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Psicologia Hospitalar
versão On-line ISSN 2175-3547
Psicol. hosp. (São Paulo) vol.8 no.2 São Paulo jul. 2010
ARTIGOS ORIGINAIS
Aspectos psicossociais da gestação múltipla: revisão de literatura
Psychosocial aspects of multiple pregnancy: review of literature
Gláucia Rosana Guerra BenuteI,1; Débora Cristina Romualdo NozellaI,2; Cecília ProhaskaI,3; Maria de Lourdes BrizotII,4; Adolfo LiaoII,5; Mara Cristina Souza de LuciaI,6; Marcelo ZugaibIII,7
IDivisão de Psicologia do Instituto Central do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
IIDivisão de Clínica Obstétrica do Instituto Central do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina Universidade de São Paulo
IIIDepartamento de Obstetrícia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
RESUMO
Contexto: A Gestação Múltipla consiste na concepção de dois ou mais fetos simultaneamente, ocasionando riscos fisiológicos e psicossociais. Objetivo: Apresentar revisão bibliográfica sobre gestação múltipla. Método: Realizou-se pesquisa bibliográfica nas bases de dados Medline, Lilacs e Scielo com as palavras chaves gravidez múltipla, depressão, ansiedade, psicologia, estresse, apoio social e seus equivalentes em inglês entre os períodos de 1990 a 2009. Resultados: A gestação gemelar na vida da mulher consiste em um período de mudanças fisiológicas, emocionais e psicossociais ainda mais intensas do que em uma gestação de feto único. Foram encontrados descritos sentimentos de baixa autoestima, depressão, inadequação, estresse e angústia. Este estudo ganha importância, haja visto o aumento na incidência de gestações gemelares nas últimas décadas e na observação do impacto ao gerar filhos múltiplos em toda a vida da mulher, sua saúde mental e na constituição da família.
Palavras-chave: Gravidez múltipla, Psicologia, Saúde Mental, Depressão, Estresse.
ABSTRACT
Background: The multiple pregnancy consists in the conception of two or more fetuses simultaneously, taking to physiological and psychosocial risks. Objective: The objective of this article was to present a review of literature regarding multiple gestation. Method: A survey was conducted in the databases Medline,Lilacs and using the keywords multiple pregnancy, depression, anxiety, psychology, stress e social support and their equivalents in English among the periods of 1990 and 2009. Results: The multiple gestation consists in a period of physiologic, emotional and psychosocial changes even more intense than in a gestation of one fetus. Feelings of low self-esteem, depression, inadequacy, stress and anguish were found. This study became important due to the increase of multiple gestations incidence in the last few decades and also to the observation of impact of conceiving multiple children in woman’s ife, mental health and constitution of the family.
Keywords: Pregnancy multiple, Psychology, Mental health, Depression, Stress.
INTRODUÇÃO
A gestação na vida da mulher pode ter vários significados: realização de um sonho, tornar-se mulher, cumprimento de determinação social, interrupção da vida normal, adaptação a uma nova realidade, entre outros. De fato a gestação implica diversas mudanças, começando com as corporais, passando por alterações nos papéis sociais do casal e em toda a constituição familiar. No caso da gravidez múltipla, ela consiste na presença de dois ou mais fetos simultaneamente, o que à primeira vista traria mudanças ainda maiores.
A gestação múltipla, até anos atrás, era um fenômeno menos frequente, no entanto, em virtude de técnicas de reprodução assistida como a inseminação artificial, o número de gestações múltiplas tem aumentado significativamente. Dados da Espanha apontam que nos últimos 20 anos o número de gravidezes gemelares praticamente dobrou e o de trigemelar aumentou em seis vezes (Roca de Bes, Maldonado & Martinez, 2009). No Brasil, os casos de bebês múltiplos não são poucos e não podem ser negligenciados. Dados da Pesquisa Nacional de Amostras por Domicílio (PNAD) do IBGE, no período entre 1992 e 1999 houve um total de 1.033 mães de gêmeos para 194.903 mães de não gêmeos (Pazello, 2006). Colletto (2003) destaca que a incidência de gêmeos na cidade de São Paulo é de 10,45 para gêmeos e 0,29 para trigêmeos para cada 1000 nascimentos.
