pessoas de temperamento levemente melancólico eram comuns, mas quando este temperamento se manifestava em alto grau seriam indivíduos deprimidos.
Em sua forma clássica a manifestação da depressão depende sempre da maneira (quadro clínico, freqüência, intensidade) com a qual se manifesta o chamado Episódio Depressivo, ou, também, quando a depressão se manifesta sem a ocorrência de Episódio Depressivo (atípica). De acordo com o Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais - IV Edição Revisada (DSM-IV-TR, 2002), os transtornos depressivos se classificam em: Transtorno Depressivo Maior, Transtorno Distímico e Transtorno Depressivo Sem Outra Especificação. Resumidamente, são caracterizados por:
Transtorno Depressivo Maior: presença de um ou mais episódios depressivos maiores (humor deprimido e perda de interesse) por pelo menos duas semanas acompanhados, no mínimo, por quatro sintomas adicionais da depressão.
Transtorno Distímico: humor deprimido na maior parte do tempo por pelo menos dois anos, acompanhado por sintomas depressivos adicionais que não satisfazem os critérios para um episódio depressivo maior.
Transtorno Depressivo Sem Outra Especificação: transtornos com características depressivas que não satisfazem os critérios para Transtorno Depressivo Maior, Transtorno Distímico, Transtorno da Adaptação Com Humor Depressivo ou Transtorno da Adaptação Misto de Ansiedade e Depressão.
Algumas observações servem como auxiliares no diagnóstico diferencial:
O Episódio Depressivo Maior no Transtorno Depressivo Maior deve ser diferenciado de um Transtorno do Humor a uma Condição Médica Geral. Este diagnóstico só se faz verdadeiro se a perturbação do humor presumivelmente foi conseqüência fisiológica direta de uma condição médica geral específica como, por exemplo, acidente vascular cerebral.
O Transtorno Depressivo Maior pode ser precedido por um Transtorno Distímico. De acordo com amostras epidemiológicas e clínicas, indivíduos com Transtorno Distímico isolado terão um primeiro Episódio Depressivo Maior.
Saber se um estado depressivo típico está se apresentando de forma leve, moderada ou grave é apenas uma questão da intensidade com a qual se apresentam os episódios depressivos.
Saber se o estado depressivo é uma ocorrência única na vida da pessoa ou se é recidivante (repetitivo), dependerá da freqüência com que se apresentam esses episódios depressivos. Saber se o transtorno afetivo em pauta é simplesmente um quadro depressivo ou se é bipolar, dependerá do fato dos episódios depressivos serem a única ocorrência afetiva ou se coexistem com outros episódios de euforia (DSM-IV-TR, 2002).
Segundo (Joubert et al., 2006) a depressão deve ser acompanhada por sofrimento ou prejuízo clinicamente significativo no funcionamento social, profissional ou por outras áreas importantes da vida do indivíduo. Para algumas pessoas com depressão mais leve, o funcionamento pode parecer normal, mas exige um esforço acentuadamente aumentado. O estado depressivo freqüentemente é descrito pela pessoa com sentimentos de tristeza, desesperança, falta de coragem ou como estando “na fossa”.
Em alguns casos a tristeza pode ser negada de início mas, subseqüentemente, pode ser revelada. Outras pessoas, entretanto, podem se queixar de se sentirem indiferentes, apáticas ou ansiosas ou, ainda, podem referir queixas somáticas sem correspondência clínica mais que sentimentos de tristeza. Muitos referem ou demonstram irritabilidade aumentada, tendência para responder a eventos com ataques de ira ou culpando outros, ou um sentimento exagerado de frustração por questões menores.
O que encontramos mais freqüentemente nos distúrbios depressivos são sintomas associados predominantemente à afetividade normalmente sem grave prejuízo da crítica.
Depressão nos acidentes vasculares cerebrais
Em estudos brasileiros sua prevalência foi estimada entre 10 e 34% (Terroni et al, 2003). É uma experiência vivenciada de forma súbita por suas vítimas. Os prejuízos funcionais, a dor, o desconforto e os déficits cognitivos relacionados favorecem o seu surgimento, que tende a dificultar o processo de recuperação e reabilitação.
A depressão tem sido detectada em 20% a 50% dos pacientes que sofreram AVC, variando de acordo com o critério estabelecido, bem como com a população estudada (Terroni et al, 2003). Vários fatores indiciam que o AVC pode levar à ocorrência de depressão devido a alterações fisiopatológicas e não apenas psicológicas (Carota, Staub & Bogousslavsky, 2002).
Sintomas semelhantes aos encontrados nas depressões primárias foram descritos em pacientes com depressão pós-AVC: tristeza, ansiedade, tensão, perda de interesse, diminuição da concentração, alterações de sono, despertar precoce, perda de apetite e peso, bem como pensamentos de morte. A depressão pós-AVC tende a manifestar-se precocemente, mas em 30% dos pacientes ela pode ter início após a alta hospitalar. Seis meses após o AVC a depressão maior ou menor ainda pode estar presente em 86% dos pacientes.