Esse aumento mundial na incidência de múltiplos torna-se preocupante, principalmente na saúde pública, visto que a gravidez gemelar é uma gestação de risco para o bebê e para a mãe, pois fenômenos como prematuridade, baixo peso ao nascer, malformações fetais e também risco maior de mortalidade e morbidade materna e do bebê são encontrados (Bryan, 2003). Esses e outros riscos, como os econômicos e sociais, podem fazer dessa gestação mais estressora e trazer consequências para a sociedade como o abandono do mercado de trabalho pela mãe de gêmeos (Pazello, 2006).
Mesmo com todos os riscos e complicações que uma gravidez gemelar pode provocar, grande parte dos casais que passam por tratamento de fertilidade relatam desejar a gravidez múltipla (Kalra, Milad, Klock & Grobman, 2003; Gleicher & Barad, 2009). Tal fato pode estar relacionado a aspectos culturais, ideais sobre a maternidade, busca por amor ou complemento da família, pressão social, crenças e mitos sobre gêmeos (Baor & Blickstein, 2005). É comum que os riscos da gravidez gemelar, principalmente os sociais, sejam ignorados ou negligenciados pelo casal e pelos profissionais de saúde, o que evidencia despreparo dos pais em relação a essa gestação e aos bebês que esperam (Campbell, Teijlingen & Yip, 2004)
Além disso, a transição para a paternidade/maternidade é um período de mudanças e estresse, especialmente para pais de gêmeos. Eles têm de lidar com dois bebês recém-nascidos que poderão ter necessidades especiais em virtude da prematuridade, baixo peso, problemas no pré-natal, complicações essas que poderão levar a sentimentos como insuficiência e incerteza, elevando os riscos de desenvolvimento de estresse, depressão e ansiedade (Vilska et al., 2009).
Considerando a importância em se compreender a complexidade da vivência da gestação múltipla, este artigo tem por objetivo apresentar revisão bibliográfica sobre a gravidez múltipla, visando apresentar o impacto psicossocial na mulher.
MÉTODO
Realizou-se pesquisa bibliográfica nas bases de dados Medline, Lilacs e Scielo utilizando o termo gravidez múltipla, associado aos termos depressão, ansiedade, psicologia, estresse, apoio social e os seus equivalentes em inglês.
A busca foi feita entre o período de 1990 e 2009, sendo selecionados artigos publicados na língua inglesa, francesa e portuguesa. Foram incluídos textos com foco na gestação múltipla, seus aspectos emocionais, psicossociais, econômicos e sua influência na saúde mental e física da mulher durante esta gestação e após o parto, independente desta ser decorrente de reprodução assistida ou não. Após a seleção dos artigos, fez-se busca ativa entre as citações bibliográficas em busca de novos artigos de relevância.
Foram desconsiderados artigos que se relacionavam exclusivamente às complicações médicas de uma gravidez múltipla.
A análise dos artigos foi realizada a partir de leitura criteriosa que permitiu a separação por afinidade de conteúdo (Marconi & Lakatos, 1999).
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A tabela 1 apresenta os aspectos descritos na literatura referentes às vivências das mulheres no período gestacional.
Os aspectos vivenciados pelas mulheres no período pós-parto apresentam-se descritos na tabela 2.
O Diagnóstico de Gestação Múltipla
O momento do diagnóstico da gestação múltipla normalmente é acompanhado por muitas emoções. Observa-se que as reações do casal podem ser exclusivamente positivas, negativas ou ambivalentes. Nys, Colpin, Munter e Vandemeulebroecke (1998) apontam que 54% das mulheres que recebem diagnóstico de gravidez múltipla tiveram reações positivas como alegria e satisfação, 29% ficaram surpresas e incrédulas e para 39% seu diagnóstico foi motivo de choque e/ou sentimentos negativos. Leonard e Denton (2006) destacam combinação de sentimentos negativos como choque, ansiedade e angústia, com sentimentos positivos como orgulho, exaltação e satisfação.
Comparando mães de gêmeos que conceberam espontaneamente e que conceberam após tratamento de infertilidade, Yokoyama (2003) conclui que essas últimas apresentaram maior deleite com o diagnóstico de gestação múltipla.
A confirmação da gestação múltipla também pode propiciar conflitos relacionados ao aumento das dificuldades financeiras, dos cuidados e da responsabilidade. (Thorpe, Golding, MacGillivray & Greenwood, 1991).
Tendo tudo isso em vista, o diagnóstico de que uma mãe espera por filhos gêmeos é preciso ser dado pelo médico com muita sensibilidade, sem preconceitos nem pressuposições sobre sua reação, visto que o casal estará entrando em contato pela primeira vez com vários conceitos comuns à gestação múltipla, mas que eram até então desconhecidos. É preciso deixá-los falar, expor suas dúvidas e impressões iniciais. Ainda hoje alguns profissionais de saúde são da opinião de que não se deve revelar a gestação múltipla ao casal antes do fim do primeiro trimestre da gravidez, tendo em vista que se trata de uma gravidez de risco e pode ocorrer a perda de um dos bebês. No entanto, com atitudes como esta, o casal pode sentir-se enganado e ocorre o sentimento de que tem o direito de ser informado da multiplicidade da sua gestação desde a sua descoberta (Leonard & Denton, 2006; Bryan, 2005).
No caso de gestação planejada é preciso tempo para que o casal possa processar a informação, o diagnóstico de uma gestação múltipla e a possibilidade de redução fetal, por exemplo, são questões que devem ser trabalhadas separadamente. É preciso tempo e informação para a discussão tanto da possibilidade de ter bebês múltiplos como da redução fetal, para que o casal possa tomar sua decisão de acordo com suas próprias crenças e julgamentos morais (Ellison et al., 2005).
Vivenciando a Gestação Múltipla
Na nossa sociedade é comum e desejável que a mulher busque tornar-se mãe, isso por motivos tanto individuais como ligados a valores culturais e sociais. Para a sociedade o papel de mãe ainda está intimamente relacionado à identidade feminina; e entre desejos individuais da mulher para ter um filho podem estar depósito de esperança de melhora da relação conjugal na gestação, filhos como possibilidade de resolução de problemas pessoais, preenchimento de vazio, aumento do sentido da vida e alívio da solidão (Scholz, Bartholomaus, Grimmer, Kentenich & Obladen, 1999; Baor & Blickstein, 2005).
No entanto, nem sempre uma gravidez espontânea é possível, como é o caso de casais inférteis, sendo o apelo para técnicas de reprodução assistida visto como uma última esperança (Baor & Blickstein, 2005).
Com o uso de técnicas de reprodução assistida, o número de gravidezes múltiplas em todo mundo aumentou consideravelmente, o que fez com que cada vez mais estudos fossem necessários para investigar essa população. Alguns estudos conceituam que poucos casais desejam uma gestação múltipla no início de um tratamento da infertilidade, mas que durante o tratamento esse desejo tende a aumentar, sendo que algumas vezes essa gestação é vista como ideal. No entanto, poucos casais que passam pelo tratamento têm conhecimento dos riscos da gestação múltipla ou, quando tomam conhecimento, são mais tolerantes a eles percebendo-os como pouco adversos. Após sessões de aconselhamento e informação sobre a gravidez múltipla e seus riscos, essa posição é frequentemente reconsiderada (Roca de Bes et al., 2009; Grobman, Milad, Stout & Klock, 2001; Colpin, Munter, Nys & Vandemeulebroecke, 1999; D’Alton, 2004).
Esse desejo maior de casais inférteis pela gestação múltipla e a banalização de seus riscos poderiam estar alicerçados na esperança do término do período de infertilidade, na imensa vontade de tornarem-se pais, na oportunidade mágica de formar uma família imediata, no desejo de que os filhos tenham irmãos, na atitude positiva por gêmeos e na minimização do estresse com o menor número de tratamentos de infertilidade possível. (Kalra et al., 2003; Højgaard, Ottosen, Kesmodel & Ingerslev, 2007).
Em contraposição, Gleicher e Barad (2009) contestam que os riscos da gestação múltipla em reprodução assistida são superestimados por estudos e profissionais de saúde. Os autores sustentam que os riscos aumentados em gestação múltipla são aplicáveis apenas à gestações múltiplas espontâneas, e que na reprodução assistida os riscos seriam menores devido à população que recorre a este serviço, mulheres mais velhas e que esperam um longo tempo pela gravidez, e ao acompanhamento clínico constante.