Com um ano de evolução, a maioria dos pacientes com depressão maior apresenta remissão, enquanto pacientes com depressão menor tendem a apresentar pior prognóstico, com tendência para a cronicidade (Hackett & Anderson, 2005).
Os autores encontraram maior prevalência de depressão quando o AVC ocorria no lobo frontal esquerdo. Pacientes com AVC e depressão apresentaram hipometabolismo em regiões límbicas associadas à depressão (córtices frontal orbital, temporal anterior e do cíngulo), enquanto pacientes sem depressão apresentavam metabolismo normal nos córtices temporal e do cíngulo (Zandvoort, Kessels, Nys, Haan & Kappelle, 2004).
Esta ausência de associação entre depressão e o hemisfério afetado pelo AVC pode indicar que, independentemente do hemisfério em si, as regiões afetadas pelas suas conexões são determinantes na ocorrência de depressão.
Segundo alguns autores, a localização do AVC pode associar-se com maior ou menor prevalência de depressão dependendo do tempo de evolução. Esses achados permitem supor o envolvimento de mecanismos distintos na fisiopatologia da depressão pós-AVC, sugerindo visão mais abrangente para explicar a associação entre depressão e AVC (Aybek et al., 2005).
A perda de interesse ou do prazer está quase sempre presente em alguma intensidade na depressão pós-AVC. Segundo Haan et al. (2006), a apatia está presente em 26,5% dos pacientes com AVC, acompanhada de prejuízo na atenção e na fala. Os pacientes podem relatar menor interesse por passatempos, não se importam mais com coisas antes importantes, enfim, falta-lhes prazer para atividades anteriormente consideradas agradáveis, incluindo a atividade sexual (Lai, Sue-Min, Perera, Duncan, Bode, 2003). Na depressão também é muito freqüente certo prejuízo na capacidade de pensar, de se concentrar ou de tomar decisões.
A produtividade ocupacional costuma estar prejudicada, notadamente nas profissões intelectualmente exigentes. Os depressivos podem se queixar de enfraquecimento da memória ou mostrar-se facilmente distraídos. Alterações na memória são descritas na literatura. Esta estaria relacionada a uma desregulação do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal, ocasionando efeitos adversos de hormônios do estresse sobre o hipocampo (Haan et al., 2006). A maioria dos estudos não demonstra alteração da memória de curto prazo em deprimidos pós-AVC.
Há evidências de comprometimento da evocação e reconhecimento tanto de material verbal quanto não-verbal. O paciente deprimido apresenta o processamento cognitivo em dois tempos: um pré-atentivo, onde segue a captura atencional da informação e é refletido em testes de memória implícita, e outro elaborativo, que envolve a associação de informações-alvo como outras informações na memória, refletida em testes explícitos. Se a memória implícita não está comprometida, a memória congruente com o humor será expressa em testes de memória explícita (Nys et al., 2005). Pacientes com depressão pós AVC têm sido considerados com maior risco para demência vascular (Haan et al., 2006).
Os autores propõem que o termo demência vascular seja usado somente quando o declínio cognitivo for progressivo, como é observado, por exemplo, em pacientes com CADASIL (do inglês, cerebral autosomal dominant arteriopathy with subcortical infarcts and leukoencephalopathy) e diabetes mellitus.
O prejuízo da memória e outros sinais que poderiam confundir a depressão com demência recebem o nome de pseudo-demência depressiva (Desmond, 2004). Nestes casos, soma-se à lentidão dos processos psíquicos um exagerado desinteresse, dando a falsa impressão de que a pessoa não está tendo consciência absoluta da realidade. Essa confusão depressão-demência pode ser maior ainda, levando-se em conta o fato da depressão freqüentemente ter características atípicas nos idosos.
Na realidade, o que o paciente deprimido tem é um grande desinteresse em lembrar fatos e em participar dos eventos cotidianos. Embora isso ocorra em alguns casos, não pode ser considerado como regra geral. Boa parte dos pacientes inicialmente diagnosticados como deprimidos apresentaram, depois de algum tempo, verdadeiros sinais de demência, apesar da melhora inicial com o uso de antidepressores. Os próprios estudos de imagem cerebral podem revelar sinais mais compatíveis com demência do que da depressão nos pacientes diagnosticados com pseudo-demência depressiva (Hackett & Anderson, 2005).
Pacientes com depressão pós-AVC também apresentam déficits na recordação em tarefas que requerem o uso espontâneo de estratégias, ao contrário do observado naquelas que direcionam o uso de estratégias ou que prescindem das mesmas, indicando que os déficits experimentados na depressão se dão na iniciativa cognitiva. Deprimidos têm prejuízo da evocação de material cujo processamento é “desgastante”. Isto resulta da reduzida capacidade em perfazer essas operações e não por verdadeira diminuição na quantidade de material lembrado (Zandvoort et al., 2004).