A gestação como um processo vital pode ser designada como um período normal do desenvolvimento, é socialmente desejável para que a mulher cumpra com seu papel, mas implica mudanças em diversas esferas da vida. Para tornar-se mãe a mulher frequentemente precisa renunciar à sua autonomia, liberdade, identidade ocupacional, capacidade de gerar renda, atividades sociais e lazer em favor da criação dos filhos. A adaptação às novas regras, responsabilidades, multiplicação de tarefas e o ataque à integridade corporal podem gerar demandas psicológicas e nas relações sociais tornando essa vivência ainda mais complicada. No caso de gestações múltiplas, as necessidades de adaptação podem tornar-se ainda maiores levando a atitudes como o abandono do emprego antes do intencionado devido aos riscos físicos aumentados como fadiga, indigestão, desconfortos, causando um aumento nas dificuldades financeiras já existentes e trazendo ainda maiores consequências no bem-estar psíquico da mulher (Campbell et al., 2004; Leonard & Denton, 2006; Fisher & Stocky, 2003).
A saúde mental da mulher no período gestacional pode ficar comprometida e poucos estudos têm sido feitos associando gestação múltipla e o desenvolvimento de transtornos psiquiátricos (Fisher & Stocky, 2003), mas há indícios de que as fantasias psíquicas de intrusão podem ser especialmente fortes em uma gestação múltipla dando a sensação de que a mulher pode estar em risco quanto à sua integridade (Garel et al., 2006)
A vivência de uma gestação de gêmeos pode despertar diversos tipos de sentimentos. Em pesquisa executada por Nys et al. (1998) com gestantes que passavam por uma gravidez múltipla, a 27 semanas de gestação, 70% das mulheres entrevistadas se disseram felizes com a gestação, 8% se sentiam orgulhosas por serem mães de gêmeos, 25% relataram que aceitaram a gravidez múltipla mesmo sem estarem exatamente felizes com ela, 31% relataram incerteza sobre suas competências para serem mães de gêmeos e 21% se sentiam frustradas devido aos desconfortos físicos e limitações da gravidez.
Sentimentos ambivalentes na gestação múltipla são até certo ponto considerados normais. De um lado, a mulher pode sentir-se realizada e com a autoestima elevada, por outro lado, preocupações com a saúde da mãe e dos bebês, por exemplo, são uma constante fonte de ansiedade Exigências como a necessidade de abandono do emprego, acompanhamento médico constante ou necessidade de confinamento em uma cama durante a gravidez podem vir de encontro com outros planos prévios da mãe colocando em contraposição seu sonho de gravidez e no que ela realmente se transforma. Esse contraste fica ainda em maior evidência quando essa gravidez se dá após longos tratamentos de infertilidade.
Diante de uma gravidez que não é a ideal, a mulher pode sentir-se enganada, sofrer abalos ainda maiores em sua autoestima e na confiança em estar pronta para gerar e ser mãe. Destes contrastes podem resultar sentimentos como a culpabilização de si mesma pelas coisas erradas que acontecem, sentimentos de raiva, agressividade e de estar fora do controle em relação ao tratamento (Klock, 2004).
A gestação múltipla é considerada como mais estressora que uma gravidez comum, visto que a gravidez, parto e cuidado de gêmeos envolvem vários eventos e circunstâncias diferentes de uma gravidez com apenas um feto, pois existem riscos aumentados de parto prematuro, hipertensão e diabetes gestacional, hemorragia, pré-eclâmpsia, além de outros riscos para o bebê como retardo no crescimento fetal, má formação, baixo peso e morte (Thorpe et al., 1991; Elster, 2000).
As constantes intervenções médicas, assim como as altas expectativas em relação aos filhos, podem fazer da gravidez gemelar ainda mais estressante (Baor & Blickstein, 2005; Klock, 2004). Histórico de infertilidade e longo tratamento para engravidar também podem ser agravadores na intensidade de como será vivenciado esse estresse na gestação múltipla (Colpin et al., 1999).
A ocorrência dos eventos adversos comuns à gestação gemelar permitem maior predisposição para desenvolver sintomas ansiosos e depressivos (Roca de Bes et al., 2009; Bryan, 2003; Thorpe et al., 1991; Ellison & Hall, 2003; D’Alton, 2004).
O diagnóstico de depressão e ansiedade na gestação é muitas vezes negligenciado, deve ser questão abordada com frequência pelos profissionais de saúde, pois cerca de 25% dos pais e mães que passam pela gestação múltipla sofrem de ansiedade ou depressão. (Leonard, 1998).