Tendo em vista as disfunções que dizem respeito à região pré-frontal na depressão pós AVC vários estudos neuropsicológicos vêm se atendo ao funcionamento executivo nesses pacientes. A síndrome disexecutiva na depressão pós AVC vem sendo estudada e, considerando suas interferências diretas na vida diária e no prognóstico, torna-se fundamental sua identificação (Alexopoulos, Raue & Arean, 2003).
A flexibilidade mental mostra-se comprometida em vários estudos, com persistência de estratégias inapropriadas. Observam-se alterações na estruturação de estratégias de planejamento e ainda alteração executiva relacionada à iniciação da tarefa. Segundo Joubert et al. (2006), nos transtornos de humor parece haver uma falha nos processos inibitórios de comportamento.
Saber exatamente como a pessoa apresenta sua depressão é uma questão complexa. Como dissemos, as manifestações depressivas são muito variadas e extremamente dependentes da personalidade de cada um. Mas uma coisa é certa: a depressão costuma estar associada à maioria dos transtornos emocionais, ora aparecendo como um sintoma de determinado estado emocional, ora apenas coexistindo com quadros ansiosos, outras vezes como causa de determinados transtornos. Em muitas situações psíquicas a depressão se encontra presente, seja sob a forma típica ou dissimulada (Aybeck et al., 2005).
O impacto psicológico gerado pelas limitações impostas pelo AVC já pode ser condição suficiente para originar um quadro de depressão reativa, exógena ou de ajustamento, conforme diferentes autores. É importante que ela seja tratada juntamente com a doença física, pois se observa, com freqüência, a formação de um círculo vicioso: doença-depressão-piora da doença. A depressão reativa é apresentada em 90% dos pacientes. Na realidade, é dependente das circunstâncias da vida (Carota, et al., 2002) e comumente tem um agravamento dos sintomas à noite. Isso está relacionado com o nível de cortisol que é estimulado pela luz e estabelece o ritmo circadiano.
É mais secretado pela manhã, com pico às seis horas e, à noite, seu nível cai. A depressão exógena pode ser também neurótica. Neste caso, ela também tem um objeto, mas é uma depressão crônica, não ocasional. A depressão exógena reativa, diferente da neurótica, pode acontecer apenas uma vez ou duas vezes na vida do paciente porque o fator agressor foi muito grande. Na depressão neurótica o paciente vive deprimido. Ele se deprime porque chove, porque o filho chega tarde, porque acha que o amigo não o cumprimentou direito. Neste caso o objeto existe, mas não causaria depressão na maioria da população (Hoffmann, Chichkova & Malek, 2004).
Discussão
Foi demonstrado que a prevalência de transtornos depressivos associados ao AVC, conforme a produção científica pesquisada, apresenta alta variabilidade. Esta prevalência decorre não somente do impacto psicológico gerado pelas limitações neurológicas. Vários fatores indicam que o AVC pode levar à ocorrência de depressão devido a alterações psicológicas e não apenas fisiopatológicas.
Dentre elas podemos destacar a presença de déficit cognitivo, irritabilidade, hostilidade; lentidão psíquica, humor não relacionado com o comprometimento físico e, ainda, o fato de haver maior prevalência de depressão após AVC do que em outras doenças com mesmo grau de incapacidade. Ao mesmo tempo, a associação fisiopatológica entre AVC e depressão não exclui a participação de fatores psicológicos na ocorrência da depressão pós-AVC. Antecedentes de depressão e o grau de comprometimento funcional foram associados à maior gravidade da depressão.
Assim, de acordo com os estudos apresentados, a depressão pode ser: secundária à lesão cerebral decorrente do AVC (localização neuroanatômica), envolvida na regulação do humor; um transtorno depressivo recorrente; exacerbação de um estado depressivo já existente; e, finalmente, pode estar relacionada ao AVC como fator facilitador da sua ocorrência. Analisar a natureza da associação entre depressão e AVC, portanto, exige cautela, pois não considerar esta complexa associação pode levar à conclusão equivocada.
Além desta relação de fatores cerebrais e emocionais da depressão pós-AVC, a literatura analisada identificou outros fatores que participam do fenômeno. Vários estudos enfatizam as alterações cognitivas presentes no AVC e independentes do estado depressivo. Os pesquisadores vêm se concentrando no estudo de algumas regiões anatômicas onde há maior consistência e correlação com as manifestações psicopatológicas do transtorno. As regiões mais estudadas têm sido as áreas frontais e suas conexões, bem como as áreas temporais. No entanto, permanece não demonstrada, com clareza, a relação entre localização e extensão da lesão e as manifestações depressivas pós-AVC, havendo, ainda, necessidade de maiores estudos.