A depressão durante o período gestacional e o pós-parto varia em sua intensidade, frequência e duração dos seus sintomas. Atualmente, os estudos têm se preocupado mais com a saúde mental de gestantes de feto único, não sendo possível afirmar com certeza se existem fatores adicionais de riscos na gestação múltipla, ou se ela própria seria um fator de risco.
Além dos conflitos emocionais envolvidos na gestação múltipla, e eventos estressores predisponentes de estados depressivos, muitos autores focam sua atenção no desenvolvimento de ansiedades durante uma gestação múltipla. A ansiedade materna, principalmente em relação à saúde e bem-estar do bebê, acompanha todas as gestações, mas é intensificada na gestação de múltiplos (Fisher & Stocky, 2003).
Em estudo de Yokoyama (2003), mães que tinham passado por tratamento de infertilidade e geravam gêmeos apresentavam menor ansiedade do que gestantes espontâneas de gêmeos. Uma gestação múltipla pode tornar-se mais estressante tanto fisicamente como emocionalmente, em virtude da necessidade de acompanhamento e intervenções frequentes e maior desconforto físico (Baor & Blickstein, 2005; Thorpe et al., 1991), pois mesmo que o monitoramento frequente proporcione formas de lidar melhor e mais cedo com a gestação, ele é vivenciado com ansiedade, e pouca informação tem estado à disposição das mães (Campbell et al., 2004).
Segundo Nys et al. (1998), 87% de mães e 65% de pais que geravam múltiplos apresentavam sintomas de ansiedade. Razões para o distúrbio, nas mulheres, foram em maior proporção preocupações com o parto, com a saúde do bebê, prematuridade, com a capacidade de ser mãe; e em menor proporção preocupações financeiras e com consequências do parto na relação conjugal.
Para os pais, as maiores fontes de ansiedade estavam em relação ao parto, com a saúde dos bebês, e em menor proporção foram mencionadas preocupações com a prematuridade, paternidade de gêmeos, problemas financeiros e consequências do nascimento de gêmeos na relação conjugal. Outras fontes de ansiedade podem ser encontradas diante da possibilidade de aborto e preocupações com as mudanças intrínsecas à gestação (Klock, 2004).
Frente a tantos conflitos emocionais possíveis na gestação múltipla, como aumento de eventos estressores e alto risco de desenvolvimento de depressão e ansiedade, poderíamos pensar em como ficaria o desenvolvimento da relação afetiva entre a mãe e os bebês, que se inicia desde a gestação.
Na gestação gemelar, por seu caráter de alto risco, um vínculo diferenciado será criado entre os filhos e a mãe. Ainda na vida intrauterina pode existir uma diferenciação entre os bebês, tanto pela sua posição, gênero, movimentos fetais, entre outros aspectos e características que poderão influenciar no vínculo da mãe com cada feto. Essa diferenciação não é incomum e é até desejável, pois caracteriza um vínculo saudável, e pode mudar ou não após o parto.
No entanto, alguns autores apontam para uma menor intensidade de vínculo com cada bebê decorrente dos riscos da gestação, sugerindo uma cautela da mãe ao se relacionar com os bebês (Damato, 2000; Leonard & Denton, 2006).
É importante que os profissionais de saúde possam observar a forma como se dá essa relação com cada bebê ainda na vida intrauterina, pois esta poderá influenciar significativamente no relacionamento da mãe com seus bebês na vida após o parto.
Pós-parto e saúde mental dos pais
É natural que casais que esperam gêmeos necessitem de informações e aconselhamento para sua preparação nos primeiros cuidados de múltiplos. As dificuldades a serem enfrentadas diante do cuidado de duas crianças simultaneamente tendem a ser grandes, mas, especialmente na primeira gravidez, os pais costumam superestimar sua energia e negligenciar a necessidade de ajuda até que os bebês cheguem.
O pedido por ajuda pode ser visto como uma vergonha frente a visão de que devem ser capazes de cuidar dos bebês sozinhos, assim, o incentivo ao planejamento dos cuidados com os bebês deve ser dado desde o início da gravidez, prevenindo riscos na relação mãe-bebês (Leonard & Denton, 2006)
O planejamento dos cuidados deve ser feito por pelo próprio casal. À primeira vista podem aparecer problemas em relação à energia e tempo do casal na criação dos filhos, sugerindo deterioramento da qualidade da relação com seus bebês, pode haver impressão de que se privilegia um deles, ou a sensação de que são incapazes de manter seu foco e se entregar inteiramente a cada bebê sem estar com o pensamento no outro. Suprir as necessidades dos dois bebês que competem entre si pode levar a intensos sentimentos de frustração e fadiga (Leonard, 1998).
A volta para casa após o nascimento de gêmeos é especialmente estressante diante do trabalho excessivo e constantes exigências de cuidados com os bebês. As mães passam tanto tempo cuidando das demandas físicas de seus bebês que não têm tempo de se relacionarem emocionalmente com estes, gerando sentimentos de estresse, fadiga, deterioramento na relação conjugal e sentimentos de culpa (Roca de Bes et al., 2009). Feldman et al. (2004) apontam que essas dificuldades podem resultar em uma menor sensibilidade materna, o que poderia intervir no desenvolvimento simbólico e cognitivo da criança.
As dificuldades maternas são ainda maiores quando, depois de muita espera e expectativa para a construção instantânea de uma família ideal, os pais se deparam com uma família real, que pode ter riscos médicos, não ser tão saudável ou feliz como se esperava (Bryan, 2002).
Situações em que ocorreram prematuridade, necessidade de um dos bebês ficar mais tempo no hospital ou um dos bebês estar doente poderão gerar sentimentos de culpa, ressentimento e inadequação na mãe (Bryan, 2002; Bryan, 2003; Leonard & Denton, 2006).
Até mesmo a perda de um dos bebês torna os cuidados com a criança ainda mais difíceis, visto que se tem na criança à sua frente a lembrança permanente do filho morto, um luto que frequentemente não é considerado, pois socialmente é imposto que a mãe deve estar feliz pelo bebê sobrevivente (Bryan, 2003).
Em comparação com pais de filhos únicos prematuros, pais de gêmeos prematuros podem apresentar-se menos responsivos, com menor iniciativa diante de choros ou sinais positivos do bebê, ter menos contato físico, brincadeiras e falas com o bebê, o que pode comprometer seu desenvolvimento cognitivo (Ostfeld et al., 2000).
Independente de eventos estressores adicionais, o cuidado simultâneo, igual e ao mesmo tempo adequado à necessidade de cada bebê pode parecer impossível, e esta dificuldade pode ser mais intensa no cuidado de crianças com necessidades especiais (Bryan, 2003; Thorpe et al., 1991; Elster, 2000).
Garel et al. (1997) constataram que a maior parte das mães apresentavam algum problema emocional ou social quando as crianças já se encontravam com um ano de idade. Foram mencionados fadiga, estresse, dificuldade em receber ajuda, isolamento social e problemas conjugais. No relacionamento com os filhos os sentimentos relatados eram de frustração, culpa, sensação de que não podiam dar a atenção adequada para cada criança e dificuldades psicológicas como ansiedade, irritabilidade, debilidade e depressão.
Assim, a exaustão devido à alta demanda de cuidado de gêmeos, privação do sono, falta de tempo para si mesma são fatores agravantes para o isolamento social da mãe, geradores de sentimentos como incerteza e insuficiência, e podem ocasionar estados de depressão e ansiedade (Campbell et al., 2004; Vilska et al., 2009).
Em pais com depressão pode ser difícil revelar seus reais sentimentos de dor até para seus familiares por medo de que os abandonem, os julguem como incapaz de cuidar de seus filhos, e é comum a fantasia de que as pessoas podem afastá-los de seus bebês.
A idéia de ter filhos múltiplos está ligada a felicidade e em muitos casos há a imagem de uma mãe que está bem e satisfeita com os cuidados de suas crianças, quando na verdade ela pode estar se sentindo descontrolada, inadequada e sobrecarregada Os cuidados de gêmeos podem fazer com que a mulher sinta-se perdida ou esquecida em favor dos filhos e sem saber mais sobre sua própria identidade (Leonard, 1998).
Frente a tantos agravantes nos cuidados de gêmeos, o deterioramento da relação conjugal é, de certa forma, esperado devido ao menor tempo para comunicação entre o casal (Klock, 2004). Após o nascimento de múltiplos é comum que o pai seja mais requisitado como ajudante nos cuidados com o bebê e nas tarefas domésticas, e o abandono do emprego da mãe pode fazer com que o pai tenha que trabalhar por dois para suprir as necessidades materiais de sua família.