A associação entre depressão e deterioração cognitiva global também tem sido extensivamente estudada em pacientes com AVC. Porém, são poucos os achados consistentes a respeito das correlações neuropsicológicas específicas.
Neste artigo foi demonstrado o modo como as disfunções cognitivas, principalmente as executivas, que também contribuem negativamente para as depressões pós-AVC. A inespecificidade e a sobreposição de vários sintomas depressivos, como manifestações neurológicas decorrentes da lesão cerebral, trazem dúvidas também sobre a consistência e a validade dos critérios diagnósticos de depressão quando aplicados nesses pacientes.
Dessa forma, sustentar o diagnóstico de depressão apoiando-se na observação de sintomas autonômico-somáticos e/ou em outras manifestações sintomáticas que possam ser percebidas objetivamente é ainda uma forma de viabilizar essa dificuldade. Entretanto, como foi visto em vários estudos, na avaliação de depressão em pacientes com doenças somáticas, a inespecificidade de vários sintomas somáticos, ou seja, retardo psicomotor, perda/ganho de peso, diminuição da libido, insônia, apatia e falta de energia, que caracterizam o diagnóstico de depressão primária, pode produzir falsos positivos para o diagnóstico de depressão nessa população.
Do ponto de vista teórico, mais recentemente postulou-se que a relação entre prejuízo funcional e gravidade da depressão pós-AVC não é direta, mas sim medida pelo significado que o paciente atribui à sua incapacidade. Em alguns estudos verificou-se maior prevalência de ansiedade no quadro clínico da depressão pós-AVC, comparativamente à depressão primária. Talvez seja um indício de que a ansiedade possa ser mais freqüente na depressão pós-AVC. Entretanto, não há menção sobre a possibilidade do diagnóstico de transtorno de ansiedade, embora muitos indícios que fazem parte da avaliação do quadro de depressão sejam inespecíficos como ansiedade, tensão, preocupação e os sintomas somáticos. Em geral as pesquisas nessa área quase não investigam outros transtornos mentais associados.
Quanto ao prejuízo cognitivo, pacientes com depressão pós-AVC mostraram um perfil neuropsicológico específico, incluindo, principalmente, velocidade de processamento, visuopercepção, linguagem, atenção e funções executivas. Isto levou alguns autores a considerarem a hipótese de que a depressão seja associada a desordens subcorticais envolvendo substância branca e, assim, os prejuízos mnemônicos e da fluência verbal seriam secundários à disfunção executiva, especialmente nas fases iniciais do AVC.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As relações entre depressão e AVC parecem ser bidirecionais e influenciadas tanto por condições emocionais quanto neurológicas. Embora os estudos ainda não tenham conseguido explicitar, com clareza, tais relações, as pesquisas visando o esclarecimento da fisiopatologia na depressão pós-AVC mantêm-se em desenvolvimento e poderiam trazer valiosas contribuições para o tratamento destes pacientes e melhora da sua qualidade de vida.
A neuropsicologia, por sua vez, vem se aprimorando no desenvolvimento de técnicas capazes de identificar tais disfunções e os padrões neuropsicológicos específicos na depressão pós-AVC. Os estudos dos aspectos neuropsicológicos desta doença são de grande importância, pois permitem a aproximação do campo das neurociências ao da psiquiatria, permitindo que vários aspectos estudados nesses pacientes, como sua personalidade e história pregressa, venham identificar possíveis fatores de risco para depressão. E, ainda, permitir melhor compreensão do estado crítico e intercrítico da depressão pós-AVC, abrindo caminho para a busca de teorias mais eficazes de diagnóstico, tratamento e prevenção de eventuais seqüelas cognitivas nos pacientes.
A investigação de áreas neuroanatômicas acometidas pelo AVC como fatores de risco para a depressão pós-AVC é um método que também pode contribuir para o maior conhecimento sobre a fisiopatologia da depressão pós-AVC em pesquisas futuras.
REFERÊNCIAS
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Endereço para correspondência
E-mail: marga_neuropsico@hotmail.com
1 Psicóloga com título de Especialista em Neuropsicologia reconhecido pelo CFP, Auxiliar de pesquisa da Divisão de Psicologia do Instituto Central do Hospital das Clínicas da FMUSP.
2 Psicóloga Especialista em Neuropsicologia (CFP), Mestre em Ciências (Fisiopatologia Experimental) e Doutora em Ciências (Neurologia) pela FMUSP.
3 Psicanalista, Doutora em Psicologia Clínica pela PUC-SP, Diretora da Divisão de Psicologia do Instituto Central do Hospital das Clínicas da FMUSP e Presidente do CEPSIC - Centro de Estudos em Psicologia da Saúde.