Alguns autores assinalam, no entanto, que a renegociação dos cuidados da casa e dos múltiplos entre o casal, acarretando uma maior participação do pai, pode levar a nenhum abalo ou melhora na relação conjugal (Ellison & Hall, 2003; Sydsjö et al., 2008).
Em auxílio ao casal no cuidado de gêmeos é comum a necessidade de suporte social para minimizar os eventos estressores e seus impactos na vida e no desenvolvimento emocional do bebê (Feldman et al., 2004; Garel et al., 2006).
Questões que comumente podem necessitar de ajuda são em relação a amamentação de múltiplos, planejamento de uma rotina de sono, ou a divisão dos cuidados com os bebês e com a casa (Leonard & Denton, 2006).
Não é incomum que pais de gêmeos desenvolvam questões e preocupações que dificilmente são expostas, mas que são muito importantes de serem percebidas e trabalhadas por um olhar diferenciado do profissional de saúde (Leonard & Denton, 2006; Bryan, 2002; Bryan, 2005; Roca de Bes et al., 2009).
Gestação múltipla espontânea e decorrente de reprodução assistida: impacto na saúde mental dos pais
Não há consenso na literatura sobre a existência ou não de diferenças entre o impacto na saúde mental dos pais decorrente de gestação múltipla espontânea e de reprodução assistida.
Alguns estudos indicam que uma gravidez gemelar espontânea pode levar a maiores índices de depressão. Os autores destacam que pais que passaram por reprodução assistida apresentaram longa espera pela gestação, foram melhor preparados para a gravidez múltipla, tiveram maior disponibilidade de aconselhamentos, informações, o que faz com que estes pais sejam mais receptivos às dificuldades da gestação múltipla (Vilska et al., 2009; Colpin et al.,1999). No entanto, Roca de Bes et al. (2009) destacam que pode haver receio do casal que passou pela reprodução assistida em relatar o aumento do estresse ou sintomas depressivos à equipe médica.
Em contraposição, outros estudos apontam que pais que precisaram recorrer à reprodução assistida e tiveram filhos gêmeos podem apresentar maior nível de estresse e menor bem-estar emocional, sendo explicado pela alta expectativa em relação à maternidade, extensas demandas da maternidade de gêmeos, inexperiência como mães (Cook et al., 1998), maior percepção de dificuldades nas crianças (Glazebrook et al., 2004), comportamento irregular dos filhos e desencontro entre as expectativas maternas e as adversidades da gestação múltipla (Sheard et al., 2007), e ausência de mecanismo de alívio do estresse (Yokoyama, 2003)
Assim, constatou-se que gerar e ter filhos gêmeos envolve riscos que vão muito além da saúde física da mãe e do bebê, mas perpassam também a saúde psíquica, aspectos como o social, a vida econômica e até mesmo a própria estrutura familiar.
Para esta revisão de literatura foram encontrados poucos artigos em português, nas bases de dados utilizadas, que abordassem a gestação múltipla, os textos brasileiros encontrados ainda mantêm uma visão médica e econômica da gestação múltipla avaliando seus riscos à saúde física da mãe e do bebê e repercussão econômica para a sociedade, vista a necessidade de abandono do emprego que muitas vezes se impõe nessa população.
A escassez de artigos nacionais evidencia falta de estudos e atuações voltadas para a gestante gemelar com vista a prevenção e/ou tratamento da saúde mental da mulher nestas situações.
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Endereço para correspondência
E-mail: grguerra@uol.com.br
1Doutora, Diretora Técnica de Serviço de Saúde da Divisão de Psicologia do Instituto Central do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.
2Psicóloga, especializanda em Psicologia Hospitalar, Divisão de Psicologia do Instituto Central do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.
3Psicóloga, da Divisão de Psicologia do Instituto Central do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.
4Phd, Médica Assistente da Divisão de Clínica Obstétrica do Instituto Central do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.
5Phd, Médico Assistente da Divisão de Clínica Obstétrica do Instituto Central do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.
6Doutora, Diretora da Divisão de Psicologia do Instituto Central do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.
7Professor Titular do Departamento de Obstetrícia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.